EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
Sumário

I - Não obstante a alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º CIRE não fazer qualquer alusão à importância económica dos bens objecto da actuação aí descrita e à necessidade de o seu relevo patrimonial ser significativo, ao contrário do que sucede no âmbito da alínea a), a disposição de um bem de valor económico reduzido ou insignificante não permite qualificar a insolvência ao abrigo da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º CIRE
II - É ao requerente do incidente de qualificação da insolvência (o Administrador da insolvência ou os credores) que incumbe a prova de todos os factos necessários ao preenchimento da previsão de qualquer das alíneas do n.º 2 do artigo 186.º CIRE, e designadamente, do valor do bem transmitido, para efeito do preenchimento da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º CIRE.

Texto Integral

Apelação n.º 937/24.1T8AMT-B.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Relatora: Marcia Portela
1.º Adjunto: Ramos Lopes
2.º Adjunto: João Proença

1. Relatório
O insolvente AA requereu a exoneração do passivo restante, afirmando preencher os requisitos estabelecidos no artigo 238.º, CIRE e alegando circunstâncias pessoais e patrimoniais.
A Sr.ª Administradora da Insolvência pronunciou-se no sentido do indeferimento liminar da exoneração do passivo restante no seu Relatório, com fundamento na existência de culpa do devedor na criação e agravamento da sua situação de insolvência, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º, CIRE, atendendo à alienação do único bem existente no seu património.
Posteriormente, a Sr.ª Administradora da Insolvência, declarou nada ter a opor ao deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, considerando que o insolvente e seu pai, a quem transmitiu o veículo, se reuniram no seu escritório, tendo aceitado voluntariamente proceder à transmissão da propriedade do veículo automóvel para o nome do insolvente.
O credor Banco 1... também se opôs ao requerimento acompanhando a posição inicial da Sr.ª Administradora da Insolvência.
Foi, então, proferido despacho de indeferimento liminar de exoneração do passivo restante.
Inconformado, apelou o requerente, apresentado as seguintes conclusões:
a) O recorrente não se conforma com o despacho de fls. que decidiu indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado.
b) E não se conforma porque entende que o artigo que o artigo 238º nº 1 alínea e), em conjugação com o artigo 186º, ambos do CIRE, só prevê o indeferimento liminar com base nos atos praticados pelo insolvente no período compreendido entre o início do processo de insolvência e os três anos anteriores.
c) O comportamento que é imputado ao recorrente foi cometido já depois do início do processo.
d) Assim o despacho posto em crise viola o artigo 238 n.º 1 alínea e), em conjugação com o artigo 186º, ambos do CIRE.
e) Sem prejuízo do ante dito, o ato em si não criou nem agravou a situação de insolvência nem criou ou agravou qualquer prejuízo dos credores.
f) Isso mesmo acaba por ser reconhecido pela ilustre Administradora de Insolvência quando alterou o seu parecer no sentido de nada ter a opor a que seja deferido o pedido de exoneração do passivo restante. Ver requerimento de 15/11/2024.
g) Uma vez que, ao contrário do que é exarado no despacho criticado, o ato praticado pelo insolvente não retardou a apreensão do veículo, com mais de 30 anos, conforme se pode verificar no inventário que consta nos autos, junto com o relatório em 15/10/2024, nos termos do artigo 153º do CIRE.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas certamente mui doutamente suprirão, deverá a decisão recorrida ser substituída por uma outra, que admita o pedido de exoneração do passivo restante oportunamente formulado.
Fazendo-se, desse modo, inteira justiça
Não foram apresentadas contra-alegações.

2. Fundamentos de facto

A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

1. O agregado familiar do insolvente é composto por si próprio, residindo em casa cedida pelos seus pais.
2. O insolvente exerce as funções de Técnico Superior de Diagnóstico Terapêutico, auferindo o salário base de € 1 333,35.
3. O insolvente tem as seguintes despesas mensais:
Alimentação: € 360,00;
Eletricidade, água e gás: € 145,00;
Telecomunicações: € 55,00;
Despesas médicas e de farmácia: € 20,00;
Vestuário e calçado: € 60,00;
Transportes: € 40,00.
4. Do certificado de Registo Criminal do insolvente nada consta.
5. Na data da declaração de insolvência (16.07.2024), o insolvente era proprietário do veículo automóvel ligeiro misto da marca MITSUBISHI, modelo ..., com a matrícula ..-..-EC, registada pela 1.ª vez em 10.08.1994, a gasóleo.
6. Este veículo foi transmitido pelo insolvente, por contrato verbal de compra e venda, em 19.07.2024, ao seu pai, BB, com registo de transmissão na Conservatória do Registo Automóvel pela Ap. ... de 22.07.2024.
7. O insolvente foi notificado da sentença que declarou a sua insolvência, por carta registada em 17.07.2024.
8. No dia 18.10.2024 o insolvente e o seu pai deslocaram-se ao escritório da Administradora de Insolvência, Dra. CC, tendo o pai do Insolvente assinado e entregue o requerimento necessário para ser efectuado registo a favor da massa insolvente do veículo com a matrícula ..-..-EC.
9. O requerente apresentou-se a insolvência em 15.07.2024 (facto aditado ao abrigo do disposto no artigo 607.º, n.º 4, ex vi artigo 663.º, n.º 2, CPC).
Factos não provados:
a) O veículo com a matrícula ..-..-EC não pertencia de facto ao insolvente, antes
ao seu pai, que a recebeu como pagamento de uma divida do seu ex-genro e da irmã do insolvente.
b) O insolvente não pagou qualquer valor (preço) pela aquisição da viatura com matrícula ..-..-EC.
c) A transmissão da propriedade do veículo para o pai do insolvente só ocorreu por ignorância do insolvente e pressão familiar, nomeadamente do seu Pai, que se arrogava ser o verdadeiro proprietário da viatura em questão.

*
Não foi aberto incidente de qualificação da insolvência.

3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigos 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se em saber se a venda de um veículo automóvel, com 30 anos, único bem integrante do património do devedor, já depois de se ter apresentado à insolvência, mas antes de esta ser decretada, constitui fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Insurge-se o apelante contra a decisão que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, nos termos da alínea e), do artigo 238.º CIRE, sustentando que o comportamento que é imputado ao recorrente foi cometido já depois do início do processo, quando a lei só prevê o indeferimento liminar com base nos actos praticados pelo insolvente no período compreendido entre o início do processo de insolvência e os três anos anteriores, e ainda que o acto em si não criou nem agravou a situação de insolvência nem criou ou agravou qualquer prejuízo dos credores.
Apreciando:
Um dos fundamentos taxativos do indeferimento liminar da exoneração do passivo restante consiste em Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186 (artigo 238.º, n.º 1, alínea e), CIRE).
Importa, assim, analisar se a conduta do apelante ─ venda de um automóvel com 30 anos, único bem de sua propriedade ─ é susceptível de preencher a alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º CIRE.
O incidente de qualificação da insolvência destina-se a analisar as razões que levaram o devedor à situação de insolvência, e, caso se apure que é culposa ─ não fortuita ─ aplicar-lhe as sanções que a lei insolvencial associa a essa situação.
Nos termos do artigo 186.º, n.º 1, CIRE, A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo da insolvência.
Consciente da dificuldade que a prova dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa — conduta dolosa ou com culpa grave dos seus administradores, e relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento — pode envolver, o legislador estabeleceu presunções destinadas a facilitar a tarefa do intérprete.
A cláusula geral do n.º 1, é, assim, desenvolvida por dois núcleos de presunções: os n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º, CIRE..
Em causa nos autos está a alínea d) do n.º 2, de acordo com a qual Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.
E, por força do n.º 4, O disposto nos n.ºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
Constitui entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência que o n.º 2 consagra uma presunção juris et de jure de insolvência culposa, que não admite, pois, prova em contrário (artigo 350.º, n.ºs 1 e 2 do CC). Donde, provada uma conduta subsumível a qualquer das alíneas do n.º 2 do artigo 186.º CIRE a insolvência tem de considerar-se culposa.
A primeira questão suscitada pelo apelante prende-se com os parâmetros temporais da sua conduta. Refere que apenas relevam os actos praticados nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e já não os actos praticados durante o processo de insolvência, relevam para efeitos de qualificação.
Embora o n.º 2 não consagre um limite temporal para a relevância das respctivas condutas, vale, naturalmente, o prazo estabelecido no n.º 1 (Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, Quid Juris, 2.º ed., pg. 718. Como dão conta estes autores, a solução legal divergiu da proposta do Anteprojecto, que relevava a data da declaração da insolvência.
A preocupação do legislador foi estabelecer parâmetros temporais objectivos para delimitar a relevância dos factos que elegeu como indiciadores da insolvência culposa, evitando assim que factos remotos, muito dilatados no tempo, pudessem relevar, preocupação tanto mais premente quanto estamos perante presunções juris et de jure.
É neste contexto que tem de ser interpretado o período temporal de relevância dos factos estabelecidos no n.º 1. Não significa, obviamente, que, após a apresentação à insolvência o devedor possa continuar a praticar impunemente actos de disposição de seus bens enquanto a insolvência não for declarada.
Vejamos a cronologia relevante:
─ dia 15.07.2024 ─ apresentação a insolvência do devedor (ponto 9 da matéria de
facto provada);
─ dia 16.07.2024 ─ sentença que declarou a insolvência (ponto 5 da matéria de facto provada);
─ dia 17.07.2024 ─ carta registada de notificação da declaração de insolvência ponto 7 da matéria de facto provada);
─ dia 19.07.2024 ─ venda verbal da veículo automóvel (ponto 6 da matéria de facto provada).
A declaração de insolvência priva o devedor dos poderes de administração e disposição de bens (artigo 81.º, n.º 1, CIRE). Embora à data em que dispôs do bem o apelante ainda não tivesse sido notificado da declaração de insolvência, não podia ignorar que a mesma deveria ocorrer até ao dia 18.07.2024, pois, de acordo com o artigo 28.º CIRE a apresentação do devedor à insolvência implica o reconhecimento por ele da sua situação de insolvência, a qual deve ser declarada até ao terceiro útil seguinte ao da distribuição.
Por outras palavras, é patente a má fé do apelante quando dispôs do bem ─ se é certo que, formalmente, esse acto de disposição não se enquadrava no estrito período temporal estabelecido no n.º 1 do artigo 186.º CIRE, não é menos verdade que o espírito da lei não pode deixar de contemplar a situação aqui em causa, até por maioria de razão.
A circunstância de o adquirente do veículo ter assinado e entregue o requerimento necessário para ser efectuado registo a favor da massa insolvente do veículo em causa (ponto 8 da matéria de facto provada), contrariamente a posição da Sr.ª Administradora da insolvência, não é idónea para afastar a qualificação da insolvência. O acórdão do STJ, de 05.09.2017, Fonseca Ramos, www.dasi.pt.jstj, proc. n.º 733/14.4TJPRT-C.P1.S1 defendeu a irrelevância do “arrependimento”, sustentando que não se deve colocar no mesmo plano o devedor que não alienou património, não fez doações a próximos e, honradamente, assumiu que deveria expor o seu património em benefício dos seus credores, e aquele que, fazendo ao invés, acabou por distratar
ou revogar os negócios lesivos, seriam considerados da mesma maneira.
Afastada a questão temporal nos termos supra expostos, vejamos, então, se se encontra preenchida a previsão da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º CIRE:
Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.
Constituem, pois, pressupostos da insolvência culposa, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º CIRE:
─ actos de disposição;
─ pelo administrador de direito ou de facto;
─ em proveito pessoal ou de terceiros.
O requisito que reclama a nossa atenção é o do proveito pessoal ou de terceiro.
Não resulta da matéria de facto provada qual o valor do bem transmitido, um veículo automóvel ligeiro, misto, a gasóleo, da marca MITSUBISHI, modelo ..., com a matrícula ..-..-EC, registada pela 1.ª vez em 10.08.1994 (ponto 5 da matéria de facto provada).
A questão que se suscita de imediato é a de saber se e qual a relevância do valor económico do bem, na economia desta alínea, por confronto com a alínea a) do mesmo elenco, que considera culposa a insolvência quando o devedor tenha destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor.
O acórdão da Relação de Lisboa, de 28.02.2023, Fátima Reis Silva, www.dgsi.jtrl.pt., proc. n.º 5920/21.6T8LSB-F.L1-1, entendeu que das regras do n.º 2 do artigo 186.º CIRE, sobre afectação do património da insolvente, só a alínea a) exige a afectação total ou em parte considerável do património do devedor, não contendo nem a alínea d) nem a alínea f) a indicação de qualquer medida quantitativa de afectação
patrimonial. Lê-se neste acórdão, com sublinhado nosso:
Como refere Carneiro da Frada[16], a relação entre a violação dos deveres especificados no nº 2 do art.º 186º e a verificação da situação de insolvência não é igualmente próxima em todos os casos. Algumas das condutas têm normalmente como consequência direta ou previsível a insolvência (o autor dá o exemplo das alíneas a) e g)), mas “em diversos casos o que está em jogo é a reprovação de comportamentos que não conduzem por si, necessariamente, à situação de insolvência, requerendo-se a verificação de outros fatores, algumas vezes fortuitos para que ela ocorra” sendo o caso, refere, das alíneas d) e f).
Neste tipo de casos, está em causa uma função de pré-proteção ou de antecipação de proteção, devido à preocupação de prevenir com eficácia a lesão de um interesse ou bem jurídico a lei veda e pune condutas independentemente de se demonstrar que essas condutas apresentam no caso concreto um perigo para tal interesse ou bem jurídico. É o caso, refere, da alínea d): pune-se a “mera disposição de bens do devedor em proveito pessoal” podendo mesmo a disposição ter tido uma contrapartida idónea. A infração de uma disposição de proteção pode, assim, corresponder a um delito de perigo abstrato, sendo compreensível o estabelecimento de uma presunção de culpa. O caso da alínea d) é um dos casos em que prescinde da prova de um prejuízo direto e se abstrai da causalidade entre o comportamento e a insolvência. Estamos ante violações do dever de fidelidade em que o administrador não pauta a sua conduta pelos interesses da sociedade, mas pelos seus ou de terceiros.
O que justifica, finalmente, que a inadmissibilidade de prova em contrário é o facto de estas condutas, mesmo as enunciadas, serem, segundo a experiência, suscetíveis de causar insolvências, estando com elas intimamente ligadas. A causalidade fundamentante da responsabilidade do nº 2 do art.º 186º não exclui elementos fortuitos, podendo concorrer culpa e acaso porque visam prevenir abstratamente um perigo.
Não tem sido esse, porém, o entendimento maioritário da jurisprudência.
Segundo o acórdão da Relação do Porto, de 30.05.2023, Ramos Lopes, aqui 1.º Adjunto, www.dgsi.jtrp.pt, proc. n.º 791/22.8T8OAZ-C.P1, com sublinhado nosso:
Para se poder concluir pelo preenchimento da situação típica de insolvência culposa prevista em qualquer das alíneas d) e f) do nº 2 do art. 186º do CIRE não basta a demonstração de qualquer alienação ou acto de disposição (alínea d)) ou de acto que permita o uso do bem do devedor (alínea f)), sendo ainda essencial a demonstração de factualidade donde resulte o proveito pessoal da insolvente (ou do seu gerente) ou de terceiros, pois tal ‘proveito’ constitui requisito normativo em qualquer daquelas alíneas - as situações integrantes de tais alíneas são preenchidas por comportamentos que, afectando a situação patrimonial do devedor, implicam concomitantemente benefício (proveito) para o seu autor ou para terceiro.
Seja qual seja a perspectiva dogmática que se adopte sobre a natureza jurídica das presunções estabelecidas no nº 2 do art. 186º do CIRE [uma das perspectivas dogmáticas é a de que tais alíneas contêm (tal como nas alíneas a), b), c), e), g) e g) do nº 2 do art. 186º do CIRE), no âmbito dum sistema de imputação objectivo, causas semi-objectivas de insolvência culposa em que o legislador recorreu a conceitos abertos (v. g., o de ‘prejuízo’), impondo-se o recurso ao nº 1 do art. 186º do CIRE, por essencial à compreensão do facto base que origina a presunção – será o nexo causal previsto no nº 1 do preceito que ajudará o intérprete no preenchimento de tais conceitos e, assim, garantir a coerência teleológica e substantiva do instituto da insolvência culposa, haverá no caso dos autos que concluir que da matéria provada não resulta senão a realização de um acto de transferência de um bem (transferência da propriedade de um veículo automóvel – facto provado 17) e não já (como seria necessário para concluir pelo preenchimento das previsões normativas em questão – alíneas d) e f) do nº 2 do art. 186º do CIRE) qualquer elemento factual que permita concluir que tal acto foi efectuado em proveito do terceiro (ou do gerente de facto) e, concomitantemente, em prejuízo do património da devedora insolvente.
Com efeito, provando-se simplesmente a venda de um bem, sem mais, não estramos em condições de saber se e em que medida se consumou um prejuízo, tanto mais que parece existir consenso no sentido de que um valor económico reduzido ou insignificante não permite qualificar a insolvência ao abrigo da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º CIRE. Assim, acompanhamos o acórdão da Relação do Porto, de 07.12.2016, Aristides Rodrigues de Almeida, www.dgsi.jtrp.pt, proc. n.º 262/15.9T8AMT-D.P1:
É certo que na descrição da situação nela prevista - terem disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros – não se faz qualquer referência à importância económica dos bens objecto dessa actuação e à necessidade de o seu relevo patrimonial ser significativo – ao contrário da alínea a) –. Isso é assim porque, cremos, a preocupação subjacente à previsão legal já não é directamente a preservação do património da devedora (indirectamente sim), mas antes evitar que esse património que deverá ser afecto à satisfação dos credores redunde afinal em benefício ilegítimo dos próprios administradores ou de terceiros.
Todavia, julgamos que em qualquer circunstância esses bens têm de ter algum relevo económico, não nos parecendo conforme à ordem jurídica qualificar uma insolvência como culposa e imputar aos gerentes as consequências dessa qualificação apenas porque um dos administradores ou um terceiro se apropriou de um bem da insolvente de escasso valor económico, cujo interesse para o funcionamento da devedora nas condições existentes à data não fosse significativo.
Aqui chegados, importa determinar qual a consequência da falta de prova do valor do bem alienado.
Liminarmente dir-se-á ─ e passe a tautologia ─ que só poderemos saber se o valor do bem é reduzido ou insignificante se esse valor for apurado.
O acórdão da Relação de Lisboa supra referido, admitindo afastar a qualificação da insolvência nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º CIRE, rejeita, contudo, que, na indeterminação desse valor, não se tenha por verificada a conduta qualificadora, até porque a alínea d) do mesmo elenco normativo indicação de qualquer medida quantitativa de afectação patrimonial.
Discordamos desse entendimento, na linha, aliás, da jurisprudência maioritária.
A título meramente exemplificativo, no sentido de ser necessário apurar qual o valor do bem transmitido para que a conduta do devedor possa ser subsumida a alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º, CIRE, e para além dos já citados, pronunciaram-se os seguintes acórdãos:
─ acórdão da Relação de Guimarães, de 01.06.2017, Pedro Damião e Cunha, www.dgsi.jtrg.pt., proc. n.º 01.06.2017;
─ acórdão da Relação de Guimarães, de 09.02.2012, Rita Romeira, www.dgsi.jtrg.pt., proc. n.º 1124/10.1TBGMR-F.G1;
─ acórdão da Relação de Guimarães, de 10.07.2013, Maria João Matos, www.dgsi.jtrg.pt., proc. n.º 4607/21.4T8VNF-A.G1.
É ao requerente do incidente de qualificação da insolvência (o Administrador da insolvência ou os credores) que incumbe a prova de todos os factos necessários ao preenchimento da previsão de qualquer das alíneas do n.º 2 do artigo 186.º CIRE, e designadamente, do valor do bem transmitido, para efeito do preenchimento da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º CIRE (cfr. acórdão da Relação do Porto, de 30.05.2023 supra citado) e, nessa medida, o valor do bem transmitido para efeitos da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º CPC.
Não se verifica, assim, a previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º, n.º 1, CIRE [constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º], que motivou o indeferimento liminar do incidente de exoneração do passivo restante.
A decisão recorrida não pode, por isso, subsistir.
4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação procedente, revoga-se a decisão recorrida, determinando o prosseguimento do incidente.
Custas pela massa insolvente (artigo s 303.º e 304.º CIRE).

Porto, 25 de Fevereiro de 2025
Márcia Portela
João Ramos Lopes
João Proença