I - O artigo 248.º, n.º 1, do CIRE atribui ao devedor que requeira a exoneração do passivo restante o benefício automático de diferimento do pagamento das custas, as quais não terão se ser pagas até à prolação da decisão final de tal pedido.
II - Porém, sendo proferida essa decisão final, será o insolvente responsável pelo pagamento das custas que não tenham sido satisfeitas pelo produto da massa insolvente ou através do rendimento disponibilizado ao abrigo da cessão efetuada ao fiduciário.
Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Maria da Luz Seabra
Rui Moreira
SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:
I-RELATÓRIO:
Aquando da sua apresentação à insolvência a Requerente requereu a exoneração do seu passivo restante, nos termos do disposto nos artigos 235º e ss. do C.I.R.E..
Por sentença transitada em julgado foi a requerente declarada insolvente.
Foi admitido liminarmente a requerida exoneração do passivo restante e o processo encerrado por insuficiência da massa.
Decorridos os três anos desde o início da cessão foram notificados os devedores, o Sr. Fiduciário e a credora, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 244º do C.I.R.E.
Ninguém se pronunciou nos autos, a não ser o Sr. Fiduciária, nos termos do deferimento.
Veio a ser proferida sentença que concedeu a exoneração do passivo restante à insolvente.
Quanto a custas, foi decidido:
“Sem custas autonomizáveis (nos termos do disposto no art. 303º do C.I.R.E., a atividade processual relativa ao incidente de exoneração do passivo restante, quando as custas devam ficar a cargo da massa, não é objeto de tributação autónoma)”.
O MP veio pedir a reforma da sentença quanto a custas, mas a Mma. Juíza manteve o anterior entendimento, conforme despacho de 21.11.2024, ref. 7971.
O MINISTÉRIO PÚBLICO veio interpor recurso desta decisão, apresentando as seguintes conclusões:
“I. A requerente AA, insolvente nos autos, veio requerer a exoneração do passivo restante nos presentes autos.
II. Tal foi-lhe concedido pela sentença proferida no dia 04.11.2024.
III. Sucede porém que na aludida sentença ficou a constar, quanto a custas, o seguinte: “Sem custas autonomizáveis (nos termos do disposto no art. 303º do C.I.R.E., a atividade processual relativa ao incidente de exoneração do passivo restante, quando as custas devam ficar a cargo da massa, não é objeto de tributação autónoma)”.
IV. O MP veio pedir a reforma da sentença quanto a custas, mas a Mma. Juiz manteve o anterior entendimento explanado na sentença, afirmando não se tratar de lapso – despacho de 21.11.2024, ref. 7971.
V. Ora, o MP não se conforma com este entendimento, porquanto entende que a requerente AA deve ser condenada em custas (sem prejuízo do deferimento do apoio judiciário, e do benefício de dispensa de pagamento de custas).
VI. Tal entendimento decorre da aplicabilidade do disposto no art. 248º CIRE.
VII. Tal entendimento decorre ainda da aplicabilidade do disposto no art. 527º CPC.
VIII. É que, como estipula o art. 248º CIRE, o devedor é responsabilizado em custas, podendo contudo, beneficiar de diferimento do pagamento das mesmas na decisão final.
IX. E essa responsabilidade apenas surge na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral.
X. Contudo, não deixa de se eximir a essa responsabilidade na inexistência de sado da massa insolvente ou da fidúcia, pelo que deveria a Mma. Juiz ter condenado a requerente no pagamento de custas.
XI. A não ter decidido dessa forma, ao ter invocado erradamente o art. 303º CIRE, a Mma. Juiz violou a aplicação dos arts. 248º CIRE e 537º CPC.
XII. É que o artigo 303º do CIRE sob a epígrafe “base de tributação” não define um princípio de responsabilização pelas custas, estabelece sim um princípio de regra de incidência de custas determinando a forma de determinação do valor da causa para tais efeitos.
XIII. Esta interpretação resulta da própria noção de «base tributável» constante do artigo 11.º do RCP, norma que fixa a regra geral de que «A base tributável para efeitos de taxa de justiça corresponde ao valor da causa, com os acertos constantes da tabela i, e fixa-se de acordo com as regras previstas na lei do processo respetivo».
XIV. Pelo que, a interpretação de que as custas nos incidentes que estão expressamente contemplados no artigo 303º do CIRE são sempre suportadas pela massa insolvente, não é consentida pela interpretação sistemática do artigo 303º do CIRE.
XV. Pelo que se pugna pela procedência do presente recurso, e que seja decidido revogar a sentença proferida e que se decida condenar a requerente no pagamento de custas, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral e, sem prejuízo da dispensa de pagamento das mesmas, devido a beneficiar de apoio judiciário.
Pelo que entendemos que a sentença proferida pela Mma. Juiz deve ser revogada, e alterada por outra na qual seja decidido que a devedora/requerente seja condenada em custas, nos termos do art. 248º CIRE e 527º CPC, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral e, sem prejuízo da dispensa de pagamento das mesmas,
devido a beneficiar de apoio judiciário.”
Não foi apresentada resposta ao recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II-OBJETO DO RECURSO:
A questão decidenda delimitadas pelas conclusões do recurso consiste em saber se a devedora pode ser responsabilizada pelo pagamento das custas do incidente de exoneração do passivo.
III-FUNDAMENTAÇÃO:
Dão-se aqui por reproduzidos os atos processuais mencionados no relatório.
IV-APLICAÇÃO DO DIREITO:
No despacho final do incidente de exoneração do passivo restante, que foi concedido à requerente insolvente nos termos do disposto no art.244º do CIRE, quanto a custas, foi decidido, o seguinte: “Sem custas autonomizáveis (nos termos do disposto no art. 303º do C.I.R.E., a atividade processual relativa ao incidente de exoneração do passivo restante, quando as custas devam ficar a cargo da massa, não é objeto de tributação autónoma)”.
A Srª Juíza, no despacho que indeferiu a reforma da sentença quanto a custas, solicitada pelo Ministério Público, explicitou o seu entendimento vertido naquela decisão, dizendo que, “(…) o incidente não está sujeito a condenação em custas autónomas, ou seja, ao pagamento de taxa de justiça, porque assim o determina o art.º 303º do CPC.
E assim é neste, como noutros incidentes apensos à insolvência, que não têm tributação autónoma (vg, reclamação de créditos).
O pedido de exoneração nem sequer é feito por apenso e é um pedido normal e recorrente nas insolvências de pessoas singulares, que não está sujeito ao pagamento de taxa de justiça.
Ou seja, a conta a elaborar é só uma, feita nos autos principais.
(…)
Do art.º 304º do CIRE retira-se, com toda a clareza, que as custas do processo são a cargo da massa insolvente, caso a insolvente seja decretada.
Foi o caso.
E o art.º 248º é insindicável deste, sendo que não pode ler-se o nº 2 sem primeiro se atentar devidamente no nº 1.
E o que diz este nº 1 é que o devedor que apresente o pedido de exoneração do pedido de exoneração do passivo restante beneficia do deferimento do pagamento das custas (e do pagamento da remuneração ao AI e Fiduciário) até decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível sejam insuficientes para o pagamento integral.
Ou seja, a responsabilidade continua a ser da massa, neste incidente.”
Discorda o Ministério Público desta decisão, defendendo em suma que a decisão não atende à aplicabilidade quer do disposto no art. 248º CIRE, quer do disposto no art. 527º CPC.
Decorre destas normas que, o devedor, no incidente de exoneração do passivo restante é responsabilizado em custas, podendo contudo, beneficiar de diferimento do pagamento das mesmas na decisão final.
E essa responsabilidade apenas surge na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral.
Vejamos.
A atividade jurisdicional não é exercida gratuitamente, impendendo sobre os litigantes o ónus de pagar determinadas “taxas”, para que possam por em marcha a máquina da justiça e têm de satisfazer, no final do processo, todas as quantias de que o tribunal se não haja embolsado por meio daquele adiantamento.
Para tal efeito, o art.º 527º do Código de Processo Civil estabelece:
“1- A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.
2- Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
3-(…)”.
O art.º 1º nº 1 do RCP por sua vez estabelece que “todos os processos estão sujeitos a custas, nos termos fixados pelo presente Regulamento”.
Prevê, no entanto, o art.º 4 do mesmo regulamento situações de isenção objetiva e subjetiva de custas, ou seja, os casos que, tendo em conta a qualidade da pessoa do devedor ou o objeto do processo, delas fica aquele definitivamente dispensado do respetivo pagamento.
O art. 303º do CIRE, sob o título “base de tributação” dispõe o seguinte:
“Para efeitos de tributação, o processo de insolvência abrange o processo principal, a apreensão dos bens, os embargos do insolvente, ou do seu cônjuge, descendentes, herdeiros, legatários ou representantes, a liquidação do ativo, a verificação do passivo, o pagamento aos credores, as contas de administração, os incidentes do plano de pagamentos, da exoneração do passivo restante, de qualificação da insolvência e quaisquer outros incidentes cujas custas hajam de ficar a cargo da massa, ainda que processados em separado.
Já o artigo 304ºdo CIRE, sob o titulo “responsabilidade pelas custas dos processo”, dispõe:
“As custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com transito em julgado.”
O artigo 304.º do CIRE, ao prever a responsabilidade da massa insolvente pelas custas do processo de insolvência (uma vez que esta seja decretada com trânsito em julgado), não obstante poder obter vencimento em algum dos processos e incidentes a que alude o artigo 303.º do mesmo código, não colide com o princípio geral em matéria de custas previsto no artigo 527.º do CPC, uma vez que sempre se terá de considerar ter sido o insolvente que a elas deu causa (obrigando, no que aqui interessa, os credores a apresentarem as respetivas reclamações no processo insolvêncial).
Na conjugação destas normas com o disposto no art.257º do CPC, que estabelece o principio geral da repartição das custas, diz o STJ, no acórdão de 29/04/2014, [1]o seguinte, com o qual não podemos deixar de concordar:
“(…) O processo de insolvência, na esteira do que se encontra legalmente estipulado para qualquer outro tipo de processo, não é tendencialmente gratuito para os respetivos intervenientes, pois, existem regras especiais e específicas que afastam expressis verbis essa asserção, a começar por aquele artigo 303º do CIRE quando nos diz que para efeitos de tributação o processo de insolvência abrange todo o processado autónomo ali referenciado cujas custas tenham de ficar a cargo da massa, o que significa que não são todas e quaisquer custas que estarão a cargo da massa, mas apenas aquelas que esta haja de suportar e a massa insolvente só suportará as custas na medida da sua sucumbência, por força das disposições processuais gerais aqui aplicáveis subsidiariamente, ex vi do artigo 17º do CIRE que para elas nos remete.
Ora, tendo em atenção a regra geral que rege a condenação em custas decorrente do disposto no artigo 527º do NCPCivil, temos que será condenada em custas a parte que a elas der causa, ou não havendo vencimento na acção, quem da mesma tirou proveito, entendendo-se que dá causa às custas do processo a parte vencida na proporção em que o for, tratando-se aqui da consagração do principio da causalidade entre a conduta de quem aciona ou é acionado e a lide respetiva, o que implica que a condição de vencido é determinante para a condenação no pagamento das custas, cfr sobre esta temática Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais, Anotado E Comentado, 2012, 4ª edição, 59/62, embora ainda no âmbito do anterior CPCivil questão que se torna indiferente neste preciso contexto posto que o actual normativo corresponde literalmente ao artigo 446º daqueloutro; cfr ainda sobre esta temática de custas os Ac STJ de 12 de Janeiro de 1995 (Relator Sousa Inês), in BMJ 443/264, este em sede de processo de falência, onde especificamente se concluiu que a condenação em custas assenta no princípio da causalidade em que a parte vencida dá causa à atividade tributável, ou do proveito emergente do processo; e de 8 de Outubro de 1997 (Relator Isidro Matos Canas), in BMJ 470/469, onde se segue o mesmo principio mas a propósito de outra temática.
Aliás se assim não fosse entendido, cairíamos numa completa subversão do sistema instituído, onde o princípio geral nesta matéria é o de que a responsabilidade pelo pagamento das custas assenta na ideia de que não deve pagar custas a parte que tem razão, passando o mesmo a conter desvios, nomeadamente no âmbito do processo de insolvência, fazendo-se recair sobre a massa insolvente toda e qualquer responsabilidade das custas, independentemente de a mesma poder obter ganho de causa nos processos e incidentes por aquele abrangidos nos termos do artigo 303º do CIRE.
O facto de o normativo inserto no artigo 304º do CIRE fazer consignar que as custas no processo ficam a cargo da massa insolvente, não poderá ser interpretado isoladamente, sem o apelo aos outros ínsitos legais existentes na ordem jurídica sob pena de se criarem brechas, incongruências e contradições insanáveis no sistema jurídico, o qual se pretende uno na medida em que «(…) A ordem jurídica forma um sistema de elementos coordenados e homogéneos entre si, não podendo comportar contradições. Daqui resulta que as leis se interpretam umas pelas outras - cada norma ou conjunto de normas funciona em relação às outras como elemento sistemático de interpretação», apud Castro Mendes, Introdução ao Estudo do Direito, 1977, 361; cfr também Francesco Ferrara, in Interpretação e Aplicação das Leis, Traduzido e prefaciado por Manuel de Andrade, 1934, 96 «(…) Ocorre pois, que o jurista considere o efeito das normas na sua totalidade, e não apenas uma norma de per si; tal como o mecânico não precisa de conhecer só uma ou outra lei cinemática, nas deve também saber por que modo, na cooperação de várias leis, se produz o resultado complexivo. Está nisto a aplicação consciente do direito, ou a técnica da decisão: está em saber atinar com as diversas normas a que, na sua combinação, pertence governar o caso concreto.(…)».
Decorre deste arresto que, estando o processo de insolvência, como qualquer outro (seja uma acção, execução, incidente, procedimento cautelar ou recurso, corram ou não por apenso, desde que o mesmo possa dar origem a uma tributação especial – artigo 1.º, n.ºs 1 e 2 do RCP), sujeito a custas e ao pagamento da correspondente taxa de justiça (artigos 301.º a 304.º do CIRE), com exceção das situações de isenção subjetiva a que aludem as alíneas h) e u) do n.º 1 do artigo 4.º do RCP (e, mesmo aqui, com as ressalvas consignadas nos n.ºs 4 e 6 do mesmo artigo), todos os demais intervenientes terão de pagar a taxa de justiça devida pelos atos a ela sujeitos (salvo se beneficiarem de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo).
Defende o Supremo Tribunal de Justiça que, ao aludir o artigo 303.º do CIRE às custas que “hajam de ficar a cargo da massa”, tal significa que não são todas e quaisquer custas, “mas apenas aquelas que esta haja de suportar e a massa insolvente só suportará as custas na medida da sua sucumbência, por força das disposições processuais gerais aqui aplicáveis subsidiariamente, ex vi do artigo 17º do CIRE que para elas nos remete.”.
E continua, “tendo em atenção a regra geral que rege a condenação em custas decorrente do disposto no artigo 527º do NCPCivil, temos que será condenada em custas a parte que a elas der causa, ou não havendo vencimento na acção, quem da mesma tirou proveito, entendendo-se que dá causa às custas do processo a parte vencida na proporção em que o for, tratando-se aqui da consagração do principio da causalidade entre a conduta de quem aciona ou é acionado e a lide respetiva, o que implica que a condição de vencido é determinante para a condenação no pagamento das custas (…)“. Se assim se não entender, frisa-se, a responsabilidade das custas recairia sempre sobre a massa insolvente, independentemente se a mesma poder obter ganho de causa nos processos e incidentes abrangidos pelo processo de insolvência. O artigo 304.º do CIRE não poderá, pois, ser interpretado isoladamente, “sob pena de se criarem brechas, incongruências e contradições insanáveis no sistema jurídico, o qual se pretende uno (…)”.
Tendo este acórdão se pronunciado sobre a questão da tributação autónoma no incidente da Reclamação de Créditos no âmbito do processo de insolvência, tem toda a pertinência a propósito do incidente da exoneração do passivo restante, que ora nos ocupa.
Pensamos até, que no caso concreto do incidente de exoneração do passivo, a questão deva ser até considerada sujeita a menor controvérsia em contraposição a outros incidentes do processo de insolvência, em face da regulação própria do incidente, a qual inclui a norma especial do artigo 248º, com a seguinte redação:
“1 - O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o organismo tenha suportado.
2 - Sendo concedida a exoneração do passivo restante, o disposto no artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais é aplicável ao pagamento das custas e à obrigação de reembolso referida no número anterior.
3 - Se a exoneração for posteriormente revogada, caduca a autorização do pagamento em prestações, e aos montantes em dívida acrescem juros de mora calculados como se o benefício previsto no n.º 1 não tivesse sido concedido, à taxa prevista no n.º 1 do artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais.”
Trata-se de um norma especial do regime deste incidente, sendo como tal suscetível de afastar a aplicação o regime geral.
Esta norma de caráter especial, não permite, a nosso ver, sustentar o entendimento que fundamentou o despacho recorrido, na parte da condenação em custas aqui em apreço, de que “o incidente não está sujeito a condenação em custas autónomas, ou seja, ao pagamento de taxa de justiça, porque assim o determina o art.º 303º do CPC.”
A Exoneração do Passivo restante regulada nos artigos 235º e ss do CIRE, constitui um incidente autónomo, que é alvo de tributação autónoma como resulta expressamente do art. 248º ficando abrangida pela regra geral de responsabilidade pelas custas do artigo 304.º do mesmo código, isto é, ficando as custas a cargo da massa insolvente, nos termos regulados naquela norma especial.
Na filosofia subjacente ao instituto da exoneração do passivo restante, a lei pretendeu que não havia que sobrecarregar o devedor com o encargo adicional de quaisquer custas se e enquanto estas pudessem ou devessem ser cumpridas pela massa e pelo rendimento disponibilizado ao fiduciário com a cessão.[2]
Como se pode ler no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 418/2021, de 23 de julho,[3] “O regime referido comporta um benefício especial, atribuído ope legis e sem necessidade de qualquer iniciativa por parte do devedor, consubstanciado no diferimento da exigibilidade da dívida de taxa de justiça e encargos processuais para momento posterior à decisão final do pedido de exoneração do passivo restante, uma vez recuperada a plena disponibilidade dos rendimentos angariados (n.º 1 do preceito), a que acresce a possibilidade de pagamento faseado do remanescente a pagar, através de remissão para o disposto no artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais (n.º 2), que estatui os pressupostos e limites para a autorização judicial do pagamento das custas em prestações em qualquer processo.
A ratio de tal normação radica no propósito de reforçar a proteção jurídica do devedor insolvente que requeira a exoneração do passivo restante, em atenção à forte compressão de recurso financeiros que o próprio e o seu agregado familiar passa a estar sujeito. Entendeu o legislador do CIRE que a exigência do pagamento imediato de taxa de justiça ou encargos ao próprio devedor (e não à massa insolvente ou ao acervo patrimonial gerado pela cedência de créditos futuros), significaria uma restrição adicional de recursos, e inerente acréscimo de dificuldades em fazer face às despesas comuns, em antinomia com o princípio da salvaguarda dos meios de sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, consagrado no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), inciso i), do CIRE.
Sucede, todavia, e ao contrário do que acontece com os casos de isenção, que o benefício concedido ao devedor insolvente que deduziu pedido de exoneração do passivo restante é apenas temporário, comportando não mais do que um diferimento; projeta, desse modo, o legislador, a exigibilidade e o cumprimento de tais obrigações de cariz pecuniário para momento posterior, uma vez concedida a exoneração do passivo restante e retomada a sua habilitação legal para a prática de atos que atinjam o seu património (o seu património é gerido em primeira linha pelo administrador de insolvência e, subsequentemente, pelo fiduciário, cabendo a cada um deles, na fase respetiva, efetuar o pagamento de dívida, mormente de dívidas resultantes de custas judiciais, nos termos do artigos 55.º, n.º 1, alínea a), e 241.º, n.º 1, alínea a), ambos do CIRE), mas fá-lo sem margem de aferição da suficiência da situação económica do devedor nessa fase da sua vida patrimonial para fazer face ao remanescente das custas judiciais.”
O artigo 248º, n.º 1, do CIRE atribui ao devedor que requeira a exoneração do passivo restante o benefício automático de diferimento do pagamento das custas, as quais não terão se ser pagas até à prolação da decisão final de tal pedido.
Sendo proferida essa decisão final, será o insolvente responsável pelo pagamento das custas que não tenham sido satisfeitas pelo produto da massa insolvente ou através do rendimento disponibilizado ao abrigo da cessão efetuada ao fiduciário.
Do referido artigo 248.º, n.º 1 decorre que, no período que medeia entre o pedido de exoneração do passivo restante e a decisão final desse pedido, o insolvente está dispensado de pagar quaisquer custas (cujo pagamento é diferido para momento posterior) mas, após a prolação dessa mesma decisão final, terá já de as liquidar na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível forem insuficientes.
A ratio desta norma visa evitar que a situação do insolvente seja dificultada ou agravada durante aquele hiato temporal, mas já não o dispensar, a final, do pagamento das custas que tenham ficado por satisfazer.
Uma vez proferido o despacho final de exoneração, o devedor terá já de cumprir com os respetivos deveres tributários, no qual se inclui o pagamento das custas (cumprimento esse que apenas não lhe poderia ser exigido caso o mesmo beneficiasse de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o que não se verificava.
Ver neste sentido o Acórdão da Relação de Lisboa de 28-09-2021.[4]
Do exposto resulta a procedência do recurso, substituindo-se a decisão recorrida, pela condenação da devedora em custas do incidente nos termos estabelecidos no art. 248º do CIRE, ou seja na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral e, sem prejuízo da dispensa de pagamento das mesmas, por força do apoio judiciário.
V-DECISÃO:
Pelo exposto e em conclusão acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso e em revogar a decisão recorrida, condenando-se a devedora nas custas do incidente nos termos especialmente previstos no art. 248º do CIRE, sem prejuízo do apoio judiciário.
Sem custas.
Porto, 25 de fevereiro de 2025.
Alexandra Pelayo
Maria da Luz Seabra
Rui Moreira
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[1] Proferido no P 919/12.6TBGRD, sendo Relatora ANA PAULA BOULAROT e estando disponível in www.dgsi.pt, que se debruçou sobre a questão da tributação autónoma do incidente das reclamações de créditos, no processo de insolvência.
[2] Ver os Acórdãos da Relação do Porto de 13.6.2018, no P 1525/12.0TBPRD.P1 e da Relação de Guimarães de 17.5.2012, proc. 1617/11.3TBFLG.G1 e acórdão da Relação de Lisboa de 28.11.2013, proc. 2645/13.0TBBRR.L1-6, in www.dgsi.pt.
[3] Acórdão que declarou com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.º 1 e 13.º, n.º 2 da Constituição, da norma constante do n.º 4 do artigo 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, publicado no D.R 1.ª SERIE, Nº 142, de 2021-07-23, Pág. 12 – 19.
[4] Proferido no P 104/14.2T8BRR.L1-1 em que é Relatora Renata Linhares de Castro, disponível in www.dgsi.pt