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JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
Sumário
I - No tocante ao oferecimento dos documentos e à repercussão do momento processual em que ocorre, é livre na fase dos articulados e condicionada nos períodos subsequentes, seja mediante a imposição de sanção processual, seja através da verificação da sua superveniência, pertinência e necessidade. II - Após os articulados, o legislador trata a admissibilidade da prova documental tendo em vista conciliar o interesse público do apuramento da verdade com a disciplina ideal do processamento da acção, sem olvidar o contributo dos princípios da simplificação, celeridade e economia processuais, por um lado e, por outro, as regras de boa fé processual das partes, com a inerente exigência que ofereçam de imediato, se possível, a prova das suas alegações de facto. III - Os documentos são pertinentes quando tiverem interesse para a demonstração de factos relevantes para prova dos fundamentos da acção ou da defesa, ou seja, quando se referem a factos com conexão com o objeto do processo e que assumem relevância para a justa composição do litígio, face às versões diversas apresentadas pelas partes. IV - Por outro lado, são necessários os documentos que se reportam a factos que, para além de relevantes na apreciação de mérito, estejam carecidos de demonstração e, portanto, que não representem factos que já devam considerar-se provados ou assentes. V - A apreciação da pertinência e necessidade dos documentos deve ser feita com base no seu teor e nas razões expostas pelas partes a seu respeito, no requerimento de junção e de eventual oposição, em conjugação com os demais elementos probatórios conhecidos pelo tribunal e com as regras da lógica e da experiência comum. VI - Preenche os requisitos indispensáveis à pertinência e necessidade a junção de documentos destinados à produção de contraprova, ao abrigo do disposto no art. 346.º do Código Civil, sobre factos com interesse para a decisão da causa cuja demonstração cabe à parte contrária e que se mostrem controvertidos.
Texto Integral
Processo nº19726/23.4T8PRT-A.P1
ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: Ana Olívia Loureiro
2.º Adjunto: Teresa Maria Sena Fonseca
RELATÓRIO.
AA, titular do NIF ..., residente na Rua ..., ..., no Porto, na qualidade de interessado e representante da herança de BB e de CC, propôs acção declarativa de condenação, com processo comum, contra DD, portadora do NIF ... e residente na Rua ..., ..., também no Porto, pedindo seja reconhecida a doação pela de cujus à Ré, por remissão do art. 551.º C.C., no montante de 124.699,47 €, por conta da Legitima.
O que fez na sequência da decisão proferida no processo de inventario nº 1197/22.4T8PRT que determinou a remessa das partes para os meios comuns relativamente à questão da exclusão da verba 555 da relação de bens, correspondente a uma doação no valor de 25.000.000$00 a favor da Ré.
A Ré ofereceu contestação, na qual, em suma, pugnou pela absolvição do pedido, afirmando para o efeito que a entrega do cheque de 25 milhões de escudos que, em 1997, a inventariada fez à sua filha, aqui demandada, foi feita a título de empréstimo, para prover a dificuldades de tesouraria da empresa do marido, e encontra-se integralmente pago.
O processo seguiu a tramitação legal e, elaborado o despacho saneador, foi realizada a primeira sessão da audiência de julgamento, a 26/6/2024, com produção de prova testemunhal, finda a qual, a Ré apresentou o requerimento ref: 39453952, apreciado na segunda sessão do julgamento, que não mereceu oposição da contraparte e que foi objecto do despacho seguinte: Defere-se o requerido, solicitando-se à entidade bancária para juntar os documentos solicitados ao abrigo do DL 279/2000 de 10 de novembro, diploma esse que se mantém em vigor. Resultando dos autos que a conta bancária, à data do óbito ou eventualmente à data do encerramento (conta bancária), era titulada pela já falecida CC, assim como pelo aqui autor. Por esse motivo, solicite ao autor e cabeça de casal a junção aos autos de uma declaração de autorização de levantamento do sigilo bancário para que sejam fornecidos os extratos requeridos. Após a junção dessa certidão solicite à entidade bancária a junção dos extratos já mencionados, nos termos do diploma já citado.
Na sequência, com data de 24/9/2024, o A. juntou requerimento com a declaração de levantamento de sigilo bancário e também de extratos bancários, que afirmou ter obtido na sequência da “necessidade de acesso a um sótão de uma das habitações da herança, onde foram encontrados em caixas com documentação antiga e diversa”.
E que fez acompanhar de mais cinco documentos, com a seguinte justificação: “esclarece-se que após analisado o conteúdo dos extratos bancários, o qual o demandante desconhecia por completo nem tinha obrigação de conhecer, por se tratarem de factos estranhos à sua pessoa, constatou por confronto com outros documentos encontrados a existência de mais depósitos efetuados por parte da demandada ao arrepio do alegado, assim como, existência de depósitos identificados na sua contestação que na verdade correspondem a movimentos bancários efetuados entre em instituições bancarias distintas mas cuja titularidade contas bancárias pertencia à mãe do demandante e demandada (vide folhas 18 do doc. nº1 junto e alegado no ponto 31 da contestação, correspondente ao doc. nº ..., por confronto com doc 4 e 5 infra)”.
Sobre tal requerimento, recaiu o despacho de 24/10/2024, no qual, entre o mais, a primeira instância decidiu: Pelos requerimentos identificados o autor juntou a declaração para levantamento de sigilo bancário, que lhe tinha sido solicitada. Também juntou extractos bancários da conta bancária existente no Banco 1... com o n.º ... (e objecto do pedido de informações a solicitar ao Banco 1...), relativamente a anos que estavam incluídos no despacho proferido na audiência de julgamento de 4 de Julho de 2024 e que complementam a informação do Banco 1... prestada no ofício de 15-10-2024. Nesse contexto e porque são documentos relevantes para os factos em litígio nestes autos, admite-se a sua junção, não se condenando o apresentante em multa, atendendo aos motivos invocados pela junção tardia (artigo 423º, n.º 3 do C.P.C.) Em relação aos restantes documentos juntos pelo autor, nomeadamente talões de depósitos de outras contas e movimentos bancários de outras contas (documentos juntos com o requerimento de 24-09-2024, referência 40144385), identificados como depósitos: docs 1, 2, 3; conta: doc. 4 e extracto: doc 5, são documentos sem relevância para prova dos factos que neste processo estão em discussão, identificados no objecto do litígio e nos temas de provas. Em consequência determina-se o seu desentranhamento e condenação do apresentante em 1 uc de multa nos termos previstos pelo artigo 7º, n.º 4 do R.C.P. Notifique (…).
E desta decisão de indeferimento, inconformado, veio o Autor interpor recurso, admitido como apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.
Rematou com as seguintes conclusões:
A. Vem, o presente recurso, interposto do despacho com ref. 464849684 que rejeitou a junção aos presentes autos dos documentos nº 1 a 5 juntos com o requerimento com ref. 40144385, datado de 24.9.2024, determinando o seu desentranhamento por entender que não tem relevância para a prova dos factos em discussão neste processo.
B. O recorrente não se conforma com o despacho por entender que são documentos com extrema importância e relevância para a prova dos factos em discussão.
C. A manter-se tal despacho o mesmo subverte o princípio da descoberta da verdade material colocando em crise o mérito da causa e os princípios intrínsecos ao processo civil, i.e, o princípio da colaboração para a descoberta da verdade material.
D. Com o presente recurso pretende-se a revogação do despacho supra, substituindo-o por decisão que admita junção dos docs. Nº 1 a 5 por ter fundamento e ter relevância para prova dos factos. Mas vejamos,
E. O despacho de rejeição de documentos probatórios que se recorre refere sucintamente que: “(…)Nesse contexto e porque são documentos relevantes para os factos em litígio nestes autos, admite-se a sua junção, não se condenando o apresentante em multa, atendendo aos motivos invocados pela junção tardia (artigo 423º, n.º 3 do C.P.C.) Em relação aos restantes documentos juntos pelo autor, nomeadamente talões de depósitos de outras contas e movimentos bancários de outras contas (documentos juntos com o requerimento de 24-09-2024, referência 40144385), identificados como depósitos: docs 1, 2, 3; conta: doc. 4 e extrato: doc 5, são documentos sem relevância para prova dos factos que neste processo estão em discussão, identificados no objeto do litígio e nos temas de provas. Em consequência determina-se o seu desentranhamento e condenação do apresentante em 1 uc de multa nos termos previstos pelo artigo 7º, n.º 4 do R.C.P. Notifique.”
F. Isto posto, num enquadramento prévio refira-se que o presente processo teve na sua génese na sentença do processo de inventario nº 1197/22.4T8PRT que determinou a remessa para os meios comuns a questão da exclusão verba 555 da relação de bens correspondente a uma doação no valor de 25.000.000$00 a favor da Ré.
G. Intentada a presente Ação a Ré alegou que tal montante não constitui uma doação da sua mãe, mas um empréstimo já liquidado integralmente no ano 2006.
H. Para o efeito, no ponto 11º e seguintes da contestação juntou sob doc. nº1 uma conta corrente acompanhada de vários talões de deposito da conta da de cujus.
I. Proferido despacho de saneador foi fixado o objeto do litígio e temas prova conforme o transcrito no ponto 9º do presente recurso e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
J. Posteriormente foram encontrados pelo Recorrente caixas com documentação antiga e diversa, cujo existência e conteúdo desconhecia e onde se encontravam os doc nº1 a 5 supra mencionado.
K. Tal como o explanado no requerimento com ref. 40144385, constatou--se por confronto entre os doc. nº 4 e 5 e doc. nº1 da contestação, a existência de depósitos identificados na contestação (concretamente no ponto 31º) correspondentes a movimentos bancários efetuados entre contas bancarias distintas da de cujus e não a hipotéticos pagamentos da Ré como o invocado.
L. Nessa medida os documentos têm relevância para a prova dos factos em discussão, encontram-se identificados no objeto do litígio e nos temas de prova nomeadamente na sua al. C), até mesmo porque contraditam de forma concreta o conteúdo de folhas 18 do doc. nº1 junto na contestação, conforme o alegado no requerimento.
M. Desde logo porque decorre do teor do Doc. junto sob nº 4 a prova da titularidade da conta da de cujus e por outro lado do doc. junto sob nº 5 a prova de que o cheque identificado a fls 18 do doc. nº1 da contestação é um cheque próprio da de cujus.
N. Destarte, é de todo pertinente e necessário a junção do comprovativo de outra conta bancaria da de cujus (doc. nº4), pois só assim é possível aferir que o cheque mencionado a folhas 18 do doc. nº1 junto e alegado no ponto 31 da contestação, corresponde a movimentos entre contas e dinheiro próprio da de cujus e não a hipotéticos pagamentos da Ré.
O. No mesmo sentido, o mesmo se dirá concretamente aos doc. nº1 a 3, pois tal como se explanou no requerimento, aferem a existência de mais depósitos efetuados por parte da Ré na conta do Banco 1... nº... da de cujus, encontrando-se tal facto identificado no objeto do litígio e nos temas de prova nomeadamente na sua al. b),
P. Motivo pelo qual dever-se-á entender ter relevância para a prova dos factos em discussão no processo, visto que atesta a regularidade de depósitos na conta da de cujus pela Ré sem qualquer correlação a hipotéticos pagamentos, contrariando inequivocamente a tese de o doc. nº1 da contestação corresponder a seus pagamentos.
Q. Destarte, e atendendo que um dos meios de prova contemplados no C.P.C. é a prova documental e nos termos do artigo 423.º do CPC, a lei admite a sua apresentação após o limite temporal previsto no número 2, desde que a sua apresentação não tenha sido possível até àquele momento e a sua junção é essencial para a descoberta da verdade material derivada de um facto superveniente sobre o qual como se demonstrou o Recorrente não teria forma nem obrigação de conhecer, devendo ser admitidos.
R. Ao requerer a junção dos documentos, o Recorrente invocou expressamente o nº 3 do art. 423º do CPC e alegou que os documentos se mostravam necessários na sequência dos documentos junto na contestação sob nº1 apresentado pela Ré por contrariarem o sentido que a Ré quer atribuir àqueles documentos por si juntos.
S. Daí que não se possa concordar com a decisões proferida, no sentido de que a sua junção não é relevante para prova dos factos em discussão.
T. Pelo que, nesta matéria, se imporia – e imporá a este Venerando Tribunal – a revogação da decisão em crise, substituindo-a por outra que admita a junção da prova documental nos termos do nº3 do art. 423 C.P.C, que desde já se requer.
Concluiu pedindo que, mercê do provimento do recurso, seja a decisão recorrida alterada nos termos por si preconizados.
Não foi apresentada resposta pela Ré.
Nada obsta ao conhecimento do recurso, o qual foi admitido pela forma e com os efeitos legalmente previstos.
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OBJECTO DO RECURSO.
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constam nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635.º/4 e 639.º/1 do CPC).
Assim sendo, a única questão a apreciar respeita à admissibilidade dos 5 documentos cuja junção foi recusada em primeira instância.
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
A factualidade relevante e a considerar é a que resulta do relatório antecedente, para o qual se remete.
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O DIREITO.
Dispõe o art. 423.º/1 do Código de Processo Civil que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
Acrescenta que, se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado (nº2).
Prevendo ainda que após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior (nº3).
Por outro lado, segundo determina o art. 443.º/1 do mesmo diploma, a propósito dos documentos tardiamente apresentados, observado que seja o contraditório, e logo que o processo lhe seja concluso, o juiz, se não tiver ordenado a junção e verificar que os documentos são impertinentes ou desnecessários, manda retirá-los do processo e restitui-os ao apresentante, condenando este ao pagamento de multa nos termos do Regulamento das Custas Processuais.
Como flui do seu elemento literal, a primeira norma em causa rege sobre o momento processual de oferecimento dos documentos, que é livre na fase dos articulados e condicionada nos períodos subsequentes, seja mediante a imposição de sanção processual, seja através da verificação da sua superveniência, pertinência e necessidade.
Ao passo que a segunda referida disposição legal, que traduz densificação do regime previsto no art. 423.º/2 e 3 do CPC, vem estabelecer exigências adicionais à junção dos documentos após os articulados, atinentes, agora, à sua à conexão com o objecto do processo.
Podemos dizer, assim, acompanhando a jurisprudência, que nos articulados “a apreciação da admissibilidade da junção de documentos aos autos, a fazer de acordo com os termos desse normativo, não implica qualquer juízo de valor quanto à relevância probatória dos documentos em causa, mas apenas a aferição da viabilidade legal da respetiva junção por reporte ao momento em que foi requerida” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/1/2023, relativo ao processo 2518/21.2T8VNG-A.P1, relatado por Miguel Baldaia de Morais e acessível na base de dados da DGSI em linha).
E que, após esse momento, o legislador trata a admissibilidade da prova documental tendo em vista “conciliar o interesse público do apuramento da verdade, ao qual convém a junção ainda que tardia do documento, com a disciplina ideal do processamento da acção, facilitada pelo debate imediato da prova” (cfr. Antunes Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., p. 530).
Não podendo ainda olvidar-se o contributo, quanto à apresentação tardia, dos princípios da simplificação, celeridade e economia processuais, por um lado e, por outro, das regras de boa fé processual das partes inerentes ao processo equitativo ou, dito de outro modo, a regra do jogo franco e leal (fair play) que exige se ofereça logo, se possível, a prova das alegações de facto.
Para o efeito, a lei estipula dois requisitos essenciais:
a) tempestividade, no sentido de exigir que a apresentação documental não tenha sido possível no momento próprio, ou resulte necessária em virtude de uma ocorrência posterior; e
b) utilidade, que reclama a verificação da pertinência e necessidade dos documentos e determinando a recusa da respectiva junção quando eles sejam impertinentes ou desnecessários.
Nesta fase, pois, “a admissão de um documento implica a verificação de dois requisitos cumulativos: pertinência e tempestividade” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/1/2023, acima citado).
Ora, dentre esses, no recurso em apreciação, importa apenas a questão da pertinência ou relevância dos documentos, visto que, embora eles tenham sido oferecidos depois do início da audiência de julgamento, a tempestividade da sua junção foi admitida na decisão recorrida.
Nela, com efeito, foi considerado justificado o motivo indicado pelo autor para a apresentação tardia, radicado, no essencial, na “necessidade de acesso a um sótão de uma das habitações da herança, onde foram encontrados em caixas com documentação antiga e diversa”, e que a contraparte também não colocou em crise no requerimento subsequente.
E por isso que, entre o mais, a primeira instância consentiu na junção dos extractos bancários, por parte do autor, em acréscimo à declaração de autorização de levantamento do sigilo bancário para cuja apresentação ele havia sido expressamente notificado por força do despacho anterior.
A aceitação da justificação, de resto, esteve em sintonia com a posição doutrinária segundo a qual, para que “haja impossibilidade de oferecimento oportuno do documento, será necessário que a parte ignorasse a existência do documento ou lhe não fosse viável a posse dele” (cfr. A. Varela e Outros, Ob. cit., p. 531).
Acresce, no mesmo sentido, que a decisão impugnada recusou a junção dos 5 documentos restantes, em causa nestes autos, com base na expressa afirmação de que “são documentos sem relevância para prova dos factos que neste processo estão em discussão, identificados no objecto do litígio e nos temas de provas”.
Desta forma, a tempestividade da junção não está questionada, nem pode agora ser apreciada, certo que foi outro o motivo da recusa colocada em crise pelo recorrente e que a parte contrária não promoveu, nos termos do art. 636.º do CPC, o alargamento do objecto do recurso.
Por isso, a questão que cumpre decidir reside, ainda mais simplesmente do que acima se enunciou, em escrutinar a relevância, para a apreciação da causa, dos documentos recusados pela decisão recorrida.
Para aferir sobre essa relevância, como se disse, o art. 443.º/1 do CPC manda atender aos conceitos de pertinência e necessidade, determinando o desentranhamento se o juiz não tiver previamente ordenado a junçãoe verificar que os documentos são impertinentes ou desnecessários.
Analisando tais conceitos, a jurisprudência sublinha que “os documentos serão impertinentes quando se destinarem a provar factos estranhos/alheios à matéria da causa”; e “são desnecessários quando se destinarem a provar factos sem qualquer interesse ou relevância para a decisão da causa” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/4/2021, tirado no processo 2141/18.9T8CTB-A.C1, da autoria de Isaías Pádua e disponível na citada base de dados em linha).
Já a doutrina afirma que o documento impertinente “diz respeito a factos estranhos à matéria da causa, a factos cuja prova seja irrelevante para a sorte da ação”; e “pertinente desde que se pretenda provar com o mesmo um facto relevante para a resolução do litígio, seja de um modo direto, por se tratar de um facto constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo, seja de um modo indireto, por se tratar de um facto que permite acionar ou impugnar presunções das quais se extraiam factos essenciais ou ainda por se tratar de um facto importante para apreciar a fiabilidade do outro meio de prova” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pp. 511-2).
Procurando sintetizar estes ensinamentos, e em nossa perspectiva, os documentos são pertinentes quando tiverem interesse para a demonstração de factos que integram o objecto da causa.
Ou, dito noutros termos, quando se referem a factos com “conexão com o objeto do processo e que assumem relevância para a justa composição do litígio, que passa pela ‘descoberta’ da verdade material, face às versões controvertidas” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/10/2023, referente ao processo nº1585/22.6T8GMR-A.P1, relatora Ana Luísa Loureio e acessível em linha em www.dgsi.pt).
Neste enquadramento, pois, a pertinência de um documento decorre de entre ele e os factos que constituem o objeto da instrução se estabelecer a relação funcional indicada no art. 423.º/1 do CPC: os documentos devem ser “destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa”.
Por outro lado, são necessários os documentos que se reportam a factos que, para além de relevantes para a apreciação de mérito, estejam carecidos de demonstração, ou seja, sobre os quais o tribunal tenha o dever de decidir se estão ou não provados na sentença.
Neste sentido, eles serão desnecessários quando “representem factos já provados (designadamente por confissão)” (cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º., 3.ª ed., p. 263) ou na medida em que se refiram a factos já considerados assentes.
Face a tal enquadramento, e volvendo ao caso dos autos, verifica-se que a admissão dos documentos nº4 e 5 aos autos foi fundamentada pelo autor, no requerimento de junção, com base na “existência de depósitos identificados na sua contestação que na verdade correspondem a movimentos bancários efetuados entre instituições bancarias distintas mas cuja titularidade das contas bancárias pertencia à mãe do demandante e demandada”.
Trata-se, segundo pensamos, de procurar fazer prova de factos com clara ligação ao objecto do processo, embora de natureza instrumental.
São elementos que o autor apresentou desde logo com o intuito de auxiliar a formar a convicção do julgador, caso se justifique, no sentido de que a afirmação da realização de pagamentos, por parte da ré, no âmbito de um suposto empréstimo, pelo menos em alguns casos, não tem correspondência com a verdade, por se tratarem de movimentos entre contas da inventariada.
Algo que, no plano processual, é perfeitamente lícito à parte realizar, ao abrigo do disposto no art. 346.º do Código Civil, nos termos do qual, à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.
Com efeito, estando assente, no nosso processo, com arrimo no acordo das partes e em prova documental autêntica, que a inventariada entregou, em 1997, um cheque de cerca de € 125.000,00 à demandada, sobre esta recai o ónus de demonstrar que a entrega resultou de um empréstimo, tal como o correspondente pagamento.
Traduzindo direito da contraparte, paralelamente, a produção de meios probatórios eventualmente susceptíveis de criar a dúvida fundada sobre ambas as referidas circunstâncias.
Em coerência, a eventual existência de movimentos financeiros entre contas que, afinal, na data da execução daqueles, podem ter pertencido à autora da sucessão, constitui matéria de facto passível de, fundadamente, se for o caso, infirmar quer a existência de alguns dos alegados pagamentos, quer mesmo, no limite, a própria versão global da existência de um empréstimo.
Para além disso, os referidos documentos versam factualidade que está controvertida, sendo mesmo essa controvérsia o motivo maior para que, após a elaboração do saneador, o processo tenha prosseguido para a fase da produção de prova em audiência de julgamento.
Razões pelas quais, se bem pensamos, deve afastar-se a verificação, in casu, da qualificação de “impertinentes” ou de “desnecessários”, nos termos do art. 443.º/1 do CPC, para os documentos nº4 e 5 contidos no requerimento de 24/9/2024.
E que, sendo eles, em consequência, relevantes para decisão da causa, deve ser determinada a sua junção aos autos, para serem considerados na sentença, em conjugação com as demais provas, nos termos do art. 607.º/4 do CPC e de acordo com a livre convicção do julgador sobre o conjunto probatório global que estiver à sua disposição.
Procedem, pois, nesta parte, as conclusões do recurso.
Relativamente à restante documentação apresentada por sua iniciativa, o autor fundamentou a sua pretensão com base na circunstância de, segundo afirmou no requerimento de 24/9/2024, ter constatado, “por confronto com outros documentos encontrados, a existência de mais depósitos efetuados por parte da demandada ao arrepio do alegado”.
E que, em sede de recurso, um pouco mais desenvolvidamente, explicou com suporte na ideia que os documentos em causa “aferem a existência de mais depósitos efetuados por parte da Ré na conta do Banco 1... nº... da de cujus, encontrando-se tal facto identificado no objeto do litígio e nos temas de prova nomeadamente na sua al. b)”, atestando “a regularidade de depósitos na conta da de cujus pela Ré sem qualquer correlação a hipotéticos pagamentos, contrariando inequivocamente a tese” da defesa.
A este propósito, preliminarmente, importa destacar que, segundo entendemos, é no requerimento de junção que a parte deve indicar, de forma compreensível, ainda que necessariamente concisa, os motivos susceptíveis de justificar a relevância dos documentos.
Na sequência, sem prejuízo do que possa resultar da observância do contraditório, é sobre a análise, conjugadamente, do teor e da forma dos documentos, com os referidos motivos indicados para fundamentar a junção, que o tribunal deve tomar a decisão sobre a pertinência (e a tempestividade) da iniciativa probatória da parte.
Ora, daqui decorre, como lógico resultado, que este Tribunal da Relação, a nosso ver, não deve tomar em consideração os fundamentos que, ex novo, tenham sido indicados para a pretensão nas alegações de recurso, sem correspondência com os constantes no requerimento de junção e sem debate em primeira instância, para decidir em definitivo sobre a juntada.
Justifica-se, neste ponto, por identidade de motivos, convocar a lição da jurisprudência sobre a inadmissibilidade de apreciação de questões novas em sede de recurso, por todos, no Acórdão do TRP de 10/1/2022, “na medida em que os recursos visam por via da modificação de decisão antes proferida, reapreciar a pretensão dos recorrentes por forma a validar o juízo de existência ou inexistência do direito reclamado, está vedado ao tribunal de recurso apreciar as questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo, nos termos do artigo 608º nº 2 do CPC, salvo se de conhecimento oficioso” (cfr. processo nº725/17.1T8VNG.P1, disponível em dgsi.pt).
Tal como ensina a doutrina, a propósito das provas, por não ser ajustada à fase do recurso “a apresentação ou produção de novos meios de prova, antes à reapreciação daqueles que tenham sido anteriormente apresentados e não poderá deixar de ser ponderado que o ónus de proposição dos meios de prova se deve materializar também através da sua apresentação em momentos processualmente ajustados, com previsão de efeitos preclusivos que não podem ser ultrapassados pela livre iniciativa da parte” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., pp. 337 e 344).
E daí que a inviabilidade de conhecimento de questões novas, em geral, também tenha aplicação, em nossa perspectiva, no caso particular das razões invocadas para a pretensão de junção de documentos, pois a adopção no nosso sistema de recursos de um “modelo de reponderação, que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame” e “a diversidade de graus de jurisdição determina que, em regra, os tribunais superiores apenas devam ser confrontados com questões que as partes discutiram nos momentos próprios” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Ob. cit., p. 141).
A decisão a proferir cinge-se, pois, à reapreciação da admissibilidade da junção dos documentos decidida pela primeira instância à luz das razões de que disponha para o efeito, oficiosamente ou apresentadas por quem teve a iniciativa probatória e por quem a ela se opôs.
Tal como, aliás, foi decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/4/2021, acima citado, no qual a decisão sobre a pertinência dos documentos foi tomada, como nela expressamente se consignou, “compulsando o teor dos referidos documentos e aquilo que a esse propósito foi alegado pelas AA. naquele seu requerimento inicial (referência ...) para justificar a sua apresentação”.
Com este fundamento, pois, podemos afirmar que os documentos são pertinentes quando, face ao seu teor e às razões expostas pelas partes a seu respeito, ou que resultem dos demais elementos do processo, em conjugação com regras lógicas e de experiência comum, tiverem interesse para a demonstração de factos relevantes para a acção ou para a defesa.
Neste contexto, analisados os documentos em questão, à luz dos motivos indicados no requerimento apresentado pelo autor a 24/9/2024, não se vislumbra que interesse ou conexão tenham com o objecto do processo, acima identificado, os documentos nº1, 2 e 3 ali constantes e relativos a outros depósitos efetuados por parte da demandada à inventariada e pretensamente sem correspondência com os pagamentos alegados na contestação.
Tal como não se compreende o motivo para que a eventual comprovação de pagamentos diversos dos afirmados pela defesa tivesse a virtualidade, desacompanhada de outras circunstâncias, de colocar minimamente em crise a globalidade ou parte da tese da demandada.
Com efeito, caso o autor tenha pretendido comprovar ou lançar a dúvida fundada de que a realização de transferências ou de pagamentos pela contraparte, a favor da autora da sucessão, seja totalmente alheia ao alegado empréstimo, teria para o efeito, segundo pensamos, previamente à junção dos documentos ou em simultâneo com eles, indicar algum motivo que, em alternativa, tivesse justificado tais operações.
De modo que, isoladamente considerados, e também conjugados com o teor do requerimento de junção, os documentos em causa não têm qualquer idoneidade para afastar a outorga do alegado empréstimo, ou colocar em crise os afirmados pagamentos, nem para demonstrar qualquer facto relevante integrante dos fundamentos da acção e da defesa.
E mesmo que, contra o que acima se expôs, fosse de considerar para esse efeito a alegação do recurso, a verdade é que todas as objecções apontadas à relevância dos documentos em causa permaneceriam com plena validade, visto que, mesmo à luz daquela alegação, não se vislumbra conexão dos documentos com o objecto do processo, nem que eles tenham idoneidade para infirmar a tese da defesa.
Razões pelas quais, nesta parte, não merece censura a decisão recorrida, com a inerente improcedência das alegações de sentido contrário que a esse respeito o recorrente formulou.
Quanto aos efeitos que a admissão dos documentos pode implicar no julgamento, justifica-se que sejam fixados em primeira instância, após audição das partes, visto que foi já observado o contraditório a respeito do teor e alcance daqueles e está igualmente concluída a produção da restante prova, sendo certo, em acréscimo, que esses eventuais efeitos não foram incluídos na pretensão recursiva do autor.
Razões pelas quais, a nosso ver, estará o tribunal recorrido em melhor posição, em concurso com o que resultar da observância do contraditório, para apreciar a necessidade de eventual repetição de alguma diligência porventura útil para a formação do quadro probatório único e completo sobre o qual irá incidir a sua convicção.
Tanto mais que, atenta a fase processual em que os autos se encontram e a natureza interlocutória da decisão recorrida, naturalmente sem inclusão de impugnação da matéria de facto, não está este tribunal de recurso em condições de determinar quais as eventuais diligências em que tal repetição se poderia justificar, para além de desconhecer a posição das partes a esse respeito, nomeadamente, de algum interesse que porventura tenham no confronto de testemunhas com os documentos agora admitidos e quais.
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DECISÃO Nos termos expostos, julgando-se parcialmente procedente a apelação, revoga-se a decisão recorrida, na parte que não admitiu a junção dos documentos nº4 e 5 a que se reporta o requerimento oferecido pelo autor a 24/9/2024, a qual se substitui pela admissão dessa prova documental, competindo à primeira instância decidir, após audição das partes, sobre anecessidade de eventual repetição de alguma diligência probatória, em audiência de julgamento, em consequência desta decisão. Na parte restante, julga-se improcedente a apelação. Custas do recurso por autor e ré, em partes iguais, atento o parcial decaimento (art. 527.º do CPC).
Notifique.
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SUMÁRIO
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(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)
Porto, 24/2/2025
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Ana Olívia Loureiro
Teresa Fonseca