RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
INADMISSIBILIDADE
NEGÓCIO UNILATERAL
ERRO NA DECLARAÇÃO
TESTAMENTO
FALTA DE CONSCIÊNCIA DA DECLARAÇÃO
NULIDADE
FUNDAMENTOS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ERRO VICIO
Sumário


I. Se a revista se funda em erro, deficiência e omissão na decisão sobre a impugnação da matéria de facto, proferida no acórdão da Relação, sem fazer apelo nem se sustentar como fundamento específico nas hipóteses excepcionais do art. 674º, 3, e 682º, 3, do CPC (cfr. ainda o art. 637º, 2, 1.ª parte, CPC: «fundamento específico de recorribilidade»), o que implicaria especificar em que medida é que tal alteração viola (e qual) «disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto», nem sequer a «disposição expressa de lei que fixe a força de determinado meio de prova» que implicasse necessariamente decisão diversa de acordo com a necessária ponderação de prova “tarifada” ou “vinculada”, ou que fosse de qualificar como tal, ingressa na regra de insusceptibilidade de conhecimento ditada pelo art. 674º, 3, 1.ª parte, em conjugação com o art. 662º, 4, do CPC.
II. O “erro na declaração” ou erro-obstáculo, regulado no art. 247º do CCiv., constitui um vício na formulação da vontade, assente em divergência não intencional com a declaração, a demonstrar em referência ao momento declarativo de expressão da vontade negocial.
III. A “falta de expressão da vontade do testador”, regulada como causa de nulidade do testamento no art. 2180º do CCiv., sanciona a reacção com sinais (gestos, acenos) ou monossílabos (ou condutas análogas) a perguntas formuladas aquando da celebração do testamento sem que tenha havido consciência de uma declaração negocial ou, pura e simplesmente, vontade de acção; tal não abrange a expressão de vontade do testador, ainda que com comprovadas limitações físicas, através de aposição de assinatura digital (arts. 51º, 1, 46º, 1, m), do Código do Notariado).

Texto Integral


Processo n.º 11702/21.8T8LRS.L1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, 7.ª Secção

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. AA e BB, menores, através da sua representante legal mãe CC, intentaram acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra DD, EE, FF e GG, pedindo, após aperfeiçoamento, que sejam “anulados o testamento, confissão de dívida com constituição de hipoteca e procuração outorgada a favor dos três primeiros RR., devendo os mesmos ser condenados a restituir as quantias com que se apropriaram, no valor de € 177.100,66 (correspondente ao somatório de € 22,98 gastos em compras no Leroy Merlin, € 77,68 transferidos da conta do falecido e € 177.000,00 transferidos para a conta do R. DD), e devendo a quarta R. ser condenada a devolver todo o dinheiro recebido a título de legado mensal de € 150,00 e, bem assim, os € 5.000,00 que lhe foram transferidos para a sua conta bancária da conta bancária do falecido pelo primeiro R.”, em referência a negócios celebrados e formalizados em notário por HH.

Os Réus apresentaram Contestações.

Foi proferido despacho saneador, no qual se fixou o valor da causa em € 180.000,00.

2. Realizada audiência final de julgamento, o Juiz ... do Juízo Central Cível de Loures proferiu sentença, julgando procedente a acção e, consequentemente, decidindo:

“a) Declarar nulos o testamento, a confissão de dívida e a constituição de hipoteca bem como a procuração outorgado nos autos em favor dos RR;

b) Condenar os RR a devolverem à herança de HH todos os bens móveis e imóveis que a integram;

c) Absolver a Ré GG do pedido de devolução dos 5000 euros que foram transferidos para a sua conta porquanto, se tratou de um empréstimo feito por esta ao filho.”

3. Inconformado, o 2.º Réu EE interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que conduziu a ser proferido acórdão, no qual se indeferiu a junção de documentos com as alegações de apelação, se julgou parcialmente procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto – eliminação dos factos provados 22., 37., 38., 39. e modificação dos factos provados 20., 40., 41., 42., 50. e 78.–, e, por fim, na apreciação do mérito, se julgou procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e absolvendo os Réus de todos os pedidos.

4. Sem se resignar, as Autoras menores, legalmente representadas, vieram interpor recurso de revista para o STJ, tendo por fundamento o art. 671º do CPC, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões, visando a revogação do acórdão recorrido:

“1ª)- O falecido HH sofria de Esclorose Lateral Amiotrófica, diagnosticada em Junho de 2020, que o atacou de forma galopante, pelo que o mesmo começou por perder progressivamente as funções motoras até que ficou acamado, ventilado inicialmente entre 10 a 20 horas por dia a partir de fevereiro de 2021 e posteriormente 24 horas por dia, vindo a falecer em ... de ... de 2021.

2ª)- A matéria de facto alterada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, quanto aos factos provados em 22º, que o acórdão deu como não provados (contrariando o decido pela 1ª instância), considerando que os factos não foram sequer alegados, importa convocar o disposto no artigo do C.P.C., os factos essenciais têm necessariamente de ser complementares ou concretizantes de outros factos essenciais oportunamente alegados em fundamento do pedido ou da excepção.

3ª)- Reconhecendo-se agora ao Juiz, para além da atendibilidade dos factos que não carecem de alegação e de prova a possibilidade de considerar, mesmo oficiosamente, os factos instrumentais, bem como os essenciais à procedência da pretensão formulada, que sejam complemento ou concretização de outros que a parte haja oportunamente alegado e de os utilizar quando resultem da instrução e da discussão da causa e desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório (Ac. RC, de 9.3.2004).

4ª)- Na sua livre convicção (Cfr artigos 341º do Código Civil e 607º. Nº 5 do C.P.C.) o Tribunal da 1ª instância deu como provado facto que resultou da sua livre convicção alicerçada na apreciação global da prova, facto que o acórdão recorrido alterou violando o disposto nos artigos 5º do C.P.C. e 607º, nº 5, do C.P.C., devendo em consequência, dar-se como provados em 22º, 37º a 39º pela instância.

5ª)- Quanto aos factos provados em 42º, 50º e 78º, que o acórdão deu como não provados (contrariando o decido pela 1ª instância), a alteração dos mesmos efectuada pelo Tribunal da Relação de Lisboa é manifestamente insuficiente para fundamentar essa alteração considerando que os factos em causa carecem de juízo pericial (Cfr. artigo 388 do Código Civil) e, por conseguinte, subtraídos à livre convicção do julgador.

6ª)- Também quanto aos factos provados em 42º, 50º e 78º, é de considerar que o documento junto com as alegações de recurso a exibir uma publicação de 4 de fevereiro de 2021 nas redes sociais com um vídeo de HH, junto aquando da contestação sob o Doc. 15 e que não tem data, não foi admitido pelo Tribunal da Relação, não podendo o acórdão concluir pela data do mesmo, ou seja, 4 de fevereiro de 2021 e extrapolando daí a convicção que o falecido falava à data da outorga do testamento. Assim, o Tribunal da Relação alicerçou a sua convicção num documento cuja junção não foi pelo mesmo admitida, alterando erradamente a matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, o que justifica, a nosso ver, a aplicação do art. 674º, nº 3 do C.P.C..

7ª)- Ainda quanto aos factos provados em 42º, 50º e 78º, os documentos médicos de 24/02/2021, que mencionam a colocação da PEG em 12/02/2021 e a referência em 9/02/2021 de que “vai colocar esta semana PEG”, não são devidamente esclarecedores, pois, nunca é mencionado se foi a colocação da 1ª PEG. Pelo que, a informação médica disponível no processo nunca poderia extrair com certeza que HH falava à data da outorga do testamento, o que justifica também a nosso ver, a aplicação do art. 674º do C.P.C.

8ª)- Na sua livre convicção (cfr. artigos 341º do Código Civil e 607º. Nº 5 do C.P.C.) o Tribunal da 1ª instância deu como provado facto que resultou da sua livre convicção alicerçada na apreciação global da prova, factos que o acórdão recorrido alterou violando o disposto nos artigos 5º do C.P.C. e 607º, nº 5, do C.P.C., devendo em consequência, dar-se como provados os factos que a instância havia dado como provados em 42º, 50º e 78º.

9ª)- Dos factos provados em 16º, 17º, 19º, 20º, 21º, 22º, 24º, 37º a 43º, 51º, 52º, 80º a 84º extrai-se a conclusão que o falecido HH estava com a sua vontade toldada e não esclarecida tomando uma decisão (efectuar testamento e outros instrumentos) que de outro modo (esclarecido) não faria.

10ª)- Estava deprimido e influenciado por amigos (réus) de que a mãe das suas filhas lhe quereria mal, inclusive matá-lo (atente-se no episódio do penso de morfina que a médica de família esclareceu que foi ela a prescrevê-lo e que se esqueceu de receitar o necessário medicamento para os vómitos que a administração daquele penso iria provocar e provocou).

11ª)- E se a vontade de um “moribundo” (quase a morrer) estava condicionada por falsidades, alimentadas pelos réus recorridos, a vontade manifestada (seja por assentimento, monossílabos, seja por escrito em computador ou mesmo pessoalmente) a advogado, notário, ou outrem, está fortemente condicionada por essa falsidade e não traduz uma vontade esclarecida (Cfr. factos provados em 50º, 80º a 84º);

12ª)- O pai das autoras estava com o seu espírito perturbado pelos “amigos” e não estava esclarecido o que toldou a sua consciência e vontade na feitura do testamento e consequentemente em todos os actos na altura realizados, procuração, confissão de dívida e hipoteca (estas sem qualquer fundamento para tal);

13ª)- O acórdão recorrido incorreu em erro na interpretação e aplicação do direito, tendo violado o disposto no artigos, 247º 341º e 2180º do Código Civil, 5º do C.P.C. e 607º, nº 5, do C.P.C..”


Veio o 2.º Réu e antes Apelante apresentar contra-alegações, pugnando pela não admissibilidade e, se for de apreciar, pela sua improcedência e manutenção do acórdão recorrido.

5. Subidos os autos, foi proferido despacho no âmbito de aplicação do art. 655º, 1, do CPC, ao abrigo do contraditório sobre a susceptibilidade de não conhecimento parcial do objecto do recurso.

As Recorrentes apresentaram pronúncia, pugnando pelo conhecimento integral do recurso.

O 2.º Réu e Recorrido apresentou igualmente pronúncia, reiterando as contra-alegações.


Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, enfrentando desde logo a questão prévia da admissibilidade do recurso de revista, atento o objecto da revista normal configurada e interposta como tal pelo Recorrente nas Conclusões, que a delimitam nos termos dos arts. 635º, 2 a 4, e 639º, 1 e 2, do CPC.

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

A. Materialidade apurada

(i) Após a decisão da Relação, consideraram-se provados os seguintes factos (sendo a referência à Autora compreendida em relação à representante legal das menores):

Da relação do casal

1- A A. viveu com HH desde 1 de Janeiro de 2013 como se fossem marido e mulher, pelo menos, até ao momento em que soube do conteúdo do testamento por este elaborado, i.e 19 de Março de 2021.

2- Inicialmente, viviam em casa própria do então companheiro, sita em ... e, em Abril de 2017 passaram a viver em casa arrendada, sita na ....

3- Em 11 de Dezembro de 2017, o companheiro da A. comprou um imóvel sito em Rua ..., ..., que correspondia a uma moradia com rés-do-chão e 1º andar independentes porque constituída em regime de propriedade horizontal, com recurso a um contrato de mútuo com hipoteca com o NOVO BANCO, S.A. (cfr. certidão permanente, certidão matricial, contrato de mútuo com hipoteca, Docs. nºs. 2, 3 e 4).

4- Imóvel este para onde todo o agregado familiar foi viver e que foi assumida como sendo a casa de morada de família, com eles, habitavam as duas filhas menores do casal,

- AA, nascida em ... de ... de 2015; e BB, nascida a ... de ... de 2016 (cfr. assentos de nascimento Docs. nºs. 5 e 6).

5- A relação do casal, apesar de se ter mantido até ao momento que a Autora soube da outorga do testamento, era pontuada por alguma instabilidade e conflituosidade.

6- O companheiro da A. – HH – era bombeiro sapador na Câmara Municipal de ....

7- Em Outubro de 2020, foi-lhe diagnosticado esclerose lateral amiotrófica (ELA) – (cfr. relatório médico e certificado de incapacidade, cfr Docs. nºs. 7 e 8).

8- A doença diagnosticada é uma doença degenerativa que provoca a falência progressiva do organismo o que, efetivamente, aconteceu ao companheiro da A.

9- Tendo este vindo a falecer em ... de ... de 2021 (cfr. certidão de óbito, cfr Doc. nº 9).

10- Quando lhe foi diagnosticada a doença, foi a Autora quem assegurou os cuidados de higiene e saúde necessários, bem como, a assistência de que este carecia tendo, a partir de Novembro desse ano, passado a contar com a ajuda da sogra que se mudou para o primeiro andar do imóvel que constituía a casa de morada de família.

11- Foi a A. quem assumiu os cuidados básicos do companheiro, relacionados com higiene, alimentação, toma de medicação, deslocações ao médico e tratamentos no exterior como sejam fisioterapia, terapia da fala, etc.

12- Sempre foi a A. a assumir a totalidade dos cuidados necessários com as filhas menores do casal, contando com ajudas pontuais da Ré GG.

13- A situação foi tão complexa e requereu tal exigência física e emocional que, no início de Novembro de 2020, a A. meteu baixa médica para cuidar do companheiro.

14- Assim que colegas de trabalho, incluindo os dois primeiros RR., amigos do companheiro da A. e outras pessoas que esta não conhecia souberam que o mesmo estava doente passaram a visitá-lo regularmente na casa de família e outras vezes levavam-no para passear, apesar deste ter ficado imobilizado desde meados de Dezembro de 2020.

15- Com o conhecimento e anuência da A., os amigos e conhecidos, incluindo os dois primeiros RR., organizaram uma ida à televisão, em Janeiro de 2021, para sensibilizar o público em geral a respeito da problemática de HH e conseguir angariar algum apoio monetário para o mesmo, que resultou na angariação de aproximadamente € 180.000,00 (cento e oitenta mil euros).

16- A partir do momento em que ocorreu a angariação de fundos e o valor disponível na conta bancária do falecido atinge a quantia de 180.000 euros, os RR entenderam que deveriam ser eles a gerir esse dinheiro, privando a Autora de a este aceder e convencendo o HH que era melhor assim, pois ela poderia dissipar o “dinheiro das miúdas.”

17- Foi, aliás, por esta razão, que os RR levaram o HH, em data não concretamente apurada de meados de 2021 (mas após a outorga do testamento) ao quartel dos bombeiros sapadores de ... para explicar aos demais colegas porque razão havia nomeado os RR testamenteiros, privando a companheira da gestão da verba angariada.

18- Esse facto surpreendeu e chocou alguns velhos amigos do HH, os quais afastaram-se dele mas motivou outros colegas a efetuar visitas diárias, alguns a pernoitar em casa dele e a organizar -se, em turnos, para lhe dar assistência.

19- Foi, precisamente, a partir do momento em que começou a angariação de fundos que o HH passou a estar, diariamente, acompanhados pelos amigos, incluindo os dois primeiros RR., que estavam sempre na casa de morada de família com ele.

20- A partir do momento em que os RR começaram a frequentar assiduamente e a pernoitar em casa do casal, a relação conjugal deteriorou-se, tendo sido afetada pelas constantes interferências e comentários dos RR sobre a companheira de HH. – Modificado pela Relação.

21- Os RR, sobretudo, o DD, apercebendo-se da existência de alguma conflituosidade no seio do casal, exploraram essa conflitualidade para atingir o objectivo de afastar a Autora da gestão do património angariado pela campanha de solidariedade.

22- Eliminado pela Relação.

23- A Autora sentia-se incomodada e revoltada pela presença constante dos RR e demais bombeiros sapadores de ... lá em casa, devido à perda de privacidade familiar, ao facto de ter duas meninas menores a cargo (as filhas do casal) e ao ascendente que estes revelavam ter sobre o seu companheiro e pai das miúdas.

24- Em meados de Janeiro de 2021, o R. DD, amigo do companheiro da A., embriagou-se na casa de família, num jantar de convívio com o falecido HH e outros amigos, e a determinada altura disse à A., em privado, que o seu companheiro tinha como intenção inclui-lo na gestão do património das filhas menores do casal.

25- O que a A. desvalorizou pelo facto daquele R. estar embriagado e porque estava muito envolvida na doença do companheiro e nos cuidados que o mesmo precisava no momento.

26- Dada a evolução galopante da doença do companheiro e uma vez que o mesmo era o único titular de conta bancária nº ...81, com o saldo de 180.000,00 (cento e oitenta mil euros), a A. transferiu em 4 tranches de € 2.500,00 e 2 tranches de € 2.000,00 para a conta bancária que tinha em conjunto com o companheiro com IBAN ...81, aqueles mesmos montantes, para poder gerir aquele dinheiro de forma a salvaguardar as necessidades do próprio e das filhas menores.

27- O Réu DD apercebeu-se destas transferências porquanto, nessa altura já tinha acesso ao telefone e às aplicações bancárias do HH e controlava todas as entradas e saídas de dinheiro.

28- No dia 22 de fevereiro de 2021, a A. recebeu uma mensagem escrita do número ...20 a dizer: -”repõe o dinheiro que tens andado a roubar. Os depósitos em numerário na tua conta, as transferências, o dinheiro que te é entregue em mão. Se isso não acontecer para além de outras medidas vai ser feita denúncia à PJ” (cfr. mensagem escrita que ora se junta sob o Doc. nº 10).

29- No dia anterior, dia 21 de Fevereiro de 2021, a A foi surpreendida com um telefonema de uma amiga, que lhe contou que um bombeiro amigo lhe tinha dito que o HH tinha feito um testamento.

30- Neste mesmo dia, a A. confrontou o companheiro com tal situação e o mesmo negou, através do computador, pois, nesta fase o mesmo já não falava.

31- Após muita insistência da A. HH acabou por admitir que o tinha feito porque estava apenas “preocupado em salvaguardar o património das miúdas”, referindo-se às filhas menores de ambos.

32- No entanto, HH nunca disse à Autora qual era o verdadeiro conteúdo do testamento.

33- A Autora sentindo-se muito magoada e desiludida decidiu ir viver para a casa da sua mãe sita no ..., o que aconteceu no próprio dia em que soube desse testamento, ou seja, o dia 21 de fevereiro de 2021.

34- No dia seguinte, quando a A. regressou à casa de família para conversar com o HH este disse-lhe que precisava de um tempo para pensar na relação de ambos e pediu para a mesma se retirar durante alguns dias, bem como, para devolver todo o dinheiro que tinha transferido para a conta bancária titulada por ambos.

35- A A. foi, então, para casa da mãe com as filhas, mas continuou a assegurar diariamente os cuidados paliativos ao companheiro HH.

36- Os RR. continuaram, na ausência da Autora, a frequentar diariamente a casa do falecido, nunca o deixando sozinho, controlando as visitas e os contactos deste com terceiros, incluindo a própria Autora.

Do testamento e do seu conteúdo

37. Eliminado pela Relação.

38. Eliminado pela Relação.

39. Eliminado pela Relação.

40. Os três primeiros RR. apesar da grande debilidade física e emocional do falecido (que já se deslocava apenas numa cadeira de rodas eléctrica), levaram-no [a] um cartório notarial em Loures (local distante da zona onde o mesmo morava) tendo indicado como uma das testemunhas do testamento o advogado do Porto-II desconhecida da A. e do falecido, tudo sem o conhecimento da A. – Modificado pela Relação.

41. O testamento foi outorgado em 04 de Fevereiro de 2021 no Cartório Notarial de JJ, em Odivelas, e instituiu os três primeiros RR. administradores dos bens deixados às AA., bem como instituiu quatro testamenteiros: DD, EE, FF e KK. – Modificado pela Relação.

42. No momento da outorga do testamento, o HH já não conseguia assinar pelo seu próprio punho, razão pela qual foi aposta a sua impressão digital. – Modificado pela Relação.

43. Os dois primeiros RR. eram amigos de longa data do companheiro da A. e na fase da doença estavam sempre com este, mas o terceiro R. era um mero conhecido que nunca tinha ido lá a casa e nem conhecia as filhas menores de ambos.

44. Nesse testamento, os três testamenteiros ficaram instituídos como únicos administradores da totalidade dos bens deixados por óbito do HH, incluindo os que lhe couberem a título da legítima, com expressa exclusão da administração da mãe das menores, ora A., e até que estas atinjam a maioridade (cfr. testamento que constitui o Doc. nº 12-A).

45. Mais ficou essa administração estabelecida de ser efetuada em conjunto pelos administradores instituídos, ora três primeiros RR. (cfr. Doc. nº 12-A).

46. Os RR., administradores ficaram incumbidos de arrendar e/ou rentabilizar o primeiro andar e o sótão do prédio urbano que constituía a casa de família (cfr. Doc. nº 12-A).

47. Apesar da família ter vivido sempre no rés-do-chão e dos andares serem independentes porque constituídos em regime de propriedade horizontal.

48. O testador HH legou ainda à sua mãe, quarta R., o valor mensal de € 150,00 (cento e cinquenta euros) – (cfr. Doc. nº 12-A).

49. Foram instituídas como testemunhas do testamento II e LL, sendo que, a primeira testemunha é desconhecida da A. e tem residência no Porto.

50. À data da realização do testamento o HH já não se deslocava por meios próprios e estava ventilado. – Modificado pela Relação.

51. O HH outorgou o testamento, a constituição da hipoteca e a procuração por acreditar e recear que a companheira CC dissiparia o património das filhas do casal, caso ficasse encarregue da sua gestão.

52. Receio e convicção que lhe foram incutidos, ao longo de várias semanas, pelos RR.

53. Só em 19 de Março de 2021, a A. teve conhecimento do conteúdo do testamento, da hipoteca e da procuração, vide o Doc. nº 11.

54. Quanto à hipoteca, ficou a A. a saber que o seu companheiro, no mesmo dia em que outorgou o testamento – 4 de Fevereiro de 2021 – no mesmo Cartório Notarial e perante a mesma notária, assumiu uma dívida no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) perante os testamenteiros, ora três primeiros RR., e constituiu uma hipoteca sobre o prédio urbano que constitui a casa de família como garantia de pagamento daquela dívida (cfr. escritura de hipoteca que ora se junta sob o Doc. nº 13).

55. A A. desconhecia quaisquer dívidas que o companheiro tivesse com os amigos ou com terceiros.

56. O companheiro da A., HH passou também uma procuração segundo a qual instituiu como seus procuradores os RR. DD e EE para movimentarem as suas contas bancárias e nelas efetuar todo o tipo de operações e movimentos, incluindo requisitar e emitir cheques, efetuar depósitos ou levantamentos de capitais, ordenar débitos diretos e transferências bancárias, confirmar recebimentos, receber, consultar e requisitar extratos bancários e saldos de contas, requisitar cartões de débito e subscrever as suas condições de utilização, aprovar saldos de contas liquidadas, solicitar e emitir recibos, declarações ou quaisquer outros documentos, comunicar a alteração de dados pessoais, solicitar acesso a serviços bancários através de internet ou telefone, bem como os respetivos códigos ou coordenadas para acesso e movimentação através de meios eletrónicos ou de telecomunicações de quaisquer contas presentes ou futuras por si tituladas e, bem assim, representá-lo junto de quaisquer serviços alfandegários, postais ou de correios, do grupo CTT ou quaisquer outros, podendo aí levantar ou expedir qualquer correspondência, ainda que registada e com aviso de receção, bem como encomendas, vales postais, pensões de invalidez e reforma, quaisquer outros montantes ou prestações pecuniárias, podendo ainda requerer o reencaminhamento de correspondência, assim como requisitar e cancelar apartados, endereços postais ou de morada eletrónica e ainda representá-lo junto de empresas ou entidades fornecedoras de serviços de energéticos, telecomunicações e de outros serviços de consumo em geral, designadamente companhias de eletricidade e de fornecimento de água, gás, Internet, televisão, comunicações fixas e móveis ou quaisquer outras, podendo contratar quaisquer serviços prestados pelas mesmas. (cfr. procuração que constitui o Doc. nº 14).

57. No dia 26 de fevereiro de 2021, a pedido das filhas, a Autora decidiu regressar com as menores a casa da família.

58. O HH perguntou à A. sempre através do computador, o porquê de ela estar ali pois ele precisava de pensar.

59. A A. recusou-se a sair, mas afirmou que não ia interferir no pensamento dele e ficou efetivamente na casa de família.

60. Durante o jantar, um amigo do HH, que estava presente, de nome MM, disse à A. que ia cumprir a vontade do HH e que a ia pôr na rua, pelo que, a A. chamou a GNR lá a casa pelas 20h50m desse dia.

61. No dia seguinte, a A. saiu com as meninas e voltou no domingo de manhã – dia seguinte – para ir buscar os seus pertences e das filhas.

62. HH, informado e aconselhado por terceiros, voltou a pedir à Autora para devolver o dinheiro que esta havia transferido da conta dele para a conta conjunta dos CTT.

63. A Autora, por temer que os RR lhe fizessem mal dadas a ameaça de que foi alvo por sms, devolveu todas as quantias que havia transferido da conta bancária do falecido para a conta bancária que tinham em comum.

64. Desde a morte do HH, a A. e as menores ficaram impedidas de entrar na casa de família porquanto, alguém mudou as fechaduras só após a propositura desta ação tiveram acesso à casa porque a própria Autora também mudou a fechadura e instalou-se, à revelia dos RR, no imóvel.

65. A A. e as filhas menores foram viver de favor para casa da mãe dela, sita no ..., onde as crianças não dispunham da privacidade necessária.

66. Os testamenteiros negaram-se a entregar a chave de casa de morada de família, e a facultar qualquer informação a respeito da administração do património deixado pelo falecido (cfr. cartas que ora se juntam sob os Docs. nºs 15, 16 e 17).

67. Em ... de ... de 2021, isto é, 3 dias depois da morte de HH, a A. teve conhecimento que foi transferida da conta bancária do falecido para a conta bancária da mãe dele – quarta R. –, de nome GG, com o nº ...05, a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) – (cfr. Extrato bancário que ora se junta sob o Doc. nº 18).

68. Nesse mesmo dia, foram feitas compras no Leroy Merlin com o cartão multibanco nº ...94 no valor de € 22,98 (cfr. Doc. nº 18) e no dia 14 de Abril de 2021 foi efetuada uma transferência de € 77,62 (cfr. Doc. nº 18).

69. A transferência bancária de 5000,00 euros que foi efetuada para a conta bancária da Ré GG respeita a um “empréstimo” feito pelo HH junto de sua mãe para pagar um tratamento junto de “pai de Santo” pois estava convencido que aquele possuía poderes mágicos e poderia curá-lo.

70. A conta bancária aberta no NOVO BANCO, onde deveriam ser sacadas 3 prestações devidas a título de amortização de capital e juros aos contratos de mútuo celebrados entre o falecido e o banco para aquisição do imóvel que constituía casa de família, no valor mensal de € 610,94, apresentava em 25 de Maio de 2021 um saldo negativo com plafond a descoberto na quantia de € 1.350,00 (mil trezentos e cinquenta euros).

71. Em 23 de fevereiro de 2021 foi transferida da conta à ordem nº ...81 e HH para a conta do R. DD com o nº ...27 a quantia de € 134.000,00 (cento e trinta e quatro mil euros) – (cfr. extrato bancário que ora se junta sob o Doc. nº 19).

72. E, em 10 de Março de 2021, foi transferida da mesma conta bancária de HH para a conta bancária do R. DD acima identificada o montante de € 43.000,00 (quarenta e três mil euros).

73. Essa transferência destinava-se a liquidar um crédito contraído pelo HH junto do NOVO BANCO, com o valor inicial de 50.000,00 euros.

74. O NOVO BANCO aceitou a transferência, mas recusou proceder à liquidação tendo enviado ao Ré DD uma missiva cujo conteúdo é o seguinte: “após pedido do testamenteiro para amortização total do suprarreferido empréstimo, a instrução só poderá ser executada, após entrega da certidão judicial com menção do trânsito em julgado da sentença a autorizar o ato de aceitação da herança com encargos, por parte dos herdeiros menores”, vide doc. 7 junto com a contestação do Réu DD.

75. A A. é educadora de infância e aufere € 800,00 (oitocentos euros) mensais, tendo a cargo as duas filhas do casal.

76. Corre termos no Tribunal de Família e Menores de Almada um processo judicial de Autorização Judicial sob o nº 6851/21.5... em que os RR pediram autorização do Ministério Publico para administrarem os bens do falecido HH.

Da evolução do estado de saúde do falecido HH

77- HH foi referenciado em 28 de janeiro de 2021 à Equipa de Cuidados Paliativos ... – ... pela dra. NN, médica do Centro de Saúde.

78- A partir de 24 de fevereiro de 2021, a médica OO, nas visitas e nos contactos que manteve com o paciente HH, constatou que este apenas conseguia comunicar com a ajuda de um computador, realizando para o efeito movimentos oculares. – Modificado pela Relação.

79- Os contactos telefónicos e de monitorização eram efetuados numa primeira fase, pela equipa médica de cuidados paliativos, através da Autora – CC.

80- Em fevereiro de 2021 foi prescrito ao HH, pela médica do Centro de Saúde um penso de bruprenorfina e tramadol SOS, sem que tal prescrição fosse acompanhada de metaclopramida, o que lhe provocou vómitos e a intervenção do INEM.

81- Foi a Autora quem lhe ministrou esse penso, devido às dores intensas de que o HH se queixava.

82- Todavia, isso levou os RR a acreditarem que tal levou a um agravamento da doença e a convencerem-se de que a Autora “o queria matar”.

83- Na sequência desse episódio (a administração do “penso de morfina”) o próprio HH ficou convencido que a Autora, sua companheira o “queria matar”.

84- Atenta a gravidade da doença e as dores que esta lhe estava a provocar (devido à sua evolução galopante), bem como, ao contexto familiar e pessoal que o rodeava, o HH encontrava-se, à data da outorga do testamento, profundamente triste e desiludido, deprimido até, convencido de que a companheira não o amava, que queria apenas o seu dinheiro, “acelerar-lhe a morte” e que iria “dissipar o dinheiro das miúdas”.

85- À data da outorga do testamento o HH encontrava-se acamado e ventilado entre 10 a 20 h por dia, não conseguia deslocar-se pelos seus próprios meios (apenas numa cadeira de rodas) nem segurar uma caneta, razão pela qual foi aposta a sua impressão digital no testamento.

86- A partir de finais de Janeiro 2021, o HH começou a comunicar por computador e, no dia 03 de março de 2021, logrou transmitir, por essa via, à equipa médica, as “Directivas Antecipadas de Vontade”.

87- No dia 05 de março de 2021, o HH comunicou à equipa médica através do computador, pelas razões aludidas em 84) que não pretendia que a CC, ora Autora, tomasse conhecimento do seu quadro clínico.

(ii) A Relação considerou como não provados os seguintes factos, tal como constavam da sentença e foram modificados em 2.ª instância:

— O testamento foi outorgado em 04 de fevereiro de 2021 no cartório notarial de JJ, em Odivelas, e instituiu dois testamenteiros que correspondem aos dois primeiros RR., de nomes DD e EE, e que mais tarde foi aditado um terceiro que é o terceiro R., de nome FF.

— No momento da outorga do testamento, o HH já não conseguia falar sem o auxílio de um computador (e dos movimentos oculares), nem assinar pelo seu próprio punho, razão pela qual foi aposta a sua impressão digital.

— À data da realização do testamento o HH já não se mexia, não se deslocava por meios próprios, estava ventilado, não conseguia falar, só comunicava com recurso a um computador, fazendo para o efeito movimentos oculares, não tendo exprimido de forma clara e inequívoca a sua vontade de testar perante a Notária.

— Em janeiro e em fevereiro de 2021, a médica OO nas visitas e nos contactos que manteve com o paciente HH constatou que este apenas conseguia comunicar com a ajuda de um computador, realizando para o efeito movimentos oculares, conforme resulta dos documentos clínicos juntos aos autos a pedido do Tribunal.

B. Questão prévia da admissibilidade da revista

1. O objecto da revista, tal como configurado nas Conclusões 2.º a 8.ª, limita-se à impugnação da decisão proferida pela Relação em sede de matéria de facto.

2. A revista normal tem como objecto, no que tange às decisões finais, os acórdãos recorridos nos termos do art. 671º, 1, e tem por fundamento as situações previstas no art. 674º, 1, do CPC.

3. Prescreve o n.º 3 do art. 674º que «O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista», significando – ou traduzindo – o princípio geral de conhecimento exclusivo de matéria de direito pelo STJ em sede de revista, sendo da competência das instâncias a apreciação e fixação da matéria de facto e estando arredado do poder cognitivo do STJ a modificação da decisão de facto vinda das instâncias – arts. 682º, 1 e 2, e 662º, 4, do CPC.

4. Tal inadmissibilidade da revista pode ser afastada, em sede de impugnação da matéria de facto, pela excepção decorrente da 2.ª parte do art. 674º, 3, acompanhada pela 2.ª parte do art. 682º, 2, do CPC – a invocação de «ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova» (prova “vinculada” ou “tarifada”), ainda enquanto “erros de direito” em face do controlo da observância do direito probatório material.

5. Tal inadmissibilidade da revista pode ainda ser afastada nas circunstâncias, atinentes à decisão da matéria de facto estabilizada em 2.ª instância, previstas no art. 682º, 3, do CPC.

6. As Recorrentes invocam erro, deficiência e omissão na resolução da impugnação da matéria de facto, proferida no acórdão recorrido e respeitante às decisões proferidas sobre a matéria de facto impugnada pelo Réu Apelante, de acordo com os poderes atribuídos pelo art. 662º, 1, do CPC, sem fazer apelo nem se sustentar nas hipóteses excepcionais do art. 674º, 3, e 682º, 3, do CPC (cfr. art. 637º, 2, 1.ª parte, CPC: «fundamento específico de recorribilidade»), e, por isso, fazendo recair a sua revista na regra obstativa do art. 674º, 3, 1.ª parte, do CPC, em conjugação com a outra regra de irrecorribildade disposta pelo art. 662º, 4, do CPC.

Assim se verifica para as Conclusões 2.ª a 8.ª, em que o Recorrente não alega quaisquer vícios que se apontem expressamente ao exercício do art. 662º, 1 e 2, que, no âmbito de recorribilidade permitido, enquanto tal e por causa do exercício desses poderes deveres-funcionais de reapreciação da matéria de facto, pudesse ser causa de anulação do acórdão recorrido.

Nem apontam as Recorrentes nesse exercício qualquer desrespeito inerente a prova “vinculada” ou “tarifada”, seja por ter sido omitida a sua consequência processual na prova dos factos, seja por ter sido indevidamente qualificada como tal; limitam-se a discordar dos fundamentos que guiaram o julgador e a considerar necessário outro tipo de prova, ainda que sujeita a livre convicção do julgador como prova “livre” – estamos, pois, caídos na regra do art. 662º, 4, do CPC, impedindo o conhecimento do objecto do recurso neste segmento.1

7. As Recorrentes, de todo o modo, alegam preenchimento do art. 674º, 3, do CPC, pelo facto de a convicção do tribunal recorrido para a alteração dos factos provados 42., 50. e 78. ter sido fundada em documento junto com a apelação e não admitido no acórdão recorrido, assim como em “documentos médicos”.

Veja-se a fundamentação pertinente do acórdão recorrido:

“A partir da prova produzida, assinalada pelo tribunal recorrido, não há como contrariar os factos de, à data, o HH não conseguir assinar pelo seu próprio punho (pelo que foi aposta a impressão digital), não se deslocar por meios próprios e estar ventilado. Nenhuma da prova assinalada pelo recorrente impõe decisão diversa.

Mas já não conseguimos ver como é que o tribunal a quo pode ter chegado à conclusão, em termos de probabilidade prevalecente, de que o HH, na data da outorga dos instrumentos notariais, não se conseguia mexer, não conseguia falar sem o auxílio do computador e dos movimentos oculares, e não exprimiu de forma clara e inequívoca a sua vontade de testar perante a Notária.

Com efeito, a referida Notária, testemunha JJ (que não tem qualquer interesse na decisão da causa, sendo uma entidade terceira e isenta, que nem sequer conhecia nenhum dos intervenientes antes da realização dos actos notariais), no seu depoimento, afirmou que o HH tinha limitações físicas (não conseguindo assinar), mas conseguia expressar-se verbalmente. Utilizava um auxílio para respirar, mas ia-o pondo e tirando, conseguindo articular (embora «baixinho»). Comunicaram verbalmente e não por escrito, tendo o HH transmitido a sua vontade de forma clara e completa, sem mediação de qualquer aparelho (designadamente, computador ou telemóvel). Por outro lado, não vemos qual é a prova produzida que permite concluir (e o tribunal a quo também não o refere) que, em 4/2/2021, o HH não se mexia, não falava autonomamente e só se exprimia através do computador, com o auxílio de movimentos oculares. Seguramente, não pode chegar-se a tal conclusão pelo facto de o HH se deslocar numa cadeira de rodas e não conseguir pegar numa caneta para assinar (nenhum destes factos implica que não se consiga, de todo, mexer, nem que não consiga falar). Também a circunstância de se encontrar ventilado entre 10 a 20 horas por dia não o impedia de falar durante todo o tempo (sobravam entre 4 a 14 horas em que não estava ventilado). Mas, sobretudo, no vídeo que constitui o penúltimo documento junto com a contestação do 1.º R. (ref.ª CITIUS ...26 de 22/3/2022) podemos ver e ouvir directamente o HH a mexer a cabeça e a falar (é certo que com alguma dificuldade), sendo perfeitamente perceptíveis as suas palavras. Esse vídeo não tem data, mas nele o HH afirma que iria colocar nesse dia «um tubo» para alimentação (sendo que essa sonda iria ser colocada em 12/2/2021, conforme resulta dos registos clínicos juntos aos autos em 7/3/2024, maxime, do registo datado de 11/2/2021, onde se refere que no dia seguinte iria ser colocado «PEG»). Portanto, em data posterior a 4/2/2021, o HH ainda se expressava por si mesmo, de forma perceptível, sem necessidade de recorrer a computador ou a movimentos oculares. Além disso, a médica que assistia o HH nessa época (testemunha OO), ao juntar os registos clínicos (ref.ª CITIUS ...22), juntou também esclarecimentos relativamente ao seu depoimento e relativamente a tais registos, os quais não foram postos em causa por nenhuma das partes, sendo certo que desses esclarecimentos, conjugados com os registos clínicos, resulta que, na consulta presencial de 13/11/2020 (com a testemunha NN), o HH já tinha dificuldades na fala, mas comia sozinho e conseguia fazer teletrabalho, estando a fazer terapia da fala (a testemunha NN, no seu depoimento, confirmou que existiam alterações no discurso, mas conseguia-se perceber). As consultas subsequentes foram realizadas mediante contacto através de e-mail (20/1, 9/2 e 11/2/2021), pelo que a testemunha não viu o HH. Assim, a primeira vez que a testemunha viu o HH foi em 24/2/2021, sendo que, nessa data, o mesmo comunicava com o auxílio de um computador adaptado. A testemunha refere expressamente que iniciou, ela própria, o acompanhamento do HH em Janeiro de 2021, mas só o viu, pela primeira vez, em 24/2/2021. Portanto, esta testemunha não sabia, nem podia saber, já que não o observou e não existem documentos nesse sentido, se o HH, em 4/2/2021, falava com ou sem auxílio. Nessa medida, o seu depoimento não corrobora, de forma nenhuma, os factos dados como provados. O mesmo ocorre com a testemunha NN, que referiu que apenas em 5 de Março de 2021 (portanto, não antes) falou com o HH através do computador, tendo a comunicação sido «normal».

Tudo visto, existe prova (maxime, o mencionado vídeo) de que o HH, em 4/2/2021, ainda falava sem recurso a meios externos, pelo que não é lícito concluir (como fez o tribunal a quo, sem suporte bastante) que o mesmo não se mexia, não falava e não conseguiu manifestar a sua vontade. Em consonância, há que efectuar as pertinentes modificações nos factos provados e não provados, procedendo parcialmente a impugnação da matéria de facto, nesta vertente, passando os factos provados n.º 42, 50 e 78 a ter a seguinte redacção (e passando os demais factos que deles constavam para a matéria não provada) (…).”

Reitera-se.

Perante esta fundamentação, em revista, as Recorrentes não especificam de todo em que medida é que tal alteração viola (e qual) «disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto», nem sequer a «disposição expressa de lei que fixe a força de determinado meio de prova» que implicasse necessariamente decisão diversa de acordo com a necessária ponderação de prova “tarifada” ou “vinculada” ou que fosse de qualificar como tal.

É, portanto, uma fundamentação recursiva que não se consubstancia em qualquer “erro de direito” na sede residual e excepcional da 2.ª parte do art. 674º, 3, do CPC.

Ademais, o tribunal recorrido socorre-se de prova documental e prova testemunhal, sujeitas à livre apreciação do julgador, de acordo com os limites e previsões dos arts. 376º, 1 e 2, 368º e 396º do CCiv., como tal insindicável em revista.

Exibem inconformismo as Recorrentes sobre a convicção fundamentada do julgador em 2.ª instância, que mudou com relevo a matéria de facto para o pedido feito, mas fora do âmbito de admissibilidade da revista, cujo objecto não pode ser conhecido nas Conclusões referidas apenas e só porque se refere sem mais e desprovido de fundamento específico o art. 674º, 3, do CPC.

C. Sindicação da validade do testamento e demais negócios jurídicos celebrados

1. As Recorrentes invocam os factos provados 16º, 17º, 19º, 20º, 21º, 22º, 24º, 37º a 43º, 51º, 52º, 80º a 84º para dar como preeenchidos os arts. 247º e 2180º do CCiv.; vistas as Conclusões da revista, só estes dois regimes são colocados para reapreciação em revista – o “erro na declaração” e falta de “expressão da vontade do testador”.

2. Nesta questão, o acórdão recorrido mobilizou a seguinte fundamentação, analisando várias causas possíveis de invalidade do testamento e demais negócios:

“Pela presente acção pretendem as AA. que seja declarada a invalidade dos instrumentos de testamento, confissão de dívida com constituição de hipoteca e procuração outorgados pelo seu pai, bem como que os RR. sejam condenados a restituir-lhes determinadas quantias [«€ 22,98 gastos em compras no Leroy Merlin, € 77,68 transferidos da conta do falecido e € 177.000,00 transferidos para a conta do R. DD; legado mensal de € 150,00 e, bem assim, os € 5.000,00 transferidos» para a 4.ª R.], baseando a sua pretensão em vários fundamentos:

1 - Aqueles instrumentos foram outorgados sob erro de que foi vítima o falecido;

2 - Aqueles instrumentos foram outorgados sob coacção moral de que foi vítima o falecido;

3 - No momento da outorga daqueles instrumentos o HH encontrava-se numa situação de incapacidade notória e manifesta;

4 - O HH não expressou claramente a sua vontade;

5 - Foi transferido dinheiro das contas bancárias do falecido HH para contas tituladas pelos 1.º e 4.ª RR., os quais usaram essas quantias em proveito exclusivo, delapidando-as.

Relativamente ao valor de € 5.000,00, entregue à 4.ª R., a acção foi já julgada improcedente, não tendo sido interposto recurso nessa parte, pelo que nada há a apreciar a esse respeito.

No mais, diga-se, desde já, que a alínea b) da decisão recorrida nunca poderia manter-se, porquanto o pedido formulado pelas AA. é o de que os RR. lhes entreguem determinadas quantias e não o de que devolvam à herança de HH «todos os bens móveis e imóveis que a integram» (cfr. art. 609.º n.º1 do Código de Processo Civil).

Isto posto, temos que a alegação das AA., referida em 1 a 3 supra é, logo à primeira vista, contraditória.

É que a incapacidade notória e manifesta do HH implicaria que o mesmo não entendia o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade (cfr. arts. 257.º e 2199.º do Código Civil) - portanto, que havia falta de vontade de emitir a declaração como negocial. Já se tivesse havido erro na declaração (art. 247.º do Código Civil), existiu vontade de emitir a declaração negocial, mas a vontade real não correspondeu à vontade declarada, sem que o HH tivesse consciência dessa divergência (enganou-se, devido à existência de erro). Por seu turno, a coacção moral implica que houve vontade de emitir a declaração e a vontade real não corresponde à vontade declarada, mas essa divergência é conhecida do declarante (este produz conscientemente uma declaração que não corresponde à sua vontade, por ter sido ameaçado com um mal que pretende evitar) - cfr. art. 255.º do Código Civil. Portanto, num caso há falta de vontade, no outro há uma divergência inconsciente entre a vontade real e a declarada e no último há uma divergência consciente entre a vontade real e a declarada. Trata-se, pois, de causas de invalidade incompatíveis entre si. De todo o modo, mesmo a considerar-se que a invocação dessas sucessivas causas foi feita a título subsidiário, o certo é que dos factos provados não consta qualquer matéria que permita considerar preenchida qualquer uma das normas mencionadas (arts. 255.º, 247.º, 257.º e 2199.º do Código Civil).

Note-se, ainda, que os factos provados n.º 16 e 52 (os RR. convenceram o HH de que a companheira poderia dissipar o dinheiro das miúdas) também não implicam que tenha existido qualquer erro da parte do HH quanto ao objecto do negócio ou quanto aos motivos determinantes da vontade (cfr. arts. 251.º e 252.º do Código Civil), já que não se provou que não existisse aquele perigo de dissipação e, portanto, que o mesmo correspondesse a uma representação falsa / enganosa da realidade.

Além disso, o domínio da concretização do perigo que o declarante pretendia evitar não cabia aos RR. (mas sim à própria mãe das AA.), pelo que não ocorreu qualquer ameaça. Aliás, o próprio HH, quando confrontado pela mãe das AA., quinze dias após a elaboração do testamento, frisou que a sua preocupação tinha sido salvaguardar o património das filhas (cfr. factos provados n.º 31 e 51), sendo essa, portanto, a sua vontade.

Deste modo, não ocorre, com fundamento em erro, coacção moral ou incapacidade acidental, a invalidade do testamento, da procuração e da declaração de dívida com constituição de hipoteca, devendo a acção improceder, nessa parte.

Quanto ao quarto fundamento invocado, há que levar em consideração o disposto no art. 2180.º do Código Civil, de acordo com o qual «é nulo o testamento em que o testador não tenha exprimido cumprida e claramente a sua vontade mas apenas por sinais ou monossílabos, em resposta a perguntas que lhe fossem feitas».

Para a validade do testamento é, assim, «necessário que o testador tenha expressado a sua vontade por palavras suas, exigindo, ainda, que a vontade seja claramente manifestada, ou seja, que não fiquem dúvidas sobre aquilo que o testador manifestou querer - o que não se confunde com dúvidas sobre o teor da vontade manifestada, as quais são resolvidas por via de interpretação do testamento mas, em regra, não afectam a sua validade [Cfr. Ac. RC de 18/6/2024, proc. 1601/22]».

Compulsados os factos provados, dos mesmos também não consta que o HH não tenha manifestado de forma clara a sua vontade, que o tenha feito por sinais ou monossílabos, ou sequer que tenha recorrido ao auxílio de um computador para o fazer.

Não se encontra, assim, também preenchida a previsão desta norma (aliás, aplicável apenas aos testamentos e já não aos restantes instrumentos notariais em causa nos autos), pelo que, também por esta via terá de improceder o pedido de declaração de invalidade do testamento, da declaração de dívida com constituição de hipoteca e da procuração.

Não pode, pois, manter-se a alínea a) da decisão recorrida, que terá de ser revogada e substituída por outra que absolva os RR. do correspondente pedido.

Consequentemente, não ocorrendo qualquer causa de invalidade do testamento, também não existe qualquer fundamento legal ou factual (com base na causa de pedir aqui invocada pelas AA., que é a única a que podemos atender) para que a 4.ª R. deva restituir o legado de € 150,00 mensais, tendo a mesma de ser absolvida desse pedido.

Finalmente, quanto às demais quantias cuja restituição é peticionada pelas AA., temos que se provou que (cfr. factos provados n.º 68, 71 a 74 e 76):

a - Em 13/4/2021 (portanto, depois do falecimento do HH), foram feitas compras no Leroy Merlin com o cartão multibanco, no valor de € 22,98, e, em 14/4/2021, foi feita uma transferência de € 77,62;

b - Em 23/2/2021, foi transferida da conta de HH para a conta do 1.º R. a quantia de € 134.000,00;

c - Em 10/3/2021, foi transferida da conta de HH para a conta do 1.º R. a quantia de € 43.000,00;

d - Esta transferência destinava-se a liquidar um crédito contraído por HH junto do NB, com o valor inicial de € 50.000,00;

e - O NB aceitou a transferência, mas recusou proceder à liquidação, alegando ser necessária uma certidão judicial comprovativa da aceitação da herança com encargos, por parte dos herdeiros menores;

f - Corre termos no Tribunal de Família e Menores de Almada um processo no qual os RR. pediram a autorização do Ministério Público para administrarem os bens do falecido HH.

Quanto às transferências ocorridas em 23/2/2021 e 10/3/2021, no valor total de € 177.000,00, não consta dos factos provados a identidade de quem as efectuou (no limite, como foram feitas em vida do HH, podem ter sido feitas pelo próprio). De qualquer modo, mesmo que tenham sido levadas a cabo por acto dos 1.ºs RR., as mesmas encontram-se formalmente a coberto da procuração referida no ponto 56 dos factos provados.

Ocorre que as AA. não alegam (e, portanto, não se provou) que o 1.º R. tenha contrariado as instruções do HH (caso em que poderia, eventualmente, aplicar-se o disposto no art. 269.º do Código Civil), sendo certo que apenas baseavam o pedido de restituição na circunstância de ser inválida a procuração (e não de, por exemplo, se ter tratado de um negócio consigo mesmo). Tal invalidade da procuração não se provou, como vimos, e igualmente não se provou que os RR. tenham utilizado os valores em causa em proveito próprio, pelo que o correspondente pedido de restituição não pode proceder.

Finalmente, em relação às quantias de € 22,98 (gasta em 13/4/2021) e de € 77,62 (transferida em 13/4/2021), ambas despendidas já após o falecimento do HH, também não consta dos factos provados que tenham sido os RR. a despendê-las, nem a apoderarem-se delas, nem a usarem-nas em proveito próprio, pelo que não existe fundamento legal ou factual para a sua pretendida restituição. De todo o modo, ainda que tenham sido os RR. a fazerem o pagamento / transferência, é preciso não olvidar que os três primeiros RR. foram instituídos testamenteiros pelo HH, sendo certo que, de acordo com o art. 2326.º c) do Código Civil, é ao testamenteiro que cabe exercer as funções de cabeça-de-casal e, portanto, administrar os bens do falecido (art. 2087.º, do mesmo diploma). Assim, a eventual aplicação, pelos testamenteiros, de tais quantias terá de ser sindicada em acção própria, de prestação de contas (cfr. arts. 2093.º do Código Civil e 941.º e ss. do Código de Processo Civil). Não pode, pois, proceder igualmente este pedido, pelo que tem de improceder a acção e, consequentemente, de proceder a apelação.”

Vejamos.

3. O art. 247º do CCiv. prevê que, «[q]uando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro.»

Estamos perante uma modalidade da divergência não intencional entre a vontade e a declaração negocial (objectiva), enquanto vício na formulação da vontade que afecta a concordância entre o “querido” e o “declarado”.

No erro-obstáculo ou erro na declaração previsto no art. 247º do CCiv. o declarante emite a declaração divergente da vontade real sem ter a consciência desta falta de coincidência, seja por “lapso de actividade” (lapsus linguae ou lapsus calami), desde que não se aplique o art. 249º do CCiv., ou por atribuição às palavras de um significado diverso do seu sentido objectivo (desvio na vontade negocial por “erro de juízo” ou “erro sobre o conteúdo da declaração”).2

É o mesmo normativo que exige, para a anulação do negócio, o conhecimento ou cognoscibilidade pelo declaratário da essencialidade para o declarante do elemento erróneo. No entanto, tal requisito é de dispensar nos negócios unilaterais, como aqueles que foram celebrados notarialmente pelo testador HH – anulabilidade sem requisitos correspondentes ao declaratário.

Assim sendo, nada na matéria de facto provada, em especial a alegada pelas Recorrentes, contribui para se dar como preenchida qualquer das hipóteses de erro na declaração, a demonstrar no momento declarativo de expressão da vontade negocial, de acordo com a tarefa de subsunção jurídica que o art. 682º, 1, do CPC atribui a este STJ em revista – v., em especial, e para conclusão contrária, os factos provados 41., 51., 54. e 56.

Antes se prefigura que a argumentação das Recorrentes – cfr. Conclusões 9.ª a 12.ª – se dirige para o erro-vício decorrente da incapacidade acidental (incidente sobre a vontade livremente formada e esclarecida), como tal regulada, em geral, no art. 257º, e, em especial e diferentemente para o testamento, no art. 2199º, do CCiv. De todo o modo, a anulabilidade destes regimes não foi invocada pelas Recorrentes, nem constituem questões de conhecimento oficioso que possam ser aqui conhecidas.

4. Quanto ao testamento, as Recorrentes alegam que se preenche o art. 2180º do CCiv.:

«É nulo o testamento em que o testador não tenha exprimido cumprida e claramente a sua vontade, mas apenas por sinais ou monossílabos, em resposta a perguntas que lhe fossem feitas

Esta causa de nulidade (sanção mais grave do que a anulabilidade) contende com uma situação de tutela muito particular: acautelar “a possibilidade de o testador não ter exprimido a sua vontade, mas sim ter somente reagido com gestos ou monossílabos a questões que lhe foram formuladas, não sendo possível aferir se este efetivamente compreendeu o que lhe foi perguntado e se estaria, ou não, ciente do que estaria a responder”3. Ou seja, o que se pretende evitar “é que o testador caia no vício da falta de consciência do conteúdo da declaração, contemplado no artigo 246º do Código Civil”4 («não produz qualquer efeito»), prevenindo-se o carácter pessoal do testamento (com “garantias mínimas de certeza e de autenticidade psicológica”), sem se focar na clareza e na inequivocidade da declaração (pois este é um problema atinente à interpretação: art. 2187º do CCiv.)5.

Pois bem.

A matéria de facto provada diz-nos que, no momento da celebração do testamento, (i) o referido HH “já não se deslocava por meios próprios e estava ventilado” (facto provado 50.), em função da progressão da doença que o acometia e que se revelou imparável (factos provados 7., 8., 10., 11., 14., 26., 30., 40., 77., 78., 84. e 86.), (ii) “encontrava-se acamado e ventilado entre 10 a 20 h por dia, não conseguia deslocar-se pelos seus próprios meios (apenas numa cadeira de rodas) nem segurar uma caneta” (facto provado 85.) e (iii) “já não conseguia assinar pelo seu próprio punho, razão pela qual foi aposta a sua impressão digital” (facto provado 42.).

Não obstante estas limitações físicas, a materialidade apurada não nos concede estribo para concluirmos que a vontade do testador não tenha sido transmitida com clareza e suficiência, pois não há qualquer evidência de falta de consciência do declarado ou de vontade de agir, ainda que registada essa vontade através de aposição de impressão digital.

A lei não proíbe testamentos em que o testador exprima a sua vontade através de gestos, acenos, monossílabos ou condutas análogas; o que a lei proíbe é testamentos feitos com reacções a perguntas (em vez de “declarações verbais acabadas”6) sem consciência de se estar a fazer uma declaração negocial ou, pura e simplesmente, sem vontade de acção7 – o que não ficou provado ter acontecido.

Por outro lado, o que a lei permite, sem qualquer dúvida, é que, nos actos notariais, os outorgantes «que não saibam ou não possam assinar devem apor, à margem do instrumento, segundo a ordem por que nele foram mencionados, a impressão digital do indicador da mão direita» (art. 51º, 1, em conjugação com o art. 46º, 1, m), do Código do Notariado: DL 207/95, de 14 de Agosto).

No caso, a consulta do testamento, junto como Doc. 12.a) na petição inicial, leva-nos à declaração do notário, destinada a garantir que o “testamento foi lido e o seu contéudo explicado, a quem assim outorgou, em voz alta e na presença de todos os intervenientes, não assinando o testador, por me ter declarado não o poder fazer” (cfr. ainda o art. 46º, 1, l), do Código do Notariado).

E o que ficou provado foi a aposição de impressão digital no instrumento notarial de formalização do testamento, como forma legítima de manifestação de vontade e suprindo a impossibilidade (declarada pelo testador) para a assinatura-regra.

Razões pelas quais não temos materialidade susceptível de conduzir ao efeito jurídico pretendido pelas aqui Recorrentes também nesta frente de impugnação.

III) DECISÃO



Em conformidade, julga-se não tomar conhecimento parcial da revista e, na parte admitida para conhecimento, improcedente a revista.

Custas pelas Recorrentes, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário da representante legal.

STJ/Lisboa, 25 de Fevereiro de 2025

Ricardo Costa (Relator)

Maria Teresa Albuquerque

Luís Correia Mendonça

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

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1. Analogamente, v. o recente Ac. do STJ de 17/12/2024, processo n.º 2913/23, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.↩︎

2. V., por todos, CARLOS MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, págs. 457-458, 459, 492-493.↩︎

3. ROSSANA MARTINGO CRUZ, “Artigo 2180º”, Código Civil anotado, Livro V – Direito das Sucessões, coord.: Cristina Araújo Dias, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 246.↩︎

4. INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, Sucessão testamentária, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pág. 17; que completa: “Ao intérprete cabe analisar ponderadamente os factos e circunstâncias que cheguem ao seu conhecimento, a fim de averiguar se a declaração do testador traduz a sua real vontade, não obstante os termos e condições em que foi feita. Se assim acontecer, interpretará essa declaração em harmonia com o seu teor e assim a aplicará”.↩︎

5. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, “Artigo 2180º”, Código Civil anotado, Volume VI (Artigos 2024.º a 2334.º), Coimbra Editora, Coimbra, 1998, págs. 288-289.↩︎

6. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, “Artigo 2180º”, loc. cit., pág. 289.↩︎

7. Sobre a divergência não intencional entre a vontade e a declaração disciplinada no art. 246º do CCiv., v. CARLOS MOTA PINTO, ob. cit., págs. 459 e 491.↩︎