I - Não é admissível o recurso de revista de acórdão que decretou a suspensão da instância por motivo justificado, em acção destinada a proteger direitos de propriedade intelectual, com fundamento em contradição com outro acórdão que decidiu não suspender a instância, dada a inexistência de causa prejudicial e no âmbito de uma acção referente a direitos de propriedade horizontal.
II - Como tem sido entendimento deste Supremo Tribunal de Justiça, a contradição de julgados equacionada e que releva como conditio da admissibilidade do recurso de revista pressupõe, além de mais, pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito, considerando contextos factuais idênticos.
III - No caso em apreço, não é possível estabelecer, nem em termos lógicos, nem em termos jurídicos, qualquer contradição entre as decisões proferidas já que foram proferidas com base em contextos fácticos absolutamente díspares.
I - RELATÓRIO
Bristol-Myers Squibb Holdings Ireland Unlimited Company,
Swords Laboratories e
Bristol-Myers Farmacêutica Portuguesa SA, instauraram ação declarativa, sob processo comum, contra:
Teva Pharma – Produtos Farmacêuticos, Lda, todas melhor identificadas nos autos, tendo formulado os seguintes pedidos:
“a) abster-se, no território português ou com vista à comercialização nesse território, de explorar (por si própria e/ou permitindo que terceiros o façam ao abrigo das AIMs identificadas no artigo 69.º) a invenção protegida pela EP ‘415 e pelo CCP 456 e, nomeadamente, de importar, fabricar, armazenar, utilizar, colocar no mercado, vender e/ou oferecer, os Genéricos Apixabano identificados no artigo 69.º da Petição Inicial, enquanto a EP ‘415 e o CCP 456 estiverem em vigor;
b) abster-se, no território português ou com vista à comercialização nesse território, de explorar (por si própria e/ou permitindo que terceiros o façam ao abrigo de quaisquer AIMs para quaisquer medicamentos compreendendo apixabano como substância ativa) a invenção protegida pela EP ‘415 e pelo CCP 456 e, nomeadamente, de importar, fabricar, armazenar, utilizar, colocar no mercado, vender e/ou oferecer quaisquer produtos que compreendam apixabano como substância ativa, enquanto a EP ‘415 e o CCP 456 estiverem em vigor.
Requer-se ainda, nos termos do artigo 829.º-A do Código Civil, que a Ré seja condenada a pagar uma sanção pecuniária compulsória de valor não inferior a €133.000 (cento e trinta e três mil euros) por cada dia de atraso no cumprimento da condenação que vier a ser proferida, de acordo com o acima exposto.”
“a) Deve ser ordenada a suspensão da instância até que seja proferida decisão de mérito no processo pendente sob n.º 209/22.6...
b) Deverá ser ordenada a intervenção do Ministério Público
c) Deve ser julgada procedente a exceção de falta de interesse em agir quanto ao pedido contido na alínea b) e a Ré deve ser absolvida da instância em conformidade
d) Os pedidos devem ser julgados improcedentes e a Ré absolvida em conformidade
e) O pedido reconvencional deve ser deferido por provado e, consequentemente, a EP’415 e o CCP 456 devem ser declarados nulos e revogados, com efeitos no território nacional.”
As Autoras apresentaram réplica à matéria da reconvenção e resposta às exceções, pugnando pela sua improcedência nos seguintes termos:
“a) determinada a extinção da instância quanto aos pedidos formulados na parte referente à EP ‘415 por inutilidade superveniente da lide;
b) indeferido o pedido de suspensão da instância formulado pela Ré;
c) indeferido o pedido de intervenção do Ministério Público formulado pela Ré;
d) julgada improcedente a exceção de falta de jurisdição do Tribunal para decidir o pedido b) formulado na petição inicial;
e) julgada improcedente a exceção perentória de nulidade da EP ‘415 e do CCP 456;
f) julgada verificada a exceção de litispendência quanto ao pedido reconvencional deduzido pela Ré; e, caso assim não se entenda,
g) seja a ação julgada totalmente improcedente, na parte em que foi objeto de reconvenção, concluindo-se como na petição inicial.”
“Devem assim as Autoras ser, em conformidade, absolvidas da instância relativamente ao pedido reconvencional, julgando-se verificada a excepção de litispendência, nos termos dos artigos 580.º, n.º 1, 581.º, n.º 1 e 582.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
…
“Pelo exposto, nos termos do artigo 272.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Civil, determino a suspensão da instância até à prolação de decisão final no processo 209/22.6..., que corre termos no Juiz ..., do Tribunal da Propriedade Intelectual.”
- absolveu as AA. da instância relativamente ao pedido reconvencional, julgando verificada a exceção da litispendência;
- suspendeu a instância até à prolação de decisão final no processo 209/22.6..., que corre termos no Juiz 1, do Tribunal da Propriedade Intelectual.”
“A. MARCHA DO PROCESSO E OBJETO DO RECURSO:
A. A presente ação foi intentada pela BMS contra a Teva ao abrigo do artigo 3.º, n.º 1 da Lei 62/2011, na sequência da publicitação, na página oficial do INFARMED, dos pedidos de AIM da Teva para medicamentos genéricos contendo apixabano como substância ativa, formulados em 24.06.2022 (melhor identificados supra - § 1, pág. 2), onde as Autoras invocaram os seus direitos de propriedade industrial emergentes da EP ‘415 (entretanto caduca) e do correspondente CCP 456.
B. Em 18.05.2022, a Teva havia intentado uma ação de nulidade com vista a obter a revogação da EP ‘415 (e, consequentemente, do CCP 456), que corre termos sob o n.º de processo 209/22.6... (“Ação de Nulidade”).
C. Na Contestação desta ação, a Teva (para o que ora releva), (i) requereu a suspensão da instância com fundamento na Ação de Nulidade e (ii) deduziu pedido reconvencional em tudo idêntico ao da Ação de Nulidade, a que as Autoras replicaram (i) sustentando a improcedência do pedido de suspensão e (ii) arguindo a litispendência entre o pedido reconvencional e a Ação de Nulidade.
D. O TPI proferiu despacho a 12.07.2023, objeto de recurso para o TRL, determinando (i) a absolvição da instância das Autoras do pedido reconvencional por litispendência, e (ii) a suspensão da instância por existência de “motivo justificado” até à prolação da decisão de 1.ª instância na Ação de Nulidade, por considerar que a suspensão não poderia prejudicar a posição das Autoras, pois que, estando o CCP 456 em vigor, ser-lhe-ia garantido o seu exclusivo.
E. Contudo, em 10.08.2023, menos de um mês após o Despacho de suspensão da instância, a Teva notificou o INFARMED do início da comercialização dos seus medicamentos genéricos (a ocorrer em 01.09.2023), o que levou à instauração do processo cautelar que corre por apenso a estes autos.
F. As Autoras recorreram do Despacho que decretou a suspensão da instância, tendo culminado no Acórdão de 20.05.2024 (que, entre outros, confirmou o Despacho que decretou a suspensão) e que é objeto do presente recurso.
G. O Acórdão Recorrido manteve a suspensão porque, apesar de a Ação de Nulidade não ser causa prejudicial,(i) existe um motivo justificado baseado na economia e coerência de julgamentos, (ii) inexistem razões para crer que a Ação de Nulidade tenha sido intentada para se obter a suspensão desta, (iii) a ação não se mostra tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens, e (iv) a suspensão não causa prejuízos às Autoras face à providência cautelar que estas se viram forçadas a requerer.
H. ADMISSIBILIDADE DO PRESENTE RECURSO: o recurso vem interposto ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. d) ex vi artigo 671.º, n.º 2, al. a) do CPC, por existir contradição entre o Acórdão Recorrido e outro Acórdão da Relação.
I. Todos os elementos interpretativos, bem como a resenha jurisprudencial e doutrinária elaborada nas alegações de recurso demonstram que o artigo 671.º, n.º 2, al. a) do CPC abrange recursos interpostos ao abrigo 629.º, n.º 2, al. a) do CPC, como é o presente (entre Acórdãos da Relação). A título de exemplo, cf. Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 09.05.2023 (proc. n.º 826/21.1T8CSC-A.L1.S1).
J. Em cumprimento dos requisitos negativos do artigo 629.º, n.º 2, al. d) do CPC, a revista do Acórdão Recorrido não se encontra impedida por motivos da alçada do Tribunal (valor da ação e do recurso é de € 30.000,01), nem existe acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.
K. Em cumprimento dos requisitos positivos do citado preceito, o Acórdão Fundamento invocado é o aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de janeiro de 2023 (proc. n.º 34/19.1T8MFR.L1-6), em relação ao qual existe (i) identidade quanto à questão de direito apreciada e ao núcleo central das concernentes situações de facto,(ii)contradição quanto à questão de direito e (iii) um quadro normativo substancialmente idêntico, conforme se extrai do quadro seguinte:
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última”. |
M. No caso do Acórdão Fundamento, onde – como no Acórdão Recorrido – pendia uma ação com um pedido e uma causa de pedir diferentes da ação principal que não se entendeu ser uma causa prejudicial, considerou-se – ao contrário do Acórdão Recorrido – inexistir risco de contradição, concluindo-se pela inexistência de motivo justificativo para suspender a instância.
N. Sendo certo que no caso do Acórdão Fundamento, à semelhança do caso do Acórdão Recorrido, se encontrava igualmente pendente uma ação de nulidade suscetível de impactar os direitos exercidos no pleito.
O. Donde nos termos do artigo 629.º, n.º 2, al. d) do CPC se deve admitir o recurso.
P. MÉRITO DO RECURSO – INEXISTÊNCIA DE MOTIVO JUSTIFICADO –A(IN)JUSTIFICAÇÃO DA ECONOMIA E COERÊNCIA DE JULGADOS: sem prejuízo da inadmissibilidade do conhecimento da validade de direitos de propriedade industrial por via de exceção (cf. artigos 109 a 122 da Réplica), a suspensão da instância não é a solução mais equilibrada para salvaguardar “a economia e a coerência de julgados”,que nos parece, por um lado, estar assegurada pelo regime jurídico vigente (os efeitos de declaração de nulidade), existindo outra via muitíssimo mais proporcional
(…)”
Ambas as partes se pronunciaram tendo mantido os entendimentos já anteriormente expressos.
E, assim, por decisão singular proferida no passado dia 06 de janeiro, não se admitiu o recurso de revista interposto pelas Recorrentes.
Ainda inconformada com tal decisão, vêm agora as Recorrentes reclamar para a conferência, reafirmando os seguintes argumentos, em suma:
“As Recorrentes reconhecem que a situação fática dos dois acórdãos (recorrido e fundamento) não é exatamente a mesma, mas consideram que a identidade exigida pelas lei e jurisprudência deste douto Supremo Tribunal não é uma de correspondência total entre as situações em cotejo.
Como lapidarmente esclareceu o acórdão de 10 de fevereiro de 2005 deste Supremo Tribunal “à verificação dessa oposição [entre decisões] não obsta a que os casos concretos decididos em ambos os acórdãos apresentem contornos e particularidades diferentes, desde que a questão de direito seja fundamentalmente a mesma, mas não se prescinde da identidade do núcleo central das concernentes situações de facto”.
O facto de o direito exercido nestes autos ser relacionado com propriedade intelectual e no caso de o acórdão fundamento ser um direito relacionado com propriedade horizontal não deveria pesar mais do que o facto serem ambos direitos reais de propriedade que beneficiam de uma presunção legal de validade(nos termos dos artigo 4.º do Código da Propriedade Industrial e e do artigo 7.º do Código do Registo Predial, respetivamente).
Do mesmo modo, as eventuais diferenças circunstanciais dos casos não suplantam o mesmíssimo quadro factual para efeitos de aplicação do Direito – afinal, em ambas as ações existem exceções e pedidos reconvencionais deduzidos com vista a invalidar os direitos exercidos, enquanto pendem autonomamente ações de nulidade.
Destarte, para efeitos da norma legal em questão – o artigo272.º,n.º 1 do Código de Processo Civil – a contradição de julgados verifica-se quando perante o mesmo cenário jurídico-processual o acórdão recorrido entende existir motivo justificativo para suspensão da instância e o acórdão fundamento considera o oposto.
É certo que a expressão “outro motivo justificado” no aludido normativo pressupõe uma análise casuística e/ou subjetiva, na medida em que estamos perante conceitos indeterminados.
Contudo, admitir que as circunstâncias fáticas entre os casos têm de apresentar total correspondência por estar em causa a aplicação de um comando legal que depende de uma ponderação casuística seria impossibilitar o direito de acesso a este Supremo Tribunal de contradições de julgados referentes a suspensões da instância que não sejam sobre causas efectivamente repetidas”.
Invocam ainda as Recorrentes, a favor da sua argumentação o acórdão do STJ proferido em 14-09-2023, no processo 18/21.0YQSRT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, para prosseguir na sua argumentação, dizendo:
“sem prejuízo de o contexto fáctico poder não ser exatamente o mesmo, para efeitos do normativo em questão, a semelhança relevante é aquela que resulta do contexto (factual) adjetivo das causas – porquanto é sobre este que a norma legal se debruça.
Diferentemente seria se nos encontrássemos perante a aplicação de uma norma de direito substantivo, caso em que as semelhanças entre os factos dos casos são mais relevantes porquanto representam o preenchimento da previsão da norma a aplicar.
Ora, no caso que temos em mãos, o acórdão recorrido considerou que uma ação de nulidade de um direito real de propriedade que beneficia de uma presunção de validade não é causa prejudicial, mas constitui motivo justificado para suspender a instância, enquanto no acórdão fundamento foi considerado que a ação de nulidade não constituiria causa prejudicial, nem motivo justificado para se decretar essa suspensão.
Adicionalmente, como ensina o Ilustre Conselheiro ABRANTES GERALDES, ainda que subsistisse a dúvida quanto à admissibilidade ou não da revista à luz da alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, na alternativa entre admitir e não admitir, estando em causa conceder uma garantia processual e uma nova sede de reapreciação da decisão, sempre seria de optar pela admissibilidade.”
A Recorrida TEVA apresentou resposta reafirmando o seu entendimento no sentido da inadmissibilidade do recurso.
II - O DIREITO
Nos termos do art.º 671.º n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil1, “os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objecto de revista:
a)Nos casos em que o recurso é sempre admissível;”
E de acordo com o disposto no art.º 629 n.º 2 d) “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:
(…)
d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.”
O presente recurso vem interposto ao abrigo destes dois preceitos legais (artigo 629, n.º 2, al. d) e artigo 671.º,n.º 2,al.a),ambos do CPC, por, no entender das Recorrentes, existir contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa (Acórdão de 26-01-2023 – Processo 34/19.1T8MFR.L1-6).
Importa, antes de mais, apreciar o âmbito de aplicação do artigo 671.º, n.º 2, al. a) do CPC e a inclusão das situações previstas no artigo 629.º, n.º 2, al. d) do CPC.
Estamos no âmbito de uma decisão interlocutória que recai unicamente sobre a relação processual, em que, nos termos do art.º 671.º n.º 2 alínea a), só é admissível recurso de revista “nos casos em que o recurso é sempre admissível”.
E tal hipótese remete-nos para a alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º, já que não se coloca sequer a questão da aplicabilidade de qualquer das outras alíneas do art.º 629.º.
Ora, esta alínea d) exige que, além da contradição entre o acórdão da Relação recorrido e outro acórdão da Relação, da decisão em causa não seja admissível recurso para o STJ, “por motivo estranho à alçada do Tribunal”. Portanto, “o regime estatuído no art.º 629.º n.º2 alínea d) não se basta com uma mera contradição entre acórdãos das Relações, pelo que o preceito legal só é aplicável nos casos em que, apesar de a revista ser admissível nos termos gerais, se verifica uma irrecorribilidade estabelecida na lei.”2 É o caso, por exemplo dos procedimentos cautelares (art.º 370.º n.º2). Também o art.º 45.º n.º 3 do Código de Propriedade Industrial estabelece a irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça, dos acórdãos do Tribunal da Relação, em matéria de propriedade intelectual, “sem prejuízo dos casos em que este[recurso] é sempre admissível”. Este processo, interposto nos termos do art.º 3.º n.º 1 da Lei n.º 62/2011 de 12 de dezembro, destina-se ao exercício de direitos de propriedade intelectual, pelo que deverá considerar-se abrangido por aquela norma do CPI. Assim sendo, está verificada também a condição exigida pela alínea d) do n.º 2 do art.º 629.º, segundo a qual é necessário que “não seja admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por motivo estranho à alçada do Tribunal”
Aqui chegados, importa agora verificar se existe contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento que é o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 26-01-2023 no Processo 34/19.1T8MFR.L1-6.
Para que tal contradição ocorra, é necessário que a decisão, em ambos os acórdãos, incida sobre a mesma questão fundamental de direito e no domínio da mesma legislação.
Vejamos se assim será:
No acórdão recorrido, a questão decidida foi a de saber se existia motivo justificado para a suspensão da instância, face à pendência de uma acção que embora não tenha sido qualificada como “causa prejudicial”, poderia vir a dar origem a uma decisão com resultado incompatível ou inconciliável com a presente acção.
Foi, assim, decidido que “ocorre motivo justificado para suspender a instância quando existe uma ação anterior onde se discute a validade da patente que, nesta ação, serve de fundamento ao pedido formulado pelos autores”.
Na verdade, na presente acção, intentada com base no regime previsto na Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, as Autoras invocaram os seus direitos de propriedade industrial decorrentes da EP 415 (entretanto caduca) e do correspondente CCP 456 contra a Ré TEVA. Sucede que, no processo 209/22.6..., que corre termos no Juiz ..., do Tribunal da Propriedade Intelectual, instaurada pela aqui Ré, contra as aqui Autoras, é peticionada, precisamente, a declaração de nulidade da Patente EP415 e do CCP456.
E foi neste contexto que a Relação entendeu, na linha do que tinha sido entendido pela 1.ª instância que:
“(…) apesar de não ser pressuposto, a verdade é que entre as duas ações existem pontos de contato objetivamente relevantes que importa acautelar.
Efetivamente, naquela ação está em causa um pedido de nulidade da patente, sendo que nesta ação, além de servir de fundamento ao pedido formulado pelas AA., mostra-se excecionada a respetiva nulidade.
Nessa medida, é indubitável que os pedidos formulados pelas partes aos tribunais, porque coincidentes na parte que diz respeito à validade da patente que nesta ação serve de fundamento às pretensões dos AA., podem despoletar decisões com resultados incompatíveis e/ ou inconciliáveis que, julgamos, importa acautelar.
Aliás, assim será se naquele processo tiver provimento o pedido de nulidade da patente e neste tiver provimento o pedido formulado pelos AA. que, pressupõe, como referido, a validade da mesma patente; assim, como, também ocorrerá se naquele processo for julgado improcedente o pedido de nulidade da patente e neste improcedente o pedido.”
Vejamos agora qual a questão decidida no acórdão fundamento, proferido em 26-01-2023 (Processo n.º 34/19.1T8MFR.L1-6.)
Trata-se de uma acção de reivindicação, em que o Autor pede o reconhecimento do direito de propriedade sobre um lugar de estacionamento que faz parte de uma fracção autónoma de que também é proprietário.
Sucedeu que corria termos, no mesmo Juízo, um processo sob o n.º 494/19.0..., no qual as partes da acção de reivindicação também eram intervenientes e na qual, entre o mais, se peticionava a declaração de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal.
No acórdão fundamento foi entendido que esta acção de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal não constituía causa prejudicial em relação à acção de reivindicação e nem foi considerado que a respectiva pendência constituísse “motivo justificado” para decretar a suspensão da instância.
Na verdade, no acórdão recorrido foi decretada a suspensão da instância e no acórdão fundamento não foi encontrado fundamento para a suspensão da instância.
Mas daí poderemos concluir que existe uma contradição de julgados?
Afigura-se que não.
Na verdade, para ocorrer tal contradição seria necessário que tivesse sido tratada a mesma questão fundamental de direito e no domínio da mesma legislação.
Mas para que em termos lógicos essa contradição possa configurar-se, a questão jurídica terá de desenvolver-se com base num semelhante núcleo jurídico -factual.
Como tem sido entendimento deste Supremo Tribunal de Justiça “contradição de julgados equacionada e que releva como conditio da admissibilidade do recurso de revista pressupõe, além de mais, pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito.
A questão de direito fundamental só é a mesma, para este efeito, quando a subsunção do mesmo núcleo factual seja idêntica (ou coincidente), mas tenha, em termos de interpretação e aplicação dos preceitos sido feita de modo diverso.”3
Ora, do supra exposto, já se evidencia que o quadro factual em que os acórdãos decidiram é totalmente diverso, de tal forma que não é possível estabelecer qualquer relação comparativa entre as decisões.
Não é, pois, possível estabelecer, nem em termos lógicos, nem em termos jurídicos, qualquer contradição entre as decisões proferidas: no acórdão recorrido de suspender a instância; no acórdão fundamento no sentido de não a suspender. Como já referido, essa diferença de decisões não tem relevância visto que foram proferidas com base em contextos fácticos absolutamente díspares.
Assim, não se encontrando verificadas as condições de aplicabilidade do disposto no art.º 629 n.º 2 d) do CPC, não poderá conhecer-se do objecto do recurso, pois o mesmo não é legalmente admissível.4
Com efeito, “o acesso especial ao Supremo, ao abrigo da alínea d) do n.º2 do art.º 629.º, depende de pressupostos que devem ser apreciados com rigor, obstando a que, de modo enviesado se consiga aceder ao terceiro grau de jurisdição em casos que extravasam o âmbito do preceito legal.”5
Importa ainda referir que o acórdão do STJ de 14-09-20236, não confirma a pretensão das recorrentes pois considerou que existia contradição entre dois acórdãos, na seguinte circunstância: “O acórdão do STJ de 22 de Janeiro de 1992 — processo n.º 080979 — pronunciou-se no sentido de que a pendência de uma outra acção não podia ser motivo para a suspensão da instância desde que não houvesse uma relação de prejudicialidade entre as duas acções; o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de Março de 2023, agora recorrido, pronunciou-se no sentido de que a pendência de uma outra acção podia ser motivo para a suspensão da instância, ainda que não houvesse uma relação de prejudicialidade.”
Ora, como se verifica, o cotejo entre as decisões de tais acórdãos, situou-se no âmbito da prejudicialidade e não no âmbito da existência de “motivo justificado”, sendo este o motivo que fundamentou a decisão da suspensão da instância, nos presentes autos, pelo que aos mesmos não é aplicável a fundamentação invocada.
III - DECISÃO
Face ao exposto, acordamos, em conferência, em confirmar a decisão proferida de não admitir o recurso de revista interposto pelas Recorrentes.
Custas pelas Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3UC,
Lisboa, 27 de fevereiro de 2025
Maria de Deus Correia (relatora)
Rui Machado e Moura
Nuno Pinto Oliveira
_________
2. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição Actualizada, p.73 e nota 108.
3. Vide a título exemplificativo, acórdão do STJ de 17-05-2018, Processo 286/09.5T2AMD.L1.S1
4. Vide em abono da decisão aqui proferida, a título meramente exemplificativo, os acórdãos deste STJ de 30-01-2025, Processo 2311/18.0T8PTM-F.E1.S1 e de 10-12-2024, Processo 6520/18.3T8MAI.P1.S1,ambos disponíveis em www,dgsi.pt
5. António Abrantes Geraldes, ob,cit, p.76.
6. Processo 18/21.0YQSTR.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt