A responsabilidade objectiva não prescinde do nexo de causalidade entre o resultado danoso e a sua causa reportada à actividade que implica o risco.
Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha - Juiz 1
RELAÇÃO N.º 201
Relator: Alberto Taveira
Adjuntos: Alexandra Pelayo
Maria Eiró
AS PARTES
A.: AA.
R.: A... SA.
Alega para o efeito e, em suma, que sofreu um acidente de viação no dia 6 de Março de 2022, provocado pela condutora do veículo segurado pela Ré, uma vez que a mesma invadiu a sua faixa de rodagem, embatendo no seu motociclo, projectando-o. Em consequência do acidente, sofreu dores e graves lesões que lhe impossibilitaram a locomoção, obrigando-o a usar cadeira de rodas e, depois, moletas. Dependente da mãe, ficou triste e introvertido. Com a baixa médica, perdeu €2.967,90 de rendimentos (diferença entre o seu vencimento ilíquido e o valor do subsídio de doença pago pelo Instituto da Segurança Social). Alega ainda que o motociclo ficou totalmente inutilizado.
Citada para o efeito, veio a Ré contestar a acção, impugnando a factualidade alegada pelo Autor, defendendo que a culpa na produção do acidente foi exclusiva deste, por ter perdido o controlo do seu motociclo e embatido no veículo segurado, na faixa de rodagem deste. Impugna o valor do motociclo.
Designada data para a realização da audiência prévia, tentou-se a conciliação das partes, fixou-se o valor da causa em €49.467,90 (quarenta e nove mil, quatrocentos e sessenta e sete euros e noventa cêntimos), proferiu-se despacho saneador, enunciaram-se o objecto do litígio e os temas da prova, admitiu-se a prova testemunhal, a prova documental e determinou-se a realização de relatório pericial, requerido pelo Autor.
*
Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida SENTENÇA, nos seguintes termos:
“Nestes termos, julga-se a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolve-se a Ré, A..., S.A., dos pedidos deduzidos pelo Autor, AA.“.
O A., vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:
“NESTES TERMOS, requer-se que seja revogada a Sentença proferida pelo Tribunal A Quo e que o mui ilustre Tribunal Ad Quem o substitua por douto Acórdão, que julgue:
1) A ação totalmente procedente, por não provada[3], com as legais consequências;
Caso assim não se entenda:
2) De igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição de cada um dos condutores na produção do acidente e, em consequência, a condene a Ré a ressarcir 50% dos danos sofridos pelo Autor.“.
(…)
*
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil
Como se constata do supra exposto, as questões a decidir, são as seguintes:
A) Modificação da decisão da matéria de facto:
i) Dos pontos 38 a 43 dos factos provados (dinâmica do acidente); Das alíneas A a C dos factos não provados;
Argumenta com a errónea valoração das declarações de parte do A., AA, e dos depoimentos das testemunhas BB, CC e DD (assistiram ao acidente), EE.
Os pontos 38, 39, 40, 41 e 43 devem ser dados como não provados. A primeira parte do ponto 42 deve ser dada como não provada. Em contraponto devem ser dados como provados os factos das alíneas A) a C) dos factos não provados.
ii) Aditamento de facto aos factos provados. Deve ser adicionado aos factos provados, “”46) O Autor estava num passeio com alguns amigos, circulando com velocidade moderada, até porque um dos colegas, que ia a marcar o ritmo, tinha ficado sem gasolina e ia a balanço “.
B) Determinação da culpa na ocorrência do embate e/ou há responsabilidade pelo risco.
*
A sentença ora em crise deu como provada e não provada a seguinte factualidade.
“4.1. Factos provados
Resultaram provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:
1) No dia 6 de Março de 2022, pelas 11:40horas, teve lugar na Estrada ..., no concelho ..., Freguesia ..., um sinistro que envolveu o veículo motociclo com matrícula LR-..-.., marca Vespa, propriedade do Autor e o veículo automóvel com matrícula ..-..-CA, de marca Ford e modelo ..., sendo que este último não era conduzido pelo seu proprietário FF, mas antes por EE.
2) O local do acidente, correspondente a uma faixa de rodagem com cerca de 8,30 metros de largura, com duas vias, uma em cada sentido, correspondendo a um ponto de curva pronunciada.
3) O pavimento encontrava-se limpo e seco, inexistindo obstáculos ou obras no local, bem como inexistindo qualquer sinalização luminosa.
4) O veículo automóvel de marca Ford ..., tem a sua responsabilidade transferida para a Ré nos presentes autos, pela apólice de seguro ...47, seguro tipo Não Vida-Seguro Automóvel.
5) O Autor encontrava-se a circular no sentido Sul/Norte, ou seja, sentido ... para ....
6) O Autor estava num passeio com alguns amigos, circulando com velocidade moderada, tem experiência na condução de motociclos e conhecia bem o trajecto.
7) O local do sinistro corresponde a uma curva pronunciada.
8) A 26 de Março de 2022, o Autor prestou depoimento ao perito da Seguradora Ré.
9) Em 13 de Abril de 2022, recebeu comunicação onde se considerava ser este o culpado pela ocorrência do sinistro, declinando-se, deste modo, toda e qualquer responsabilidade.
10) Aquando da ocorrência do sinistro, o Autor, por ser projectado, sentiu no seu corpo um forte impacto.
11) O autor foi socorrido no local do sinistro, apresentando graves lesões que lhe impossibilitavam a locomoção.
12) Motivo pelo qual foi encaminhado, em transporte médico, para o Centro Hospitalar ..., Hospital ... em ....
13) Na sequência do dito internamento, verificou-se que o Autor apresentava “Traumatismo da bacia e coluna”.
14) Realizados alguns exames de diagnóstico, verificou-se “fractura sagital envolvendo a metade direita das duas primeiras vertebras sacrais…”.
15) Mais se observando “ligeira diástase de sínfise púbica com edema nos planos adjacentes, que sugere um aspecto pós-traumático”.
16) Pelo TAC realizado à coluna verificou-se “Fratura recente da vertente anterior da plataforma vertebral superior da L1, com incipiente achatamento e destacamento da margem anterior do anel marginal da plataforma”.
17) Neste sentido, após alguns dias de internamento, foi submetido a terapêutica cirúrgica para “fixação da sínfise púbica e fixação da sacroilíaca direita com placa e parafuso”.
18) Mais tendo sido sujeito a antibioterapia, anticoagulante, analgesoterapia, rx e penso.
19) O Autor, se que viu internado até dia 17 de Março de 2022, necessitou ainda de restringir a sua locomoção à utilização de cadeira de rodas pelo período de cerca de um mês.
20) Sendo que, decorrido este período, continuou a necessitar do auxílio de moletas para se locomover.
21) O Autor nasceu a ../../1969.
22) Por um longo período se viu inteiramente dependente do auxílio da sua mãe, que é uma senhora já de idade avançada.
23) Pessoa a quem, muitas vezes, teve que recorrer para a realização das tarefas mais básicas, como subir degraus, percorrer longos percursos ou mesmo calçar-se.
24) A expensas do ocorrido o Autor teve dores permanentes e extremamente condicionantes, apresentando um quantum doloris de grau 4/7 a 16.10.2023.
25) O Autor esteve de baixa médica até dia 26.09.2022, pela incapacidade de exercer a sua actividade profissional.
26) O Autor tem dificuldades em realizar grandes movimentos, como caminhar, subir degraus, agachar, com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 8 pontos.
27) O Autor necessitou de ajuda para a realização das tarefas mais simples do seu quotidiano, tendo que, reiteradamente, solicitar o auxílio, o que fez com que, constantemente, o Autor se sentisse diminuído e, diga-se mesmo, humilhado, uma vez que se vê agora sem a autonomia e liberdade que tanto apreciava.
28) Tendo-se sentido excluído dos grupos de amigos que anteriormente integrava, tendo em conta que não conseguia realizar as actividades que lhes são comuns.
29) Mais impedindo que usufruísse com alegria dos momentos de convívio familiar, que tão aprazes sempre lhe foram.
30) O Autor ficou, desde a data do sinistro, mais pessimista, triste e introvertido.
31) Do sinistro supra descrito, resultou a perda total do motociclo, de marca Vespa modelo ..., com matricula LR-..-.., que pertencia ao autor.
32) O referido veículo, tinha sido recentemente restaurada, pelo que se encontrava em perfeitas condições.
33) Um motociclo da mesma marca e modelo do que era conduzido pelo sinistrado, aqui Autor, custa em média €5.000,00 (cinco mil euros).
34) O vencimento ilíquido do autor era de 3.806,00€ (três mil oitocentos e seis euros).
35) Ao passo que, pela incapacidade temporária, o Autor recebeu, do instituto de Segurança Social, os seguintes valores:
i) 2022/08 - €2318,26;
ii) 2022/08 - €2815,03;
iii) 2022/07 - €2649,44;
iv) 2022/07 - €2483,85;
v) 2022/06 - €2483,85;
vi) 2022/06 - €1987,08;
vii) 2022/06 - €496,77;
viii) 2022/05 - €2483,85;
ix) 2022/05 - €2649,44;
x) 2022/04 - €2318,26;
xi) 2022/04 - €1987,08;
xii) 2022/04 - €662,36.
36) Sem que se contabiliza o valor de subsídios de turno e de alimentação que são variáveis, o Autor teve até à data uma perda de rendimento que monta a €1.306,73 (mil trezentos e seis euros e setenta e três cêntimos).
38) O veículo em causa seguia pela respectiva hemi-faixa de rodagem do lado direito, a uma velocidade moderada, pelo que seguramente a não mais do que 30/40 kms/hora, e com a sua condutora atenta ao demais trânsito e condições da via.
39) Ao descrever uma curva fechada e com pouca visibilidade, que, atento o seu sentido de marcha, se descrevia para a respectiva esquerda, foi a condutora do veículo seguro surpreendida por três motociclos a circular em sentido contrário.
40) Tendo o Autor, em travagem na aproximação da curva, que, para ele, se apresentava para respectiva direita, perdido totalmente o controlo sobre o motociclo, com o que entrou em despiste, e invadiu a hemi-faixa de rodagem de sentido contrário àquele em que seguia, pelo que a hemi-faixa de rodagem por onde circulava o veículo seguro na ré.
41) Com o que tudo se colocou à frente do mesmo, cortando a sua linha de marcha e embatendo no canto da frente lado esquerdo do mesmo.
42) O embate ocorreu na hemi-faixa de rodagem do sentido ... - ..., ficando o veículo seguro na Ré imobilizado uns metros à frente do local onde ocorreu o embate.
43) O motociclo do Autor, por seu lado, atento o despiste sofrido e o embate no veículo seguro na ré foi projectado para a hemi-faixa de rodagem do sentido ... – ..., imobilizando-se mais à frente na mesma.
44) O local do acidente situa-se dentro de uma localidade, sendo o limite máximo de velocidade é de 50 kms/hora.
45) A congénere B... – Companhia de Seguros, S.A., na qualidade de seguradora do veículo do Autor, após as necessárias averiguações, e chegando à mesma conclusão que a aqui ré, assumiu a responsabilidade pela produção do mesmo do que tudo informou o segurado na contestante por carta datada de 31.03.2022.
4.2. Factos não provados
Não resultaram provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:
A) Quando, ao realizar a curva do local do sinistro, o Autor viu a via em que circulava ser invadida pelo veículo automóvel segurado pela Ré, que circulava em sentido contrário, acabando assim por embater no motociclo do Autor que, pelo embate, foi projectado.
B) Sabendo que naquele local havia uma curva mais “fechada”, o Autor colocou toda a sua atenção na via e em exercer uma circulação prudente.
C) Numa tentativa de “encurtar a curva”, o mencionado condutor acabou por se desviar da sua via de circulação para a via onde circulava o sinistrado.
D) O autor procedeu à comunicação do sinistro à Ré, por intermediação da sua seguradora.
E) O Autor utiliza moletas até hoje.
F) O Autor ainda tem que recorrer a terceiros para a realização das tarefas mais básicas, como subir degraus, percorrer longos percursos ou mesmo calçar-se.
G) Nunca mais o Autor conseguiu voltar a circular de motociclo, não vislumbrando sequer a possibilidade de o fazer dado as fortes dores que apresenta.
H) O Autor ainda se sente humilhado e excluído dos grupos de amigos e familiares.
I) Do local do sinistro o motociclo foi directamente para a sucata, por estar completamente inutilizado.
J) Correspondendo a uma perda salarial mensal de 989,30€ (novecentos e oitenta e nove euros e trinta cêntimos).
K) O último deles – o conduzido pelo aqui Autor – circulava em velocidade superior a 50 kms/hora..“, realçado os factos objecto de impugnação recursiva.
*
A)
Modificação da decisão da matéria de facto:
Considerandos.
São as conclusões do requerimento de recurso quem fixa o objecto do recurso.
Dispõe o artigo 640.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, com a epígrafe, “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)“.
A Doutrina tem vindo a expor, de modo repetido e claro, quais os requisitos que o recurso de apelação, na sua vertente de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, terá de preencher para que possa ocorrer uma nova decisão de matéria de facto.
Nesta sede, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª Ed., em anotação à norma supratranscrita importa reter o seguinte.
a) Em primeiro lugar, deve o recorrente obrigatoriamente indicar “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”;
b) Em segundo lugar, tem o recorrente que indicar “os concretos meios probatórios” constantes dos autos que impõe sobre aqueles factos (alínea a)) decisão distinta da recorrida;
c) Em terceiro lugar, em caso de prova gravada, terá de fazer expressa menção das passagens da gravação relevantes;
d) Por fim, recai o ónus sobre o recorrente de indicar a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de factos impugnadas (alínea a)).
Com a imposição destes requisitos o legislador faz recair sobre o recorrente o ónus de alegação, de modo reforçado, para que a instância de recurso não se torne aleatória e imprevista, ie, que os recursos possam ter natureza genérica e inconsequente (neste sentido o autor citado, in ob. cit., pág. 166).
De igual modo, indica qual ou quais os meios de prova que sustentam a alteração peticionada dos factos – prova documental e testemunhal.
Pelo exposto estão preenchidos os apontados requisitos, pelo que se impõe o seu conhecimento.
Em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a Relação tem poderes de reapreciação da matéria de facto, procedendo a julgamento sobre a factualidade, assim garantindo um verdadeiro duplo grau de jurisdição.
Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu n.º 1 que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
“No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência do invocado erro de julgamento.
Não se ignora o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e que essa imediação está mais presente no tribunal da 1.ª instância. Todavia, ainda assim, o resultado dessa imediação deve ser objetivado em argumento probatório, suscetível de discussão racional, além do mais, para evitar os riscos da arbitrariedade“, in Ac. Supremo Tribunal de Justiça, 62/09.5TBLGS.E1.S1, de 02.11.2017, relatado pelo Cons. TOMÉ GOMES, in dgsi.pt.
Importa ter presente que a prova produzida deve ser conjugada, harmonizada e ponderada no seu conjunto enquanto base da convicção formulada pelo Tribunal, não sendo legítimo valorizar meios probatórios isolados em relação a outros, sopesando os critérios de valoração, numa perspectiva racional, de harmonia com as regras de normalidade e verosimilhança, mas sempre com referência às pessoas em concreto e à especificidade dos factos em apreciação.
Com vista a este Tribunal ficar habilitado a conhecer dos factos em discussão, e deste modo formar a sua convicção autónoma, própria e fundamentada, teve de analisar todos os meios de prova produzidos em 1.ª instância.
Deste modo, este Tribunal ponderou a prova documental junta aos autos e citada na sentença em crise e que aqui se dá por reproduzido.
De seguida, procedeu-se à audição integral e completa das gravações da sessão de audiência de julgamento, depoimentos das testemunhas.
Quanto à ponderação dos meios probatórios produzido em audiência final, mormente a prova por confissão, declarações de parte ou a prova testemunhal, a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as partes ou as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.
Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.
Deverá ocorrer alteração da decisão da matéria de facto da primeira instância, quando a prova produzida impuser uma diversa decisão. Haverá que proceder a um novo juízo critico da prova de modo a se poder concluir por aquele feito na primeira instância não se poder manter. Ou de outro modo. Haverá que fazer uma apreciação do julgamento da matéria de facto da primeira instância de tal modo que as provas produzidas imponham de modo decisivo e forçado uma outra decisão da matéria de facto. Haverá de encontrar este Tribunal de recurso uma tal incongruência lógica, quer seja por ofensa a princípios e leis cientificas, quer contra princípios gerais da experiencia comum, quer da apreciação e valoração das provas produzidas, de modo a concluir por um diverso sentido.
Não basta, pois, que as provas permitam, dentro da liberdade de apreciação das mesmas, uma conclusão diferente, a decisão diversa (artigo 640.º do Código de Processo Civil) terá que ser única ou, no mínimo, com elevada probabilidade e não apenas uma das possíveis dentro da liberdade de julgamento.
Terá o Tribunal de recurso de concluir pela existência de erro na apreciação, quanto a concretos e precisos pontos de factos, por os meios de prova indicados pelo recorrente imporem uma conclusão factual distinta.
i) Dos pontos 38 a 43 dos factos provados (dinâmica do acidente); Das alíneas A a C dos factos não provados.
Argumenta com a errónea valoração das declarações de parte do A., AA, e dos depoimentos das testemunhas BB, CC e DD (assistiram ao acidente), EE.
Os pontos 38, 39, 40, 41 e 43 devem ser dados como não provados. A primeira parte do ponto 42 deve ser dada como não provada. Em contraponto devem ser dados como provados os factos das alíneas A) a C) dos factos não provados.
ii) Aditamento de facto aos factos provados. Deve ser adicionado aos factos provados, “”46) O Autor estava num passeio com alguns amigos, circulando com velocidade moderada, até porque um dos colegas, que ia a marcar o ritmo, tinha ficado sem gasolina e ia a balanço “.
Estamos perante factualidade atinente à dinâmica do acidente.
A primeira instância quanto à dinâmica do acidente fundamentou do seguinte modo:
“A deslocação ao local foi ainda essencial à percepção do local e à confirmação do verificado nas fotografias juntas ao processo – a existência de uma curva longa e apertada e inclinação da estrada no sentido interior da curva.
No que respeita à prova documental, foram analisados os seguintes elementos:
Da petição inicial
- participação de acidente de viação com croqui;
- declaração amigável do acidente;
(…)
Da contestação
- declaração amigável apresentada pela condutora do veículo segurado;
- condições particulares da apólice de seguro da Tranquilidade;
- fotografias;
(…)
O Autor prestou declarações de parte e foram ouvidas nove Testemunhas, incluindo a condutora do veículo segurado pela Ré.
Confrontando-se este depoimento (de EE) com as declarações de parte do Autor, verifica-se que a primeira descreveu o acidente de forma mais pormenorizada e consentânea com as características do local e a posição definitiva dos veículos.
O depoimento de EE foi, na parte que interessa, confirmado pelo depoimento de DD, condutor do veículo que seguia atrás daquela, no momento do acidente.
É de sublinhar que foi reportado que o pai de EE é primo de DD, não tendo no entanto contacto regular com a mesma. Este facto foi admitido desde o início das averiguações realizadas pelos peritos das seguradoras (ver relatórios).
Desde dois depoimentos ficou descrito que, efectivamente, o Autor e os seus amigos circulavam em grupo e, ao contrário do afirmado por aqueles, alguns se encontravam lado a lado.
Ao fazer a curva, o Autor caiu para o lado direito, tendo a parte traseira do seu motociclo (lado esquerdo) embatido na parte frontal esquerda do veículo segurado pela Ré. Com o embate, o motociclo rodou, batendo com a parte da frente na lateral esquerda do veículo automóvel.
Esta descrição é coincidente com os danos do motociclo e os danos do veículo automóvel.
Efectivamente, aquele apresenta danos na traseira lateral esquerda, na arte da frente (pára-choques e roda) e do lado direito, incluindo por baixo.
O veículo automóvel apresenta danos no lado frontal esquerdo, abaixo da óptica (que não ficou partida) e na lateral esquerda, abaixo das portas.
Com o embate, o veículo automóvel desvia-se ligeiramente para a direita e estanca uns metros à frente. O motociclo desliza e fica imobilizado dentro da sua faixa de rodagem.
Pelos vestígios visíveis nas fotografias - entregues pela condutora do veículo segurado ao perito averiguador (ver relatório de averiguação junto a 07.03.2022) – o embate deu-se na faixa de rodagem do veículo automóvel, mas não propriamente no meio da hemi-faixa de rodagem como alegado na contestação.
Note-se que não obstante a inclinação da via, no sentido da curva, os vestígios estão principalmente na faixa de rodagem da direita, sentido .../....
Com o embate e rotação do motociclo, o Autor foi projectado e caiu em direcção à berma (sentido .../...).
Na versão do Autor, o veículo automóvel encontrava-se na sua hemi-faixa de rodagem e bateu com a roda da frente na parte da frente do veículo, sendo projectado pelo ar.
Ora, salvo melhor opinião, essa descrição não coincide com os danos verificados no veículo automóvel (a óptica não partiu e o capô e asa do mesmo não apresentam danos) e a posição final demonstra – pela distância que se encontra do motociclo – que não se desviou muito do sentido em que seguia.
Aliás, tal facto é confirmado pelas Testemunhas indicadas pelo Autor e amigos deste.
Destes depoimentos suscitam-se dúvidas quanto à ordem com que seguiam e como é que afirmam que o embate se deu na faixa de rodagem do Autor, quando, GG nada viu, apenas ouviu o embate. CC confirma que carro segurado pela Ré bateu, desviou-se e parou três ou quatro metros à frente (o que não permite grandes desvios) e BB diz que o veículo automóvel bateu na roda da frente da vespa e o Autor saltou, projectado (sem bater, no entanto, no pára-brisas do carro).
É de sublinhar que, nos depoimentos prestados ao perito averiguador, CC confirmou que o motociclo bateu primeiro com a parte traseira, lado esquerdo.
Mais a mais, foram apresentados dois pormenores, de forma espontânea, pelo Autor e por EE que, conjugados com as explicações dadas pelos peritos, HH e II, não deixaram dúvidas quanto à dinâmica do acidente.
Efectivamente, estes senhores peritos sublinharam o sentido em que os veículos seguiam (o Autor descia e a condutora do veículo segurado subia), a inclinação da via para o interior da curva e as regras da experiência comum. Isto tudo conjugado com a posição final dos veículos, descrito no croqui realizado pela GNR e visível nas fotografias juntas aos autos.
Retomando, o Autor disse que EE invadiu a sua faixa de rodagem e que ele não tinha espaço para se desviar. Perguntar-se-á: porquê?
Efectivamente, se os motociclos não seguiam lado a lado (na versã ode Autor e amigos), porque é que o Autor não tinha espaço para se desviar para o lado direito?
Caso estivesse de tal modo perto da berma, ao rodopiar ou ao ser projectado, seja Autor, seja o seu motociclo teriam tocado na parede de pedra que lá se encontra. O que não sucedeu.
Por outro lado, EE disse que, ao ver os primeiros motociclos que vinham lançados e praticamente no meio da estrada (relembra-se que GG vinha a lanço, por falta de combustível, pelo que não podia travar com o motor), teve o reflexo de se desviar mais para a direita. Ainda assim, viu o Autor atrapalhado e a cair com vespa, deslizando em sua direcção.
Por todo o exposto, conclui-se pela versão apresentada pela Ré e não pela do Autor.
(…)
Os depoimentos de EE e DD determinaram a prova dos factos 38) a 43), nos termos já supra explicados.
Nesta parte, cumpre referir que JJ, militar da GNR que procedeu à elaboração do croqui e do auto de participação junto com a petição inicial, disse que indicou o local de embate conforme indicado por EE.
Ora, conforme resulta do acima exposto, o local de embate não terá sido no local indicado, sendo impossível que o veículo parasse exactamente no momento do embate, mas sim, no local onde se vêm os vestígios de plástico preto na estrada, logo abaixo do automóvel.
(…)
Quanto aos factos dados como não provados, resultaram os mesmos da produção de prova em sentido contrário, nos termos já acima expostos – pontos A), C) e J).
Concluindo-se que foi o Autor que caiu e foi contra o veículo segurado pela Ré, não se pode dar como provado que tenha conduzido de forma atenta e prudente, pelo que se deram os factos descritos em B) como não provados.
(…)“
Optou-se pela extensa transcrição da motivação da decisão de facto, pela clareza e lógica do discurso explanada pela M.ma Juíza.
Como se afirmou em antes, terá este Tribunal de recurso de proceder à alteração da decisão de facto caso a prova impuser uma distinta decisão.
Ouvida toda a prova produzida em audiência de julgamento, compulsada a prova documental, não se pode apontar que ocorra nos autos um tal manancial de prova imponha uma decisão diversa, no caso, apontada pelo apelante. Não há falta de harmonia, ou contraditório, ou discrepante na lógica da motivação da decisão de facto que se possa apontar à decisão de modo a que a mesma esteja inquinada.
Na realidade os depoimentos em que está alicerçada a decisão de facto, EE (condutora da viatura AJ) e DD, revelam que apresentaram um discurso muito credível. A espontaneidade com que o prestaram, a lógica e coerência, com os demais meios de provas, é patente e notório.
Por sua vez, as declarações de parte do A., AA, e demais pessoas que afirmaram ter assistido ao acidente, KK, LL e BB, por padecerem de incongruência e não serem consentâneos com os demais meios de prova, designadamente aqueles apontados pela M.ma Juíza (prova documental), não foram de molde a atingir a credibilidade que se atribuiu as testemunhas EE e DD.
Subscreve-se, portanto, todo o discurso judicial da decisão da matéria de facto da primeira instância, pois que obedece aos princípios e regras do direito probatório.
Por fum quando ao pedido de adicionamento do facto, a factualidade em causa é inócua e irrelevante para a decisão da causa.
Por tudo o exposto, improcede a pretensão do apelante.
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Determinação da culpa na ocorrência do embate e/ou há responsabilidade pelo risco.
Como se verifica da análise das conclusões formuladas pelo apelante, o objecto deste recurso consistia essencialmente na alteração da decisão proferida sobre a matéria controvertida. Dessa alteração, antes de qualquer outro fundamento, dependia a pretendida alteração da solução decretada na sentença em crise, pois sem isso a tese do autor/apelante continuaria desprovida de substrato factual apto à sua afirmação.
Ainda assim, pugna o apelante que dos factos provados e dos factos não provados existe uma dúvida razoável do local onde ocorreu o acidente/embate, em qual das faixas de rodagem, “Não se tendo apurando a culpa de nenhum dos condutores no acidente de viação em causa, estamos, efetivamente, perante uma situação de responsabilidade pelo risco” (cls 69ª).
Ora, nos autos está comprovada a culpa da ocorrência do embate do A. condutor da “vespa” motociclo LR.
Na realidade da factualidade dada como provada, o embate ocorreu na faixa de rodagem do veículo automóvel AJ, tendo o motociclo LR lhe cortado a linha de marcha. Assim, se concluir como a sentença recorrida “Perante esta factualidade, dúvidas não há que o acidente ocorreu por força da conduta do próprio Autor que, nomeadamente, violou o disposto nos artigos 11º, n.º2 e 13º, n.º1 do Código da Estrada.
Do mesmo modo, não é possível concluir, pelos factos dados como provados, que a condutora do veículo segurado pela Ré tenha contribuído, de alguma forma, para a produção do acidente.”
Aqui seguimos de perto a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão 313/18.5T8GMR.G1.S1, de 27.02.2024, relatado pelo Cons JORGE ARCANJO, onde se pode ler:
“A jurisprudência tem assumido uma interpretação actualista do art.505 em conjugação com o art.570 do CC, ou seja, do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, em particular nas situações das chamadas “vítimas frágeis” (passageiros, peões e ciclistas), embora também para o caso de motociclos (cf por ex., Ac STJ 13/4/2021 (proc nº 4883/17T8GMR.G1), Ac STJ de 16/11/2023 (proc nº 849/20.8PRT.P1.), em www dgsi.pt).
Contudo, o que se tem mantido igualmente como dominante na jurisprudência do STJ é a ideia de que estando demonstrado que o acidente se deveu exclusivamente à conduta do lesado, não é, evidentemente, possível equacionar a hipótese de concurso da culpa do lesado com responsabilidade pelo risco (e, designadamente, considerar a aplicabilidade do artigo 505.º do CC, na interpretação atualista) – o que está presente em todos os acórdãos do STJ citados.“ Esta jurisprudência segue o que foi decidido pelo mesmo Tribunal superior, Acórdão 589/14.7T8PVZ.P1.S1, de 27.06.2019, relatado pelo Cons RAIMUNDO QUEIRÓS, sumariado “A responsabilidade objectiva não prescinde do nexo de causalidade entre o resultado danoso e a sua causa reportada à actividade que implica o risco.”, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 15385/15.6T8LRS.L1.S1, de 17.10.2019, relatado pelo Cons OLIVEIRA ABREU, sumariado “Quando se apure que o acidente ocorreu devido à actuação da lesada - que o causou - sem que se possa atribuir ao condutor do veículo (à culpa do condutor) ou aos riscos próprios do veículo, qualquer contribuição na respectiva produção, esta circunstância encerra causa excludente da responsabilidade objectiva do condutor ou proprietário do veículo.”, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 1918/20.0T8VRL.P1.S1, de 01.01.2024, relatado pela Cons ROSÁRIO GONÇALVES, sumariado “I - A responsabilidade fixada pelo nº. 1 do art. 503º do Código Civil, só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de força maior estranha ao funcionamento do veículo. II - A culpa afasta o risco, nos termos do preceito, quando o facto do próprio lesado tiver sido a causa exclusiva do acidente.”.
Pelo exposto, estando demonstrado nos autos que o embate ocorreu por exclusiva culpa do A., sem que da conduta da condutora do veiculo segura na companhia de seguros, AJ, se possa assacar qualquer nexo na ocorrência do embate ou que tenha advindo do risco de circulação da dita viatura, terá que improceder a pretensão do apelante.
Resta, então, concluir pela integral falência das conclusões recursivas do apelante e, nesta medida, pela improcedência do seu recurso.
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Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo A., apelante (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).
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Alberto Taveira
Alexandra Pelayo
Maria Eiró
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.
[2] Seguimos de perto o relatório elaborado pelo Exmo. Senhor Juiz.
[3] Certamente será por provada.