I - A prova de uma das hipóteses previstas no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE conduz, necessariamente, à qualificação da insolvência como culposa e à afectação do seu autor por esta qualificação.
II - Já nos termos do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, esta norma consagra verdadeiras presunções juris tantum da culpa grave a que alude o n.º 1 do mesmo artigo, que apenas serão afastadas se o visado lograr fazer prova do contrário, nos termos do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil. Presume-se unicamente a existência de culpa grave, não prescindindo, portanto, da prova do nexo de causalidade exigido pelo n.º 1, do mesmo artigo.
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 1
RELAÇÃO N.º 202
Relator: Alberto Taveira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Raquel Lima
AS PARTES
Insolvente: A..., Lda..
Afectado: AA.
Credor: B..., Lda.
Administrador de Insolvência: BB.
Declarada a insolvência de “A..., Lda.” a 16.07.2021 e junto o relatório do A.I., teve lugar a abertura do presente incidente de qualificação de insolvência, em 13.01.2022.
A Credora B..., Lda., em 22.09.2021 veio alegar que a insolvente realizou uma obra com subempreiteiros, recebeu o valor final da obra, desapareceu com o valor e nada pagou a ninguém, gastando na droga em proveito pessoal e próprio. Concluiu pela qualificação da insolvência como culposa.
O Sr. Administrador da insolvência em 04.02.2022 (e em 25.03. e 01.06.2022), juntou o seu parecer quanto à qualificação do incidente da insolvência, concluindo pela qualificação como fortuita, alegando, para o efeito, que contactou o representante da insolvente com vista à marcação de uma reunião, para prestação de esclarecimentos e entrega de documentação relevante, o qual se disponibilizou para partilhar toda a informação disponível. Acrescentou que a situação de insolvência foi originada por uma prolongada paragem na actividade da empresa a que se seguiu o início da pandemia do Covid, tendo reiniciado a sua actividade, após um longo período parado por questões de saúde, deparou-se com um mercado fechado, com a maioria da população confinada, pelo que, consciente de que, naquela conjuntura, lhe seria completamente impossível manter a empresa em actividade, a empresa decidiu pela sua apresentação à insolvência. Concluiu o A.I., com base na documentação disponível, que não encontrou quaisquer indícios de aproveitamento pessoal, através de ocultação ou alienação de património, com prejuízo para os credores.
Aberta vista ao Ministério Público em 17.10.2022, este pronunciou-se no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa e afectado o gerente da insolvente AA, cfr. artº 186º, n.º 2, al. d) e 3, e 189º, 4 do CIRE.
Cumprido o disposto no artº 188º, n.º 5 do CIRE, veio a requerida/insolvente A..., Lda., deduzir oposição em 02.12.2022, alegando, em síntese, que os créditos vencidos ocorreram num período em que o gerente da insolvente teve uma recaída no decurso do tratamento médicos que realizava, pelo que o gerente da insolvente não agiu com dolo nem por atos voluntários, considerando a sua situação clínica, não tendo a consciência de que os seus atos causariam prejuízo a terceiros, uma vez que não tinha o discernimento necessário e próprio de um “cidadão normal. Alegou ainda que a insolvente iniciou a atividade em 2011 e, em 2012, o gerente suspendeu a atividade devido ao mesmo problema de saúde, não existindo registo de quaisquer dívidas ou incumprimentos. Em 2020, o gerente da insolvente encontrando-se em condições de retomar a actividade, tendo surgido possibilidades de negócio, reiniciou a atividade tendo recaído no seu estado de saúde no final do ano. O gerente da insolvente não retirou e usou, em proveito próprio, os valores que constituem as dívidas existentes, uma vez que, em boa verdade, do consumo do estupefaciente não resulta qualquer proveito próprio, bem pelo contrário, resulta prejuízo quer para a saúde.
O requerido AA não deduziu oposição.
*
Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida SENTENÇA, nos seguintes termos:
“Nestes termos, decide-se:
a) Qualificar como culposa a insolvência da Devedora A..., Lda.;
b) Declarar afetado por tal qualificação AA e em consequência:
i) Decretar a sua inibição para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de dois anos;
ii) Condenar o Afetado a indemnizar, na medida da responsabilidade deste, os credores da Insolvente, no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, pelo valor dos créditos verificados na sentença proferida no apenso de reclamação de créditos;
iii) Determinar a perda de quaisquer créditos por ele detido sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente;(…)“.
A insolvente e o afectado, AA, vêm desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:
“Pela procedência das conclusões formuladas, o presente recurso deve merecer provimento e, por via dele, ser revogada a sentença do Tribunal a quo, com as demais consequências, farão Vossas Excelências a mais inteira e elementar justiça.“.
“I. O presente recurso é interposto da Douta Sentença proferida nos autos de qualificação da insolvência da sociedade comercial A..., Lda., a qual julgou como culposa aquela insolvência e declarou afetado o ex-gerente AA, com as consequências de inibição para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de dois anos; condenação do Afetado a indemnizar os credores da Insolvente pelo valor dos créditos verificados na sentença proferida no apenso de reclamação de créditos…;
II. O artigo 186.º do CIRE define o conceito de insolvência, estabelecendo os pressupostos para a qualificar a insolvência como culposa: a verificação de conduta do devedor ou dos seus administradores, de facto ou de direito, que tenha criado ou agravado a situação de insolvência, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e que essa mesma conduta seja dolosa ou praticada com culpa grave;
III. No n.º 2 do referido artigo 186.º do CIRE são elencadas as situações em que que o legislador presume a insolvência como culposa;
IV. No entanto, para que opere tal presunção, o julgador terá de extrair, com segurança, o nexo de causalidade entre a factualidade e a insolvência;
V. Nos termos preceituados no n.º 6 do artigo 188.º CIRE, declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, o Administrador da insolvência (quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa), apresenta, parecer fundamentado quanto à qualificação da insolvência;
VI. O Sr. Administrador da insolvência emitiu parecer, considerando a insolvência como fortuita, mantendo esse parecer, em sede de audiência de discussão e julgamento;
VII. O Administrador da Insolvência considerou a pandemia do Covid 19 teve influência na origem da insolvência, sendo impossível manter a atividade dada a inexistência de novos negócios, dada aquela situação pandémica, posição que é contrária à sentença recorrida;
VIII. O Tribunal a quo não teve em consideração o estado de emergência que vigorou no país de novembro de 2020 a 30 de abril de 2021;
IX. O Administrador da insolvência, concluiu que com base na documentação disponível a que teve acesso, não encontrou quaisquer indícios de aproveitamento pessoal, através de ocultação ou alienação de património, com prejuízo para os credores, por parte da devedora/insolvente e/ou do seu gerente;
X. O Ministério Público pronunciou-se no sentido de qualificar a insolvência como culposa e afetar o gerente da insolvente, aqui requerido/recorrente;
XI. A insolvente alegou o estado de saúde do seu gerente, nomeadamente, a adição de substâncias psicoativas, não tendo agido por atos voluntários e consequentemente, sem dolo;
XII. Encontra-se incorretamente julgado os factos dados por provados na sentença do Tribunal a quo, designadamente o facto dado por provado n.º 10 “O rendimento auferido no final de 2020 não foi empregue pelo gerente da insolvente ao pagamento das aquisições a fornecedores, mas sim para os seus próprios gastos pessoais”.
XIII. Inexiste qualquer prova de utilização em gastos pessoais do gerente da insolvente seja documental seja por declarações de parte ou pelos esclarecimentos do A. I., o qual considera a insolvência fortuita, carecendo, por isso, de fundamento, o entendimento do tribunal a quão que na sua sentença conclui que o gerente da insolvente integrou no seu património pessoal, todos os valores que recebeu;
XIV. O Tribunal a quo tece considerações relativamente ao facto do requerido/recorrente ter emigrado para os Países Baixos que não podem ser aceites e muito menos constituir fundamento para a boa decisão da causa;
XV. Aquele país, fundador da União Europeia e situado na Europa ocidental, não é um país longínquo, o recorrente emigrou para aquele país como o poderia fazer para qualquer outro;
XVI. Apesar de se encontrar emigrado, tal não o impediu de prestar declarações de parte na audiência de discussão e julgamento (via webex) nem de ser notificado da sentença, o que se verificou no dia 24/04/2024, pelo que se encontra perfeitamente identificada a sua localização;
XVII. Existe prova documental nos autos do processo de insolvência, o documento n.º 2 junto com a P.I. de relatório médico de psiquiatra que acompanha o requerido que indica o motivo pelo qual emigrou, documento que a sentença omite;
XVIII. Demonstrada a falta de fundamentação do Tribunal a quo na sua douta sentença, conclui-se que a factualidade dada por provada e por não provada, encontra-se incorretamente julgada, nomeadamente o ponto 10) e 13), uma vez que os valores recebidos pela sociedade insolvente não foram usados para gastos pessoais do requerido, tendo pago outros valores resultantes da sua atividade, não tendo podido satisfazer os créditos que se encontram reclamados nos autos do processo de insolvência.
XIX. Não consta dos autos, prova suficiente para aplicação da presunção prevista no artigo 186.º, n.º 2, al. d) do CIRE, de acordo com o parecer, obrigatório, do A. I. não resulta que o requerido/recorrente tenha disposto dos bens da devedora em proveito pessoal;
XX. O tribunal a quo não cumpriu com o dever de fundamentar a sua decisão, nos termos do art.º 154.º do CPC, tendo baseado a sua decisão em factualidade incorretamente julgada ou irrelevante e em clara e evidente contradição com o parecer do Administrador da Insolvência que, com acesso a toda a documentação da sociedade insolvente, nomeadamente contabilística, considera a insolvência como fortuita;
XXI. Igualmente, não é aplicável a norma do n.º 1 do mencionado artigo 186.º do CIRE, porquanto a insolvência não foi criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave pelo devedor ou pelo seu gerente nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
XXII. Pelo que antecede, a douta sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que declare a qualificação da insolvência como fortuita, com as devidas consequências legais.“.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil
Como se constata do supra exposto, as questões a decidir, são as seguintes:
A) Modificação da decisão de facto ponto 10 e 13 dos factos provados.
Falta de fundamentação da decisão da matéria de facto.
Inexistência de meios de prova que sustentem tal conclusão factual.
B) Qualificação da insolvência artigo 186.º, n.º 2, alínea d) e 3 do CIRE
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Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório, e bem como aqueles da sentença.
“A) Nos presentes autos, com interesse para a decisão resultaram provados os seguintes factos:
1) A requerida/insolvente A..., Lda foi constituída por contrato de sociedade registado na Conservatória do Registo Comercial Ap. .../20110615, com sede na Rua ..., ..., ... ..., tendo por objeto a comercialização, projeto, montagem, subcontratação e fabrico de máquinas e equipamentos industriais e o capital social de € 5.000,00 distribuídos por duas quotas, uma no valor de € 4.500 pertencente a AA e outra no valor de € 500 pertencente a CC, sendo designado gerente o sócio AA.
2) Pela Ap. .../20170905 foi registada a cessação de funções como gerente de AA, por renúncia e pela Ap. .../2020907 foi designado gerente AA.
3) A A..., Lda apresentou-se à insolvência em 01.07.2021 alegando incapacidade de pagamento das dívidas vencidas, que indicou no valor de €25.664,39.
4) Por sentença proferida a 16/07/2021 foi decretada a insolvência de A..., Lda.
5) Foram reclamados créditos no valor total de €27.284,19, de natureza comum, resultantes de fornecimentos à insolvente no 3º trimestre do ano de 2020.
6) Não foi apreendido qualquer bem para a massa insolvente, sendo o processo de insolvência encerrado por despacho proferido em 26/10/2021 por insuficiência de bens para satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente, cfr. art.º 232º do CIRE.
7) A empresa ora insolvente iniciou a sua atividade em 2011 e em 2012 teve de a suspender, devido a problemas de dependência do seu sócio-gerente AA.
8) Em 2020 este reiniciou a atividade da insolvente, dentro do seu objeto social, tendo iniciado uma obra para a qual solicitou e obteve dos credores B..., Lda., C..., S.A., D..., Lda e E..., Lda. o fornecimento de materiais nos valores constantes das faturas que se encontram no depósito documental (apenso C) e a prestação de serviços.
9) No último trimestre de 2020 o gerente da insolvente voltou a ter uma recaída na sua dependência de estupefaciente e emigrou para a Holanda, onde se mantém.
10) O rendimento auferido no final de 2020 não foi empregue pelo gerente da insolvente ao pagamento das aquisições a fornecedores, mas sim para os seus próprios gastos pessoais.
11) De setembro a dezembro de 2020 a insolvente faturou € 24.845,00.
12) As facturas de vendas foram emitidas a duas entidades - F... e G..., SA e H... Lda, estando ambas saldadas, ou seja, tais faturas foram liquidadas.
13) O gerente da insolvente, AA, não empregou a quantia que a insolvente efetivamente faturou de setembro a dezembro de 2020 ao pagamento dos créditos vencidos, nada tendo sido apreendido para a massa insolvente.
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A)
Modificação da decisão de facto ponto 10 e 13 dos factos provados.
i) Da falta de fundamentação da decisão da matéria de facto.
Nesta sede, os apelantes, sustentam, de modo inusitado e sucinto, que a decisão da matéria de facto padece de falta de fundamentação – quanto aos pontos de facto em discussão.
Ainda que os apelantes intitulem o seu desacordo com a decisão como de falta de fundamentação, na realidade, confundem os recorrentes o vício formal da sentença susceptível de determinar a sua nulidade pela verificação das circunstâncias previstas nas várias alíneas do artigo 615.º n.º 1 do Código de Processo Civil – no caso falta de fundamentação da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil – com o erro de julgamento de facto, situação em que se integram todas as questões por si suscitadas neste âmbito e que encontram a sua previsão no artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Nesta senda, JOSÉ LEBRE DE FREITAS E ISABEL ALEXANDRE, in Código de Processo Civil Anotado, 3.ª ed., pág. 736, em anotação ao artigo 615.º. Afirmam os citados autores: “Face ao atual código, que integra na sentença tanto a decisão sobre a matéria de facto como a fundamentação desta decisão (art. 607, nºs 3 e 4), deve considerar-se que a nulidade consagrada na alínea b) do n.º 1 (falta de especificação dos fundamentos de facto que justifica a decisão) apenas se reporta à primeira, sendo a segunda, diversamente, aplicável o regime do art. 662, n.ºs 2-d e 3, alíneas b) e d) (ac. do TRP de 5.3.15, ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA, www.dgsi.pt, proc. 1644/11, ac. do TRP de 29.6.15, PAULA LEAL CARVALHO, www.dgsi.pt, proc. 839/13)”.
E no caso da presente sentença, de todo em todo, quanto aos apontados factos a M.ma Juíza expendeu suficiente fundamentação que os apelantes bem perceberam. Tanto mais, que nas suas alegações de recurso e conclusões, atacam a dita “falta de fundamentação”.
Somente existe falta de fundamentação quando inexiste qualquer pronúncia por parte do decisor, o que manifestamente não é o caso.
Pelo exposto julga-se não verificada a apontada nulidade de falta de fundamentação.
ii) Da decisão quanto aos pontos 10 e 13 dos factos provados – Inexistência de meios de prova que sustentem tal conclusão factual.
Considerandos.
São as conclusões do requerimento de recurso quem fixa o objecto do recurso.
Dispõe o artigo 640.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, com a epígrafe, “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)“.
A Doutrina tem vindo a expor, de modo repetido e claro, quais os requisitos que o recurso de apelação, na sua vertente de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, terá de preencher para que possa ocorrer uma nova decisão de matéria de facto.
Nesta sede, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª Ed., em anotação à norma supratranscrita importa reter o seguinte.
a) Em primeiro lugar, deve o recorrente obrigatoriamente indicar “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”;
b) Em segundo lugar, tem o recorrente que indicar “os concretos meios probatórios” constantes dos autos que impõe sobre aqueles factos (alínea a)) decisão distinta da recorrida;
c) Em terceiro lugar, em caso de prova gravada, terá de fazer expressa menção das passagens da gravação relevantes;
d) Por fim, recai o ónus sobre o recorrente de indicar a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de factos impugnadas (alínea a)).
Com a imposição destes requisitos o legislador faz recair sobre o recorrente o ónus de alegação, de modo reforçado, para que a instância de recurso não se torne aleatória e imprevista, ie, que os recursos possam ter natureza genérica e inconsequente (neste sentido o autor citado, in ob. cit., pág. 166).
Os apelantes indicam claramente o sentido que pugna por verem alterado por este Tribunal da Relação do Porto – para os factos não provados.
De igual modo, indica qual ou quais os meios de prova que sustentam a alteração peticionada dos factos – na realidade, ausência de meios de prova que permitem tal conclusão de facto.
Pelo exposto estão preenchidos os apontados requisitos, pelo que se impõe o seu conhecimento.
Vejamos então.
Inexistência de meios de prova que sustentem tal conclusão factual. “Não resulta qualquer prova de utilização em gastos pessoais do gerente da insolvente nem de qualquer documento constante nos autos de insolvência ou nos presentes autos, nem das declarações de parte e menos ainda dos esclarecimentos do Administrador da insolvência, o qual, recorde-se, emitiu parecer de considerar a insolvência fortuita.”
Argumentam os apelantes que o incidente de qualificação de insolvência teve o seu início com o requerimento formulado pelo credor. Que Administrador de Insolvência em momento anterior, aquando da apresentação do relatório, se pronunciou por a insolvência ser fortuita. Que a insolvência teve a sua origem ou causa na crise do Covid/pandémica. Que aquando da tentativa, do afectado, de retomar a actividade teve uma recaída no seu estado de saúde que juntamente com a pandemia “originou a perda da atividade empresarial da insolvente.” Que o afectado “não retirou nem usou, em proveito próprio, os valores que constituem as dívidas existentes.” Que a sentença não valorou esta factualidade. Pelo que se deve concluir “os valores recebidos pela sociedade insolvente não foram usados para gastos pessoais do requerido, gerente daquela, tendo pago outros valores resultantes da sua atividade, não tendo podido satisfazer os créditos que se encontram reclamados nos autos do processo de insolvência.”
Vejamos como a primeira instância fundamentou os apontados pontos de factos.
“Essencial para se dar como assente a factualidade ínsita foi a análise dos documentos juntos no processo de insolvência, com especial incidência dos juntos à PI, certidão da CRC, o relatório do artº 155º do CIRE junto pelo A.I., bem como os documentos juntos neste apenso.
Atendeu-se ainda às reclamações de creditos dos credores, aos esclarecimentos prestados pelo A.I. e ás declarações de parte do representante legal da credora B... e do ex-gerente da insolvente, foram determinantes para se dar como assente a factualidade ínsita nos pontos 1 a 13, dos factos assentes.
Do depoimento do A.I. resultou a confirmação dos factos constantes em 6 a 13, porque vistas as contas de 2020, partiu do principio de que, após ter parado 8 anos sem actividade, a empresa retomou em 2020; o dinheiro entrava na empresa e era gasto pelo gerente, pensa, a titulo de ordenados, apesar de não estarem processados, não foi para pagar aos credores. Mais referiu que não havia intencionalidade de prejuízo, o dinheiro que precisava para a sua vida retirava da empresa, a qual era gerida por uma pessoa só, sem ordenado. Confirmou que não localizou qualquer bem da propriedade da empresa. Acrescentou que a empresa não tinha trabalhadores ao serviço, recorrendo à subcontratação.
Nas suas declarações de parte, o representante legal da credora B..., DD, confirmou que foi contratado pela insolvente para executar uma obra à cerca de 3/4 anos, obra que não foi paga. Mais confirmou o problema de toxicodependência do requerido o qual de vez em quando desaparecia.
Nas suas declarações de parte, o representante legal da insolvente, AA, confirmou a sua gerência desde 2010, a suspensão da actividade até 2020 e reinicio no inicio de 2020 até inicio 2021, altura em que teve uma recaída e deixou de ter condições de continuar a administrar a sociedade e apresentou a empresa à insolvência. Esclareceu que a ida para a Holanda não foi para fugir aos credores mas por sugestão do médico. Mais confirmou que executou duas obras na G..., que recebeu e pagou impostos, carro em 2ª mão, computador, telefone, contabilista.“
A factualidade que deu início ao incidente de qualificação da insolvência como culposa é a constante no requerimento do credor B..., Lda, no qual é alegado que o afectado/gerente da sociedade insolvente recebeu dinheiro das obras que foram realizadas pelos subempreiteiros não tendo procedido ao pagamento do serviço levado a cabo por estes, tendo-o gasto em estupefacientes.
Dos factos dados como provados retiramos que a sociedade insolvente no ano de 2020 levou a cabo uma obra, tendo a obra sido levado a cabo por subempreiteiros – ids. no ponto 8.
Do mesmo ponto de facto resulta que foram emitidas facturas à sociedade insolvente no valor de 24.727,74 € - correspondendo à soma do valor das facturas. Facto que é corroborado pela informação do sr Administrador de Insolvência de 25.03.2022.
De acordo com a alegação da insolvente, A..., na oposição deduzida, “os actos praticados por quem se encontra numa situação de dependência de substâncias como a cocaína não podem ser considerados como intencionalmente praticados, ou seja, não podem considerar-se que traduzem uma vontade consciente “ – artigo 6.º – e que a conduta do “responsável pela insolvente não tinha a consciência de que os seus atos causariam prejuízo a terceiros, uma vez que não tinha o discernimento necessário e próprio de um “cidadão normal”” – artigo 7.º – para terminar por afirmar que “Não se poderá dizer que o gerente da insolvente retirou e usou, em proveito próprio, os valores que constituem as dívidas existentes, uma vez que, em boa verdade, do consumo do estupefaciente não resulta qualquer proveito próprio, bem pelo contrário, resulta prejuízo quer para a saúde quer pelas consequências que daí advieram, com a necessidade de tratamento que mantém e os laços familiares, no entanto o “mal estava feito” e infelizmente, não pode voltar atrás no tempo, tendo plena consciência de que aquele não era o caminho a seguir para si nem tampouco exemplo para o seu filho.” – artigo 11.º.
Sendo esta a posição processual da insolvente, mal se compreendo como por via de recurso vem pugnar pela alteração da apontada factualidade.
Dado que o afectado, AA, devidamente notificado para efeito do presente incidente de qualificação de insolvência, em momento próprio não deduziu oposição, não pode agora vir impugnar a factualidade que foi alegada.
Se por um lado, a factualidade em questão, pontos 10 e 13 (o dinheiro recebido no ano de 2020 foi para gastos pessoais e não para pagamento a fornecedores/credores), não foi devidamente impugnada e portanto não há fundamento para que se conheça em sede de recurso aquilo que está dado como assente, por outro lado, é abundante a prova para tal factualidade.
Com efeito, por um lado, temos a prova documental, que aponta claramente para a existência de tais fornecedores detentores de créditos sobre a insolvente – tal como resulta do apenso de reclamação de créditos. Mais resulta, que tais créditos estão ainda por satisfazer. E por fim, está demonstrado ter dado entrada na contabilidade da insolvente de pagamentos por conta de empreitada.
Já das declarações do Administrador de Insolvência, BB, do credora/Requerente B..., Lda., DD, e do afectado/apelante AA, resulta que a insolvente durante o ano de 2020 recebeu quantias, não tendo procedido a pagamentos aos fornecedores, aqui (insolvência) seus credores. Estamos perante depoimentos coerentes e lógicos, prestados de modo espontâneo e livre. Significativo é o que resulta das declarações do afectado AA, quando afirma que por causa do seu problema de adição deixou de exercer a actividade como gerente da insolvente. O dinheiro que recebeu, cerca de 20.000,00 €, destinou para pagar impostas, comprar viatura usada, contabilista, e parte para a sua adição, não sabendo em que proporção.
Resulta de modo inequívoco. que a quantia recebida, 20.000,00 €, ou parte significativa de tal quantia, teve como destino final, não o pagamento dos credores mas, a satisfação das necessidades pessoais do sócio gerente da insolvente, com aquisição de estupefacientes.
Ora, esta é a conclusão a que chegou a M.ma Juíza, tal como atrás se deixou transcrito, a qual se subscreve na integra.
Pelo exposto, improcede a apelação nesta parte.
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Qualificação da insolvência artigo 186.º, n.º 2, alínea d) e 3 do CIRE
Em face da improcedência da pretensão dos apelantes, a insolvente e o afectado, não tem sucesso a apelação, pois que está totalmente baseado no pedido de alteração da matéria de facto.
Ainda assim, sempre se pode afirmar o seguinte.
Dispõe o artigo 186.º, n.º 1, 2, alínea a) e d) e do CIRE o seguinte:
“1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: (…)
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; (…) “.
“Destarte, fora dos casos previstos no nº 2, (de automática qualificação da insolvência) tem de existir culpa (efetiva (nº 1) ou presumida (nº 3)) e tem de estar demonstrado o nexo de causalidade para que a insolvência possa ser qualificada como culposa.
Nos casos do nº 2, que constituem situações, taxativas, de presunção de culpa (“sempre culposas”), não é necessária a prova de culpa, sequer se admite prova em contrário. E o nº 2, não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência de nexo de causalidade entre a atuação dos administradores do devedor (que não seja uma pessoa singular) e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. Decorre, pois, deste artigo que, verificando-se uma das vicissitudes contempladas no n.º 2, aplicável, com as necessárias adaptações, ao insolvente pessoa singular, ex vi n.º 4, tem de se considerar a insolvência como culposa, atenta a presunção inilidível ou iuris et de iuris nele consagrada, dado que impõe um regime, não admitindo prova em contrário – não é necessária prova da culpa nem é admitida prova em contrário – art. 350º, nº2, in fine, do Código Civil. Só a presunção de culpa nos casos do nº2 é que é inilidível (presunção absoluta). A presunção derivada da qualificação da culpa como grave, prevista no nº3 iuris tantum, ilidível (presunção relativa) “, Ac Tribunal da Relação do Porto 908/12.0TYVNG-A.P1, de 06.09.2021, relatado pela Des EUGÉNIA CUNHA, in dgsi. Entre outros no mesmo sentido, 3668/18.8T8STS-B.P1, de 21.04.2022, relatado pelo Des PAULO DIAS DA SILVA, 252/20.0T8AMT-A.P1, de 13.04.2021, relatado pelo Des RODRIGUES PIRES, 876/13.1TYVNG-A.P1, de 13.07.2022, relatado pelo Des JORGE SEABRA e 1067/12.4TYVNG-A.P1, de 13.07.2021, relatado pelo Des CARLOS QUERIDO, 1872/22.3T8AMT-C.P1, de 20.02.2024, relatado pelo Des ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA, todos disponíveis em dgsi.pt.
No mesmo sentido, MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, in Manual de Direito da Insolvência, 8ª ed, pág. 156 e seguintes:
“Para auxiliar o intérprete, o art. 186, depois de definir a insolvência culposa (no seu nº 1), prevê dois conjuntos de presunções: o nº 2 contém um elenco de presunções iuris et de iure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular; por seu turno, o nº 3 prevê um elenco de presunções iuris tantum de culpa grave dos administradores de direito ou de facto e do próprio insolvente pessoa singular.
A opção por esta técnica jurídica justifica-se pela necessidade de garantir uma maior "eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administra- dores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências", para além disso, favorece a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos comportamentos,
2.3.2.2.1. As presunções do nº 2 do artigo 186
I. As alíneas do nº 2 do art. 186º podem ser agrupadas em três categorias fundamentais, a saber: 1) atos que afetam, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; 2) atos que, prejudicando a situação patrimonial, em simultâneo trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros; 3) incumprimento de certas obrigações legais.
No 1º grupo podemos subsumir a destruição, danificação, inutilização, ocultação ou desaparecimento, no todo ou em parte considerável, do património do devedor (al. a)); a compra de mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação (al. c)).
No 2º grupo, podemos enquadrar as alíneas b) (criação ou agravamento artificial de passivos ou prejuízos, ou redução de lucros, causando, nomeada- mente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas), d) (disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros) (Segundo o Ac. Rel. Co., de 13-11-2012 (ARTUR DIAS), "integra o fundamento de qualificação a insolvência como culposa, previsto na al. d) do n.º 1 do art. 186. do CIRE, a venda, ao seu pai, pelo sócio único e gerente da devedora, escassos dois meses e meio antes da insolvência ser requerida por um credor, pelo preço global de €10.032,66, de todo o activo, com o valor contabilístico de €49.331,04". Subsumindo também no art. 186.º, n.º 2, al. d) a celebração lo insolvente, com a sociedade constituída pela mulher e pelo filho, de contratos de venda totalidade do ativo da empresa, cfr. o Ac. Rel. Po., de 8-10-2015 (ARISTIDES RODRIGUES ALMEIDA). Considerando preenchida a previsão legal da al. d) do n.º 1 do art. 186. numa hipótese de celebração, pelo insolvente, de contrato promessa de compra e venda com eficácia e tradição, vide o Ac. Rel. Po., de 18-09-2017 (MANUEL DOMINGOS FERNANDES). No Ac. de STJ de 5-09-2017 (FONSECA RAMOS), o tribunal qualificou a insolvência como culposa apesar de os insolventes terem revogado a doação, por entender que no incidente de qualificação importa olhar a atuação dos devedores, não sob o prisma do resultado (no caso, o bem foi apreendido para a massa), mas sim do seu desvalor jurídico e ético-negocial.), e) (exercício, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, de uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa), f) (fazer do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, nomeadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto), g) (prossecução, no seu interesse pessoal ou de terceiro, de uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência).
Por último, no 3º grupo encontramos as als. h) (incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada, manutenção de uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor), i) (incumprimento, de forma reiterada, dos seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no art. 83.º e até à data da elaboração do parecer referido no nº 6 do artigo 188).
II. O proémio do nº 2 do art. 186 prevê um elenco de presunções iuris ade, considerando "sempre culposa a insolvência" quando se preencha alguma das suas alíneas.
A doutrina e a jurisprudência têm-se questionado acerca do alcance destas presunções: será que também se presume o nexo de causalidade entre a conduta legalmente tipificada e a criação ou agravamento da situação de insolvência?
(…) Entre nós CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA também defendem que as alíneas do n° 2, direta ou indiretamente, envolvem efeitos negativos para o património do insolvente. Pelo contrário, se CARNEIRO DA FRADA concorda com os Autores quanto às als, a) ou g), já quanto às als. d) ou f) tem as suas reservas (pois estão em causa fatores fortuitos). Para este Autor, estas soluções legais aparentemente excessivas são determinadas pela necessidade de dissuadir ou prevenir condutas indesejáveis que, de acordo com a experiência, são suscetíveis de ocasionar insolvências e estão intimamente ligadas a ela (prevenção abstrata de um perigo). Por isso, o legislador incluiu na al. d) a disposição em proveito próprio dos bens do devedor, independentemente da prova do prejuízo daí adveniente.
Tratando-se de presunções inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados no nº 2 do art. 1862, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato.“.
A prova de uma das hipóteses previstas no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE conduz, necessariamente, à qualificação da insolvência como culposa e à afectação do seu autor por esta qualificação.
Já nos termos do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, esta norma consagra verdadeiras presunções juris tantum da culpa grave a que alude o n.º 1 do mesmo artigo, que apenas serão afastadas se o visado lograr fazer prova do contrário, nos termos do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil. Presume-se unicamente a existência de culpa grave, não prescindindo, portanto, da prova do nexo de causalidade exigido pelo n.º 1, do mesmo artigo.
Feitas estas considerações teóricas regressemos ao caso em apreço.
Da alínea d) do n.º 2.
Argumentam os apelantes que o afectado não tenha disposto dos bens da insolvente em proveito pessoal.
A sentença em crise, entre o mais, fundamentou do seguinte modo:
“De acordo com o A.I., confirmado em julgamento por este e pelo ex-gerente da insolvente, durante os poucos meses que a empresa laborou, facturou €24.845,00, porém, não existe registo de compras de matérias primas ou mercadorias, uma vez que a empresa recorreu a trabalho temporário ou à subcontratação, nomeadamente, da F... e G..., Lda. e H..., Lda.; aquele valor foi facturado e recebido.
O requerido confirmou tal valor referindo que o utilizou para pagar, nomeadamente, ordenados e impostos, porem, o A.I afirmou (e confirmou) não ter visto refectida tal situação na contabilidade, tanto mais que, a empresa não tinha trabalhadores, pelo que, tal quantia só pode ter sido utilizada pelo requerido em gastos próprios, daí não ter reflexos nas contas
Ou seja, o requerido recebeu aquilo que facturou ao cliente final e não pagou qualquer quantia aos fornecedores e, pior ainda, ausentou-se para a Holanda.
E, não se diga que a culpa foi do COVID, pois, s.m.o., a pandemia não teve qualquer relevância pois não impediu o gerente da insolvente de fazer o negócio, facturar e receber, mas não pagou aos credores; antes, integrou no seu património pessoal todos os valores que recebeu, em prejuízo dos credores.
Quanto ao facto de se ter ausentado, de seguida, para a Holanda, o motivo terá sido por motivos de saúde, porém, tal não se provou, bem como o motivo pelo qual se ausentou para um País tão longínquo. (…)
O requerido fez sua a quantia recebida no valor de €24.845,00, integrando-a no seu patrimonio, não a tendo utilizado na sociedade conforme lhe competia, nomeadamente, para pagamento aos credores, que, como provado ficou, existiam (e existem) dividas no montante de €27.284,19.
O gerente da insolvente, AA, dispôs de tal quantia em seu próprio proveito e cessou, de facto, a atividade da insolvente, não tendo empregue a quantia que a insolvente efetivamente faturou de setembro a dezembro de 2020 ao pagamento dos créditos vencidos, nada tendo sido apreendido para a massa insolvente.
No período relevante, anterior a 01/07/2021, o responsável pela insolvente pautou as suas escolhas por atos voluntários, animados de culpa grave, dos quais veio a resultar o estado de insolvência, porquanto deu ao valor faturado destino diverso do objeto da empresa, mas apenas o afetou ao seu próprio proveito, ficando a insolvente sem qualquer crédito ou ativo pelo qual pudesse saldar as dívidas vencidas no curto período em que exerceu atividade, no final de 2020.
Daqui podemos concluir que a actuação do requerido, foi realizada com o declarado propósito de esvaziar o património da devedora, ante a iminencia dos credores (não seus, mas da sociedade), fazerem valer os seus direitos.
E não se diga que o requerido não tinha consciência disso dada a sua situação de dependência, pois, na verdade, tal situação não o impediu de fazer o negócio conforme referido, de facturar e receber, mas não pagar aos credores, com prejuízo para estes.
Perante isto, entendemos que, e salvo o devido respeito, será ingénuo de mais acreditar que, recebido o montante e instaurada a acção de insolvência o requerido ausentar-se para a Holanda, não era para fugir aos credores; o requerido tinha perfeita consciência de que não pagando, estava a prejudicar os credores e, mesmo assim, não se coibiu de ir para a Holanda, justificando que o fez por conselho médico, o que não se provou.
Na verdade, há que olhar à actuação do requerido à luz das normas infrigidas e dos valores que tutelam, pelo que, neste contexto, não podemos concluir que aquele actuou de modo a não sofrer a reprovação dos seus actos, as sanções previstas no artº 189º do CIRE, inerentes à insolvencia culposa.
O requerido dispôs de bem da empresa – o montante facturado -, em seu proveito proprio, preenchendo a presunção prevista no artº 186º, n.º 2, al. d) do CIRE, ex vi, do n.º 4 do mesmo preceito.
É indubitável que tal acto consubstanciou uma disposição de bens em proveito próprio, pelo que, se mostram preenchidas as causas de qualificação da insolvencia como culposa prevista no artº 186º, n.º 2, al. d) do CIRE.
Em face do exposto, outra conclusão não se pode retirar senão a de qualificar a insolvencia da sociedade A..., Lda. como culposa e afectado por esta qualificação o gerente AA.“
Não restam dúvidas para este Tribunal da Relação do Porto que a acção do gerente da sociedade insolvente/ora afectado, claramente, contribuiu ou agravou para a situação de insolvência da sociedade. Retirar da sociedade todo e qualquer património, é um dos casos clássicos, de qualificação da insolvência como culposa. E sendo tal “retirada de património” sido realizada sem qualquer justificação económico financeira, terá que ser tal conduta subsumida à apontada norma legal.
Neste sentido, Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra 2274/17.9T8CBR-C.C1, de 17.03.2020, relatado pelo Des EMÍDIO SANTOS, onde se pode ler: “A hipótese prevista nas alíneas a), d) e f) verificam-se quando os administradores de direito ou de facto de uma pessoa colectiva tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto”.
O que está em causa nas alíneas a) e d), bem como nas alíneas b), e) e g), para usarmos as palavras de Luís Carvalho Fernandes, são “…comportamentos dos administradores do insolvente que, afectando a situação patrimonial deste, implicam concomitantemente benefício para o próprio administrador que os adopta ou para terceiros (Themis, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência, 2005, página 95, nota 23).
No mesmo sentido se pronuncia Catarina Serra, ao escrever que nas alíneas a) a g) “… estão os factos a que, na maioria das situações, mais frequentemente se deve a insolvência: a prática de actos de delapidação do património do devedor e aquilo que, no contexto da insolvência de um devedor que não seja uma pessoa humana, podem considerar-se infracções ao dever geral de fidelidade (ou lealdade) dos administradores, formalmente consagrado no artigo 64º, n.º1, alínea b), do CSC – a condução da actividade do devedor de modo a beneficiar os interesses pessoais ou de terceiros” (Cadernos de Direito Privado, n.º 21, Janeiro/Março 2008, página 65).
Luís Manuel Teles de Menezes Leitão refere-se, por seu turno, a “actos destinados ao empobrecimento do património do devedor” (Direito da Insolvência, 2ª Edição, página 272].
Centrando, agora, a nossa atenção na alínea a), vemos que nela estão em causa acções que, quando realizadas com intenção de prejudicar os credores, preenchem o crime de insolvência dolosa previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º do Código Penal.
No entender deste tribunal, a conduta dos ora recorrentes que está em apreciação– a transmissão dos veículos automóveis para a sociedade I (…) e para A (…) - não se ajusta a nenhuma das acções previstas na alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE. As razões deste entendimento são as seguintes.
Em primeiro lugar a transmissão não configura destruição, danificação ou inutilização do património do devedor. Com efeito, com a transmissão não se destruiu, não se danificou nem se inutilizaram os veículos automóveis da sociedade.
Em segundo lugar, a transmissão não é acção que tenha “feito desaparecer … o património do devedor”. Para efeitos da alínea a), a expressão “feito desaparecer… o património do devedor” compreende as acções que fazem sair bens do património do devedor de forma tal que o destino deles não seja conhecido. A favor desta interpretação cita-se Pedro Caeiro, que, em comentário ao artigo 227.º do Código Penal escreve: estão em causa “condutas que provocam uma diminuição real do património”; com elas “o devedor deprecia realmente o valor do seu património, causando por essa forma uma situação de insolvência. No que diz respeito à expressão “fazer desaparecer parte do seu património”, parece que ela servirá para atalhar os casos em que não se descobre o paradeiro de bens que supostamente se deviam encontrar na titularidade do devedor. Não se importa se eles foram objecto de uma alienação real ou tão só-fictícia, importa tão só que os credores não conseguem atingi-los para garantir a satisfação das suas dívidas, pelo que o valor ostensivo do património resulta, em qualquer caso diminuído” [Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo II, páginas 412 e 413].
Interpretada a expressão “feito desaparecer … o património do devedor” com o sentido exposto, a conclusão a retirar é a de que ela não cobre a transmissão dos veículos. É que, apesar de a transmissão ter por efeito a transmissão da propriedade das viaturas (alínea a), do artigo 879.º do Código Civil), sabe-se o destino delas.
Por fim, a venda não se ajusta ao conceito de ocultação.
No nosso entender, a ocultação que é tida em vista tanto compreende a ocultação física de bens do devedor, como a ocultação jurídica. No caso não há ocultação física, pois conhece-se o paradeiro dos veículos. E também não há ocultação jurídica, pois para tal seria necessário que estivesse provado que existiu um acordo entre a transmitente e os transmissários dos veículos no sentido de simularem as transmissões, com a intenção de esconderem a verdadeira titularidade dos veículos (que continuaria a caber à sociedade). Nesta hipótese poder-se-ia sustentar a tese da ocultação (jurídica) do património do devedor.“
No presente caso, a hipótese legal da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE encontra-se preenchida – a quantia em dinheiro que o gerente AA recebeu e que não destinou para pagamento dos seus credores – basta para demonstrar o proveito pessoal (verifica-se favorecimento/vantagem ou benefício ilegítimo, com repercussão negativa no património da insolvente).
Não tem assim sustentação a argumentação dos recorrentes.
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Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes, sem prejuízo do apoio judiciário (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).
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Alberto Taveira
João Diogo Rodrigues
Raquel Lima
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.
[2] Seguimos de perto o relatório elaborado pela Exma. Senhora Juíza.