REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA (TIR)
MORADA
NOTIFICAÇÃO
CÓDIGO POSTAL
Sumário

O acto da distribuição não perde a sua validade e eficácia pela irregularidade cometida pelo próprio Mº. Pº., na forma da notificação da acusação e, ainda, porque de harmonia com os princípios da economia processual e da proibição da prática de actos inúteis consagrado no art.º 130º do CPC, aplicável em processo penal, nos termos do art.º 4º e que o art.º 123º nº 2 do CPP também acolheu, o que importa para suprir as consequências da irregularidade resultante da notificação da acusação para morada diversa da que consta do o TIR, será uma nova prestação de TIR, na morada onde foi feita com sucesso a notificação.
O TIR visa tão-só assegurar que as futuras notificações passem a ser efectuadas mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 113º, na residência, local de trabalho ou outro domicílio indicado pelo arguido e legitimar a realização de todos os subsequentes actos processuais, nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim permitir a realização da audiência de discussão e julgamento, na sua ausência, nos termos do artigo 333º, sendo, em todos eles, representado por Defensor, tal como resulta do preceituado no art.º 196º, todos do CPP.
Ora, para garantir este efeito, é totalmente desnecessário repristinar a fase do inquérito e, sobretudo, destruir os efeitos jurídicos da distribuição.
Tal efeito - o de facilitar as notificações e permitir a sua realização pela forma expedita do aviso postal simples - pode perfeitamente ser alcançado em qualquer fase do processo.
Pode até acontecer, que se imponha a prestação de novo TIR mais do que uma vez, na mesma ou em diferentes fases do processo, tantas vezes, quantas aquelas em que o arguido em violação das obrigações dele emergentes venha a ser localizado em locais diferentes dos que tenha escolhido e indicado no TIR anteriormente prestado, para receber as notificações.
E por isso, se depois de distribuído o processo, o Juiz constatar que a acusação não foi notificada na morada constante do TIR, deverá mandar actualizar o TIR e prosseguir os ulteriores trâmites do processo, ou, como aconteceu neste processo, em que a acusação foi enviada para a morada do arguido constante do TIR, com excepção apenas dos três últimos algarismos do código postal e foi pelo mesmo arguido realmente recebida, considerar a notificação realizada e proferir o despacho previsto no art.º 311º do CPP.
(sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Acordam, na conferência, as Juízas que integram a 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Por despacho proferido em 11 de Dezembro de 2023, no processo comum singular nº 54/22.9PTALM do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Almada - Juiz 1, foi determinada devolução dos autos ao Ministério Público, após terem sido distribuídos, com fundamento na irregularidade da notificação da acusação, em virtude de o arguido não ter sido notificado da acusação na morada constante do termo de identidade e residência prestado nos autos.
O Mº. Pº. interpôs recurso desta decisão, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
1. Tendo a notificação do despacho de acusação sido enviada, por via postal simples, para a morada constante do TIR prestado pelo arguido, cuja morada é composta por nome de rua, número de polícia, andar e localidade, omitindo-se os três últimos dígitos do código postal há que concluir que o arguido se encontra regularmente notificado.
2. Efectivamente, os códigos postais são compostos por 7 dígitos, os quatro primeiros números referem-se à localidade e os restantes ao arruamento ou quarteirão. Ainda que façam parte integrante da morada, o seu propósito é servir para facilitar o trabalho de localizar os endereços e de separar e encaminhar correspondência, revelando importância acrescida no caso da morada não possuir arruamento, o que não é o caso.
3. O facto de ter sido remetida a notificação sem a indicação dos três últimos dígitos do código postal, mas da mesma constando, todos os elementos da morada, não se vislumbra que tal possa ter afectado a concretização da notificação.
4. Assim sendo, consideramos que o arguido se encontra regularmente notificado da acusação proferida, já que a notificação em causa foi enviada para a morada do TIR.
5. Contudo, ainda que se entendesse que a notificação da acusação ao arguido tinha sido omitida, tal omissão consubstanciaria apenas uma mera irregularidade que, por não afectar os direitos do arguido, não é de conhecimento oficioso e depende de arguição pelo interessado no prazo de 3 (três) dias – cfr. artigo 123.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, pelo que estava vedado o seu conhecimento pelo Mmo. Juiz.
6. E, ainda que se considerasse que estamos perante uma irregularidade de conhecimento oficioso (cfr. artigo 123.º, n.º 2 do Código de Processo Penal), ao Mmo. Juiz estava vedado anular o despacho do Ministério Público que considerou regularmente notificado o arguido e ordenou a remessa dos autos à distribuição para julgamento.
7. Mais do que isso, estava-lhe igualmente vedado determinar a remessa/devolução dos autos ao Ministério Público para sanação da irregularidade que o próprio conheceu.
8. Com efeito, a ordem do Mmo. Juiz “a quo” tendo em vista reparação da mencionada irregularidade jamais poderá ser dirigida ao Ministério Público que, por ser uma magistratura autónoma, não está sujeita ao cumprimento de quaisquer ordens emanadas pelo Mmo. Juiz.
9. Assim, as diligências tendentes à reparação da irregularidade conhecida pelo Mmo. Juiz deverão ser realizadas pelos serviços do Juízo onde exerce funções, sendo ilegal e inconstitucional, por violar os princípios do acusatório e da autonomia do Ministério Público, a ordem para devolução dos autos ao Ministério Público com vista à reparação da irregularidade conhecida pelo Mmo. Juiz “a quo”.
10. Destarte, porque o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 123.º; 311.º e 312.º do Código de Processo Penal, bem como os artigos 32.º e 219.º da Constituição da República Portuguesa, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, e determinando-se ainda que o despacho recorrido seja substituído por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público (por se considerar regularmente notificado o arguido ou, caso por hipótese assim não se entenda, por não estar em causa qualquer irregularidade de conhecimento oficioso)…
11. … ou, ainda que se considere que o arguido não está notificado, que estamos perante uma irregularidade e que a mesma é de conhecimento oficioso, substituindo-o por outro despacho que determine a reparação dessa irregularidade pela secretaria do Juízo Local Criminal de Almada – Juiz 1.
Admitido o recurso, o arguido não apresentou resposta.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP o Exmo. Sr. Procurador Geral da República Adjunto emitiu parecer, no mesmo sentido das motivações e conclusões do recurso.
Cumprido o disposto no art.º 417º nº 2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência prevista no art.º 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre, então, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DO ÂMBITO DO RECURSO E DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito.
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061 e Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e atentas as conclusões, as questões a decidir são as de saber se a forma concreta como se processou a notificação da acusação ao arguido foi cometida alguma irregularidade e se o processo deve ser devolvido aos serviços do Mº. Pº., para ser suprida a irregularidade da notificação da acusação ao arguido em morada que não é a do TIR, ou se, pelo contrário, deverá ser o Juiz do julgamento a determinar a repetição da notificação para a morada constante do TIR ou a prestação de novo TIR.
2.2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade relevante para a apreciação do presente recurso é a seguinte:
No dia 23 de Junho de 2023 AA foi constituído arguido (termo de constituição de arguido com a referência Citius 36390807);
Nesse mesmo dia, prestou Termo de Identidade e Residência, no qual indicou como morada, a ..., Corroios (TIR com a referência Citius 36390808);
Em 13 de Outubro de 2023, foi deduzida acusação contra AA, imputando-lhe a prática de um crime de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292º, n.º 1, e 69º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal (acusação com a referência Citius 429233984);
A notificação da acusação ao arguido foi remetida, por via postal simples com prova de depósito para a morada sita na..., Corroios e foi depositada nessa morada (prova de depósito com a referência Citius 37393527);
O processo foi à distribuição (referências Citius 37727492 e 430751966);
Foi então, proferido o despacho recorrido com o seguinte teor:
Compulsados os autos e confrontado o TIR de fls. 32 com a notificação de fls. 60 e PD de fls. 60v, constatamos que o arguido não foi notificado da acusação que contra si foi deduzida na morada constante do TIR.
Nos termos do art.º 196.º, n.º 2 e 3, alínea b), do Código de Processo Penal, a morada constante do Termo de Identidade e Residência prestado pelo arguido é válida para todas as notificações que lhe sejam dirigidas, recaindo sobre o arguido a obrigação de não mudar de residência sem comunicar nova residência aos autos.
Assim, a falta de notificação para a morada comunicada pelo arguido traduz-se numa omissão de notificação da acusação, inobservância essa que, em nosso entender, representa uma irregularidade processual, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, susceptível de inquinar não só o acto em causa, mas também todos os passos subsequentes do processo, desde logo porque é susceptível de impedir que o arguido, na tramitação normal dos autos, possa requerer a abertura de instrução.
Nestes termos, e ao abrigo do disposto nos artigos 123.º, n.º 2, e 311.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, julgo verificada a omissão de notificação ao arguido e, em consequência, determino a remessa dos autos ao Ministério Público, com vista à realização das diligências tidas por convenientes para que se proceda à reparação daquela omissão [designadamente quanto ao Código Postal]. 2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Da conjugação dos arts. 118º a 123º; 125º e 126º do CPP, resulta que em processo penal, as invalidades dos actos processuais se desdobram em duas espécies - as nulidades e as irregularidades.
A estas ainda acresce a inexistência jurídica que ocorre quando o acto processual se mostra inidóneo para se integrar na estrutura da relação processual penal, em virtude de lhe faltarem elementos essenciais à sua própria substância, que inviabilizam a produção de quaisquer efeitos jurídicos. Não é sanável, nem susceptível de sanação pela sua não arguição ou decurso do tempo, até porque, uma vez verificada, impede a própria produção do efeito de caso julgado (Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, I, 1999, p. 594). Mas esta não está expressamente prevista na Lei.
Entre as nulidades, há um escalonamento em duas dimensões de gravidade: as nulidades insanáveis ou absolutas e as nulidades sanáveis ou relativas.
O regime das nulidades obedece a três princípios essenciais: o da legalidade, enunciado no nº 1 do art.º 118º, do qual resulta que a violação ou a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade, quando esta for expressamente cominada na lei, exemplificando o art.º 119º algumas nulidades insanáveis e exemplificando o art.º 120º as que são sanáveis; o princípio da irregularidade de todos os restantes actos praticados contra a lei e um terceiro, que consiste na autonomização das proibições de prova, às quais foi fixado um regime jurídico próprio.
As nulidades, sejam sanáveis ou insanáveis, porque restringem ou podem colocar em crise o princípio constitucional contido no art.º 32º nº 2 da CRP, quanto ao direito a um julgamento no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa, têm natureza excepcional e, por isso, não admitem aplicação analógica (João Conde Correia, Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, Coimbra Editora, 1999, p. 152; Costa Pimenta, Processo Penal, Sistema e Princípios, 2003, Livraria Petrony, p. 158).
Aos dois graus de intensidade das nulidades estão associados efeitos jurídicos diversos: as nulidades insanáveis, podem ser conhecidas a todo o tempo, até ao trânsito em julgado da decisão final, e tanto podem ser conhecidas oficiosamente pelo Tribunal, como a requerimento do titular do direito protegido pela norma violada, como pelo Mº. Pº. (art.º 219º da CRP), sendo irrelevante a renúncia à respectiva arguição, ou a aceitação expressa dos efeitos do acto inválido, bem como a prevalência da faculdade a cujo exercício se dirige o acto nulo.
Diversamente, as nulidades sanáveis não são de conhecimento oficioso do Tribunal, só serão declaradas mediante arguição por quem tenha legitimidade para tal e sanam-se se os interessados renunciarem expressamente à sua arguição, tiverem aceite expressamente os efeitos do acto ou se tiverem prevalecido de faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia, tal como previsto no art.º 121º nº 1 als. a) a c) e nº 2 do CPP.
Seguindo a mesma técnica, tanto o art.º 119º, como o art.º 120º, em total harmonia com o princípio da legalidade, enumeram as nulidades absolutas e relativas de forma taxativa, através da descrição de concretos actos praticados ou omitidos que são considerados anuláveis e de uma cláusula genérica de remissão para as «que forem cominadas em outras disposições legais».
Tanto umas, como outras implicam a destruição dos efeitos substantivos, processuais e materiais dos actos feridos de nulidade, assim como a invalidade dos actos subsequentes que tenham com estes uma conexão cronológica, lógica, ou valorativa, o chamado efeito à distância, que se verifica quando, na análise das circunstâncias concretas do caso, existe um nexo de antijuridicidade entre o acto inválido e aquele ou aqueles que se lhe seguem que impõe a invalidade de todos eles (por contágio da nulidade, tornando-as inaproveitáveis, as provas secundárias a elas causalmente vinculadas, a não ser que essas provas secundárias pudessem ter vindo a ser obtidas directamente, mesmo na falta da prova nula, através de um comportamento lícito alternativo) e, sempre que possível e necessário, a repetição do acto nulo ou anulável.
Com efeito, no que respeita aos efeitos da declaração de nulidade, o artigo 122º nº 1 do CPP, estabelece que «as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar», sendo que, nos termos do nº 2 deste artigo «a declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição», dispondo-se no n.º 3 que «ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela».
É o chamado efeito à distância da nulidade, em concretização da chamada doutrina alemã «Fernwirkung des Beweisverbots» e da que os americanos designam de «Fruit of the Poisonous Tree», também vigente na ordem jurídico-penal portuguesa (Figueiredo Dias, Para Uma reforma Global do Processo Penal Português, in Para uma Nova Justiça Penal, Coimbra, 1983, pág. 208; Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 2006, pág.175; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pág.227 e Ac. do Tribunal Constitucional nº 198/2004 de 24 de Março, in http://www.tribunalconstitucional.pt/).
«O processo penal está subordinado ao princípio da legalidade dos actos, não sendo admitida a prática de actos que a lei não permita; os actos previstos devem respeitar as disposições da lei de processo que dispõem sobre os pressupostos, as condições, o prazo, a forma e os termos. Porém, a «violação ou inobservância» das «disposições da lei do processo penal» só determinará a invalidade do acto quando a consequência for expressamente cominada na lei. O princípio da legalidade do processo e dos actos desdobra-se, deste modo, em matéria de nulidade ou invalidade, na consequência que se afirma na expressão de um numerus clausus dos fundamentos da invalidade; a nulidade do acto não resulta da simples violação ou inobservância de disposições legais, mas tem que estar expressamente prevista como consequência da violação ou inobservância das condições ou pressupostos que a lei expressamente referir.
«A violação ou inobservância das condições ou pressupostos do acto, que não constitua nulidade, determina apenas a «irregularidade» do acto» (Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado (2014), anotação ao artigo 119º, pág. 383).
Como corolário do princípio do processo justo e equitativo (art.º 6º nº 3 alínea a) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e arts. 20º e 32º nºs 1 e 5 da CRP), o art.º 113º nº 10 do CPP impõe a notificação da acusação ao arguido, como um seu direito pessoal, que não se basta com a simples notificação ao seu Defensor. E é uma condição essencial ao exercício efectivo do direito de defesa, a estrutura acusatória do processo penal de que decorre o papel fulcral da acusação, na delimitação dos poderes de cognição e decisão do Tribunal, mas também na modelação concreta das garantias de defesa e do direito ao contraditório e perante a posição eminentemente pessoal do arguido perante os factos da acusação.
É, portanto, fundamental que o arguido conheça directa e pessoalmente os factos que lhe são imputados e o respectivo enquadramento jurídico exarado na acusação em ordem a organizar a sua defesa.
No que concerne às possíveis modalidades e às formalidades a observar, a notificação da acusação ao arguido deve conter os elementos previstos no artigo 277º, nº 3, ex vi artigo 283º, nº 5 e observar a forma prevista no nº 6, deste último normativo, todos do Código de Processo Penal, ou seja, deve ser feita por contacto pessoal ou por via postal registada, excepto se o arguido tiver indicado a sua residência ou domicílio profissional à autoridade policial ou judiciária que elaborar o auto de notícia ou que o ouvir no inquérito ou na instrução, caso em que a notificação deverá ser feita por via postal simples, nos termos do artigo 113º nº1 al. c), tal como previsto no nº 6 do art.º 283º citado.
A notificação da acusação ao arguido dirigida a uma morada que não aquela que consta do Termo de Identidade e Residência traduz a inobservância de formalidades processuais, que não está prevista como nulidade nos artigos 119º e 120º do Código de Processo Penal.
Assim sendo, não obstante a forma incorrecta como for realizada, a comunicação da acusação ao arguido, para morada diversa da que tinha indicado quando prestou o TIR, tem de ser qualificada como uma irregularidade à qual são aplicáveis o regime e os efeitos jurídicos impostos pelo artigo 123º do Código de Processo Penal, (cfr., no mesmo sentido, Acs. da Relação de Guimarães de 06.02.2017, proc. 540/14.4GCBRG.G1, da Relação de Coimbra de 24.04.2018, proc. 313/15.7GCACB-A.C1, Relação de Lisboa de 26.11.2019, proc. 1333/18.5T9TVD.L1 e de 08.09.2020, proc. 3276/18.3T9SXL.L1-5, in http://www.dgsi.pt).
Trata-se, ainda de uma irregularidade de que o juiz de julgamento deve conhecer no momento do saneamento do processo em cumprimento do art.º 311º do CPP, mas cuja reparação envolve apenas um de dois actos: ou a repetição da notificação da acusação ao arguido na morada que constava do TIR, ou a prestação de novo TIR, agora na morada, para a qual a carta de notificação da acusação foi enviada e recebida pelo arguido.
O que em nenhuma das duas hipóteses se justifica é dar sem efeito o acto da distribuição, como fez a decisão recorrida.
Salvo o devido respeito por melhor opinião, nem é tanto porque o Juiz do julgamento não tem competência para dar instruções ao Mº. Pº. acerca do modo como este há-de realizar o inquérito, pois que o que não faltam, nas normas que regulam o processo penal, são actos jurisdicionais da exclusiva competência ou que o Mº. Pº. só pode praticar mediante autorização do Juiz de Instrução e cuja sede própria é o inquérito, a que se soma a circunstância de que a autonomia da Magistratura do Mº. Pº. nem neutraliza a sua condição de sujeito processual, tal como o arguido e o assistente também o são, embora cada um com o seu estatuto, nem se confunde com a sindicabilidade da validade e eficácia dos actos por cada um deles praticados, a que todos estão sujeitos, inclusive, os próprios Juízes, como é próprio de um processo penal de um Estado de Direito democrático.
Nisso, o Mº. Pº. não tem, por conseguinte, uma liberdade ilimitada para agir sem qualquer supervisão ou controle. Deve obediência à Lei e a sua actuação pode ser e é sindicada e sindicável.
Refira-se que o facto de, nos termos do art.º 219º do CPP, lhe competir a direcção do inquérito não neutraliza minimamente a constatação de que «o MP detém um poder de cognoscibilidade que, contudo, não forma caso decidido, (…) existindo ainda um poder judicial de controlo dessas invalidades, em sede de incidentes judiciais em que se revelem os actos inválidos ou no decurso de fases dirigidas judicialmente» (Paulo Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, pág. 309. No mesmo sentido, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 11ª Edição, 2007, pág. 313 e os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 15.02.2012, proc. 36/09.6TAVNH.P1, de 26.02.2014, proc. 9585/11.5TDPRT.P1, e de 2.11.2015, proc. 0541293; o acórdão da Relação de Guimarães de 20.09.2010, proc. 89/09.7GCGMR.G1, de 05.02.2018, proc. 683/16.0PBGMR.G1 e de 25.05.2020, processo 95/19.3JAPRT-C.G1; e os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.05.2011, proc. 1566/08.2TACSC.L1.5, de 22.11.2017, proc. 684/14.2T9SXL.L2-3, de 06.06.2017, proc. 2018/13.9TELSB.GL1-5, de 21.02.2017, proc. 2/15.2IFLSB-D.L1-5, de 15.03.2021, proc. 2413/11.3TAFAR-A.L1-9, in http://www.dgsi.pt).
E, de resto, deverá ser o Mº. Pº. quem, por sua própria iniciativa, deve diligenciar pela repetição do TIR para uma nova morada de venha a tomar conhecimento de acordo com conhecimento de que disponha resultante de outros inquéritos pendentes contra o mesmo arguido, ou por outras vias, em alternativa, sabendo da existência de outra morada diversa da do TIR e enquanto este não for prestado com referência à morada actualizada, deverá recorrer ao contacto pessoal por OPC, para dar conhecimento ao arguido ou para o convocar de ou para actos praticados ou a praticar no decurso do inquérito.
Feito este aparte, a insustentabilidade da decisão recorrida, no segmento em que determinou o reenvio do processo para o Mº. Pº., radica, pura e simplesmente, na desnecessidade e na ausência de fundamento legal para reabrir o inquérito, pois que, não só o Mmo. Juiz do julgamento não tem poderes para tal, por não lhe competir o exercício da acção penal, sendo certo que o inquérito já estava efectivamente findo, nada mais havendo a praticar, nele, que fosse acto específico dessa fase processual, como também, porque o acto da distribuição não perde a sua validade e eficácia pela irregularidade cometida pelo próprio Mº. Pº., na forma da notificação da acusação e, ainda, porque de harmonia com os princípios da economia processual e da proibição da prática de actos inúteis consagrado no art.º 130º do CPC, aplicável em processo penal, nos termos do art.º 4º e que o art.º 123º nº 2 do CPP também acolheu, o que importa para suprir as consequências da irregularidade resultante da notificação da acusação para morada diversa da que consta do o TIR, será uma nova prestação de TIR, na morada onde foi feita com sucesso a notificação.
Mas nem é o caso, porquanto a única divergência que existe entre a morada indicada no Termo de Identidade e Residência a que consta da prova de depósito contendo a cópia do despacho de acusação centra-se nos três últimos dígitos que integram o Código Postal.
Certamente, por lapso meramente material, a carta foi remetida ao arguido com a sua morada quanto ao nome da rua, ao número da porta e à localidade da sua residência ou morada que escolheu para receber as notificações do Tribunal, segundo o TIR, só não coincidiu o Código Postal quanto aos três últimos dígitos que o integram.
O Código Postal foi originalmente introduzido em Portugal, em 1978 com quatro dígitos. Em 1998, foi-lhe acrescentado um sufixo de 3 dígitos separados por um hífen dos primeiros 4, e seguidos de uma designação postal com um máximo de 25 caracteres.
Os algarismos de 1 a 9 com os quais começam os primeiros 4 dígitos correspondem às diferentes regiões do país.
Os códigos postais foram criados apenas para facilitar a organização logística e localização espacial de um "endereço postal" atribuídos pelos serviços postais consoante a organização territorial e administrativa dos países onde operam os serviços postais que os utilizam. É, pois, apenas um dos elementos da morada ou endereço
Não está em causa que o arguido recebeu cópia da acusação e, portanto, já está em condições de exercer as suas garantias de defesa. Nem sequer arguiu a irregularidade pela circunstância de ter sido notificado por via postal simples para uma morada cujo Código Postal não é, embora só em parte, aquele que está atribuído ao seu endereço postal segundo a indicação constante do TIR que prestou.
O TIR visa tão-só assegurar que as futuras notificações passem a ser efectuadas mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 113º, na residência, local de trabalho ou outro domicílio indicado pelo arguido e legitimar a realização de todos os subsequentes actos processuais, nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim permitir a realização da audiência de discussão e julgamento, na sua ausência, nos termos do artigo 333º, sendo, em todos eles, representado por Defensor, tal como resulta do preceituado no art.º 196º, todos do CPP.
Ora, para garantir este efeito, é totalmente desnecessário repristinar a fase do inquérito e, sobretudo, destruir os efeitos jurídicos da distribuição. Para mais que a morada para a qual foi remetida a carta de notificação com a cópia da acusação é exactamente a mesma que a que foi escolhida pelo arguido no TIR.
Tal efeito - o de facilitar as notificações e permitir a sua realização pela forma expedita do aviso postal simples - pode perfeitamente ser alcançado em qualquer fase do processo.
Pode até acontecer, que se imponha a prestação de novo TIR mais do que uma vez, na mesma ou em diferentes fases do processo, tantas vezes, quantas aquelas em que o arguido em violação das obrigações dele emergentes venha a ser localizado em locais diferentes dos que tenha escolhido e indicado no TIR anteriormente prestado, para receber as notificações.
E por isso, embora por razões algo diferentes das invocadas no recurso, o mesmo terá de ser julgado procedente.
III – DECISÃO
Termos em que decidem:
Conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido o qual deverá ser substituído por outro que dê cumprimento ao disposto nos arts. 311º a 313º do CPP com referência à acusação já deduzida e notificada, prosseguindo a ulterior tramitação do processo.
Sem Custas.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art.º 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Juízes Adjuntos.
*
Tribunal da Relação de Lisboa, 6 de Fevereiro de 2025
Cristina Almeida e Sousa
Rui Miguel Teixeira
Francisco Henriques