COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO
ADMINISTRAÇÃO DE VIA PÚBLICA RODOVIÁRIA
OFENSA DE DIREITOS PRIVADOS
Sumário

Os tribunais judiciais são materialmente incompetentes para julgar uma ação em que os autores, arrogando-se de proprietários de um prédio confinante com uma via pública rodoviária, pretendem, no essencial, que a entidade que, com poderes de autoridade, administra essa via, dela retire um rail metálico que nela colocou a delimitá-la e que impede o acesso àquele prédio.

Texto Integral

Processo n.º 1300/24.0T8AVR.P1


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Sumário
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Relator: João Diogo Rodrigues;
Adjuntas:
Juiz Desembargadora, Maria Eiró;
Juiz Desembargadora, Raquel Lima.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório

1- AA e esposa, BB, instauraram, no dia 06/04/2024, a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra Infraestruturas de Portugal, S.A., pedindo que esta última seja condenada:

a) a reconhecer que são donos e legítimos proprietários do prédio que identificam;

b) a respeitar o seu direito de propriedade sobre tal prédio, abstendo-se de qualquer ato que limite ou impeça o gozo do mesmo, incluindo o direito de lhe aceder livremente, de pé e de carro, diretamente pela Estrada ..., ao Km. ..., junto à entrada aí localizada;

c) e, a remover, no prazo máximo de quinze dias, todo e qualquer obstáculo que obstrua a entrada para o referido prédio, nomeadamente, o rail metálico colocado à frente da entrada para o mesmo.

Baseiam estes pedidos, essencialmente, na circunstância de serem donos do referido prédio e de a Ré, no dia 01/02/2024, ter vedado, com um rail metálico, o acesso àquele prédio, a partir da Estrada ..., sobre a qual a mesma exerce jurisdição.

Deste modo, porque tal prédio ficou encravado e este facto lhes causa danos de diversa ordem, pretendem que cesse a referida limitação ao seu direito de propriedade.

2- Contestou a Ré refutando esta pretensão, porquanto, entre outras razões, os tribunais comuns são materialmente incompetentes para a apreciar. Isto porque, além de ser uma pessoa coletiva de direito público, o ato que praticou, traduzido na colocação de guardas metálicas na referida Estrada Nacional ..., foi praticado no âmbito de uma atividade de gestão pública.

Como tal, a competência para julgar a presente ação recai sobre os tribunais administrativos e fiscais, o que pretende se reconheça, com a sua consequente absolvição da instância.

3- Responderam os AA. pugnando pela solução contrária. A seu ver, o modo como eles próprios estruturam a presente ação, como sendo de reivindicação (traduzida numa questão de direito privado, assente na defesa de direitos reais, ou seja, na defesa do seu direito de usar, fruir e dispor materialmente do seu prédio), determina a competência material dos tribunais comuns.

Daí que pugnem pela improcedência da referida exceção

4- Terminada a fase dos articulados, o Tribunal recorrido proferiu sentença, na qual se julgou materialmente incompetente para julgar esta ação e absolveu a Ré da presente instância.

5- Inconformados com o assim decidido, recorrem os AA., terminando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“1. O que está em causa no âmbito da presente ação é a violação e a restrição mediante compressão do pleno gozo pelos recorrentes daquele seu prédio id. na p.i.;

2. A atuação da recorrida, tal como configurada na causa de pedir, impede os recorrentes do uso e acesso, de fruir e dispor do seu prédio que, em resultado dessa atuação, ficou encravado, tal como alegado, assim violando porque restringindo o seu direito de propriedade;

3. E que sustenta o recurso à competente ação real para defesa desse seu direito, cuja atuação limitadora do direito de propriedade não tem necessariamente de incidir materialmente sobre a coisa;

4. Tal como parece depreender-se do despacho sob censura – ocupando-o e invadindo-o;

5. Tal atuação não é necessariamente uma condição sine qua non para consubstanciar a tutela da defesa desse mesmo direito de propriedade através da ação real destinada à sua defesa;

6. A colocação do rail junto à mencionada entrada, encravando o prédio e que se refletem diretamente na compressão do exercício desse mesmo direito de propriedade sob o prédio em causa, consubstancia o recurso à competente ação para a defesa do direito de propriedade dos A.A. – porque limitado no seu conteúdo - tal como se mostra peticionado no âmbito da presente ação através dos pedidos formulado nas alineas A), B) E C) da p.i.;

7. Ademais, foi a própria recorrida anterior – Junta Autónoma de Estradas – que, em 1998, vendeu aos recorrentes o prédio em causa - cfr. resulta de forma inequívoca do documento intitulado auto de adjudicação junto com a p.i. como (Doc.3) - com esse mesmo acesso;

8. E daqui resulta que aquela ora recorrida vendeu aos recorrentes em 1998 o prédio já então beneficiando com o acesso que agora lhes pretende retirar;

9. Nesse conspecto, cabe ainda referir que embora a sentença sob censura traga à colação o regime e o disposto nos arts. 50º, nº 5 e 51º do D.L. 34/2015 de 27.04, tais normativos reportam-se ao licenciamento de novos acessos após a sua entrada em vigor, não a acessos pré-existentes tal como o reconhecido pela recorrida na anterior venda (em 1998) do prédio em causa aos recorrentes;

10. Abusando assim, de qualquer direito que lhe pudesse assistir na sua vertente de venire contra factum proprium;

11. Pelo que, sendo o pedido principal o do reconhecimento do direito de propriedade na sua plenitude (usar, fruir e dispor material e juridicamente da coisa) com fundamento em atuação da recorrida que ofende e comprime o conteúdo desse mesmo direito de propriedade assente na faculdade de usufruir da coisa objeto do mesmo, convertendo-o em prédio encravado, tal como alegado na p.i. e cuja prova se pretende fazer no âmbito dos presentes autos, será o Tribunal Judicial, e não, o Administrativo, o competente, como se refere na resposta à exceção apresentada pelos A.A., em 26.06.24, através de requerimento com a Ref.ª Citius nº 16344824 alicerçada na abundante jurisprudência aludida nos arts. 15º e 16º dessa peça;

12. E é com base na pretensão formulada pelos recorrentes em juízo (pedidos formulados nas alíneas a) a d) da p.i.) e na causa de pedir que terá de se aferir da competência material do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro;

13. Tal como refere o Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, a competência em razão da matéria, verifica-se em função dos termos em que a ação é proposta, concretamente, em face da relação jurídica controvertida tal como configurada na p.i.;

14. Tal como decidiu o Acórdão do Tribunal de Conflitos nº 08/2018, de 20.09.2018, em que foi relatora Rosa Maria Coelho, sumariado da seguinte forma:

“Cabe aos tribunais da jurisdição comum a competência para conhecer de ações em que, com invocação do direito de propriedade e da sua violação pelo réu, o autor peça a declaração desse direito e a restituição da coisa, ainda que com esses pedidos se cumulem outros de natureza indemnizatória”;

15. Assim como, nos que versaram casos semelhantes mencionados neste aresto (cfr., ainda, a inúmera jurisprudência desse Tribunal, citada no Acórdão de 26.01.2017, Proc. 052/14, atribuindo a competência aos tribunais da jurisdição comum para o conhecimento de ações de reivindicação e, ainda, os de 15.05.2013, Proc. 024/13; de 6.02.2014, Proc. 058/13; de 30.10.2014, Proc. 015/14; de 10.09.2014, Proc. 016/14; de 26.01.2017, Proc. 052/14; de 24.05.2017, Proc. 01/17; de 8.03.2017, Proc. 034/16.).

16. De igual forma se pronunciou, em sentido que acompanhamos, o Tribunal da Relação do Porto de 04.02.2013, com processo nº 5852/11.6TBVFR.P1, in www.dgsi.pt em que foi relator José Eusébio Almeida, sumariado da seguinte forma: “É da competência do tribunal judicial comum, e não, da jurisdição administrativa o litígio em que os autores, invocando a invasão da sua propriedade e a diminuição do gozo da mesma, em razão de obras levadas a cabo pela ré, entidade concessionária pública, pretendem o reconhecimento do direito de propriedade e a abstenção da ré de comportamentos que violem esse seu direito, não a demandando em razão da sua eventual responsabilidade civil extracontratual.”

17. Em face do exposto, impõe-se a revogação do despacho sob censura, por outro que julgue competente a jurisdição dos tribunais comuns, nomeadamente o Juízo Local Cível do Tribunal Judicial de Aveiro;

18. O despacho sob censura por deficiente aplicação e interpretação violou o disposto nos art. 64º do Código de Processo Civil, como o art. 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto - Lei de Organização do Sistema Judiciário, art. 1311º do Cód. Civil e art. 4º do ETAF”.

Terminam pedindo que se julgue procedente o presente recurso.

6- A Ré respondeu defendendo a confirmação do julgado, já que, em resumo, “obrigar a IP a remover do domínio público as guardas de segurança equivaleria a permitir o acesso à estrada, o qual só é possível através de licença administrativa, sendo que o tribunal competente para discutir a legalidade das licenças rodoviárias e até impor a sua emissão é o tribunal administrativo”.

7- Recebido o recurso nesta instância e preparada a deliberação, importa tomá-la.


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II- Mérito do recurso

1- Atendendo às conclusões das alegações dos recorrentes que, como é sabido, em regra e ressalvadas designadamente, as questões de conhecimento oficioso, delimitam o objeto dos recursos [artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, nº 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil (CPC)], cinge-se esse objeto, no caso presente, apenas a saber se os tribunais judiciais são materialmente competentes para julgar a presente ação.


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2- Baseando-nos nos factos descritos no relatório supra exarado - que são os únicos relevantes para o efeito -, vejamos, então, como solucionar esta questão:

A primeira ideia a ter presente é que tal questão só surge porque a função jurisdicional está, entre nós, repartida por diferentes tribunais. Além do Tribunal Constitucional, existem outras categorias de tribunais que atuam em função da competência que a lei lhes atribui. E, na distribuição dessa competência, vigora o seguinte princípio: “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” – artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e artigo 40.º da Lei da Organização Judiciária (LOJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto. Ou seja, os tribunais judiciais têm uma competência residual ou por exclusão[1]. Competência que se afere pela lei que vigora à data em que a ação ou o procedimento é proposto – artigo 38.º, n.º 1, da LOSJ.

Tendo isto presente, pois, o que importa saber é se, na data em que a presente ação foi proposta, ou seja, no dia 06/04/2024, não havia outra jurisdição com competência material para a julgar. Mais especificamente, se os Tribunais Administrativos e Fiscais, como defendem os Apelantes, não tinham competência material para dirimir o litígio nela retratado. Isto porque o Tribunal recorrido decidiu justamente o contrário.

Nessa matéria, prescreve o artigo 212.º, n.º 3, da CRP, o seguinte: “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. E, no mesmo sentido, dispõe o artigo 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, embora num sentido mais preciso. Como aí se prevê, “[o]s tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”. Ou seja, não basta que os litígios sejam emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. É necessário que os mesmos se enquadrem na previsão do referido artigo 4.º do ETAF.

E, nele, aquilo que verificamos é que a competência dos tribunais administrativos e fiscais é definida através de enumerações positivas e negativas. Os tribunais administrativos e fiscais, como aí se prevê, são competentes para apreciar as questões aí enumeradas nos n.ºs 1 e 2, mas já não o são para os litígios que tenham por objeto os atos, decisões e litígios aí referenciados nos n.ºs 3 e 4.

É, pois, em torno deste normativo e da definição do objeto deste litígio que há-de resultar a solução para a questão que começámos por enunciar.

Comecemos, então, por determinar os contornos deste litígio. Contornos que, como é pacífico, devem levar em consideração a versão do autor. Efetivamente, “[a]o propor a ação, o autor formula o pedido, determinado formalmente pela providência requerida e materialmente pela afirmação duma situação jurídica, dum efeito querido ou dum facto jurídico e fundado, de acordo com a imposição da substanciação, assim conformando o objeto do processo”[2]. E é, justamente, essa conformação, acompanhada da identidade das partes, que serve de primeira referência ao estabelecimento do nexo de competência material[3].

No caso presente, daquilo que os AA. essencialmente se queixam é de a Ré ter vedado o acesso ao seu prédio, a partir da Estrada ..., ao Km .... Como alegam na petição inicial, a Ré, no dia 01/02/2024, sem lhes fazer qualquer comunicação prévia, “invadiu o seu prédio e em frente ao local onde se faz o acesso ao mesmo e ao longo de todo seu limite nascente colocou um rail metálico em frente à entrada, vedando assim, o acesso ao interior do prédio dos A.A. e dos restantes prédios situados a sul” (artigo 18.º). Ou seja, com tal rail metálico, colocado “em frente à entrada de pé e carro ao prédio dos A.A”, impediu a circulação entre a referida Estrada Nacional e esse prédio, deixando o mesmo encravado (artigo 19.º).

É deste facto que os AA. retiram a ofensa ao seu direito de propriedade. Direito esse que querem ver reconhecido nesta ação, mas, sobretudo, querem que a Ré seja condenada a respeitá-lo numa específica dimensão: o “de aceder ao [seu prédio] livremente de pé e carro diretamente pela E.N... ao km.10.110, junto à sua entrada aí localizada”, bem como a “remover, no prazo máximo de quinze dias, todo e qualquer elemento/obstáculo construtivo ou outro que obstrua a entrada para o prédio dos AA. (…), nomeadamente, removendo o rail metálico colocado à frente da entrada de acesso do prédio dos A.A.”. [Repare-se que os AA. não alegam que este rail foi colocado dentro do seu prédio].

É o direito de acesso a este prédio, pois, que está essencialmente em causa nesta ação. Mesmo na versão dos AA., o direito de propriedade pelos mesmos afirmado, só serve para legitimar o reconhecimento de tal direito de acesso, com todas as consequências daí decorrentes.

Acontece que os AA. situam a ofensa a esse seu direito num ato que representa a administração de um bem público rodoviário (a aludida Estrada Nacional n.º ...) sobre a qual, reconhecem (artigo 11.º), a Ré exerce “jurisdição”. Isto é, que é por ela administrada. Administrada - note-se, porque isso resulta da lei - com poderes de autoridade. Como resulta do disposto no artigo 12.º, n.º 2, do Decreto-Lei nº 91/2015, de 29 de maio [que procedeu à fusão, por incorporação, da EP - Estradas de Portugal, S. A., na REFER - Rede Ferroviária Nacional, E. P. E., transformou a REFER em sociedade anónima, redenominando-a para Infraestruturas de Portugal, S. A., e aprovou os respetivos Estatutos], “[p]ara o desenvolvimento da sua atividade principal, a IP, S. A., detém os poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis (…)”. Isto é, para o desenvolvimento do seu objeto social (designadamente, a conceção, projeto, construção, financiamento, conservação, exploração, requalificação, alargamento e modernização das redes rodoviária e ferroviária nacionais, incluindo-se nesta última o comando e o controlo da circulação – artigo 6.º, n.º 1), a Ré goza dos referidos poderes.

E é à luz deles que deve ser aferida a legalidade do ato que os AA. lhe imputam.

Com efeito, como é entendimento dominante, o direito de acesso às vias públicas é “um direito subjectivo público sui generis de natureza administrativa e não um direito civil de servidão”[4]. Quer isto dizer que o mesmo não pode ser visto apenas pelo prisma do direito civil, dado que não é este que regula o trânsito e o acesso às vias públicas rodoviárias, a partir dos prédios que com elas confinam. É, antes, o direito público. Designadamente, para o que ora importa, o Estatuto das Estradas da Rede Rodoviária Nacional, aprovado pela Lei n.º 34/2015, de 27 de abril, que estabelece, por exemplo, que as proibições e as limitações impostos sobre os prédios confinantes ou vizinhos, em benefício de construção, manutenção, uso, exploração e proteção das estradas a que se aplica o referido Estatuto, ficam sujeitas ao mesmo e ao regime das servidões públicas nos termos da lei geral (artigo 31.º, n.º 1).

Tratam-se, portanto, de limitações ao direito de propriedade fundadas em razões de interesse público e, quando aplicadas, como é o caso, por entidades investidas de poderes públicos, a legalidade dos atos por estas praticados, não pode deixar de ser avaliada na jurisdição existente para o efeito. Referimo-nos naturalmente à jurisdição administrativa e fiscal.

Com efeito, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, al. d), do ETAF, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à “[f]iscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos”.

Nessa medida, este litígio não pode deixar de ser apreciado e julgado por esses tribunais; ou, mais especificamente, pelos tribunais administrativos[5].

E não se diga, alegam os AA., que “que os fundamentos que constituem a causa de pedir [nesta ação], são demonstrativos da existência de um conflito, quanto ao exercício pleno do direito de propriedade por parte dos recorrentes sobre o terreno em causa” e que, por assim ser, competentes para o dirimir são os tribunais judiciais.

Na verdade, como cremos já ter deixado suficientemente claro, são os próprios AA. que, ao situarem o surgimento deste conflito num ato que a Ré teria praticado sobre uma via pública pela mesma administrada (com poderes de autoridade, como vimos), remetem esse mesmo conflito para o âmbito de uma especial relação jurídica de direito público, que se traduz em saber se os mesmos, enquanto particulares, têm ou não o direito de acesso a essa via e, nessa decorrência, se o referido ato é ou não substantivamente válido.

Não se trata, portanto, apenas de um conflito de direitos reais. Nem sequer, repetimos, de um litígio a dirimir pelas regras do direito civil. O que os AA. querem, essencialmente, é impugnar um ato (unilateral) da entidade administradora da referida via, no uso dos poderes de autoridade que a lei lhe confere e que, por assim ser, só pode ser sindicado no contencioso administrativo.

Daí que não colha a referida argumentação.

Em síntese, os tribunais judiciais são materialmente incompetentes para julgar esta ação (porque competente para o mesmo efeito é a jurisdição administrativa e fiscal), pelo que o presente recurso é de julgar improcedente e confirmada a sentença recorrida, que assim também decidiu.


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III- Dispositivo

Assim, pelas razões expostas, acorda-se em julgar improcedente o presente recurso e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.


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- Em função deste resultado, as custas deste recurso serão pagas pelos AA.- artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.


Porto, 25/2/2025
João Diogo Rodrigues
Maria Eiró
Raquel Correia de Lima
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[1] Como se refere no sumário do Ac. RC de 03/11/2009, Processo n.º 250/07.9TBPNH-B.C1, “A competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual”.
[2] José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais, 2ª edição Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 142.
[3] Neste sentido, por exemplo, Ac. STJ de 13/10/2016, Processo n.º 30249/14.2YIPRT.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt
[4] Neste sentido, Ac. STA de 21/09/2004, Processo n.º 072/04 e Ac. TCAN, de 21/10/2016, Processo n.º 00506/12.9BEVIS, bem como a doutrina neles referida, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.
[5] No mesmo sentido de pronunciou o Tribunal de Conflitos, Ac. de 23/11/2005, Processo n.º 010/05, consultável em www.dgsi.pt, (citado na sentença recorrida), para um caso com muitas semelhanças a este, ainda que se tenha baseado no anterior ETAF.