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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MAUS TRATOS
CONDUTA ÚNICA
Sumário
I. O crime de violência doméstica protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente a integridade física, a saúde física, psíquica e psicológica, a dignidade do ser humano. II. Maus tratos reconduzem-se a comportamentos, por acção ou omissão, que importem a sujeição da vítima a violência física ou psíquica, a abusos de qualquer natureza, incluindo psicológica, de modo a afectar a sua dignidade enquanto ser humano, colocando em risco ou atingindo de modo efectivo a sua saúde. III. A humilhação reiterada assume especial significância no seio de uma relação de coabitação e conjugalidade, ainda que as condutas, se isoladamente consideradas ou deslocadas dessa relação, possam ser consideradas de pouca gravidade. IV. Perante a factualidade em concreto provada e na ausência de demonstração da concretização temporal e do número de vezes em que as condutas tiveram lugar, a par do desconhecimento do seu circunstancialismo concreto, não é possível concluir que, durante o relacionamento, a ofendida tenha sido sujeita a insultos vexatórios, a um estado de sujeição ao outro, de modo a afectar a sua dignidade enquanto ser humano, com a relevância e significância necessárias ao preenchimento do elemento objectivo típico de maus tratos psíquicos. V. Se é verdade que um único acto isolado poderá integrar uma situação de maus tratos físicos ou psíquicos, para que assim seja e para que esse acto constitua um plus relativamente àqueles que integram a multiplicidade de tipos de crime que poderão integrar a violência doméstica (ofensa à integridade física, ameaça, injúria, coacção, difamação, e outros), terá esse acto de revestir uma gravidade acrescida ao nível da ilicitude, quer pela forma como é executado, quer pelas suas consequências, de modo a justificar a censurabilidade acrescida inerente ao tipo legal em análise, evidenciado na moldura penal que lhe é abstractamente aplicável. VI. A conduta em concreto perpetrada não fundamenta a conclusão de que o arguido tratou a ofendida de forma desprimorosa, que a inferiorizou, ou que a humilhou de forma continuada e persistente, de modo a ter-se como verificado o preenchimento de uma situação objectiva de maus tratos psíquicos para efeitos do tipo legal em causa. VII. Os factos concretamente provados, não consentem a afirmação de que as condutas do arguido julgadas provadas ofenderam integridade física da ofendida, nem que atingiram a sua dignidade enquanto ser humano, designadamente, que esta se tenha sentido desprezada e rebaixada na sua pessoa, que se tenha sentido receosa, nem que a sua tranquilidade familiar haja sido abalada e beliscada por essas condutas. Não é possível afirmar perante a factualidade provada um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima. (sumário da responsabilidade da relatora).
Texto Integral
Acordam em conferência os Juízes da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação
I. RELATÓRIO
Inconformado com a sentença proferida em 11-09-2024, depositada nessa mesma data, nestes autos de processo comum com intervenção de tribunal singular com o n.º 1368/20.8PASNT, do Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 3, em que é arguido
AA, nascido a ... de ... de 1983, natural de ..., filho de BB e CC, casado, operário da construção civil, com residência na Rua ... 438, Corpo C2, l.º C, em ...,
veio o Ministério Público interpor recurso de tal decisão, na qual, após da comunicação da alteração da qualificação jurídica dos factos (cfr. acta com a ref.ª citius 150510434), foi decidido o seguinte, nos termos que constam do respectivo dispositivo (transcrição):
a) Absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e com a pena acessória de proibição de contacto com a vítima prevista nos números 4 e 5 do mesmo dispositivo;
b) Homologar a desistência de queixa apresentada pela ofendida e declarar extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de perseguição e um de injúria previstos e punidos, respetivamente, pelos artigos 154.º-A, nºs 1 e 3 e 181.º, do Código Penal.
(…)
(fim de transcrição)
*
As razões de discordância do Ministério Público encontram-se expressas nas conclusões extraídas da motivação de recurso, que em seguida se transcrevem: 1- O tribunal considerou como fixada a seguinte matéria de facto relevante para a condenação do arguido:
1. O arguido e a vítima DD casaram entre si a 27 de novembro de 2013.
2. O casal estabeleceu residência familiar na ....
3. O arguido e DD tiveram dois filhos, que viviam com o casal: o EE, nascido a ...-...-2014; e FF, nascido a ...-...-2019.
4. Durante a sua relação com a ofendida o arguido foi ciumento e controlador,
5. Em dias não concretamente apurados, o arguido disse à ofendida: “não prestas!”; “és má mãe!”; “não vales nada!”.
6. O que aconteceu, por vezes, na frente dos filhos.
7. Durante uma discussão, o arguido agarrou no braço de DD com força.
8. No dia 20 de dezembro de 2020, pelas 20h00, o arguido dirigiu-se ao local de trabalho da vítima com os filhos de ambos e caminharam apeados para casa.
9. Já na habitação, o arguido chamou a ofendida ao terraço e retirou-lhe o telemóvel.
10. A ofendida foi atrás dele para recuperar o telemóvel e, de forma não apurada, magoou-se, tendo sentido dores e ficado com duas equimoses na perna esquerda e uma equimose na perna direita.
11. Com a prática das condutas descritas, o arguido quis e conseguiu que a vítima se sentisse controlada e humilhada.
12. O arguido sabia que por ser casado com a vítima tinha para com ela um especial dever de a tratar com dignidade, ainda assim quis atuar da forma descrita, afetando-a na sua saúde psíquica e na sua liberdade, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu.
13. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento. 2- No entanto considerou que durante a sua relação com a vítima o arguido passou a importuná-la, controlando-a nos seus movimentos e humilhando-a. No entanto, tal circunstancialismo afasta-se, na perspetiva do Tribunal, dos moldes caracterizadores da violência doméstica. 3- Determinou a absolvição pela prática de um crime previsto e punido nos termos do artigo 152º nº 1 a), nº 2 a), 4 e 5 do Código Penal, e a homologação da desistência de queixa apresentada pela ofendida pela prática de um crime de perseguição e um de injúrias previsto e punido nos termos do artigo 154 A nº 1 e 3 e 181º do Código Penal. 4- Dispõe o artigo 152.º do Código Penal, sob a epígrafe “violência doméstica” que: “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psicológicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: (a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; 5- Perante a matéria factual provada vertida não restam como dúvidas que do ponto de vista objectivo e subjectivo as condutas do arguido constituem a perpetração de actos de violência que afectaram a saúde psíquica e emocional da vitima, dirigir-se a uma mulher com quem partilha a sua vida , mãe dos seus filhos, por diversas vezes em frente dos filhos dizer-lhe que é uma má mãe consubstanciam actos de violência psicológica, vexatórios afectando a sua dignidade enquanto pessoa, e mãe. 6- Por sua vez retirar o telemóvel da mulher meio de comunicação sem fundamento constitui um acto de violência gratuito. 7- Ser controlador e ciumento numa relação amorosa entre duas pessoas constitui um acto de violência psicológica. 8- Numa discussão agarrar o braço com força constitui um acto de violência física. 9- Concluímos, assim, que as descritas condutas do arguido preenchem, objetiva e subjetivamente, o crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, nº. 1, al. a) nº 2 a) e nº 4, 5 do Código Penal, não se verificando quaisquer causas de exclusão da ilicitude da culpa ou da punibilidade do arguido. 10 - Pelo exposto a douta sentença deve ser revogada, e substituída por outra que determine a condenação do arguido pela prática de um crime previsto e punido nos termos do artigo 152º nº 1 a), nº 2 a) e nº 4, 5 do Código Penal. No entanto Vossas Excelências farão como for de lei e justiça.
(fim de transcrição)
*
O arguido respondeu ao recurso interposto, apresentando as seguintes conclusões (transcrição): 1 - O presente recurso apresentado pelo M.P. está centrado na impugnação da decisão de Direito que a meritíssima juíza a quo tomou relativamente aos factos provados; 2 - Salvo o devido respeito, entendemos que tal decisão não merece qualquer censura; 3 - “Os factos que resultaram provados não são suficientes para enquadrar a conduta do arguido no crime de violência doméstica”; 4 - Para a sua decisão o tribunal a quo socorre-se, além do mais, num acórdão do TRE que entende que … “a intervenção penal deve manter, também aqui, a sua função de protecção de última ratio…” 5 - “Condição para a intervenção penal é sempre a defesa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal e que não a obtenha de outra forma menos lesiva), não a perseguição de comportamentos que se afastem de determinados padrões socialmente dominantes”; 6 - “as situações de violência familiar em causa têm que ser concretamente reveladoras de um abuso de poder na relação afectiva”; 7 - Também André Lemos Leite, 2010, pág. 45, sustenta que “os maus tratos físicos e psíquicos devem ser interpretados como lesões graves, pesadas da incolumidade corporal e psíquica do ofendido”; 8 - “O comportamento de maus tratos tem que comprometer gravemente o desenvolvimento da personalidade da pessoa atingida” (C.P. Anotado, M.M Garcia e L.M. Castelo Rio, pág. 649); 9 - “Faltando estes aspectos conformadores de uma maior ilicitude, os respectivos factos serão elementos de ofensa à integridade física simples, ameaça, crime contra a hora, ofensa sexual ou privação da liberdade – e não mais do que isso” (idem); 10 - “Os maus tratos traduzem-se em actos que revelam sentimentos de crueldade, vingança, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vítima” (Ac. do TRG de 18-03-2013 (78/12.4GDVCT.G1); 11 - Nada disto se passou do caso em análise; 12 - Razão pela qual o tribunal a quo procedeu a uma alteração da qualificação jurídica de violência doméstica para um crime de perseguição e um crime de injúrias. 13 - Como a ofendida manifestou a sua intenção de desistir do procedimento criminal, o que foi aceite pelo arguido, e como se trata de crimes que dependem de queixa outra não podia ser a decisão que não a de absolvição; 14 - Assim, concluímos dizendo que a decisão recorrida não merece qualquer censura, antes pelo contrário, e, em consequência, deve o presente recurso interposto pelo M.P. ser considerado improcedente e confirmada a decisão do tribunal a quo. Mas V. Exªs farão, como sempre, JUSTIÇA.
(fim de transcrição)
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Neste Tribunal da Relação, pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta foi emitido Parecer nos termos seguintes (transcrição parcial):
(…) Nesta Instância, o Ministério Público acompanha a argumentação aduzida nas motivações do recurso, aditando o seguinte:
A violência doméstica é uma grave violação dos direitos humanos e uma forma de discriminação com impacto não apenas nas vítimas, mas na sociedade no seu conjunto.
O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos bens jurídicos tutelados pelos diversos ilícitos típicos que o podem preencher. O legislador quis tutelar mais do que a saúde física ou psíquica da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa a esta.
O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, de namoro, parental ou de dependência entre o agente e a vítima.
No seu tipo objetivo, incluem-se as condutas de violência física, psicológica, verbal, sexual e patrimonial que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra norma.
O crime de violência doméstica configura-se, assim, complexo, porquanto abarca uma multiplicidade de situações de facto, quer quanto ao tipo de comportamento (maus tratos físicos e/ou psíquicos), quer quanto aos específicos agentes que o podem cometer e aos específicos sujeitos que podem dele ser vítimas, quer, por último, no que concerne às consequências jurídico-penais (penas principais e penas acessórias).
O elenco de maus-tratos previsto no preceito incriminador é claramente exemplificativo (crime de execução não vinculada). Tendo em conta a diversidade de condutas que estão previstas no típico crime de violência doméstica, podemos estar em presença, de forma isolada ou simultânea, de crime de resultado, de mera atividade, de dano e também de perigo.
Os maus-tratos não têm de ser reiterados, podendo tratar-se de um ato isolado.
A supressão da distinção entre maus tratos reiterados e intensos, dependendo de todo o circunstancialismo do caso concreto, permite sustentar que um único ato ofensivo, sem reiteração, pode e deve ser considerado «Maus Tratos», preenchendo o tipo objetivo do artigo 152.º, do Código Penal, desde que o desvalor, da ação e do resultado, seja apto e suficiente para molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral.
Tem sido entendido pela jurisprudência que o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é complexo ou multifacetado, podendo nele ser integrado uma série de comportamentos que, isoladamente, também são alvo de tutela penal, como sejam as ofensas à integridade física, difamação ou injúrias, simples ou qualificadas, ameaça simples ou agravada, coação simples, etc.
Porém, o crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, uma vez que o legislador quis tutelar algo mais do que a saúde da vítima, ainda que de forma secundária ou reflexa, devendo entender-se que o bem jurídico a proteger terá de estar relacionado com o núcleo dos vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico.
O bem jurídico a proteger está também intimamente relacionado com o núcleo dos vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico, e ainda em todas as relações de confiança tuteladas pela norma incriminadora.
O bem jurídico a proteger terá de conectar-se com o núcleo de vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico. Dito de outro modo, só serão subsumíveis ao artigo 152º condutas de pouca gravidade, quando as mesmas comprometerem a pacífica convivência familiar ou doméstica; então, nesta linha de pensamento, o tipo penal em causa é assim constituído, a título principal, pela saúde da vítima e, ainda, de forma secundária ou reflexa, pela pacífica convivência familiar ou doméstica.
Daí que, uma conduta materialmente não grave perpetrada no âmbito familiar e doméstico, como sejam uma simples bofetada ou soco, ou injúrias/insultos e críticas, no caso, dirigidas pelo agente no domicílio comum à companheira ou à filha menor desta, encerra uma danosidade social distinta da ofensa praticada em contexto não-doméstico, pois semeia o medo, a desconfiança, a insegurança sentimentos que são contrários àqueles que são costumeiros no seio familiar, primeiro e último reduto de proteção do indivíduo.
Concorrem para esta conceção do bem jurídico (pluriofensivo) protegido, a natureza pública do crime de violência doméstica, o agravamento da incriminação quando o crime é praticado no domicílio comum, a consagração das penas acessórias de proibição de contacto com a vítima, o afastamento da residência desta e a frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, o que demonstra que o legislador na redação da hipótese e da estatuição desta norma, vislumbra uma perspetiva de futuro que vai muito para além da expetativa de proteção individual, da vítima em concreto, para assumir um escopo protetor da própria família, ou da comunidade doméstica, enquanto tal, desde que a conduta típica em concreto, haja colocado em crise a pacífica convivência familiar, para-familiar ou doméstica.
Esta interpretação será a tipicamente mais adequada, face aos elementos interpretativos do artigo 9.º do Código Civil, do tipo de crime previsto no artigo 152.º do Código Penal tendo em conta os princípios da legalidade, tipicidade e máxima determinação do tipo, vigentes em Direito Penal.
Uma conduta isolada, que até nem assuma especial intensidade do ponto de vista material da saúde da vítima, pode comprometer a pacífica convivência familiar ou doméstica, pode corromper toda a relação de confiança preexistente e, logo, ser enquadrável no artigo 152º.
Por essa razão, uma conduta materialmente não grave, como por exemplo uma simples bofetada, poderá afrontar o bem jurídico protegido, porque poderá abalar as bases de confiança em que se funda aquela relação familiar ou a convivência doméstica, mas também porque uma conduta materialmente não grave perpetrada no âmbito familiar e doméstico encerra uma danosidade social distinta da ofensa praticada em contexto não-doméstico , pois semeia o medo, a desconfiança, a insegurança sentimentos que são contrários àqueles que são costumeiros no seio familiar, primeiro e último reduto de proteção do indivíduo.
Uma ofensa física ou psíquica, dita juridicamente simples (artigo 143.º, do Código Penal), em face do contexto em que foi praticada, pode pôr em causa a pacífica convivência familiar ou de qualquer um dos vínculos tutelados pela norma, abalar irremediavelmente a confiança da vítima no seu agressor. E essa específica dimensão não encontra proteção em outro tipo legal, à exceção do artigo 152.º do Código Penal.
Visa-se, assim e ainda, com o art.º 152.º do Código Penal uma tutela reforçada da pacífica convivência familiar ou doméstica, face a condutas que, sem aparente gravidade ou intensidade, isoladas ou não reiteradas, são suscetíveis de corromper toda a relação desconfiança pré-existente.
IV. Assim,
Aderindo, no mais, aos fundamentos da Exmª Magistrada do Ministério Público, junto da 1ª instância, bem como aos elementos em que os mesmos se suportam, teremos de concordar
com o MP, junto da 1ª instância, que entende que os factos dados como provados e praticados pelo arguido preenchem, objetiva e subjetivamente, o crime de violência doméstica. p. e p. pelo artigo 152º, nº. 1, al. a) nº 2 a), 4, 5 do Código Penal, não se verificando quaisquer causas de exclusão da ilicitude da culpa ou da punibilidade do arguido.
Pelo que deve a Sentença impugnada ser revogada e substituída por outra determine a condenação do arguido pela prática de um crime p. e p. nos termos do artigo 152º nº 1 a), nº 2 a) e nº4, 5 do Código Penal.
Mas a final, não obstante, melhor se dirá.
(fim de transcrição)
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Daí o entendimento pacífico de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo que apenas as questões aí resumidas deverão ser apreciadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios previstos no n.º 2 do art.º 410º do mesmo Código.
Em conformidade, atentas as conclusões formuladas pelo Recorrente, a única questão a decidir é a seguinte:
- da subsunção dos factos provados ao tipo legal de crime de violência doméstica.
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2. DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1. Na sentença recorrida, foram julgados provados e não provados os seguintes factos (transcrição):
1. O arguido e a vítima DD casaram entre si a 27 de novembro de 2013.
2. O casal estabeleceu residência familiar na Rua ...º 37, 3.º Esq, em ....
3. O arguido e DD tiveram dois filhos, que viviam com o casal: EE, nascido a ...-...-2014; e FF, nascido a ...-...-2019.
4. A determinado momento da sua relação com a ofendida o arguido começou a ser ciumento e controlador.
5. Em dias não concretamente apurados, o arguido disse à ofendida: “não prestas!”; “és má mãe!”; “não vales nada!”.
6. O que aconteceu, por vezes, na frente dos filhos.
7. Durante uma discussão, o arguido agarrou no braço de DD com força.
8. No dia 20 de dezembro de 2020, pelas 20h00, o arguido dirigiu-se ao local de trabalho da vítima com os filhos de ambos e caminharam apeados para casa.
9. Já na habitação, o arguido chamou a ofendida ao terraço e retirou-lhe o telemóvel.
10. A ofendida foi atrás dele para recuperar o telemóvel e, de forma não apurada, magoou-se, tendo sentido dores e ficado com duas equimoses na perna esquerda e uma equimose na perna direita.
11. Com a prática das condutas descritas, o arguido quis e conseguiu que a vítima se sentisse controlada e humilhada.
12. O arguido sabia que por ser casado com a vítima tinha para com ela um especial dever de a tratar com dignidade, ainda assim quis atuar da forma descrita, afetando-a na sua saúde psíquica e na sua liberdade, com desprezo pela sua dignidade pessoal, o que conseguiu.
13. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
14. O arguido vive sozinho em casa arrendada por € 600, 00 mensais.
15. Trabalha na construção civil e retira, por mês, cerca de € 1100, 00 dessa atividade.
16. Convive com os filhos quinzenalmente, ao fim-de-semana.
17. Contribui para o sustento daqueles com uma pensão de alimentos de € 200,00 por mês.
18. Tem o 4.º ano de escolaridade.
19. E não regista antecedentes criminais.
Factos não provados:
A. Desde o início do relacionamento que, ao longo do dia, o arguido telefonava para a vítima diversas vezes e questionava-a com quem ela estava acabando por lhe dizer que estava a mentir, que ela estava com algum homem.
B. O arguido assumiu os comportamentos acima descritos em 4, 5 e 6 desde o início do seu relacionamento com a vítima.
C. O arguido não permitia que a ofendida se relacionasse com os seus amigos, sobretudo se fossem homens.
D. Quando lhe telefonava dizia-lhe que estava a mentir e com algum homem.
E. O arguido disse na frente dos filhos para verem “a merda de mãe que tinham!”.
F. No último trimestre de 2018, em data não concretamente apurada, na residência familiar, o arguido iniciou uma discussão com a ofendida, quando ela tinha o filho mais velho ao colo, à data com 4 anos de idade.
G. E, na sequência dessa discussão, disse-lhe “tu não me conheces!”.
H. À data, DD estava grávida do segundo filho e o arguido tinha conhecimento disso.
I. No dia 20 de dezembro de 2020, pelas 20h00, a ofendida estava a sair acompanhada de um colega.
J. Nessa data, o arguido, na frente dos menores, empurrou-a fazendo-a cair no chão.
K. Nessa noite, o arguido saiu de casa, mas antes de sair disse “eu saio, mas vocês vão arrepender-se do que me fizeram!”.
L. Com a prática das condutas descritas, o arguido quis e conseguiu que a vítima se sentisse num constante estado de ansiedade, receando estar a ser controlada e humilhada, bem como receando pelas atitudes que o arguido pudesse tomar em relação a si, nomeadamente que a ofendesse na sua integridade física.
M. O arguido quis atingir a ofendida na sua saúde física.
(fim de transcrição).
*
2.2. Na sentença recorrida, a decisão sobre a matéria de facto foi motivada nos seguintes termos (transcrição):
No apuramento da factualidade provada, o Tribunal formou a sua convicção com base na análise conjunta e crítica da prova produzida em audiência, a qual foi apreciada livremente (artigo 127.º, do CPP) e de acordo com critérios de racionalidade e das regras da experiência comum.
A título introdutório, cumpre referir que o arguido negou a prática dos factos descritos na acusação.
Ouvida, por sua vez, a ofendida, esta descreveu os factos que vieram a ser dados como provados e que enquadrou, de forma considerada espontânea, numa atuação controladora, ciumenta e de desconfiança (patente, aliás, no Print de mensagens telefónicas de fls. 57-59 dos autos) que o arguido foi assumindo para consigo de forma crescente e que levou ao desgaste da relação de ambos e, após, à sua separação. Sendo certo que, ao mesmo tempo que descrevia a factualidade dada como assente, a vítima foi expondo outras queixas relativamente ao arguido, sem qualquer relevância criminal, como seja o facto de o mesmo pretender ter sempre tudo arrumado e de discutir por “coisas fúteis” - o que desde logo criou reservas no Tribunal, quanto ao facto de estarmos perante uma situação de efetiva violência doméstica. Os factos não provados assim resultaram porquanto não foram referidos pela ofendida, sendo certo que, quanto ao episódio ocorrido em dezembro de 2020, relativamente ao qual existe documentação clínica (fls. 56) que atesta a produção de lesões no seu corpo (hematomas), DD esclareceu que no calor da discussão que manteve nessa data com o arguido e do seu envolvimento físico com o mesmo, para recuperar o telemóvel que aquele lhe havia retirado para controlar as suas mensagens, não chegou a compreender como se magoou, não podendo, assim, afirmar, ter sido então vítima de uma agressão.
Os assentos de nascimento de fls. 94-95, 96 e 97 permitiram extrair os factos referentes ao casamento e aos filhos do casal.
Os elementos psicológicos e volitivos imputáveis ao arguido, aquando da prática dos factos, assim se fixaram a partir dos elementos probatórios analisados supra, que, à luz da lógica e das regras da experiência comum, revelaram que outro não podia ser o seu conhecimento e a sua intenção senão não aqueles dados como assentes e enquadráveis no dolo, ainda que em crimes diversos pelos quais vinha acusado.
Os factos relativos às condições pessoais e aos antecedentes criminais do arguido resultaram dos esclarecimentos por este prestados em audiência do certificado de registo criminal junto aos autos.
(fim de transcrição)
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2.3. Na sentença recorrida, o enquadramento jurídico-penal dos factos encontra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição):
(…) Dispõe o artigo 152.º do Código Penal, sob a epígrafe “violência doméstica” que:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psicológicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
(a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
(c) A progenitor de descendente comum em 1º grau;
(d) A pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite.
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 – No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento pode ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.”.
Constituem elementos objetivos deste tipo legal de crime, quando estejam em causa maus tratos físicos, as ações que, por qualquer modo, provoquem uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem, ou que de algum modo perturbem, modifiquem ou alterem desfavoravelmente o estado de equilíbrio psicossomático da pessoa. Para além disso, a ação típica poderá ainda traduzir uma ofensa ao equilíbrio psíquico da vítima (ou seja, atos que afetem a integridade moral ou o sentimento de dignidade).
Já o elemento subjetivo deste tipo-de-ilícito restringe-se ao conhecimento dos elementos objetivos típicos e à vontade de agir por forma a preenchê-los, isto é, dolo genérico – artigos 13º e 14º do Código Penal.
Além disso, na medida em que se trata de um crime específico, pressupõe um agente que se encontra numa determinada relação para com o sujeito passivo daqueles comportamentos.
No círculo das vítimas de violência doméstica surge, na al. a), n.º 1 do art.º 152.º do Código Penal, o cônjuge.
Ora, desde logo resultou provada a existência prévia de uma relação entre arguido e ofendida, com as características supra descritas.
Por outro lado, também se provou que no decurso dessa relação, o arguido assumiu comportamentos desconformes para com a vítima – fazendo-lhe acusações insultuosas e assumindo para com as mesmas atitudes persecutórias.
Todavia, e por isso se comunicou previamente tal alteração da qualificação jurídica, é nosso entendimento que os factos que resultaram provados não são suficientes para enquadrar a conduta do arguido no crime de violência doméstica.
Vejamos.
Olhando à sequência dos factos provados vemos que durante a sua relação com a vítima o arguido passou a importuná-la, controlando-a nos seus movimentos e humilhando-a.
No entanto, tal circunstancialismo afasta-se, na perspetiva deste Tribunal, dos moldes caracterizadores da violência doméstica.
A este respeito, e da destrinça que se impõe fazer, aquando da subsunção jurídico-penal de factos que, à partida, seriam integráveis tanto na violência doméstica como em outros ilícitos criminais, olhemos ao Acórdão do Tribunal da Relação Évora de 30.06.2015:
“a fronteira entre as condutas que têm dignidade punitiva e merecem punição à luz do tipo da violência doméstica e aquelas que não devem ser aqui relevantes para o direito penal, nem sempre é fácil de traçar, na prática.
(…) Porém, a intervenção penal deve manter, também aqui, a sua função de proteção de ultima ratio, resistindo-se a prosseguir, através dela, a modelagens de comportamentos (aqui, no âmbito de relações de conjugalidade), que apenas sejam merecedores de censura ético-moral.
Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efetiva de um bem jurídico (digno de proteção penal e que não a obtenha de outra forma menos lesiva), não a perseguição de comportamentos que se afastem de determinados padrões de comportamento socialmente dominantes.
O artigo 152.º do CP protege determinado tipo de vítima, de determinado tipo de agressor, com quem aquela se encontre em determinada relação (atual ou passada), mas as situações de violência familiar em causa têm que ser concretamente reveladoras de um abuso de poder na relação afetiva”.
Pois bem, no caso em apreço, olhando à imagem global do facto, entende-se não ter ficado provado um verdadeiro abuso de poder do arguido sobre a pessoa da ofendida, mas sim uma ação controladora e ofensiva sobre a mesma e que culminou na separação de ambos, mas que não chega a enquadrar-se no crime de violência doméstica.
Sem prejuízo, as expressões proferidas pelo arguido e a atuação de controle e importunação que exerceu sobre a vítima merecem censura penal, mas sim num crime de perseguição p. e p. pelo artigo 154.º-A, nºs 1 e 3, do Código Penal e num crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º, do mesmo diploma.
Dispõe o primeiro preceito incriminador que: “1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal. […] 3 - Nos casos previstos no n.º 1, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição.”.
Trata-se de um crime relativamente recente, aditado pela Lei n.º 83/2015, de 5 de Agosto, com início de vigência em 05.09.2015.
Na exposição de motivos do projeto de lei n.º 647/XII pode ler-se que: “A perseguição – ou stalking – é um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo. Estes comportamentos podem consistir em ações rotineiras e aparentemente inofensivas (como oferecer presentes, telefonar insistentemente) ou em ações inequivocamente intimidatórias (por exemplo, perseguição, mensagens ameaçadoras).
Pela sua persistência e contexto de ocorrência, este padrão de conduta pode escalar em frequência e severidade o que, muitas vezes, afeta o bem-estar das vítimas, que são sobretudo mulheres e jovens. A perseguição consiste na vitimização de alguém que é alvo, por parte de outrem (o assediante), de um interesse e atenção continuados e indesejados (vigilância, perseguição), os quais são suscetíveis de gerar ansiedade e medo na pessoa alvo”.
A norma em causa tutela a paz jurídica da vítima, a sua tranquilidade, a sua ausência de medo e inquietação.
Nas palavras de Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, “Trata-se de um crime de perigo. A conduta de perseguição ou assédio, deve revestir carácter reiterado repetido, portanto, deve ser direta ou indiretamente adequado, isto é idóneo, capaz e provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da pessoa perseguida ou vítima de assédio. Perseguir significa ir no encalço de seguir ou procurar (alguém) com uma insistência que incomoda e/ou assusta; procurar prejudicar sempre que possível; é o mesmo que importunar, buscando afincadamente estabelecer contacto. Trata-se de um assédio, ou seja, “uma perseguição insistente com propostas”, “um conjunto de operações que visam a conquista de uma posição inimiga”, um cerco, marcado pelo abuso, pela insistência impertinente. Pode o perseguidor rondar o espaço vivencial da vítima, aparecendo inesperadamente a cada passo, pode usar os mais variados modos de comunicação (SMS, cartas, encomendas, e-mail, telefone), pode servir-se de terceiros, que agem inocentemente, pode servir-se das redes sociais e desvendar “segredos”; tanto pode enviar presentes, como uma ambulância ou um carro funerário…”
O crime pode ser cometido por qualquer pessoa imputável e por qualquer meio, desde que suscetível de desencadear na vítima de perseguição ou assédio, medo, inquietação, prejuízo da sua liberdade de determinação.
Assim, o crime tem como elementos objetivos: i) a ação do agente, consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio, direto ou indireto; ii) a adequação da ação a provocar naquela medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação; iii) e a reiteração da ação.
O tipo subjetivo pressupõe por parte do agente uma conduta dolosa, em qualquer das modalidades previstas no artigo14.º, do Código Penal.
Quanto à injúria, prescreve o artigo 181º, n.º 1, do Código Penal que “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”.
O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra e consideração da pessoa, preenchendo-se o tipo objetivo quando o agente imputa diretamente a outrem (assistente) factos ou juízos desonrosos, lesivos da sua consideração e o elemento subjetivo, através do dolo, em qualquer das suas modalidades (artigo 14º do Código Penal).
Olhando à factualidade provada, vemos que o comportamento controlador exercido pelo arguido contra a vítima foi de molde a causar-lhe inquietação, assim como a imputação feita de factos desonrosos (má mãe, não prestas), causadora de ofensa da honra e dignidade.
Tudo de forma consciente e intencional.
Deste modo, entende-se que, com a sua conduta, o arguido cometeu tais ilícitos criminais.
No entanto, tendo sido manifestada pela ofendida em audiência a sua intenção de desistir do procedimento criminal, o que foi aceite pelo arguido, revestindo aqueles crimes, respetivamente, natureza semi-pública e particular (cfr. artigos 154.º - A, n.º 5 e 188.º, do Código Penal), importa proceder à homologação da desistência apresentada, declarando extinto o procedimento criminal aqui instaurado contra o arguido.
(fim de transcrição)
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Importa ainda considerar que em 11-07-2024, por esta Relação de Lisboa foi proferido acórdão, no qual foi decidido o seguinte: (…) declarar nula a sentença recorrida, devendo ser proferida nova sentença pelo mesmo tribunal, que supra a apontada omissão de pronúncia quanto à matéria de facto relevante para a decisão, se necessário com reabertura da audiência e produção de prova.
Na sequência do assim decidido, foi proferida a sentença ora recorrida.
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III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO Da subsunção dos factos ao tipo legal de crime de violência doméstica
Dispõe o art.º 152º do Código Penal, para o que aqui releva, que: Violência doméstica 1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; b) (…); é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. (…)
O crime de violência doméstica protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente a integridade física, a saúde física, psíquica e psicológica, a dignidade do ser humano.
No entanto, como decorre dos elementos objectivos do tipo legal descritos naquele normativo, a distinção entre o crime de violência doméstica e outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça, reside no conceito de maus tratos físicos ou psíquicos.
Maus tratos reconduzem-se a comportamentos, por acção ou omissão, que importem a sujeição da vítima a violência física ou psíquica, a abusos de qualquer natureza, incluindo psicológica, de modo a afectar a sua dignidade enquanto ser humano, colocando em risco ou atingindo de modo efectivo a sua saúde. Este tipo legal previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação (in Acórdão da Relação de Guimarães de 2-11-2015, proferido no processo n.º 77/14.1TAAVV.G1 [Relatora: Manuela Paupério], disponível em www.dgsi.pt, assim como os demais infra citados).
Por esse motivo, como explanado no Ac. da Relação de Évora de 11-07-2019, proferido no processo n.º 627/17.1GDSTB.E1: não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, mas sim, e apenas, que os actos atinentes, analisados à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetrados, se consubstanciem em maus tratos, isto é, quando revelem uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente. (destacado nosso)
No Ac. da Relação de Coimbra de 18-05-2022, proferido no processo n.º 924/19.1PBLRA.C1 decidiu-se que: Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão o tipo legal de crime de violência doméstica se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem um quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano. (destacado nosso)
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-03-2021, proferido no Processo n.º 75/20.6JAFAR.S1 (Relatora: Margarida Blasco) explicita-se o seguinte: a ratio do preceito deriva da especial relação entre o agente e o ofendido e não está, pois somente na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional, mas sim e também na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. (...) Inclui, além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (coagindo a vítima a praticar actos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de acção, de movimentação, etc.), que, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima. (destacado nosso)
Para fundamentar a discordância com o entendimento vertido na sentença recorrida, na motivação de recurso, o Ministério Público argumenta essencialmente o seguinte: - O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é a saúde, abrangendo, na sua complexidade, a saúde física, psíquica e mental, que pode ser afectada por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinja a dignidade da pessoa visada, seja por acção, seja por omissão; - A ratio deste tipo de ilícito não está na protecção da comunidade familiar, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, incluindo os comportamentos reiterados que lesem o seu bem-estar físico, psíquico e mental, sem descurar que se admite, para integração no tipo, que o comportamento configure acto isolado desde que, ao nível do desvalor da acção e do resultado, pela sua especial gravidade, seja apto a molestar o bem jurídico protegido; - O bem jurídico protegido pela incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra; - Dirigir-se a uma mulher com quem partilha a sua vida, mãe dos seus filhos, por diversas vezes em frente dos filhos dizer-lhe que é uma má mãe consubstanciam actos de violência psicológica, vexatórios afectando a sua dignidade enquanto pessoa, e mãe; - Por sua vez retirar o telemóvel da mulher meio de comunicação sem fundamento constitui um acto de violência gratuito; - Ser controlador e ciumento numa relação amorosa entre duas pessoas constitui um acto de violência psicológica; - No âmbito de uma discussão agarrar o braço com força constitui um acto de violência física.
Conclui o recorrente que a descrita conduta do arguido preenche, objetiva e subjetivamente, o crime de violência doméstica.
Porém, analisada a factualidade em concreto provada, com todo o respeito que nos merece a posição defendida pelo Recorrente e reiterada pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta no seu douto Parecer, afigura-se-nos que a mesma se mostra insuficiente para integrar os elementos típicos de tal tipo de crime.
Com efeito, se atentarmos nos factos julgados provados pelo tribunal a quo, factos esses definitivamente assentes porquanto não mereceram qualquer impugnação, as condutas perpetradas pelo arguido, com relevância para a questão em análise, resumem-se ao seguinte:
4. A determinado momento da sua relação com a ofendida o arguido começou a ser ciumento e controlador.
5. Em dias não concretamente apurados, o arguido disse à ofendida: “não prestas!”; “és má mãe!”; “não vales nada!”.
6. O que aconteceu, por vezes, na frente dos filhos.
7. Durante uma discussão, o arguido agarrou no braço de DD com força.
8. No dia 20 de dezembro de 2020, pelas 20h00, o arguido dirigiu-se ao local de trabalho da vítima com os filhos de ambos e caminharam apeados para casa.
9. Já na habitação, o arguido chamou a ofendida ao terraço e retirou-lhe o telemóvel.
Afirma o Recorrente que: Ser controlador e ciumento numa relação amorosa entre duas pessoas constitui um acto de violência psicológica.
Sucede que no caso concreto nenhum facto provado concretiza em que se traduzia aquele comportamento controlador e ciumento.
Tais afirmações acabam por traduzir meras conclusões de facto de cariz vago e genérico, sem qualquer concretização na sua materialidade e localização temporal.
Provou-se, por outro lado, que em dias não concretamente apurados, o arguido disse à ofendida: “não prestas!”; “és má mãe!”; “não vales nada!”, o que aconteceu, por vezes, na frente dos filhos.
Porém, igualmente quanto a este comportamento, nada se apurou quanto à frequência com que tal sucedeu, desde quando e até quando.
Perante o tempo de relacionamento estabelecido entre a ofendida e o arguido, que terá durado vários anos, pelo menos até 20 de Dezembro de 2020, data em que situam os factos descritos sob o ponto 8., aquelas afirmações dirigidas pelo arguido à ofendida poderão ter-se verificado duas vezes, três vezes ou muitas mais vezes.
O arguido, ao dizer à ofendida que a mesma não valia nada e que não prestava, afirmou que a ofendida é alguém sem valor, que é um ser desprezível, uma inútil, uma pessoa insignificante, um ser inferior, pois é esse o significado de tais afirmações.
Inequívoco ainda que ao dizer à ofendida que era uma má mãe, o arguido a ofendeu na sua honra, como mãe e como pessoa, como se conclui na sentença recorrida: a imputação feita de factos desonrosos (má mãe, não prestas), (é) causadora de ofensa da honra e dignidade.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-01-2023, no Processo n.º 564/19.5PIPRT.P1 (Relator: Donas Botto): I - São maus tratos psíquicos, entre outros, os insultos, críticas e comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as ameaças, as privações da liberdade, provocar estados de angústia e sentimentos de sujeição, opressão, que apesar do sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a causar graves transtornos na personalidade da vítima quando se transformam num padrão de comportamento no âmbito da relação. II - Por isso, constituem danos suficientemente graves para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, incompatível com a dignidade da pessoa humana, representando um aviltamento e humilhação da vítima que não são suficientemente protegidos pelo tipo de crime de injúria.
Ora, perante a factualidade em concreto provada e na ausência de demonstração da concretização temporal e do número de vezes em que aquelas condutas tiveram lugar, a par do desconhecimento do seu circunstancialismo concreto, não é possível concluir que, durante o relacionamento, a ofendida tenha sido sujeita a insultos vexatórios, a um estado de sujeição ao outro, de modo a afectar a sua dignidade enquanto ser humano, com a relevância e significância necessárias ao preenchimento do elemento objectivo típico de maus tratos psíquicos.
É certo que aqueles comportamentos foram assumidos pelo arguido, por vezes, na presença dos filhos menores de ambos.
Como se evidenciou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-0-2018, proferido no Processo n.º 189/17.0GCOVR.P1 (Relatora: Eduarda Lobo): É especialmente humilhante um pai ou uma mãe ser agredido na presença dos filhos, sendo a humilhação agravada se o agressor for o outro progenitor. O comportamento revela um desejo de abaixamento do ofendido, sendo que as regras mínimas de civilidade impõem que cada um dos progenitores preserve a imagem do outro, perante os filhos menores de ambos.
Tal entendimento, que aqui perfilhamos, é válido quer se trate de agressões físicas, quer se trate de agressões de ordem verbal, sendo ambas especialmente humilhantes quando perpetradas na presença dos filhos menores do agressor e da vítima.
É certo igualmente que a humilhação reiterada assume especial significância no seio de uma relação de coabitação e conjugalidade, ainda que as condutas, se isoladamente consideradas ou deslocadas dessa relação, possam ser consideradas de pouca gravidade.
Contudo, no caso concreto, perante os factos em concreto provados, não poderá ser afirmada uma conduta reiterada e persistente ao longo dos anos da vida em comum, porquanto é de todo desconhecido o número de vezes em que a mesma ocorreu ou a sua frequência.
E se é verdade que um único acto isolado poderá integrar uma situação de maus tratos físicos ou psíquicos a que alude o normativo legal em causa, para que assim seja e para que esse acto constitua um plus relativamente àqueles que integram a multiplicidade de tipos de crime que poderão integrar a violência doméstica (ofensa à integridade física, ameaça, injúria, coacção, difamação, e outros), terá esse acto de revestir uma gravidade acrescida ao nível da ilicitude, quer pela forma como é executado, quer pelas suas consequências, de modo a justificar a censurabilidade acrescida inerente ao tipo legal em análise, evidenciado na moldura penal que lhe é abstractamente aplicável.
Reproduzindo o plasmado no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2-11-2015 no processo n.º 77/14.1TAAVV.G1: as ações ou omissões, têm de ser particularmente graves, quer porque constantes ou reiteradas, traduzindo um padrão comportamental, quer porque particularmente intensas ou desvaliosas, prescindindo-se então dessa reiteração.
Ora, sempre com todo o respeito que a opinião contrária nos merece, a conduta levada a cabo pelo arguido não atinge um nível de ilicitude acrescido relativamente ao tipo legal de injúria e ao tipo legal de perseguição, constatados na decisão recorrida.
A conduta em concreto perpetrada não fundamenta a conclusão de que o arguido tratou a ofendida de forma desprimorosa, que a inferiorizou, ou que a humilhou de forma continuada e persistente, de modo a ter-se como verificado o preenchimento de uma situação objectiva de maus tratos psíquicos para efeitos do tipo legal em causa.
Tão pouco se poderá ter como demonstrada a existência de maus tratos físicos.
É certo que se provou que, durante uma discussão, o arguido agarrou no braço da ofendida com força e que no dia 20 de dezembro de 2020, no terraço, lhe retirou o telemóvel.
Afirma o Recorrente que retirar o telemóvel da mulher meio de comunicação, sem fundamento, constitui um acto de violência gratuito, bem como que no âmbito de uma discussão, agarrar o braço com força constitui um acto de violência física.
Porém, não se encontra demonstrada a concreta motivação do arguido quando retirou o telemóvel à ofendida, nem o tempo em que dele ficou privada, quando é certo que se encontra provado que: A ofendida foi atrás dele para recuperar o telemóvel e, de forma não apurada, magoou-se (ponto 10. dos factos provados).
Deste modo, não poderá inferir-se dos factos provados que o arguido privou a ofendida do seu meio de comunicação.
Note-se, por outro lado, que não resultou provado, além do mais, que:
- o arguido quis e conseguiu que a vítima se sentisse num constante estado de ansiedade, receando estar a ser controlada e humilhada, bem como receando pelas atitudes que o arguido pudesse tomar em relação a si, nomeadamente que a ofendesse na sua integridade física.
- o arguido quis atingir a ofendida na sua saúde física.
Deste modo, os factos concretamente provados, não consentem a afirmação de que as condutas do arguido julgadas provadas ofenderam integridade física da ofendida, nem que atingiram a sua dignidade enquanto ser humano, designadamente, que esta se tenha sentido desprezada e rebaixada na sua pessoa, que se tenha sentido receosa, nem que a sua tranquilidade familiar haja sido abalada e beliscada por essas condutas
Não é possível afirmar perante a factualidade provada um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima, nos termos a que se alude no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-03-2021 atrás citado, nem que possa ser sequer proximamente adjectivado a esse nível.
Como refere a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta no seu douto Parecer: uma conduta materialmente não grave perpetrada no âmbito familiar e doméstico, como sejam uma simples bofetada ou soco, ou injúrias/insultos e críticas, no caso, dirigidas pelo agente no domicílio comum à companheira ou à filha menor desta, encerra uma danosidade social distinta da ofensa praticada em contexto não-doméstico, pois semeia o medo, a desconfiança, a insegurança, sentimentos que são contrários àqueles que são costumeiros no seio familiar, primeiro e último reduto de proteção do indivíduo.
No caso em apreço, não se descortina na factualidade provada que as condutas perpetradas pelo arguido, visando a ofendida, tenham tido consequências ao nível do seu sentimento de segurança no lar, que por causa delas aí tenha sido semeado o medo e a desconfiança, que a tenha passado a ter uma vida imbuída de intranquilidade, de receio ou temor de que algo de negativo lhe pudesse acontecer.
Em síntese, que a conduta do arguido haja colocado em crise a pacífica convivência familiar, para-familiar ou doméstica, nos termos a que se alude naquele Parecer.
Assim, perpectivada a conduta do arguido na sua globalidade, entendemos que a mesma não integra os elementos objectivos típicos do crime de violência doméstica, desde logo por não se subsumir ao conceito de maus tratos físicos ou psicológicos a que se reporta o art.º 152º/1 do Código Penal.
Em conformidade, improcede o recurso interposto.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª secção criminal do Tribunal desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando a sentença recorrida.
Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 6 de Fevereiro de 2025
(anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original)
Elaborado e integralmente revisto pela Relatora (art.º 94.º n.º 2 do C.P. Penal)
Paula Cristina Bizarro
Jorge Rosas de Castro
Manuela Trocado