RESPONSABILIDADES PARENTAIS
PROVAS ILÍCITAS
JUNÇÃO DE VÍDEO ÁUDIO E DE IMAGEM DA CRIANÇA
Sumário

I - A junção aos autos [ação de regulação das responsabilidades parentais] de registos áudio e vídeo em que surge a imagem e/ou a voz de uma criança que se presume ser a dos autos, nos quais a mesma exterioriza, com expressões próprias da sua idade, algumas vivências do relacionamento com o progenitor e alguns sentimentos relativamente a este, suscita questões relacionadas com a proteção da intimidade da vida privada [revelação do relacionamento do filho com o pai e a exteriorização de sentimentos daquele relativamente a este], bem como da imagem e da palavra dessa criança.
II - O direito à prova não é absoluto ou ilimitado.
III - Seja por aplicação analógica do que o art. 32º nº 8 da CRP estatui para o processo penal, seja por aplicação indireta do que prevê o art. 417º nº 3 do CPC, seja com recurso ao que estabelecem os arts. 1º, 2º, 16º, 18º, 24º, 25º, 26º e 34º da CRP, existem limitações ao direito à prova no processo civil, não sendo, em princípio, admissíveis provas ilícitas.
IV - As provas ilícitas são de dois graus: as absolutamente ilícitas e as relativamente ilícitas. No primeiro grupo cabem as provas obtidas mediante tortura, coação e ofensa da integridade física ou moral das pessoas; no segundo estão compreendidas as violações dos outros direitos fundamentais, entre os quais o direito à intimidade da vida privada, o direito à imagem e o direito à palavra.
V - As provas relativamente ilícitas podem/devem ser admitidas se, à luz da ponderação de interesses, se mostrar compreensível a intromissão na vida privada, ou no direito à imagem ou à palavra, para, assim, se obter prova necessária à pretensão da parte que as apresentou e se tal intromissão for efetuada de um modo proporcionado.
VI - Estando em questão a vida privada e o direito à imagem e à palavra de uma criança, cabia ao tribunal «a quo», procedendo à devida ponderação dos interesses em jogo – de um lado, a tutela daqueles direitos de personalidade do menor, bem como do seu superior interesse em ver fixado o regime das responsabilidades a cargo dos seus progenitores e, do outro, a relevância das provas em questão para a descoberta da verdade, sopesando, para tal, as exigências de adequação das mesmas [se relevam para o fim em vista], da sua necessidade [se a admissão dos aludidos registos constitui o meio menos lesivo/intrusivo na esfera da vida privada do menor] e da justa medida [se a lesão dos referidos direitos é ou não desmedida relativamente aos benefícios que podem advir da admissão e valoração das provas] –, aferir se, «in casu», os referidos registos áudio e vídeo eram ou não de admitir.
VII - Por existirem outros meios de prova de que o tribunal «a quo» poderá socorrer-se [se tal se mostrar necessário, ao abrigo do princípio do inquisitório e dos demais poderes próprios dos processos de jurisdição voluntária] que se apresentam menos intrusivos, mais consistentes e mais fiáveis e eficazes, sem gerarem tão desmedida desproporção entre a lesão dos direitos de personalidade do menor e os benefícios que podem advir da admissão e valoração dos ditos registos – como acontece com a prova pericial, particularmente na especialidade de pedopsicologia forense, admissível ao abrigo do art. 22º do RGPTC –, não devia ter sido admitida a junção aos autos de tais registos áudio e vídeo.

Texto Integral

Apelação nº 1342/24.5T8VNG-A.P1 – 2ª Secção

Relator: Pinto dos Santos

Adjuntos: Des. Anabela Miranda

Des. Maria da Luz Seabra


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Acordam nesta secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório:

No processo de regulação das responsabilidades parentais instaurado por AA contra BB e relativo ao menor, filho de ambos, CC, nascido em ../../2018, foi proferido, em 07.11.2024, o seguinte despacho [transcreve-se a parte que aqui releva]:
“A requerida juntou aos autos registos áudio e vídeo da criança CC, cuja admissibilidade é contestada pelo requerente, arguindo que está em causa a violação do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar e o direito à palavra e à imagem, tratando-se, no fundo, de prova ilícita e que não deve ser apreciada e valorada nos autos.
Tratam-se de recolhas de imagem e de voz não autorizadas por um dos intervenientes, mormente pelo requerente, e que dizem respeito a pessoa especialmente vulnerável em razão da idade, que não tem ainda possibilidade de, por si, consentir ou rejeitar a divulgação da sua imagem e voz e cujas privacidade e reserva devem ser particularmente protegidas, inclusive de ações dos seus próprios representantes legais.
É inegável que, por não ter sido consentida por ambos os legais representantes da criança ora intervenientes, implica violação de normas de direito material que tutelam direitos fundamentais dos cidadãos, como é o caso do direito à imagem, palavra e voz.
Embora a lei processual civil não limite meios de prova e seja omissa quanto à questão da inadmissibilidade da prova ilícita, quando põem em crise direitos fundamentais, à partida tais meios probatórios não podem ser permitidos nem valorados.
Porém, há que ponderar a que se destina essa prova, aquilatando-se se, apesar de ter sido ilicitamente obtida, é ainda assim imprescindível, útil, justificada, adequada e proporcional para demonstração dos factos alegados e em discussão.
Apesar de ilícita, poderá justificar-se a sua aceitação e análise no processo, se se votar a fazer comprovação de factos relativos a outros direitos fundamentais em conflito com aqueles outros, justificando a sua compressão.
Face a uma tal colisão de direitos fundamentais, impõe-se proceder a uma ponderação concreta dos interesses em jogo (cfr. artigo 335.º do Código Civil).
No caso vertente, temos de um lado o direito à voz e à palavra e ainda à reserva da vida privada da criança, com tutela constitucional e legal, e do outro, o direito à segurança e à proteção da infância e o superior interesse da criança na definição do regime de residência com os pais.
A gravação áudio e vídeo em causa, sem consentimento do requerente, constitui, em si, prova ilícita, porque não consentida ou autorizada; porém, visando a requerida demonstrar que os convívios da criança com o pai, aqui requerente, lhe têm sido prejudiciais, provocando negativas consequências para o seu bem-estar emocional, o direito à prova é, em concreto, preponderante e sobrepõe-se ao direito à voz, à palavra e à privacidade da criança, até porque é em seu benefício que se pretende regular a situação tutelar cível, sendo de esclarecer o mais profundamente possível a factualidade subjacente.
Nestes termos, justifica-se a junção ao processo daquele meio de prova e a sua oportuna valoração, de acordo com a livre convicção do julgador e em articulação com todos os demais elementos de prova produzidos e contraditados e a produzir.”.

Inconformado com este despacho, interpôs o progenitor requerente o presente recurso de apelação [com subida em separado], cujas alegações culminou com as seguintes conclusões:
“1. O Tribunal a quo decidiu admitir as gravações de áudio e vídeo juntadas aos autos, considerando que o interesse pela descoberta da verdade material se sobrepunha ao direito à privacidade da Criança, apesar de reconhecer a sua natureza e obtenção ilícita.
2. As gravações em causa violam direitos de personalidade, nomeadamente o direito à reserva da vida privada e familiar e o direito à imagem, ao expor momentos íntimos da vida familiar sem consentimento.
3. Provas obtidas ilicitamente comprometem a integridade do sistema jurídico, pois permitem que direitos fundamentais sejam desrespeitados, contrariando os princípios de justiça e legalidade do processo.
4. A Criança foi gravada em situações de especial vulnerabilidade, o que agrava a violação dos seus direitos, podendo impactar o seu bem-estar emocional e comprometer a confiança em um ambiente familiar seguro.
5. A necessidade de proteção de direitos fundamentais como a privacidade deve prevalecer, não sendo admissível justificar a utilização de provas ilícitas para alcançar a verdade material.
6. Existem meios de prova alternativos, como a realização / produção de prova pericial, na especialidade de psicologia forense, que são igualmente eficazes para avaliar dinâmicas familiares e qualidade dos vínculos, sem infringir os direitos da Criança.
7. O uso de gravações ilícitas é desnecessário, uma vez que métodos admissíveis e menos intrusivos garantem a descoberta da verdade sem sacrificar direitos fundamentais da Criança, pelo que não existe uma necessidade absoluta para a utilização das gravações.
8. A decisão em crise viola as disposições conjugadas do artigo 26.º, n.º 1; artigo 32.º, n.º 8; artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa; artigo 79.º do Código Civil; artigo 417.º, n.º 3, alínea b) do Código Processual Civil.
TERMOS EM QUE SE REQUER A V. EXAS. QUE O PRESENTE RECURSO SEJA JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE COM TODAS AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, COM O QUE SE FARÁ INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!”.


O Ministério Público contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
“1. Ao recorrente assiste razão nos princípios invocados, mas não nas conclusões que daí extraiu.
2. As imagens juntas pela requerida, áudio e vídeo, retratam o menor e, nessa medida, integram reserva da vida privada da criança, porquanto a criança retratada, porque nascida em ../../2018, atenta a sua tenra idade, não possui capacidade para prestar consentimento e não consta que a Requerida/mãe do menor tivesse pedido ao recorrente/pai do menor consentimento para a captação do som e imagens da criança que juntou aos autos e cuja junção foi admitida e constituem, por isso prova ilícita.
3. Estamos perante uma colisão de direitos fundamentais pelo que importa definir o direito que, in casu e atento o fim a que se destina, deve prevalecer e o que deve ceder.
4. A aceitar-se esta prova pode concluir-se, como o fez o recorrente e admite-se, legitimamente, estar a ser admitida uma prova recolhida de forma ilícita a qual, em tese, não seria de admitir. Porém, a não se aceitar tal prova e atenta a natureza do processo e a sua relevância na vida da criança, poderíamos estar a prescindir de elementos de prova essenciais para a salvaguarda do superior interesse da criança, em sede de processo tutelar cível.
5. Está em causa a regulação das responsabilidades parentais de uma criança, de apenas seis anos de idade, incapaz, em função da idade, de por si só exercer os seus direitos, pelo que o direito à prova se deve sobrepor ao direito à voz, à palavra e à privacidade da criança, porquanto o esclarecimento da factualidade subjacente e da avaliação de toda a prova junta aos autos, incluindo a prova recolhida de forma ilícita, de acordo com a livre convicção do julgador e em articulação com todos os demais elementos de prova produzidos e contraditados, vai ao encontro do interesse e em benefício da criança.
Pelo que, não assistindo razão ao Recorrente, deverá ser negado provimento ao presente recurso.
Porém, V. Ex.as decidirão, Fazendo a costumada e habitual Justiça!”.

* * *


2. Questões a decidir:

Em atenção à delimitação constante das conclusões das alegações do recorrente – que fixam o thema decidendum deste recurso [arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 als. a) a c) do CPC], salvo ocorrência de exceções de conhecimento oficioso –, as únicas questões a decidir consistem em saber se os registos áudio e vídeo apresentados pela progenitora requerida constituem prova ilícita e se devem ou não ser admitidos e valorados nos autos.

* * *

3. Apreciação jurídica:

Está em causa a admissão, pelo tribunal a quo, de dez registos áudio e vídeo [a maioria são áudio], de curta duração [variam entre os 0,23 minutos e os 4,11 minutos], que a requerida apresentou com a demais prova, com vista à sua apreciação/valoração na audiência final.
Para sabermos do que se trata e podermos decidir, fundamentadamente, o presente recurso, procedemos à audição/visualização de tais registos [que constam do histórico do processo principal, a que tivemos acesso].
Em todos eles surge a imagem ou a voz [ambas nos registos vídeo] de uma criança [presume-se que o menor cuja regulação das responsabilidades parentais está em questão nos autos] que então ainda não tinha completado 6 anos de idade, quase sempre na presença e com aparecimento de voz de um adulto do género feminino [presume-se que a sua progenitora], vendo-se e/ou ouvindo-se, as mais das vezes, a criança a chorar/choramingar e, com alguma frequência, a pronunciar-se/balbuciar sobre as visitas, estadias e dormidas a/em casa do progenitor, sobre o relacionamento que tem com este e sentimentos que por ele nutre.
Estão, por isso, em causa registos áudio e vídeo em que surge a imagem e/ou a voz da criança que se presume ser a dos autos [de regulação das responsabilidade parentais], nos quais a mesma exterioriza, com expressões próprias da sua tenra idade, algumas vivências do relacionamento com o progenitor e alguns sentimentos relativamente a este.
O recorrente sustenta que:
- as gravações são ilícitas por violarem direitos de personalidade, nomeadamente o direito à reserva da vida privada e familiar e o direito à imagem, ao expor momentos íntimos da vida familiar sem consentimento [da criança e do próprio recorrente];
- a necessidade de proteção de direitos fundamentais como a privacidade deve prevalecer, não sendo admissível justificar a utilização de provas ilícitas para alcançar a verdade material;
- o uso das referidas gravações é desnecessário, por existem meios de prova alternativos, como a realização/produção de prova pericial, na especialidade de psicologia forense, que são igualmente eficazes para avaliar dinâmicas familiares e a qualidade dos vínculos, sem infringir os direitos da Criança;
- e que a decisão recorrida, ao ter admitido as gravações, violou o disposto nos arts. 26º nº 1, 32º nº 8 e 18º nº 2 da Constituição da República [abreviadamente, CRP], 79º do CCiv. e 417º nº 3 al. b) do CPC.
Estão, assim, em equação, a proteção da intimidade da vida privada [revelação do relacionamento do filho com o pai e a exteriorização de sentimentos daquele relativamente a este], bem como da imagem e da palavra de uma criança, constantes dos referidos registos áudio e vídeo cuja junção aos autos não obtém o assentimento do progenitor [além da impossibilidade do menor, face à sua idade, não poder dar o seu consentimento a tal junção].
Estes direitos, enquanto componentes da personalidade e da identidade pessoal dos indivíduos, estão reconhecidos em Convenções Internacionais e na Lei Fundamental que regem o ordenamento jurídico português, a começar pelo art. 12º da Declaração Universal dos Direitos Humanos [que proíbe a intromissão arbitrária na vida privada], passando pelo art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem [que assegura o respeito pela vida privada de cada pessoa] e culminando no art. 26º da CRP que, no nº 1, proclama que «[a] todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação» e, no nº 2, anuncia que «[a] lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.».
Também o CCiv. reconhece, entre os direitos de personalidade, o direito à proteção contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à personalidade física ou moral dos indivíduos [art. 70º nº 1], o direito à imagem [art. 79º] e o direito à reserva sobre a intimidade da vida provada [art. 80º].
Feito este breve introito, atentemos então no objeto do recurso.

Está em questão o direito à prova e o âmbito do seu exercício.
O enquadramento nuclear do direito à prova consta do art. 20º da CRP, na medida em que o mesmo surge como um dos corolários do direito de acesso aos tribunais previsto no nº 1.
O direito à prova, que é expressão do processo justo e equitativo, traduz-se, em termos genéricos, no direito de a parte utilizar todas as provas de que dispõe, de forma a demonstrar a verdade dos factos em que assenta a sua pretensão [Carlos Castelo Branco, in A Prova Ilícita – Verdade ou Lealdade?, Almedina, 2019, reimpressão, pg. 29]. Ou, numa outra forma de dizer, “o direito à prova significa que as partes conflituantes, por via da ação e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentaram em tribunal” e confere “ainda, a possibilidade de as partes conflituantes utilizarem para prova de um facto ou factos, o meio de prova que mais lhes convier, o que é determinado pela sua vontade (…)” [Rui Rangel, in O Ónus da Prova no Processo Civil, Almedina, 3ª ed., pg. 75, citado pelo Autor e na Obra atrás mencionados, pg. 29, nota 71].
No direito à prova estão compreendidos o direito de alegação de factos, o direito de provar ou infirmar [conforme a posição processual das partes] os factos alegados, o direito de participação na produção das provas, o direito de aquisição das provas produzidas [independentemente destas terem sido produzidas pela parte onerada ou pela parte contrária – art. 413º do CPC], o direito de contradizer as provas e o direito à valoração, por parte do juiz, das provas oferecidas/adquiridas no processo [cfr. Carlos Castelo Branco, ob. cit., pgs. 32-34].
Como refere o art. 341º do CCiv., as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.
O direito à prova não é, no entanto, absoluto ou ilimitado; tem limites, na medida em que [e]m sede de prova, o direito ao processo equitativo implica a inadmissibilidade de meios de prova ilícitos, quer o sejam por violarem direitos fundamentais, quer porque se formaram ou obtiveram por processos ilícitos” [Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil - Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, Gestlegal, 2013, pgs. 107-108]. Ou seja, para que o processo seja justo e equitativo, só devem ser admitidas provas obtidas ou constituídas por meios legais e leais, pois, [a] prova ilícita traduz um desvalor na formação da prova, a qual, sem afetar a sua natureza extrínseca ou a finalidade probatória da mesma, foi produzida (extraprocessualmente) ou ingressou no processo, por meios ilegais ou ilegítimos, colidindo com valores e direitos protegidos, via de regra, pela própria Constituição, ou seja, violando ou postergando princípios fundamentais ou normas de direito material” [Carlos Castelo Branco, ob. cit., pg. 87].
Os limites à prova podem ser intrínsecos [inerentes à atividade probatória] ou extrínsecos [relativos a requisitos legais de proposição probatória], sendo que os primeiros “deduzem-se da tutela constitucional de diversos direitos fundamentais e concretizam-se naqueles pressupostos ou condições que, por natureza, devem ser observados por qualquer prova, podendo reconduzir-se à pertinência e à licitude da prova”, enquanto os segundos “derivam do carácter processual do direito à prova e concretizam-se na observância das formalidades processuais imprescindíveis para o seu exercício” [assim, Carlos Castelo Branco, ob. cit., pg. 83 e Acórdão da Relação de Lisboa de 15.04.2021, proc. 705/18.0T8CSC-A.L1-2, disponível in www.dgsi.pt/jtrl].
No âmbito do processo penal, quer o art. 32º nº 8 da CRP, quer os arts. 125º e 126º do CPP fixam limites à obtenção [e produção] da prova, prescrevendo como nulas, entre outras, as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
No CPC não existe norma semelhante àquelas do CPP. Nele, vale como princípio o que consta do art. 413º que dispõe que «o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las (…)». Mas também aqui tem que haver, necessariamente, limites à prova, particularmente quando esteja em causa prova obtida de modo ilícito ou até de forma desleal.
Segundo parte significativa da doutrina e da jurisprudência, a solução da questão passa pela aplicação analógica daquele art. 32º nº 8 da CRP também ao processo civil, face à omissão, no CPC, de norma expressa sobre a proibição de provas ilícitas.
Entre outros, é este o entendimento de Paulo Mota Pinto [in A Proteção da Vida Privada e a Constituição, BFDUC, ano 2000, vol. LXXVI, pgs. 189-190] e Isabel Alexandre [in Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, 1998, pgs. 233 e segs]. O primeiro diz expressamente o seguinte: [o]utra questão é a de saber se estas proibições de prova devem ser aplicadas ao processo civil”; “a favor de uma resposta positiva, poderá mesmo invocar-se um argumento «a fortiori», considerando que o processo civil visa a realização de interesses privados – e não do interesse público que motiva a ação e o processo penal (…)”; e conclui que “o direito, garantido pela Constituição, à reserva sobre a intimidade da vida privada deve, assim, impor-se igualmente no processo civil, com proibição das provas obtidas em sua violação”. A segunda refere que “a ligação estreita entre o art. 32º nº 8 da CRP e os direitos fundamentais permite concluir que o preceito, sendo embora, em primeiro plano, apenas uma garantia do indivíduo face ao Estado, essencialmente destinada a tutelar a sua liberdade e segurança (…), funciona também como garantia dos direitos, liberdades e garantias em geral” e a “esses direitos, liberdades e garantias estão vinculados, não só as entidades públicas, mas também as entidades privadas (art. 18º nº 1 CRP)” (pg. 238). Mais adiante acrescenta que a interpretação do citado normativo “conforme à máxima eficácia dos direitos fundamentais leva a considerar nulas, não só as provas obtidas pelas entidades públicas, mediante violação dos mesmos, mas também as obtidas pelas entidades privadas” (pg. 239) e que “a consideração das provas como nulas, quando obtidas mediante violação de certos direitos fundamentais, não parece (…) contrariar nenhum princípio geral de direito: nem o princípio da investigação da verdade, nem os princípios decorrentes do direito à prova”, concluindo depois que “o preceito é de aplicar analogicamente ao processo civil” uma vez que “no caso omisso procedem as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei (art. 10º nº 2 CC)” e “não existem motivos para restringir o preceito ao âmbito do processo penal, já que a lesão desses direitos não é menor pela circunstância de as provas se destinarem ao processo civil” (pg. 240) [no mesmo sentido pronuncia-se, ainda, Teixeira de Sousa, in As Partes, o Objeto e a Prova na Acão Declarativa, Lisboa, Lex, 1995, pg. 230 e in A prova ilícita em processo civil: em busca das linhas orientadoras, RFDUL, ano XLI, 2020, nº 2, pgs. 18-22].
Na jurisprudência, seguiram este entendimento, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 15.04.2010 e de 06.01.2009 [procs. 10795/08.8TBVNG-A.P1 e 0825375 (este relatado pelo aqui relator), disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp], da Relação de Lisboa de 28.11.2013 e de 07.05.2009 [procs. 618/11.6TMLSB-A.L1-6 e 2465/08.2, disponíveis in www.dgsi.pt/jtrl], da Relação de Guimarães de 07.05.2015 [proc. 329/13.8TBAMR.G1, disponível in www.dgsi.pt/jtrg] e da Relação de Évora de 11.05.2017 [proc. 8346/16.0T8STB.E1, disponível in www.dgsi.pt/jtre].
Contra este entendimento pronunciam-se, nomeadamente, Salazar Casanova [in Provas ilícitas em processo civil. Sobre a admissibilidade e valoração de meios de prova obtidos pelos particulares, Revista Direito e Justiça, vol. XVIII, Tomo I, 2004, pg. 118] e Carlos Castelo Branco [ob. cit., pgs. 214-217], que consideram que o art. 32º nº 8 da CRP não é passível de aplicação analógica ao processo civil, pelos seguintes motivos:
“1- Não se deve interpretar a lei como se existisse um princípio geral de proibição da obtenção de prova em desrespeito de direitos fundamentais, concluindo que, nos vários anos de vigência da Constituição, nunca se procedeu, no plano civil, à introdução de outras limitações que não fossem as resultantes do vigente art. 413.º do CPC, sendo que, no âmbito do processo penal, há uma regulamentação completa das situações de ilicitude na obtenção de determinados meios probatórios (…);
2- A lei estabelece soluções diferentes, no plano processual civil (onde está em causa a proteção de interesses privados) e penal (onde está em causa a repressão da criminalidade e os poderes coercivos do Estado), para os mesmos problemas, o que não se compreenderia se se entendesse o art. 32º n.º 8 como uma norma de aplicação imediata a todos os ramos processuais;
3 – Não basta para a aplicação analógica a existência de um caso não regulado (podem certas situações não estar reguladas porque assim não foi desejado ou porque foi considerado desnecessário), sendo que, no caso da prova ilícita em processo civil, a mesma não tem recebido resposta idêntica nas várias legislações;
4 – A lei processual civil não considerou que a utilização de métodos proibidos de prova com influência no resultado do pleito assumisse uma gravidade tal que a parte pudesse, uma vez transitada em julgado a decisão, requerer a sua revisão com fundamento na utilização de elemento probatório obtido por método proibido, pelo que, se a lei pretendesse obstar sempre à admissibilidade de meio de prova que desrespeitasse direitos fundamentais, seria lógico que tivesse previsto esse fundamento para a revisão da decisão, o que não sucedeu.”.
Concluem, assim, que “não se consegue, de facto, encontrar no artigo 32.º, n.º 8, da CRP fundamento bastante para vedar a admissibilidade de provas no âmbito de um processo civil, consequência probatória que ali é prevista apenas para o processo penal”.
Este entendimento da exclusão da aplicação analógica do art. 32º nº 8 da CRP ao processo civil não é, contudo, aceite por um dos Autores atrás citado, que considera que o mesmo “tem dois inconvenientes: é perigoso sob o ponto de vista prático e inconsequente na perspetiva da construção doutrinária” [Teixeira de Sousa, in A prova ilícita em processo civil: em busca das linhas orientadoras, pg. 19]. Quanto ao primeiro, refere que [n]um quadro constitucional manifestamente favorável à proteção de direitos fundamentais, a excecionalidade nunca pode referir-se a uma norma – como é a que se contém no art. 32º, nº 8, CRP – destinada a essa mesma proteção” e que, ainda que, hipoteticamente, se considere este preceito excecional, “importa ter presente que uma regra jurídica só é insuscetível de aplicação analógica se for substancialmente excecional e que essa excecionalidade substancial impõe um argumento ‘a contrario sensu’” e que “se o art. 32º, nº 8, CRP não é suscetível de aplicação analógica porque contem uma regra substancialmente excecional, então, ‘a contrario sensu’, não há no ordenamento jurídico português provas ilícitas fora do campo do processo penal”, pois, [u]ma regra que é substancialmente excecional é uma regra que contraria um princípio fundamental do ordenamento jurídico e que, por isso, só pode valer no seu estrito campo de aplicação” e [f]ora deste, tem de valer precisamente o contrário do que se estabelece na regra materialmente excecional”, concluindo depois que [c]omo facilmente se compreende, esta conclusão não é aceitável, nomeadamente atendendo às devastadoras consequências que dela decorrem” e [n]ão faz sentido que toda e qualquer prova que seja qualificada como ilícita na área do processo penal tenha de ser qualificada como lícita fora do campo deste processo, designadamente nas áreas do processo civil, (…)”. Relativamente aos inconvenientes doutrinários, esclarece que “é inconsequente afastar uma regra constitucional relativa à prova ilícita e ter que procurar alternativas aos critérios que constam do art. 32º, nº 8, CRP”, tanto mais que os critérios neste estabelecidos “são operacionais fora do processo penal”, não havendo justificação alguma para que, designadamente, “a intromissão abusiva na privacidade não deva ser relevante em matéria probatória no âmbito do processo civil”, até porque [n]ão só não se consegue encontrar qualquer fundamento para, quanto à ilicitude da prova, se ser menos exigente no processo civil do que no processo penal, como até, atendendo aos interesses públicos dominantes no processo penal e aos interesses privados prevalecentes no processo civil, a haver alguma diferença entre ambos os processos, essa teria de ser no sentido do reforço da tutela da privacidade no processo civil, dado que, tal como a parte afetada pela intromissão abusiva na sua privacidade, também a parte onerada com a prova se encontra em juízo defendendo interesses próprios e privados” [Autor e estudo citados, pgs. 19-21].
Além disso, não obstante a ausência de norma no CPC que proíba expressamente a prova ilícita, pensamos que o art. 417º nº 3 do CPC, na redação vigente [dada pela Lei n.º 41/2013, de 26.06], permite, ainda assim, numa interpretação a contrario e a fortiori, uma leitura no sentido dessa proibição no âmbito do processo civil, embora comportando diversos graus.
Este art. 417º, que tem como epígrafe «[d]ever de cooperação para a descoberta da verdade», começa por estabelecer, no nº 1, o dever de todas as pessoas, sejam partes ou não na causa, colaborarem com o tribunal na descoberta da verdade [designadamente, facultando o que for requisitado ou praticando os atos que forem determinados], consagra depois, no nº 2, as sanções a aplicar a quem não colabore com o tribunal [multa ou outros meios coercitivos possíveis e, caso o recusante seja parte, a livre apreciação da sua recusa para efeitos probatórios e a possibilidade de inversão do ónus da prova] e acrescenta, no nº 3, afirmando que:
«3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.».
[Há, ainda, o nº 4 que regula o procedimento a adotar quando estiver em causa o disposto na al. c) do nº 3 e se imponha aferir a legitimidade da escusa ou a dispensa do dever de sigilo].
Consagrando o nº 3 deste preceito um direito de recursa à colaboração com o tribunal quando esteja em questão alguma das situações contempladas nas suas alíneas, afigura-se legítimo questionar se, numa outra perspetiva e com recurso a argumentos a contrario e a fortiori, não prevê também, ainda que por via indireta, um princípio de inadmissibilidade da prova quando esta tenha sido obtida em violação dos direitos fundamentais ali previstos [sobretudo os das als. a) e b)]: direito à integridade física e moral das pessoas; direito à reserva da vida privada e familiar, à reserva do domicílio, da correspondência e das telecomunicações e direito ao sigilo profissional e segredo de Estado.
Se qualquer pessoa tem legitimidade de recusar a sua colaboração com o tribunal caso esta importe a violação/inobservância dos indicados direitos, então, por maioria de razão e reforçadamente, por se tratar de órgãos de soberania que aplicam o direito e estarem em causa direitos fundamentais com respaldo constitucional, também os tribunais não deverão admitir a prova que assim tiver sido obtida [em violação daqueles direitos] e que a parte ou o terceiro apresentante pretendam juntar aos autos, por se tratar de prova ilícita. O que significa que, embora por via indireta, o atual CPC acaba por consagrar um princípio estrutural de proibição da prova ilícita no processo civil [neste sentido, Teixeira de Sousa, in A prova ilícita em processo civil: em busca das linhas orientadoras, já citada, pg. 21, que refere que “causa alguma estranheza que, por vezes, se afirme que o disposto no art. 417º, nº 3, CPC nada tem a ver com a temática da prova ilícita”, impondo-se antes “o entendimento contrário, dado que, (…), o fundamento da recusa de colaboração da parte ou do terceiro é a ilicitude da prova que seria produzida sem essa recusa da parte ou do terceiro”, ou, dito de outro modo, “a ilicitude da prova justifica, segundo o disposto no art. 417º, nº 3, al. a) e b), CPC, a legitimidade da recusa de colaboração”, sendo tal preceito igualmente aplicável a provas pré-constituídas”; idem, José João Abrantes, in Prova Ilícita, Revista Jurídica, nº 7, 1986, AAFDL, pg. 35].
De qualquer modo, seja por aplicação analógica do que o art. 32º nº 8 da CRP estatui para o processo penal, seja por aplicação indireta do que prevê o art. 417º nº 3 do CPC, seja com recurso ao que estabelecem os arts. 1º, 2º, 16º, 18º [que consagram a defesa da dignidade da pessoa humana e o respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais], 24º, 25º [que prescrevem a inviolabilidade da vida humana e da integridade moral e física das pessoas], 26º [que, além de outros, reconhece os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à imagem, à palavra e à reserva da intimidade da vida privada e familiar] e 34º [que fixa a inviolabilidade do domicílio e do sigilo da correspondência e de outros meios de comunicação privada] da CRP, a realidade é que também existem limitações ao direito à prova no processo civil, não sendo, em princípio, admissíveis provas ilicitamente obtidas.
Contudo, na combinação da defesa/proteção dos direitos fundamentais com as exigências e necessidades da prova, nem toda a prova ilicitamente obtida deve ser rejeitada in limine, existindo, quanto a ela, dois graus de exigência: as provas absolutamente ilícitas e as provas relativamente ilícitas.
No primeiro grupo cabem as provas obtidas mediante tortura, coação e ofensa da integridade física ou moral das pessoas – com estribo no art. 32º nº 8 da CRP, para quem defende a aplicação desta norma ao processo civil por analogia; com arrimo na al. a) do nº 3 do art. 417º do CPC, para quem considera que, por via indireta, este preceito postula a proibição da prova ilícita; e com recurso ao que dispõem os arts. 1º, 2º, 16º, 18º, 24º e 25º da CRP, para quem afasta as duas soluções anteriores.
No segundo grupo estão compreendidas as violações dos outros direitos fundamentais, entre os quais o direito à intimidade da vida privada ou familiar, o direito à imagem e o direito à palavra, que têm consagração no art. 26º da CRP e na al. b) do nº 3 do art. 417º do CPC.
Relativamente a este segundo grupo [provas ilícitas relativas], “o consentimento do titular já é relevante em termos de retirar ilicitude ao ato lesivo”, na medida em que, [n]este campo, já se imporá, face à colisão de direitos fundamentais, proceder a uma ponderação concreta dos interesses em jogo (não se encontra predeterminada a ilicitude absoluta da prova, a qual, em função das circunstâncias concretas, será ou não valorada pelo Tribunal)”, o que significa que “se for compreensível, à luz da ponderação de interesses”, a intromissão na vida privada e/ou no direito à imagem ou à palavra [que são os que aqui estão em apreço], “para, deste modo, obter prova necessária à sua pretensão e se tal intromissão for efetuada de um modo proporcionado, a prova assim obtida deve ser admitida” [assim, Carlos Castelo Branco, ob. cit., pgs. 231-232 e Acórdão da Relação de Lisboa de 15-04-2021, atrás citado].
No caso destes direitos, ponderados os interesses em questão [através da chamada «teoria da ponderação dos interesses» que compreende os subprincípios da adequação, da necessidade e da justa medida], o consentimento livre e esclarecido do titular dos bens jurídicos tutelados pelos referidos arts. 26º da CRP e 417º nº 3 al. b) do CPC retira a ilicitude da obtenção da prova e permite que esta seja admitida e valorada no processo [para maiores desenvolvimentos sobre a teoria da ponderação de interesses e seus subprincípios, veja-se Carlos Castelo Branco, obra citada, pgs. 292-303].

Feito este breve trajeto pela prova ilícita e sua inadmissibilidade – como princípio, mas que comporta restrições/limitações – no processo civil, regressemos ao caso sub judice.
Não há dúvida que no caso sub judice estamos perante provas ilícitas relativas [ou provas relativamente ilícitas], uma vez que, repete-se, nos registos áudio e vídeo juntos pela progenitora requerida está em questão a intimidade da vida privada do menor [e, indiretamente, também a do progenitor aqui recorrente], bem como o direito à imagem e à palavra do menor.
No que diz respeito ao recorrente, não existe consentimento para a utilização daqueles registos como meios de prova. E da parte do menor tal consentimento é, naturalmente, impossível, pelo que o respetivo suprimento teria que passar, necessariamente, pela coincidência de vontades dos progenitores no sentido da sua admissão nos autos, o que não aconteceu.
Cabia, por isso, ao tribunal a quo, procedendo à devida ponderação dos interesses em jogo – de um lado, a tutela de direitos de personalidade do menor constitucionalmente protegidos [o direito à reserva da intimidade da sua vida privada e o direito sobre as suas imagem e palavra], bem como do seu superior interesse em ver regulado o exercício das responsabilidades parentais a cargo dos seus progenitores [a proteção do superior interesse da criança é inerente a todos os processos tutelares cíveis, como decorre do que dispõem os arts. 4º nº 1 do RGPTC, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 08.09 e 4º al. a) da LPCJP, aprovada pela Lei nº 147/99, de 01.09] e, do outro, a relevância das provas em questão para a descoberta da verdade [nomeadamente para fixação dos regimes de guarda do menor e de visitas a favor dos progenitores], sopesando, para tal, as exigências de adequação dessas mesmas provas [se relevam para o fim em vista], da sua necessidade [se a admissão dos aludidos registos constitui o meio menos lesivo/intrusivo na esfera da vida privada do menor] e da justa medida [se a lesão dos referidos direitos é ou não desmedida relativamente aos benefícios que podem advir da admissão e valoração das provas] –, aferir se in casu aqueles registos eram ou não de admitir.
Apesar dos processos tutelares cíveis serem de jurisdição voluntária, com prevalência do princípio do inquisitório e sem que o tribunal tenha de se orientar por critérios de legalidade estrita e de rigor processual, podendo, outrossim, investigar livremente os factos, coligir provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, sendo apenas admitidas as provas que o juiz considerar necessárias – arts. 12º do RGPTC, 986º nº 2 e 987º do CPC –, não deixa, ainda assim, como é evidente [e até reforçadamente, por estarem em questão direitos fundamentais de pessoas de menor idade], de lhes ser aplicável o princípio da não admissão das provas ilícitas, nos termos que se deixaram expostos [que valem para todos os processos de natureza civil, onde estes também estão compreendidos], pelo que o que atrás ficou descrito é, igualmente, aplicável ao caso dos autos.
O tribunal a quo reconhecendo, por um lado, que [a] gravação áudio e vídeo em causa, sem consentimento do requerente, constitui, em si, prova ilícita, porque não consentida ou autorizada”, mas considerando, por outro, que “visando a requerida demonstrar que os convívios da criança com o pai, aqui requerente, lhe têm sido prejudiciais, provocando negativas consequências para o seu bem-estar emocional”, concluiu que, no caso, “o direito à prova é, em concreto, preponderante e sobrepõe-se ao direito à voz, à palavra e à privacidade da criança, até porque é em seu benefício que se pretende regular a situação tutelar cível (…)”. E, por via disso, admitiu a junção aos autos dos referenciados registos para oportuna valoração, de acordo com a livre convicção do julgador e em articulação com todos os demais elementos de prova produzidos e contraditados e a produzir”.
Este entendimento é também perfilhado pelo Ministério Público nas conclusões das contra-alegações.
O recorrente, pelo contrário, discorda, sustentando que não existe uma necessidade absoluta de utilização dos mencionados registos áudio e vídeo [para a descoberta da verdade e ponderada decisão das responsabilidades parentais] e que existem meios de prova alternativos, como a prova pericial, na especialidade de psicologia forense, que é eficaz para avaliar as dinâmicas familiares e a qualidade dos vínculos parentais e que é menos intrusiva que o uso das gravações contidas naqueles registos [conclusões 6 e 7 das alegações].
Vejamos então.
Não há dúvida que os referidos registos áudio e vídeo relevam para a descoberta da verdade e, por via disso, para a posterior fixação, na sentença, dos regimes de guarda e visitas.
Também é inequívoca a tutela do superior interesse da criança neste processo de regulação das responsabilidades parentais.
Questão é se a conjugação destas duas realidades legitima in casu a admissão e valoração de prova que põe em causa direitos fundamentais do menor dos autos [e, indiretamente, também do recorrente, como já se disse].
Isto porque não basta, na ponderação dos interesses em conflito, que aqueles registos relevem para o fim em vista – subprincípio da adequação da prova. É, ainda, necessário, que os mesmos constituam o meio menos lesivo ou menos intrusivo da/na esfera da vida privada do menor – subprincípio da necessidade dessa prova – e que não exista uma desmedida desproporção entre os benefícios que podem advir da admissão e valoração daqueles e a lesão dos referidos direitos de personalidade – subprincípio da justa medida da prova.
Ora, é quanto a estes dois últimos elementos/subprincípios da teoria da ponderação de interesses que surge a nossa divergência relativamente ao que decidiu a 1ª instância. Isto porque, na nossa ótica, os referidos registos não só não constituem o meio menos intrusivo na esfera da vida privada do menor, como a sua admissão nos autos, para valoração pelo tribunal – livre apreciação dos mesmos no contexto e em conjugação com os demais meios de prova oferecidos e outros de que o tribunal possa vir a lançar mão –, não justifica a desmedida desproporção entre a lesão dos direitos de personalidade do menor e os benefícios que podem advir dessas admissão e valoração.
Com efeito, existem outros meios de prova de que o tribunal a quo poderá socorrer-se, ao abrigo do princípio do inquisitório e dos demais poderes próprios dos processos de jurisdição voluntária, atrás referenciados – se tal se mostrar necessário para a descoberta da verdade e adequada fixação dos referidos regimes –, que se apresentam menos intrusivos, mais consistentes e mais fiáveis e eficazes para a concretização de tais fins, sem gerarem aquela desproporção.
É o que acontece com a prova pericial, particularmente na especialidade de pedopsicologia forense, que é admissível ao abrigo do art. 22º do RGPTC. Esta prova especializada, além de implicar uma menor intrusão na esfera da vida privada do menor, já que não comporta a divulgação da imagem ou da voz deste e deverá ser realizada por técnico especialmente qualificado para o efeito, será também mais útil e mais consistente [porque devidamente fundamentada, objetiva e subjetivamente, por esse técnico qualificado] para a descoberta da verdade, fornecendo ao tribunal elementos relevantes para a fixação dos regimes de guarda e visitas adequados ao caso concreto [o que não acontece com os referidos registos áudio e vídeo que fazem apenas apelo ao lado emotivo da situação, desconhecendo-se em que contextos e circunstâncias foram produzidos].
Como tal, por não passarem no crivo da ponderação dos interesses em conflito, os registos áudio e vídeo apresentados pela progenitora do menor não devem ser juntos aos autos.
Consequentemente, impõe-se a revogação do despacho recorrido.

As custas deste recurso ficam, assim, a cargo da progenitora recorrida, por ter sido quem deu origem a este incidente e nele ficou vencida – arts. 527º nºs 1 e 2, 607º nº 6 e 663º nº 2 do CPC.

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Síntese conclusiva:
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4. Decisão:

Face ao exposto, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em:

1º. Julgar o recurso procedente e revogar o despacho recorrido, rejeitando-se a junção aos autos dos aludidos registos áudio e vídeo e ordenando-se a sua devolução à parte apresentante.

2º. Condenar a progenitora recorrida nas custas do recurso, pela procedência deste e por ter sido quem deu causa ao incidente que está na sua base.

Porto, 2025/2/25.

Pinto dos Santos

Anabela Miranda

Maria da Luz Seabra