I – O erro material suscetível de ser retificado, nos termos do art. 614º do Cód. Proc. Civil, é aquele em que existe divergência entre a vontade declarada e a vontade real do juiz, uma vez que o juiz escreve coisa diversa do que queria escrever.
II – Não se confunde com o erro de julgamento em que ocorre uma divergência entre a verdade fáctica ou jurídica e a afirmada na decisão, ou seja quando o juiz disse o que pretendia, mas decidiu ou julgou mal.
III – Porém, para que o erro material seja retificado é ainda necessário que se apresente como manifesto, devendo ser apreensível através do contexto da decisão, de modo a que se torne evidente não apenas para o juiz que proferiu a decisão, mas também para quem a lê.
IV – Existe erro material passível de retificação, decorrente de lapso manifesto, quando na ata da audiência de julgamento a autora, em sede de confissão, aceita que a ré é arrendatária das frações “O” e “P” de um imóvel e depois o juiz, quando procede à homologação da confissão, refere na respetiva sentença também a fração “Q” que, de forma evidente, dela não constava.
Comarca do Porto – Juízo Central Cível de Póvoa de Varzim – Juiz 6
Apelação (em separado)
Recorrente: “A..., Lda.”
Recorrida: “B..., S.A.”
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Pinto dos Santos e João Proença
Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
No âmbito dos presentes autos foi agendada audiência de julgamento para o dia 16.9.2024 e, após negociações prévias mantidas entre os mandatários das partes, o ilustre mandatário da autora ditou o seguinte para a ata:
“I) A Autora confessa o pedido reconvencional, aceitando que a Ré é, desde dezembro de 2008, arrendatária das frações designadas pelas letras "O" e " P" do imóvel identificado no artigo 1.º da petição inicial, sendo o mesmo contrato regulado nos termos do contrato celebrado em 4 de fevereiro de 1999 cuja cópia se encontra junta sob doc. n.º 1 da contestação.
II) A Autora desiste dos pedidos formulados nas alíneas a), b) e e) da petição inicial;
III) A ré obriga-se a manter o contrato de fornecimento de eletricidade das frações designadas pelas letras "O" "P" e “Q" do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial, que assegura à Ré o fornecimento de energia, bem como a pagar à Ré uma sanção pecuniária compulsória da quantia de 5.000,00 € (cinco mil euros) diários, por cada dia que passe sem assegurar à Ré o fornecimento de eletricidade resultante de não celebração de contrato com qualquer fornecedor de energia.”
Depois, consignou-se que foi explicado aos legais representantes da autora presentes o teor da confissão/desistência nos seus precisos termos, tendo os mesmos ficado cientes e aceitado esses termos.
Seguidamente, proferiu-se a seguinte sentença:
“Atento o disposto nos artºs. 277º, al. d), 283º, nº 1, 284º, todos do Código de Processo Civil, homologo pela presente sentença a desistência e confissão dos pedidos que a autora apresentou, nos termos supra consignados, pelo que, em consequência, se absolve a ré, “A..., Lda.”, dos pedidos formulados nas alíneas a), b) e e) da petição inicial, sendo que, atenta a confissão feita pela autora, se reconhece que a ré, desde dezembro de 2008 é arrendatária das frações designadas pelas letras "O" "P" e “Q" do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial nos termos consignados pela autora.
Mais se condena a autora a manter o contrato de fornecimento de eletricidade das frações designadas pelas letras "O" "P" e “Q" do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial que assegura à Ré o fornecimento de energia, bem como a pagar à Ré uma sanção pecuniária compulsória da quantia de 5.000,00 € (cinco mil euros) diários, por cada dia que passe sem assegurar à Ré o fornecimento de eletricidade resultante de não celebração de contrato com qualquer fornecedor de energia.
A autora havia deduzido nesta ação pedido de condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €20.000,00 (vinte mil euros) correspondente às contraprestações pela ocupação que a ré fez do imóvel nos meses de fevereiro de 2021 até à data da entrada da petição inicial e de condenação da ré a pagar-lhe a quantia mensal de €2500,00 (dois mil e quinhentos euros) desde a entrada da presente petição até à efetiva entrega do imóvel livre de pessoas e bens (alíneas c) e d) do pedido formulado na petição inicial).
Para tanto havia alegado que a ré ocupa parte do imóvel que identificou, que é da sua propriedade, sem qualquer título e contra a vontade da autora.
Ora, a autora acabou de confessar nos autos que reconhece que a ré tem a qualidade de arrendatária das frações "O" e " P" do imóvel identificado no artigo 1.º da petição inicial, sendo o mesmo contrato regulado nos termos do contrato celebrado em 4 de fevereiro de 1999.
Assim, tornou-se inútil a apreciação dos pedidos formulados nas alíneas c) e d) da petição inicial visto que, reconhecendo a existência de um contrato de arrendamento com a ré, esta não está obrigada a pagar-lhe qualquer quantia pela ocupação, sem qualquer título, do imóvel da autora (e não pode o tribunal apreciar qualquer pedido de condenação da ré no pagamento de rendas vencidas e não pagas porquanto tal pedido não foi formulado).
Em consequência, julga-se extinta, por inutilidade superveniente da lide, a instância quanto à apreciação pedidos formulados nas alíneas c) e d) da petição inicial.
Custas pela autora, sendo que, nos termos do art. 6.º, n.º 7 e 8, do Regulamento das Custas Processuais, se dispensa o pagamento do remanescente da taxa de justiça uma vez que o presente processo terminou antes de concluída a fase da instrução.
Notifique e registe.”
Em 31.10.2024 a autora “B..., S.A.” veio apresentar o seguinte requerimento:
“1. Da sentença ficou a constar: «sendo que, atenta a confissão feita pela autora, se reconhece que a ré, desde dezembro de 2008 é arrendatária das frações designadas pelas letras “O”, “P” e “Q”.
2. Parece claro ter havido um erro de escrita donde se fez constar a letra “Q”, ou, no limite, um lapso manifesto.
3. Pois que, nos autos tal fração não estava em causa, nem a fração é mencionada na confissão dos pedidos.
4. A confissão do pedido diz respeito e apenas às frações “O” e “P”- vide I da desistência do pedido.
5. A própria Sentença deixa escrito: “Ora a Autora acabou de confessar nos autos que reconhece que a Ré tem a qualidade de arrendatária das frações “O” e “P”.
6. Acresce que, dos articulados consta que em relação à fração “Q” existe processo a decorrer seus termos pelo Tribunal da Comarca do Porto, Processo Nº 3114/21.0T8STS.
7. Ao limite de a R. ter deduzido neste processo a exceção de litispendência, atento que corre seus termos pelo Tribunal Central Cível da Póvoa (onde se deduz o presente requerimento).
8. Essa exceção foi julgada improcedente, com trânsito em Julgado.
9. Dúvidas não existem que nos autos em apreço não se discutia a fração “Q”.
10. Dúvidas também não há que a desistência do pedido e o reconhecimento do arrendamento apenas disse respeito às frações “O” e “P”.
11. O que ficou claro com a desistência do pedido – vide clausula I) da ATA com a data de 16 de setembro de 2024.
12. Tudo se passou com total clareza, sendo que, quer o teor da ATA, quer da Sentença ficaram para ser posteriormente redigidos – o que é normal.
13. E tudo ficou claro perante todos.
14. Tratou-se de mero erro de escrita o que ficou a constar na Sentença:
“atenta a confissão feita pela autora, se reconhece que a ré, desde Dezembro de 2008 é arrendatária das frações designadas pelas letras “O”, “P“ e “Q “.
15. Esta letra “Q” só consta escrita por erro de escrita ou lapso manifesto.
16. Erro ou lapso que, infelizmente e lamentavelmente, a R. A... pretende “aproveitar” a seu favor no processo que corre termos pelo Tribunal Local Cível de Santo Tirso – processo onde agora veio invocar a existência de CASO JULGADO e a consequente extinção do processo!
SÓ POR TOTAL MÁ FÉ
17. Só agora a A. e perante a invocação do CASO JULGADO – requerimento apresentado aos 28.10.2024, tomou consciência do erro ou lapso manifesto da Sentença
Termos em que REQUER retificação da sentença no sentido de da mesma ser eliminada a fração “Q” de forma a que o texto passe a ter a seguinte redação “que, atenta a confissão da Autora, se reconhece que a ré, desde Dezembro de 2008 é arrendatária das frações designadas pelas letras “O” e “P” do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial nos termos consignados pelos autores”.
Em 14.11.2024 a ré “A..., Lda.” veio exercer o contraditório relativamente a este requerimento nos seguintes termos:
“I - Requer a Autora/Reconvinda no seu requerimento:
«retificação da sentença no sentido de da mesma ser eliminada a fração “Q” de forma a que o texto passe a ter a seguinte redacção “ que, atenta a confissão da Autora, se reconhece que a ré, desde Dezembro de 2008 é arrendatária das frações designadas pelas letras “O” e “P” do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial nos termos consignados pelos autores”»,
E fundamenta este pedido «nos termos do artigo 613º do C.P.C.”, e no que alega nos pontos 1. a 17. do seu requerimento.
II - Falece-lhe razão.
Vejamos.
1. Estatui o nº 1 do artigo 613º do Código de Processo Civil: «Proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa».
Este regime legal consagra o princípio da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da sentença, vedando ao juiz o poder de, por sua iniciativa, reapreciar a questão ou questões sobre que incidiu a decisão que proferiu, a qual, em princípio, apenas pode ser anulada, revogada ou modificada em sede de recurso.
«O alcance (deste princípio) é o seguinte: O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela, um todo incindível. Ainda que, logo a seguir, ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção de que errou, não pode emendar o seu suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível». [Professor Alberto dos Reis “Código de Processo Civil Anotado “, Volume V, página 126, reimpressão, Coimbra Editora, Lda, 1981].
É verdade, que no nº 2 daquele artigo 613º do Código de Processo Civil se lê: «É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes»; isto é, nos termos e limites do disposto nos artigos 614º a 617º do Código de Processo Civil.
Nos quais se prevê: a possibilidade do tribunal que proferiu a decisão suprir omissões e rectificar erros materiais em que tenha incorrido, oficiosamente ou a requerimento das partes, nos termos e limites fixados no artigo 614º; bem como, nos casos em que o processo em que a decisão proferida não comportar recurso ordinário, a possibilidade de, a requerimento das partes (mas não oficiosamente, com excepção da nulidade da alínea a) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil ), mediante incidente de reclamação, a ser apresentado dentro do prazo geral de dez dias, a contar da decisão; conhecer e suprir as nulidades previstas nas alíneas b) a e) do nº 1 do artigo 615º, conforme estatui o seu nº 4; ou proceder à reforma da decisão nos casos em que padeça de um dos vícios enunciados nos nºs 1 e 2 do artigo 616º do Código de Processo Civil, conforme se prevê no seu nº 3.
Assim, no que respeita às nulidades da sentença, que estão, taxativamente, tipificadas no nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, com excepção da prevista na sua alínea a) – decorrente da decisão proferida não conter a assinatura do juiz que a proferiu – essa omissão pode ser suprida oficiosamente, ou a requerimento das partes, a todo o tempo, enquanto for possível colher a assinatura do juiz, devendo este declarar no processo a data em que a apôs, conforme manda o disposto no nº 2 daquele artigo 615º.
Porém, quanto às restantes causas determinativas de nulidade da decisão, na medida em que se reconduzem a erros da actividade do juiz (decorrentes de ter infringido as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional), ao não ter observado as normas que regulam a elaboração e estruturação da decisão que proferiu, ou as que balizam o seu campo de cognição e de decisão, em termos de fundamentos (incorrendo em nulidade por omissão ou excesso de pronúncia) ou de pedido (incorrendo em nulidade ultra petitum), na medida em que se está na presença de vícios formais ou de conteúdo da própria decisão (e porque as mesmas não consubstanciam verdadeiras causas determinativas de nulidade da decisão proferida, mas antes da sua anulabilidade, ficando sanadas se não suscitadas pelas partes, com o trânsito em julgado da decisão), não podem ser conhecidas oficiosamente pelo juiz, mas apenas a requerimento das partes.
E isto, porque como ensinou o Professor Alberto dos Reis, na página 123 daquele Volume V, já citado: «É postulado do direito processual moderno que o trânsito da sentença em julgado cobre os vícios de que ela estivesse, porventura, inquinada. Quer dizer, as nulidades ficam sanadas, uma vez que se forme caso julgado».
E justifica este postulado: «É anti–económico deitar abaixo uma sentença, quaisquer que sejam as imperfeições formais de que ela padeça, desde que deva reportar-se justa; o respeito pelas regras de formação cede perante o interesse superior da justiça. Ora o facto do trânsito em julgado é índice seguro de que a sentença é justa».
Deste modo, as causas de nulidade da sentença, previstas nas alíneas b), c), d) e e) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, porque, rigorosa e taxativamente, consubstanciam situações determinativas da sua anulabilidade, não podem ser conhecidas oficiosamente pelo juiz, mas têm de ser arguidas pelas partes, em sede de recurso, quando o processo comporte recurso ordinário, constituindo então um dos fundamentos do recurso; ou não o comportando, mediante incidente de reclamação, a ser apresentado junto do tribunal que proferiu a decisão, no prazo geral de dez dias, a contar da notificação da sua decisão ao reclamante, conforme prescrevem o disposto no nº 4 do artigo 615º e o disposto no nº 1 do artigo 149º, ambos do Código de Processo Civil.
Por sua vez, o artigo 616º do Código de Processo Civil, prevê que, quando a decisão da sentença, proferida em processo que não comporta recurso ordinário, padeça de erro de direito quanto à condenação em custas e multa, ou decorrente de o juiz, por manifesto lapso, ter incorrido em erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, ou quando do processo constem documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida, é consentido às partes, mediante incidente de reclamação, a ser apresentado no prazo geral de dez dias, a contar da notificação da decisão, requerer a sua reforma, junto do próprio tribunal que a proferiu.
Mas, se o processo em que a decisão da sentença foi proferida comportar recurso ordinário, o meio de reagir não é a reclamação, e antes é a interposição de recurso, como determina o nº 3 desse artigo 615º.
Finalmente, prevê o artigo 614º do Código de Processo Civil o que constam dos seus nºs 1, 2 e 3.
Deles decorre que, quando a sentença for omissa quanto ao nome das partes, não contenha, no seu decisório final, a condenação pelo pagamento das custas processuais ou a fixação das respectivas responsabilidades (como manda o nº 6 do artigo 607º do Código de Processo Civil), contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, esses vícios, na medida em que se reconduzem a meras omissões do tipo acabado de referir ou a ostensivos, manifestos e evidentes erros materiais, de cálculo ou inexactidões detectáveis pela simples leitura da decisão proferida, a qual imediatamente evidencia que nela o juiz errou ao escrever coisa diversa daquilo que quis efectivamente escrever e, bem assim, torna percetível o que o mesmo quis realmente escrever, isto é, decidir, compreende-se que, apesar do enunciado princípio regra, se consinta que o próprio juiz, que proferiu a decisão, possa suprir aquelas omissões e rectificar os identificados erros materiais, oficiosamente ou a requerimento das partes; e a todo o tempo, quando não for interposto recurso da decisão proferida, ou, sendo-o, até à subida do recurso ao tribunal superior.
2. O processo dos autos:
a) Admitia recurso ordinário;
b) As decisões da sentença foram proferidas no dia 16 de Setembro de 2024;
c) Nesse dia as suas decisões foram notificadas às partes;
d) Dessas decisões a Autora não apresentou reclamação no prazo de dez dias;
e) Delas a Autora não interpôs recurso ordinário;
f) Essas decisões transitaram em julgado no dia 21 de Outubro de 2024.
g) De entre elas, e para o que aqui releva, constam as suas duas decisões seguintes:
«Atento o disposto nos arts. 277º, al. d), 283º, nº 1, 284º, todos do Código de Processo Civil, homologo pela presente sentença a desistência e confissão dos pedidos que a autora apresentou, nos termos supra consignados, pelo que, em consequência, se absolve a ré, “ A..., Lda”, dos pedidos formulados nas alíneas a), b) e e) da petição inicial, sendo que, atenta a confissão feita pela autora, se reconhece que a ré, desde dezembro de 2008 é arrendatária das frações designadas pelas letras “O” “P” e “Q” do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial nos termos consignados pela autora.
Mais se condena a autora a manter o contrato de fornecimento de eletricidade das frações designadas pelas letras “O” “P” e “Q” do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial que assegura à Ré o fornecimento de energia, bem como a pagar à Ré uma sanção pecuniária compulsória da quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros) diários, por cada dia que passe sem assegurar à Ré o fornecimento de eletricidade resultante de não celebração de contrato com qualquer fornecedor de energia».
3.
3.1. Estas duas transcritas decisões da sentença constituem, entre si, um todo incindível.
E de tamanho grau de incidibilidade que a segunda não prescinde da primeira.
Realmente, se não tivesse sido reconhecido que a Ré, desde Dezembro de 2008 é arrendatária das fracções designadas pelas letras “O” “P” e “Q” do prédio, a condenação da Autora a manter o contrato de fornecimento de eletricidade das fracções designadas pelas letras “O” “P” e “Q” do mesmo prédio, que assegura à Ré o fornecimento de energia, e a sua condenação a pagar à Ré uma sanção pecuniária compulsória da quantia de 5.000,00€ (cinco mil euros) diários, por cada dia que passasse sem assegurar à Ré o fornecimento de electricidade resultante de não celebração de contrato com qualquer fornecedor de energia, ficariam sem fundamento para terem sido proferidas e mantidas, porque estas condenações radicam unicamente em a Ré ser arrendatária dessas três fracções.
Esta incidibilidade torna inequívoca a impossibilidade da rectificação à primeira daquelas decisões sem rectificação simultânea da segunda delas, e o que a Autora no seu requerimento, sob pronúncia, não requer nem pede.
3.2.
Acresce que a eliminação da fracção “Q” da primeira daquelas decisões da sentença, como pretende a Autora, constitui pretensão de modificação do objecto dessa decisão, consistente em reduzi-lo, apenas, às fracções designadas pelas letras “O” e “P”.
E tem, como seu óbvio pressuposto, que é essa decisão excessiva, o que implica estar-se em situação de nulidade, prevista na parte final da alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil: o juiz apreciou ou conheceu, e decidiu, de questão de que não podia apreciar ou conhecer, e decidir.
Está-se, portanto, perante nulidade dessa decisão, aí prevista, e não perante «erro de escrita» ou «lapso manifesto», como alega a Autora no seu requerimento.
E, assim, a pretendida eliminação da fracção “Q” da primeira daquelas decisões da sentença, só teria sido possível se a Autora tivesse interposto recurso ordinário da sentença, e nele tivesse arguido a nulidade dessa decisão.
Ora, como decorre dos factos do precedente ponto 2. da página 5 deste requerimento, a Autora não interpôs recurso ordinário da sentença, nem sequer apresentou, no prazo de 10 dias, a contar do dia 16 de Setembro de 2024, incidente de reclamação à primeira daquelas decisões da sentença.
E o trânsito em julgado desta, no dia 21 de Outubro de 2024, impede, nos termos previstos no nº 1 do artigo 619º do Código de Processo Civil, a modificação dessa decisão, pretendida pela Autora, e o mesmo não o consente o disposto no nº 1 do artigo 613º do Código de Processo Civil.
E a alegação da Autora, vertida no seu requerimento, sujeito a este contraditório, não passa de mera mistificação, relativa a «erro de escrita» ou a «lapso manifesto», que se impõe seja rejeitada.”
Em 19.11.2024 foi proferido o seguinte despacho judicial:
“Requerimento de 31/10/2024: a autora veio requerer a retificação da sentença uma vez que na mesma ficou a constar por lapso manifesto ou erro de escrita a fração designada pela letra “Q” quando a mesma não estava na presente causa, nem é a fração mencionada na confissão dos pedidos.
A ré veio opor-se ao requerido dizendo que o pretendido pela autora só teria sido possível se esta tivesse interposto recurso ordinário da sentença, e nele tivesse arguido a nulidade dessa decisão.
Dispõe o artigo 613.º, n.º 2, do Código de Processo Civil que “é lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes”.
Por sua vez o art. 614.º, n.º 1, do mesmo diploma estatui que “se a sentença (…) contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz”, prevendo o n.º 3 que a retificação pode ter lugar a todo o tempo.
No caso em apreço, por mero lapso de escrita na sentença proferida em 16/9/2024 ficou a constar que “atenta a confissão feita pela autora, se reconhece que a ré, desde dezembro de 2008 é arrendatária das frações designadas pelas letras "O" "P" e “Q" do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial nos termos consignados pela autora”.
E dizemos que é manifesto o lapso já que a autora no ponto I) declarou confessar o pedido reconvencional aceitando que a Ré é, desde dezembro de 2008, arrendatária das frações designadas pelas letras "O" e " P".
Assim sendo, é manifesto que a menção à fração “Q” se ficou a dever a um lapso manifesto que é passível de ser retificado a todo o tempo.
Pelo exposto, defere-se o requerido pela autora e, em consequência, determina-se a retificação do lapso existente na ata de 16/9/2024 por forma a que na sentença proferida onde se lê “atenta a confissão feita pela autora, se reconhece que a ré, desde dezembro de 2008 é arrendatária das frações designadas pelas letras "O" "P" e “Q" do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial nos termos consignados pela autora”, se passe a ler “atenta a confissão feita pela autora, se reconhece que a ré, desde dezembro de 2008 é arrendatária das frações designadas pelas letras "O" e "P" do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial nos termos consignados pela autora”.
Notifique.”
Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso a ré, tendo esta finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª- Por causa dos fundamentos, especificados desde a página 11 à página 17 do corpo das alegações, e que aqui se dão por reproduzidos, a decisão da sentença proferida no dia 16 de Setembro de 2024, «atenta a confissão feita pela autora, se reconhece que a ré, desde dezembro de 2008 é arrendatária das fracções designadas pelas letras “O” “P” e “Q” do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial nos termos consignados pela autora», por com as suas decisões «Mais se condena a autora a manter o contrato de fornecimento de eletricidade das fracções designadas pelas letras “O” “P” e “Q” do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial que assegura à Ré o fornecimento de energia, bem como a pagar à Ré uma sanção pecuniária compulsória de 5.000,00 (cinco mil euros) diários, por cada dia que passe sem assegurar à Ré o fornecimento de eletricidade resultante de não celebração de contrato com qualquer fornecedor de energia» constituir um todo incindível da sentença, não constitui «lapso manifesto, por mero erro de escrita», relativamente aos factos confessados pela Autora em I) da respectiva acta da audiência de julgamento, e quando muito, apenas, constitui erro de julgamento.
2ª- Por causa dos fundamentos, especificados desde a página 17 à página 18 do corpo das alegações, e que aqui se dão por reproduzidos, mesmo que essa primeira decisão da sentença se tivesse devido a «lapso manifesto, por mero lapso de escrita», a decisão do respectivo despacho com a referência 465783291, proferida no dia 19 de Novembro de 2024, não podia ter alterado o conteúdo dessa decisão.
3ª- Por causa dos fundamentos, especificados desde a página 18 à página 22 do corpo das alegações, e que aqui se dão por reproduzidos, a decisão do identificado despacho de 19 de Novembro de 2024 ofendeu o caso julgado material, que se tinha formado no dia 21 de Outubro de 2024, sobre aquela primeira decisão de 16 de Setembro de 2024, mesmo que ela se tivesse devido a «lapso manifesto, por mero lapso de escrita».
4ª- Por causa dos fundamentos, especificados nas páginas 22 e 23 do corpo das alegações, e que aqui se dão por reproduzidos, a interpretação que a decisão do identificado despacho de 19 de Novembro de 2024 fez do disposto no nº 3 do artigo 614º do Código de Processo Civil, para, a coberto de «lapso manifesto, por mero lapso de escrita», decidir, como decidiu, alterar o conteúdo daquela decisão da sentença, transitada em julgado no dia 21 de Outubro de 2024, e sobre a qual se tinha formado caso julgado material nesse dia, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 619º do Código de Processo Civil, é, materialmente, inconstitucional, porque violou o princípio consagrado no nº 2 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, decorrente do princípio fundamental de Estado de direito, consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
5ª- A alteração ao conteúdo daquela primeira decisão da sentença, proferida e notificada no dia 16 de Setembro de 2024, só era possível, mediante recurso a dele interpor pela Autora, e de que a Autora não recorreu.
6ª- A decisão do identificado despacho do dia 19 de Novembro de 2024, violou o disposto no nº 1 do artigo 613º, no nº 3 do artigo 614º, no nº 2 do artigo 616º, por referência ao disposto na sua alínea a) ou à sua alínea b), e no nº 1 do artigo 619º, todos do Código de Processo Civil, e, por interpretação, materialmente, inconstitucional, que fez ao disposto no nº 3 do artigo 614º do Código de Processo Civil, relativa a essa decisão, sobre a qual se tinha formado caso julgado material, nos termos previstos no nº 1 do artigo 619º do Código de Processo Civil, violou o disposto no nº 2 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, decorrente do princípio fundamental de Estado de Direito, consagrado no seu artigo 2º.
7ª- Em consequência da procedência deste recurso, impõe-se decisão que revogue a decisão do despacho com a referência 465783291, proferida no dia 19 de Novembro de 2024, e que determine que seja mantida aquela decisão da sentença, proferida no dia 16 de Setembro de 2024, e transitada em julgado no dia 21 de Outubro de 2024.
A autora apresentou resposta, na qual se pronunciou pela confirmação do decidido.
Formulou as seguintes conclusões:
A) A decisão em recurso apenas se limitou a retificar um lapso manifesto.
B) A cessação do poder jurisdicional do juiz, referida no art. 613.º, nº 1, do Cód. Proc. Civil, significa que o juiz, proferida a sentença/despacho, deixa de poder alterar o que decidiu e os respetivos fundamentos.
C) O juiz mantem o exercício do poder jurisdicional para a resolução de questões marginais como é o caso da retificação de “erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto”, ut cit. art. 614.º/1 do CPC),
D) No presente caso concreto tratou-se apenas de um erro de escrita, tal como resulta da própria Decisão em recurso.
E) O que não é de todo inconstitucional.
F) O presente recuso é só um expediente para protelar no tempo o processo.
O recurso foi admitido como apelação com subida em separado e efeito meramente devolutivo.
Cumpre então apreciar e decidir.
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
Apurar se o despacho recorrido em que a Mmª Juíza “a quo” procedeu à retificação de lapso de escrita que considerou manifesto foi processualmente correto nos termos dos arts. 613º, nº 2 e 614º do Cód. Proc. Civil.
1. No art. 613º, nº 1 do Cód. Proc. Civil preceitua-se que «proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional quanto à matéria da causa», donde resulta que o juiz da causa não pode, em regra, rever a decisão proferida.
Excluem-se, porém, os casos de que tratam os artigos seguintes: erro material, que possibilita a retificação a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento das partes, quando não haja recurso, e até à subida deste, quando ele seja interposto [art. 614º]; falta de assinatura do juiz, suscetível de ser aposta a todo o tempo, oficiosamente, ou a requerimento da parte [art. 615, nºs 1, a), 2 e 3]; outra nulidade (rigorosamente, anulabilidade], sanável pelo juiz, mediante reclamação da parte, quando a decisão não admita recurso, ou mediante alegação em recurso, a que o juiz pode ainda atender [art. 615º, nº 1, als. b) a e) e 617, nºs 1 e 2]; reforma quanto a custas e multa, com sujeição ao mesmo regime de reclamação ou recurso e de atendibilidade pelo juiz [arts. 616º, nºs 1 e 3 e 617º, nºs 1 e 2); reforma por lapso manifesto, mediante reclamação da parte, quando a decisão não admita recurso [arts. 616º, nº 2 e 617º, nº 2] - Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 4ª ed., pág. 729.
No despacho recorrido, com apoio nos arts. 614º e 613º, nº 2 do Cód. Proc. Civil, a Mmª Juíza “a quo” determinou, a requerimento da autora, a retificação do lapso existente na ata de 16.9.2024 por forma a que na sentença proferida onde se lê “atenta a confissão feita pela autora, se reconhece que a ré, desde dezembro de 2008 é arrendatária das frações designadas pelas letras "O" "P" e “Q" do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial nos termos consignados pela autora”, se passe a ler “atenta a confissão feita pela autora, se reconhece que a ré, desde dezembro de 2008 é arrendatária das frações designadas pelas letras "O" e "P" do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial nos termos consignados pela autora”.
Fundamentou o decidido pela seguinte forma:
“No caso em apreço, por mero lapso de escrita na sentença proferida em 16/9/2024 ficou a constar que “atenta a confissão feita pela autora, se reconhece que a ré, desde dezembro de 2008 é arrendatária das frações designadas pelas letras "O" "P" e “Q" do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial nos termos consignados pela autora”.
E dizemos que é manifesto o lapso já que a autora no ponto I) declarou confessar o pedido reconvencional aceitando que a Ré é, desde dezembro de 2008, arrendatária das frações designadas pelas letras "O" e " P".
Assim sendo, é manifesto que a menção à fração “Q” se ficou a dever a um lapso manifesto que é passível de ser retificado a todo o tempo.”
2. Há então que indagar se estamos perante uma situação de lapso manifesto, como o entendeu a 1ª Instância, suscetível de ser havido como erro material e, por isso, retificável a todo o tempo, se nenhuma das partes recorrer, nos termos do art. 614º do Cód. Proc. Civil.
Este artigo dispõe o seguinte no seu nº 1: «Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no nº 6 do artigo 607º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.»
A propósito do erro material, escreve ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, reimpressão, 1984, pág. 130) que “importa distinguir cuidadosamente o erro material do erro de julgamento. O erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou despacho não coincide com o que juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. O juiz queria escrever «absolvo» e por lapso, inconsideração, distração, escreveu precisamente o contrário: condeno.
O erro de julgamento é espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer; mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz, logo a seguir, se convença de que errou, não pode (…) emendar o erro.”
Por seu turno, para CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 1969, II, 313), “o erro material ou lapso é a inexactidão ou omissão verificada em circunstâncias tais que é patente, através dos outros elementos da sentença ou até do processo, a discrepância com os dados verdadeiros e se pode presumir por isso uma divergência entre a vontade real do juiz e o que ficou escrito.”
Já no erro de julgamento (ou erro judicial) ocorre uma divergência entre a verdade fáctica ou jurídica e a afirmada na decisão, ou seja, verifica-se quando o juiz disse o que pretendia, mas decidiu ou julgou mal.
O erro material é, pois, uma divergência entre a vontade declarada e a vontade real do juiz expressa na decisão judicial. Deste modo, este erro no ato processual decisório é o equivalente ao erro-obstáculo tratado no direito substantivo.[1]
Todavia, como sempre será difícil apurar se ocorreu correta ou errada vontade real do juiz, a lei apenas releva o erro material que seja “manifesto”.
Ora, para que seja qualificado como “manifesto” o erro material deve ser apreensível externamente através do contexto da decisão, de tal forma que possa ser percebido por outrem (que não apenas pelo juiz que a proferiu) que o julgador escreveu coisa diversa da que pretendia, não se tratando de um erro de julgamento.
O erro manifesto é assim aquele que facilmente se detete e se identifique como tal pelo e no seu contexto e que respeite à expressão material da vontade e já não aquele que possa ter influenciado a formação dessa vontade.[2]
No erro material – erro de escrita, erro de cálculo ou inexatidão devida a omissão ou lapso manifesto (cfr. art. 249º do Cód. Civil[3]) - ostensivo ou manifesto não está em causa o conteúdo do ato decisório, mas sim, a sua expressão material.
Deste modo, não pode ser qualificada como retificação uma alteração da parte decisória do acórdão cuja incorreção material se não detetava da leitura do respetivo texto” – cfr. Ac. STJ de 10.3.2015, p. 706/05.6TBOER.L1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA, disponível in www.dgsi.pt.
Em suma, o erro material tem que emergir do próprio texto da decisão, tem que se traduzir numa vontade declarada que, sem margem para dúvidas, se percebe não corresponder à vontade real do juiz que proferiu a decisão – cfr. Ac. STJ de 13.7.2021, p. 380/19.4 T8OLH-D.E1.S1, relator BARATEIRO MARTINS, disponível in www.dgsi.pt.
O erro terá, pois, que se evidenciar não apenas para o juiz que proferiu a decisão, mas também para quem a lê.[4]
3. Posto isto, regressando ao caso concreto, entendemos, à semelhança da 1ª Instância, que estamos perante uma situação de erro material devido a lapso manifesto.
Vejamos então.
Na audiência de julgamento agendada para 16.9.2024, no decurso de negociações havidas entre os mandatários das partes, a autora, através do seu ilustre mandatário, confessou o pedido reconvencional, aceitando que a ré é, desde dezembro de 2008, arrendatária das frações designadas pelas letras "O" e " P" do imóvel identificado no artigo 1º da petição inicial, sendo o mesmo contrato regulado nos termos do contrato celebrado em 4 de fevereiro de 1999 cuja cópia se encontra junta sob doc. n.º 1 da contestação.
Logo de seguida, mas após ter sido explicado aos legais representantes da autora o teor da precedente confissão/desistência, do que estes ficaram cientes e aceitaram, a Mmª Juíza “a quo” consignou o seguinte na sentença que proferiu:
“Atento o disposto nos artºs. 277º, al. d), 283º, nº 1, 284º, todos do Código de Processo Civil, homologo pela presente sentença a desistência e confissão dos pedidos que a autora apresentou, nos termos supra consignados, pelo que, em consequência, se absolve a ré, “A..., Lda.”, dos pedidos formulados nas alíneas a), b) e e) da petição inicial, sendo que, atenta a confissão feita pela autora, se reconhece que a ré, desde dezembro de 2008 é arrendatária das frações designadas pelas letras "O" "P" e “Q" do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial nos termos consignados pela autora.”
Ou seja, a Mmª Juíza “a quo” homologou a confissão da autora efetuada em ata[5], aceitando que a ré é, desde dezembro de 2008, arrendatária das frações designadas pelas letras “O” e “P”, mas por manifesto lapso acrescentou-lhe a letra “Q”, que não constava dessa confissão.
Mais reforça estarmos perante um manifesto lapso a circunstância de na sentença proferida, em que também se julgou extinta a instância quanto aos pedidos formulados nas alíneas c) e d) da petição inicial, se ter escrito que a autora confessou nos autos “que reconhece que a ré tem a qualidade de arrendatária das frações "O" e " P" do imóvel identificado no artigo 1.º da petição inicial, sendo o mesmo contrato regulado nos termos do contrato celebrado em 4 de fevereiro de 1999.”
Assim, do confronto entre o teor do que se mostra confessado pela autora no ponto I e o que foi escrito na subsequente sentença homologatória proferida nos termos dos arts. 283º, nº 1, 284º e 290º do Cód. Proc. Civil, não pode, a nosso ver, deixar de se concluir que a referência que nela foi feita à aditada fração “Q” se ficou a dever a um lapso manifesto, o qual é suscetível de retificação a todo o tempo nos termos atrás referidos e que decorrem do disposto no art. 614º do mesmo diploma.
Com efeito, do próprio texto da sentença homologatória flui, sem qualquer margem para dúvida, que a menção nela feita à fração designada pela letra “Q” não corresponde à vontade real da Mmª Juíza “a quo”.
Há, por isso, erro material, originado numa situação de lapso manifesto, evidente não apenas para o juiz que proferiu a decisão, mas também para qualquer pessoa que a leia, e não erro de julgamento.
A sua retificação, neste caso, não constitui qualquer afronta à regra do esgotamento do poder jurisdicional prevista no art. 613º, nº 1 do Cód. Proc. Civil.
4. Antes de finalizar, refira-se ainda que a interpretação que foi feita pela 1ª Instância do estatuído no art. 614º do Cód. Proc. Civil, em particular do seu nº 3, que este tribunal de recurso entende ser correta, ao invés do sustentado pela autora/recorrente, não se alcança como possa violar os princípios constitucionais decorrentes do nº 2 do art. 205º da Constituição da República [«As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades»] e também do seu art. 2º, onde se consagra o princípio do Estado de Direito Democrático.
Deste modo, sem necessidade de outras considerações, impõe-se a confirmação da decisão recorrida e a consequente improcedência do recurso interposto.
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Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela ré “A..., Lda.” e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas, pelo seu decaimento, a cargo da ré/recorrente.
Porto, 25.2.2025
Rodrigues Pires
Pinto dos Santos
João Proença
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[1] Cfr. Ac. STJ de 12.2.2009, p. 08A2680, relator SEBASTIÃO PÓVOAS, disponível in www.dgsi.pt.; RUI PINTO, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, 2018, pág. 176.
[2] Cfr. Ac. STA, p. 0586/14, relator CARLOS CARVALHO, disponível in www.dgsi.pt.; RUI PINTO, ob. e loc. cit.
[3] Dispõe-se o seguinte neste artigo: «O simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à retificação desta.»
[4] Cfr. Acs. Rel. Coimbra de 10.3.2015, p. 490/11.6 TBOHP-D.C2, relatora MARIA CATARINA GONÇALVES e Rel. Guimarães de 19.9.2024, p. 5451/18.1 T8VNF-J.G1, relator GONÇALO MAGALHÃES, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[5] Embora a confissão do pedido e a desistência, quando judiciais, devam ser feitas por termo, nada impede a parte, no decurso da audiência, de confessar o pedido ou dele desistir e de, neste caso, embora o art. 290º do Cód. Proc. Civil não o preveja expressamente, ditar para a ata essa confissão ou desistência – cfr. LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 4ª ed., pág. 586.