ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Sumário

I - O dano biológico corresponde ao dano no corpo e/ou na saúde da vítima e a sua repercussão no desempenho das tarefas da vida da vítima, sejam elas pessoais ou profissionais, reiteradas ou ocasionais, instantâneas ou duradouras; sempre que há uma afectação ou perturbação da integridade psicofísica do indivíduo, produz-se este dano, independentemente das sequelas e consequências da lesão.
II - A maior penosidade na execução de tarefas da vida diária e doméstica em resultado das lesões representa uma consequência da lesão e é indemnizável, mas só se justifica tomar como referência ao salário do serviço doméstico se houver incapacidade para as executar e o lesado necessitar de recorrer a outrem, de modo gratuito ou remunerado, para a sua execução.

Texto Integral

RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:1781.21.3T8PVZ.P2

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Sumário:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


I. Relatório:


AA, contribuinte fiscal n.º ...52, residente em ..., instaurou acção judicial contra a A..., S.A., pessoa colectiva com n.º único de identificação e de contribuinte fiscal ...31, com sede em Lisboa, pedindo a condenação da ré pagar-lhe a indemnização de €54.180,87, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a instauração da acção até pagamento, e a indemnização que vier a ser fixada em decisão ulterior ou em incidente de liquidação.
Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que quando era transportada como passageira num veículo automóvel, este envolveu-se num acidente com outro veículo, segurado na ré, acidente ocorrido por culpa exclusiva do condutor deste e do qual resultaram para a autora danos, dos quais pretende ser ressarcida.
A ré foi citada e contestou, impugnado os factos alegados e concluindo no sentido de a acção ser julgada em conformidade com a prova a produzir.
Após julgamento foi proferida sentença a julgar a acção parcialmente procedente e condenar a ré a pagar à autora: (A) €27.432,28, acrescidos de juros de mora, contados à taxa legal desde a citação até integral pagamento; (B) €10.000,00, acrescidos de juros de mora, contados à taxa legal desde a decisão até integral pagamento; (C) o montante a liquidar em decisão ulterior, respeitante a custos consequente às lesões sofridas no acidente a suportar pela autora respeitantes a tratamentos de medicina física e de reabilitação e de medicação analgésica e/ou anti-inflamatória.
A autora interpôs recurso da sentença, findando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos, na parte em que não fixou indemnização por períodos de incapacidade temporária e, por fim, na parte em que fixou a indemnização de 10 000,00 €, a título de compensação por danos de natureza não patrimonial.
2. A indemnização pelo dano corporal contempla 3 (três) vertentes: (i) indemnização pela perda de capacidade de ganho, traduzida no montante indemnizatório destinado a ressarcir o lesado pela perda de capacidade de criação de rendimento, quer na vertente profissional quer pessoal, independentemente da sua tradução em efectivas reduções ou perdas salariais (considerando que, ainda que não haja perda salarial, o sinistrado, por força da sua incapacidade, terá de fazer maior esforço para obter o mesmo rendimento); (ii) indemnização pelo dano biológico, correspondente à perda parcial da disponibilidade do uso do corpo para os normais afazeres do dia-a-dia (que não os profissionais) e fixados numa incapacidade geral ou anátomo-funcional/fisiológica e um dano autónomo que não se confunde com o dano patrimonial futuro; (iii) indemnização pelo dano moral, destinada a compensar as dores, os incómodos e o sofrimento causados ao lesado pelo evento lesivo, tanto no momento subsequente ao sinistro (período de recuperação) como ao longo da sua vida.
3. A indemnização por danos patrimoniais deve contemplar não só a parcela respeitante à perda de capacidade de ganho, como a respeitante ao dano biológico, enquanto perda parcial da disponibilidade do uso do corpo para os normais afazeres do dia-a-dia (que não os profissionais) e fixados numa incapacidade geral ou anátomo-funcional/fisiológica e um dano autónomo que não se confunde com o dano patrimonial futuro.
4. Para esse cálculo releva a retribuição auferida pela autora aquando do acidente dos autos, que se cifrava em 625,34 €, recebidos em 14 (catorze) meses por ano, mas também o volume de trabalho doméstico desenvolvido pela Autora, a fixar por recurso à equidade, que deverá considerar um total não inferior a 4 (quatro) horas diárias de trabalho doméstico, em todos os dias do ano, bem como um valor horário de retribuição não inferior a 5,00 €, que é o valor mínimo pago, em regra, para contratação de trabalhador de serviço doméstico que desempenhe as mesmas funções.
5. Não deveria nem deve ser aplicado qualquer factor de bonificação por antecipação do capital. No limite, a ser fixado, o mesmo nunca deverá exceder o limite de 10%.
6. As razões que justificavam a aplicação de factores de penalização já não existem, o que obriga a uma revisão da aplicação da lei, neste contexto. Do ponto de vista da recorrente, no cenário acima descrito, a aplicação de um factor de penalização por antecipação do capital deve ser eliminada ou, pelo menos, reduzida a montante não superior a 10%.
7. Considerando a posição assumida nesses arestos, não deverá aplicar-se qualquer redução, decorrente da antecipação do capital, ao valor encontrado por recurso às fórmulas habituais.
8. Tendo presente o exposto, terá de concluir-se que o valor fixado, nesta sede, na douta sentença recorrida (27 432,28 €), não poderá merecer censura, mostrando-se perfeitamente ajustado às circunstâncias do caso concreto.
9. O tribunal recorrido não fixou qualquer indemnização pelos períodos comummente designados como de incapacidade temporária para o trabalho.
10. Apurou-se que a autora sofreu défice funcional temporário de 404 dias, com repercussão temporária total da actividade profissional de 2 dias e parcial de 402 dias.
11. Nessa medida, não poderia deixar de atender-se ao peticionado na p.i., a título de incapacidade temporária para o trabalho doméstico, fixando-se a indemnização devida a esse título em 7 800,00 €.
12. Ao decidir em sentido inverso, a douta sentença recorrida violou, além de outras, as disposições dos arts. 562.º e 564.º, n.º 1, do Cód. Civil, pelo que deve ser revogada, nessa parte, e substituída por douto Acórdão que fixe em 7 800,00 € a indemnização devida pelos períodos de incapacidade temporária para o trabalho.
13. O Tribunal recorrido fixou a indemnização devida à autora, a título de danos de natureza não patrimonial, no valor de 10 000,00 €, valor que se afigura reduzido, já que é similar ao fixado, em casos análogos, em casos em que não há sequer sequelas.
14. No que diz respeito aos danos de natureza não patrimonial (de elevada monta, como resulta da matéria de facto dada como provada), tendo sempre presente o limite do pedido, deveria ter sido fixada indemnização de valor não inferior a 20 000,00 €.
15. A douta sentença recorrida, na parte respeitante à fixação de danos de natureza não patrimonial, violou, além de outras, as disposições dos arts. 496.º, n.º 1, 562.º e 564.º, n.º 1, do Cód. Civil, pelo que deve ser revogada, na parte em que condenou a ré a pagar a quantia de 10 000,00 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais, e substituída por douto Acórdão que condene a ré a pagar à autora, a esse título, a quantia peticionada de 20 000,00€.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, com a consequente revogação da douta Sentença recorrida, na parte visada por este recurso, e prolação, em sua substituição, de douto Acórdão que esteja em conformidade com as conclusões acima formuladas.
A interpôs também recurso da sentença, culminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I. A data da consolidação médico legal das lesões da Autora ocorrida em 05.11.2020, bem como a compatibilidade das sequelas sofridas mesma com o exercício da profissão habitual, implicando apenas esforços suplementares, foram alegadas em sede de petição inicial e confirmadas na perícia médica elaborada pelo INML.
II. Pese embora tais circunstâncias, bem como o facto de se tratarem de factos essenciais para a boa decisão da causa (até mesmo para balizar os danos a indemnizar), o tribunal a quo não incluiu os mesmos no elenco dos factos dados como provados.
III. O que tudo deveria ter feito, requerendo-se sejam aditadas duas alíneas à matéria de facto provada da qual constem os factos em causa, propondo-se que as mesmas tenham a seguinte redacção:
- A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pela Autora no acidente em causa nos autos ocorreu em 05.11.2019
- As sequelas resultantes para a Autora do acidente de 05.11.2019 são compatíveis com o exercício da profissão habitual, mas implicam esforços suplementares na medida do défice funcional atribuído.
IV. Os factos dados como provados pelo tribunal recorrido nas alíneas k), t) e u) não resultaram provados dos autos.
V. Um dos parâmetros necessariamente avaliados e tidos em consideração nas perícias médico-legais a elaborar pelo INML é a eventual necessidade futura de tratamentos e/ou medicação. Da perícia elaborada nos autos não resulta a necessidade futura nem de quaisquer tratamentos, sejam eles de que natureza foram, nomeadamente de fisioterapia, nem de toma de qualquer tipo de medicação decorrentes do acidente em causa nos autos.
VI. A prova testemunhal não é suficiente para se dar como provada tal matéria, em especial quando em contradição (como é aqui o caso), ou não corroborada pela prova pericial ou quando existam (como também é o caso) outras lesões em nada relacionadas com o evento em discussão (tendinite do ombro esquerdo sofrida pela Autora).
VII. Mal esteve, pois, o tribunal recorrido ao dar como provados os factos contestantes das alíneas k), t) e u), devendo a resposta aos mesmos ser alterada para “não provado” e, nessa medida, serem os mesmos excluídos do elenco da matéria de facto provada e incluídos nos factos não provados.
VIII. A condenação da recorrente no pagamento do montante de €5.809,00 por perda de rendimento futuro, aliada à condenação no pagamento da quantia de €21.000,00 por compensação do dano biológico, para além de ser manifestamente excessiva e desproporcionada, constitui uma verdadeira duplicação de danos e de condenação.
IX. O défice funcional permanente de 2 pontos fixados à Autora é compatível com o exercício da profissão habitual, não implicando, nessa medida, qualquer perda de rendimento, pelo que a condenação da ré no pagamento à Autora da quantia de €5.809,00 deverá ser desde logo revogada.
X. O défice funcional permanente tem vindo a ser entendido pela jurisprudência como indemnizável na vertente patrimonial, cabendo aqui compensar os esforços acrescidos que a Autora terá de fazer para continuar a exercer a sua profissão.
XI. O montante de €21.000,00 arbitrado pelo tribunal recorrido é manifestamente excessivo e desproporcionado face às concretas circunstâncias: défice de 2 pontos, vencimento de €625,34, idade da Autora e equidade. Quando analisada e confrontada com outras decisões jurisprudenciais recentes, o valor a atribuir à Autora pelo défice funcional permanente pela mesma sofrido, não deverá ultrapassar os €8.000,00.
XII. Não resultou provado nos autos que a Autora tenho ficado a necessitar de quaisquer tratamentos ou medicação futura pelo que a condenação constante da alínea C) da sentença proferida carece de qualquer fundamento, devendo a decisão proferida ser revogada nessa parte.
Termos em que o presente recurso deverá ser julgado procedente nos exactos termos supra concluídos, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-se a mesma por outra que condene e absolva a ré conforme aqui defendido.
Os recursos mereceram resposta da parte contrária, em ambos os casos defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e lutando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.



II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada.
ii. Como fixar a indemnização pelo dano corporal sofrido pela autora e suas repercussões.
iii. Se deve manter-se a condenação no pagamento de indemnização por danos futuros em montante a liquidar.
iv. Se deve ser atribuído um valor indemnizatório específico por a autora ter sido afectada na execução das tarefas da sua vida familiar e doméstica.
v. Que valor deve ser fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais.



III. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
A ré começa o seu recurso não propriamente por impugnar a decisão sobre a matéria de facto, mas por pedir a ampliação da fundamentação de facto com dois novos factos que foram alegados pela autora e resultam da prova pericial produzida.
Efectivamente esses dois factos foram alegados pela autora nos artigos 150.º e 198.º da petição inicial, razão pela qual a autora na resposta ao recurso afirma nada ter a objectar a esta pretensão da recorrente, e são afirmados também pelo perito médico no relatório médico-legal junto aos autos.
Esses factos constituem em si mesmos algo desfavorável à pretensão da autora (as lesões estão consolidadas; as sequelas são compatíveis com a profissão) pelo que se devem considerar confessados pela própria autora na petição inicial.
Por tal motivo, deviam ter sido incluídos na sentença, ex vi artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, que manda levar em consideração os factos admitidos por acordo ou provados por confissão, e podem agora, sem mais, ser aditados, à respectiva fundamentação de facto, uma vez que, como referido, a autora já se pronunciou admitindo esse aditamento.
À mesma solução se chegaria, aliás, por aplicação do mecanismo da primeira parte da alínea c), do n.º 2, do artigo 662.º, Código de Processo Civil, relativo à correcção de vícios da decisão sobre a matéria de facto (a segunda parte do preceito refere-se à situação distinta da ampliação da matéria de facto) considerando que tais factos são necessários para compreender totalmente o que se quis julgar provado nas alíneas n) e o), cuja decisão é, consequentemente, deficiente por insuficiência, sendo que o processo contém registo de toda a prova produzida, permitindo a esta Relação suprir essa insuficiência sem necessidade de anulação da sentença (o corpo da alínea c) determina a anulação - só - quando não …) e por atenção ao meio de prova de melhor valor probatório que é a prova pericial de foro médico-legal.
Desse modo, aditam-se à fundamentação de facto os seguintes factos provados:
n’) As lesões sofridas pela autora tiveram consolidação médico-legal em 05/11/2020.
o’) Em termos de repercussão permanente na actividade profissional, essas sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares na medida do défice funcional atribuído.
A seguir a recorrente impugna a decisão de julgar provados os factos das alíneas k), t) e u), defendendo que os mesmos sejam julgados não provados.
Na resposta ao recurso a recorrida sustenta que essa pretensão é inviável por não terem sido cumpridos os requisitos da impugnação consagrados no artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Cremos que não tem razão.
Tais requisitos estão no seu conjunto configurados para a situação normal de terem sido produzidos meios de prova de sentido oposto, com conteúdos divergentes, o tribunal a quo ter motivado a sua convicção em alguns desses meios de prova, afastando o valor probatórios dos demais, e a parte recorrente defender que os meios de prova a atender devem ser outros. É nessa circunstância que faz sentido exigir do recorrente que especifique os meios de prova que devem ser atendidos e indique as passagem da respectiva gravação quando se trate de prova por depoimentos.
Quando o fundamento da impugnação apresentada pelo recorrente é apenas a defesa de que os meios de prova atendidos pelo tribunal a quo não são suficientes para determinar o julgamento proferido sobre os factos cuja decisão impugna, basta naturalmente que o recorrente aborde os meios de prova indicados na motivação da convicção do tribunal a quo e justifique a respectiva insuficiência para constituírem prova bastante daqueles factos.
Por outras palavras, a fiscalização do cumprimento dos requisitos previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, não pode ser feita em abstracto, independentemente da concreta configuração da impugnação deduzida pelo recorrente, havendo casos em que todos os requisitos se devem mostrar cumpridos e casos em que alguns deles não têm aplicação.
No caso, sustentando a recorrente que os factos em causa não podem ser julgados provados com fundamento na prova testemunhal, como foram, por ter sido produzido um meio de prova com mais ou melhor valor probatório, a perícia médico-legal, os requisitos da impugnação foram observados (foram concretizados os pontos, a decisão a proferir e o meio de prova a atender), com a reserva apenas de que como a recorrente se escusou de dissecar o conteúdo dos depoimentos (isto é, sustentar que eles não permitiam, per se, julgar provados os factos) a procedência da impugnação está somente dependente de saber se a decisão pretendida resulta forçosamente da prova pericial.
Na alínea k) o tribunal a quo julgou provado que a autora «pontualmente, toma ainda hoje anti-inflamatórios ou paracetamol para alívio de dores». Na motivação da decisão alicerça-se a convicção no relatório médico-legal e nas demais informações médicas ou clínicas juntas aos autos.
O relatório médico-legal afirma o contrário ou coisa diferente? Não. Pelo contrário, nesse relatório dá-se conta que a autora informou o perito que «pontualmente toma brufen 600 ou adalgur ou paracetamol (2 tomas por semana)». A impugnação improcede.
Na alínea t) foi julgado provado que «mais recentemente, em Setembro a Novembro de 2021, submeteu-se a novos tratamentos de fisioterapia por queixas de cervicalgias».
Após a redacção do facto é indicado entre parêntesis que o mesmo é «resposta aos arts. 181.º, e 274.º a 285.º da p.i.». Todavia, a verdade é que esse facto não foi alegado pela autora em qualquer desses artigos da petição inicial, nem, tanto quanto vemos, em nenhum outro desse articulado, sendo certo que este foi apresentado depois do período assinalado no facto.
Por outro lado, na motivação da decisão não se detecta quais foram os meios de prova que permitiram julgar provado este facto. Não obstante, as referências esparsas à decisão sobre o alegado nos «artigos 181.º, 274.º a 285.º da petição inicial», onde aparentemente se terá considerado que aquele facto fora alegado, vão no sentido de a decisão brotar do relatório médico-legal e das informações médicas ou clínicas recolhidas.
Esse facto não consta, porém, do relatório médico-legal. Compulsados os autos, verifica-se que o mesmo é referido sim nos documentos que a autora juntou para efeitos da realização da perícia médico-legal no dia 30-08-2022, nos quais são mencionados tratamentos de fisioterapia nos meses de Setembro a Novembro de 2021.
A circunstância de o facto não ter sido alegado pela autora e esta se ter limitado a juntar, no decurso da instrução da causa, documentos onde ele é referido não impedia o tribunal de levar em consideração tal facto, uma vez que o mesmo tem a natureza de facto concretizador ou complementar do facto essencial alegado destinado a demonstrar o dano enquanto pressuposto da responsabilidade civil (artigo 5.º do Código de Processo Civil).
Todavia, verifica-se que os aludidos documentos foram objecto de resposta da ré a qual para além de os impugnar afirmou desconhecer se os factos neles referidos «estão, de alguma forma, relacionados com o acidente de viação em causa nos presentes autos».
Daí resulta que a mera junção dos documentos não é bastante para que esse facto possa ser julgado provado, uma vez que os documentos não constituem meio de prova plena e o relatório médico-legal não validou a relação de causalidade entre o evento danoso que constitui a causa de pedir e esse facto concreto.
Por esses motivos, procede a impugnação da decisão quanto a este facto, o qual é retirado da fundamentação de facto.
Por fim, na alínea u) foi julgado provado que «de futuro, e em consequência das lesões sofridas no acidente, a autora continuará a necessitar de recorrer pontualmente a toma de medicação analgésica e anti-inflamatória e submeter-se a tratamentos de fisioterapia, com frequência não determinada».
Na motivação da decisão lê-se: «Da previsibilidade de danos futuros, a que se reportam os arts. 181.º, e 274.º a 285.º da petição inicial: O relatório pericial faz expressa menção à persistência de toma de medicação, consistente com as sequelas assinaladas. A necessidade futura de fisioterapia é também consistente com as mesmas sequelas, e a efectiva realização desse tipo de tratamento bem após a consolidação das lesões resulta dos documentos juntos pela autora em 30/08/2022 (fls. 162 e ss). O relatório é omisso sobre a necessidade futura de outro tipo de tratamentos ou cirurgias, que não são facilmente compatibilizáveis com as sequelas registadas
Como se vê, apesar de o relatório médico-legal não acusar que em virtude das lesões sofridas no acidente a autora necessitará no futuro de medicação ou tratamentos, o tribunal a quo julgou provado um facto que afirma essa necessidade por (a) o relatório mencionar que este tempo passado sobre o acidente a autora continua a tomar medicação, (b) os documentos juntos em 30-08-2022, já referidos, mencionarem a recente realização de tratamentos de fisioterapia e (c) os tratamentos serem «consistentes» (sic) com as sequelas.
Este raciocínio não leva em conta que (i) a autora não sofreu qualquer fractura, (ii) os exames radiológicos não acusam qualquer problema ósseo na coluna ou nos membros superiores, (iii) há descontinuidade nos ciclos de tratamentos de fisioterapia, (iv) a situação referida no relatório médico-legal como estando na origem dos tratamentos de fisioterapia documentados é uma «tendinite no ombro esquerdo», (v) essa caracterização da lesão na origem da dor só é referida no relatório médico-legal, (vi) ao invés, nos documentos anteriores e mais próximos do acidente ela não é referida e é dito mesmo que a autora apresenta «boa mobilidade dos membros superiores e inferiores», (vii) a principal causa da tendinite é a lesão por esforço repetitivo, pelo que fica por demonstrar que ela tenha sido causada por um único trauma ocorrido mais de três anos antes.
Por tudo isso, afigura-se-nos que, existam ou não, nos autos não foram demonstradas razões válidas para afirmar o que o relatório médico-legal não afirma!
O mais que se pode julgar provado é o que se colhe do relatório médico solicitado pela autora subscrito pelo médico BB e junto com a respectiva petição inicial, onde se lê «dependências (despesas) futuras: - uso de medicação analgésica (AINEs) nos períodos de agudização» e mais à frente «dependências (despesas) futuras, são previsíveis as atrás descritas». Embora haja sido elaborado unilateralmente, esse documento é subscrito por um médico que terá competências técnico-profissionais para afirmar o que afirma, não havendo, no contexto do caso e dos demais meios de prova, razões para não acolher essa indicação.
A alínea u) passa por isso a ter a seguinte redacção:
«De futuro, em consequência das lesões sofridas no acidente, a autora continuará a necessitar de recorrer pontualmente à toma de medicação analgésica e anti-inflamatória nos períodos de agudização».



IV. Fundamentação de facto:

Estão agora provados os seguintes factos:
a) No dia 29 de Setembro de 2019, pelas 20,00 horas, na Rua ..., junto ao n.º de polícia ..., ..., concelho da Póvoa de Varzim, ocorreu um acidente de viação, por colisão entre o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula n.º ..-TD-.., conduzido por CC, e o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-FT-.., conduzido por DD.
b) O local do acidente configura um cruzamento entre a Rua ..., com orientação sul-norte, e a Rua ..., com orientação este-oeste onde o trânsito é regulado por sinalização luminosa.
c) CC conduzia o TD pela Rua ... no sentido sul-norte, pela metade direita da faixa de rodagem atento o seu sentido e, quando se aproximou do cruzamento, a sinalização luminosa para si voltada apresentava a cor vermelha, mas não obstante CC não imobilizou o veículo e prosseguiu marcha, atravessando o cruzamento.
d) No momento em que atravessava o cruzamento o TD foi embatido na sua parte lateral direita pela parte frontal do FT, que momentos antes transitava pela Rua ..., no sentido nascente-poente.
e) Na circunstância do acidente a autora era transportada no TD no banco da frente do lado direito.
f) Em consequência do acidente a autora sentiu dor na articulação temporo mandibular e temporo occipital esquerda.
g) Em consequência das lesões sofridas no acidente a autora foi assistida no próprio dia 29-09-2019 no Centro Hospitalar ... e ... onde se submeteu a exames radiográfico e teve alta no mesmo dia, mantendo-se um dia em casa em descanso, sofrendo de dores.
h) Posteriormente, em 3-10-2019, com queixas de cefaleias, cervicalgia e dificuldade em mastigar, foi observada em consulta de ortopedia no Hospital Privado ....
i) Para tratamento das lesões sofridas no acidente foi sujeita a 20 sessões de fisioterapia entre 9-10-2019 e 11-11-2019.
j) Posteriormente, por persistência de cefaleias, foi observada em consulta de neurologia no Hospital Privado ... em 6-12-2019, e foi sujeita a ressonância magnética e prescrita medicação analgésica e anti-inflamatória, que ingeriu.
k) Pontualmente, toma ainda hoje anti-inflamatórios ou paracetamol para alívio de dores.
l) Como sequelas das lesões após tratamento a autora sofre de dor a digito pressão nas apófises espinhosas cervicais e contractura para vertebral bilateral.
m) Em consequência de tais sequelas a autora tem dificuldade em posicionar os membros superiores no espaço, por vezes dorme mal, sofre de cervicalgia com irradiação ao ombro esquerdo, e frequentemente ao ombro direito, pontualmente agravadas com alterações climáticas e esforços, tem dificuldade em lavar o cabelo, realizar tarefas domésticas, como passar a ferro, aspirar e usar esfregona, sofre algumas dificuldades na condução automóvel em períodos de maior cervicalgia, reduziu a actividade de organista na paróquia e passou a sentir mais dificuldade em tocar em casamentos, actividade a que se dedica, e tem alguma dificuldade de permanecer muito tempo sentada ao computador.
n) Antes da consolidação das lesões, a autora sentiu grandes dificuldades em prestar cuidados ao seu filho, que à data do acidente não completara ainda dois anos de idade, e em algumas actividades profissionais que implicassem pegar em pesos, como distribuição de cabazes por pessoas necessitadas.
n’) As lesões sofridas pela autora tiveram consolidação médico-legal em 05/11/2020.
o) Em consequência das lesões sofridas, a autora sofreu défice funcional temporário de 404 dias, com repercussão temporária total da actividade profissional de 2 dias e parcial de 402 dias, quantum doloris de grau 3 em 7, e défice funcional permanente na integridade físico-psíquica fixado em 2 pontos.
o’) Em termos de repercussão permanente na actividade profissional, essas sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares na medida do défice funcional atribuído.
p) A autora nasceu em ../../1991.
q) Em consequência do acidente e das lesões sofridas, bem como ao longo do período de recuperação, a autora sentiu susto, dores, que ainda hoje mantém, e sente desgosto e frustração pelas limitações físicas de que padece.
r) À data do acidente a autora exercia as funções de assistente operacional por conta do Município ... e auferia uma remuneração líquida pelo seu trabalho no montante de cerca €625,34 por mês, catorze meses por ano.
s) À data, a autora executava também as tarefas domésticas inerentes à sua vida familiar, com marido e um filho.
u) De futuro, em consequência das lesões sofridas no acidente, a autora continuará a necessitar de recorrer pontualmente à toma de medicação analgésica e anti-inflamatória nos períodos de agudização.
v) Em consultas médicas, meios auxiliares de diagnóstico e sessões de fisioterapia para tratamento das lesões consequentes ao acidente a autora despendeu €520,87.
w) A autora percorreu 502 km em deslocações para os tratamentos e consultas descritos em c) a e), o) e q).
x) A responsabilidade civil por danos causados pela circulação do veículo de matrícula n.º ..-TD-.. foi assumida pela ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...66, vigente à data do acidente.



V. Matéria de Direito:

Na parte que interessa para o conhecimento do recurso, a autora, na formulação do seu pedido, decompôs do seguinte modo o montante que reclama para indemnização dos danos sofridos:
a) danos de natureza não patrimonial 20.000,00 €;
b) TA de 13 meses - trabalho doméstico 7.800,00 €;
c) IPP - DFPIFP de 3 pontos, no mínimo 25.000,00 €.
A isso acrescentou o pedido de condenação no que se vier a liquidar por danos futuros.
O tribunal a quo atribuiu à autora, a título de indemnização pela «perda de rendimento futuro por défice funcional permanente» o montante de €5.809 que disse ter apurado com recurso às fórmulas matemáticas habitualmente utilizadas para apurar um capital produtor de um certo rendimento, considerando a idade da autora, a sua esperança de vida, o seu rendimento e a dimensão do défice.
A seguir atribuiu o valor de €21.000 a título de indemnização pelo dano biológico, sem especificar o que entendia por dano biológico.
Depois atribuiu o valor de €10.000 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, por atenção ao «susto sofrido no acidente, as lesões sofridas, os tratamentos a que a autora se sujeitou, com um período de tratamentos de fisioterapia, o défice funcional temporário, o défice funcional permanente, quantum doloris 3 em 7, e os demais sofrimentos suportados, e a idade da autora».
Por fim, atendeu o pedido de condenação por danos futuros em indemnização a liquidar.
Os recursos de autora e ré colocam vários questões atinentes à determinação da indemnização.
Primeira questão: como fixar a indemnização pelo dano corporal sofrido pela autora e suas repercussões?
A utilização de categorias conceituais no abordagem doutrinal dos danos é útil para isolar os diversos danos ou sublinhar as variadas dimensões do dano. Todavia, o que é importante não são essas categorias, o modo como elas são definidas ou descritas e se compatibilizam entre si, mas sim que nenhum dano fique por indemnizar e a indemnização seja adequada ao efectivo ressarcimento e/ou compensação dos danos suportados pela vítima.
A figura do chamado “dano biológico” adquiriu relevo entre nós com a Portaria n.º 377/2008, de 26/05, na qual, por referência ao dano decorrente de lesões corporais que deixam sequelas, tradicionalmente chamado da “perda da capacidade de ganho”, se passaram a distinguir o “dano patrimonial futuro” e o dano da violação do direito à integridade física e psíquica, designado por dano biológico, em função da medida da incapacidade gerada e da sua repercussão na vida laboral do lesado.
Essa novidade, para além de constituir um estrangeirismo espúrio, uma importação um conceito criado noutro país para responder à idiossincrasia do respectivo sistema jurídico ao nível da indemnização por responsabilidade civil, mas que no nosso sistema jurídico era dispensável porque a nossa legislação já permitia a indemnização da totalidade dos danos, com excepção apenas dos não patrimoniais sem relevo, veio espoletar, como não podia deixar de suceder, o estabelecimento de uma polémica sobre o conceito e sobretudo criar dificuldades no estabelecimento de um novo arranjo das várias categorias que tradicionalmente eram usadas para definir os danos e calcular as respectivas indemnizações.
Não surpreende pois que a jurisprudência não convirja sobre onde inserir o dano biológico para efeitos de cálculo do seu ressarcimento. Uma parte da jurisprudência (talvez maioritária) configura-o como dano patrimonial, muitas vezes reconduzido ao dano patrimonial futuro; outra parte admite que pode ser indemnizado como dano patrimonial ou compensado como dano não patrimonial, segundo uma análise casuística. Assim, em função das consequências da lesão (entre patrimoniais e não patrimoniais) variará também o próprio dano biológico. Existe também uma terceira posição que o qualifica como dano base ou dano-evento que deve ser ressarcido autonomamente (apud Acórdão da Relação de Lisboa de 22.11.2016, proc. n.º 1550/13.4TBOER.L1-7, in www.dgsi.pt).
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.04.2016, proc. n.º 237/13.2TCGMR.G1.S1, in www.dgsi.pt, quanto à qualificação e reparação do dano biológico, consignou-se que deve procurar-se
«…ressarcir as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais. Trata-se das consequências patrimoniais do denominado “dano biológico”, expressão que tem sido utilizada na lei, na doutrina e na jurisprudência nacionais com sentidos nem sempre coincidentes. Certo é que a lesão físico-psíquica é o dano-evento, que pode gerar danos-consequência, os quais se distinguem na tradicional dicotomia de danos patrimoniais e danos não patrimoniais (…). Com esta precisão, a indemnização pela perda da capacidade de ganho tem a seguinte justificação, nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de 10 de Outubro de 2012, … “a compensação do dano biológico [dentro das consequências patrimoniais da lesão físico-psíquica] tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas.” Entende-se que o aumento da penosidade e esforço para realizar as tarefas diárias pode ser atendido no âmbito dos danos patrimoniais (e não apenas dos danos não patrimoniais), na medida em que tenha como consequência provável a redução da capacidade de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas.” Situamo-nos, pois, no domínio dos danos patrimoniais indetermináveis, cuja reparação deve ser fixada segundo juízos de equidade (cf. art. 566º, nº 3, do CC).»
No Acórdão de 25.09.2018, proc. n.º 2172/14.8TBBRG.G1.S1, in www.dgsi.pt, o Supremo Tribunal de Justiça volta a reafirmar o seguinte entendimento:
«Como é sabido, os nossos tribunais em geral e, particularmente, o STJ têm vindo a reconhecer o dano biológico como dano patrimonial, na vertente de lucros cessantes, na medida em que respeita à incapacidade funcional, ainda que esta não impeça o lesado de trabalhar e que dela não resulte perda de vencimento, uma vez que a força de trabalho humano sempre é fonte de rendimentos, sendo que tal incapacidade obriga a um maior esforço para manter o nível de rendimento anteriormente auferido (cf., entre muitos outros, o citado Acórdão do STJ, de 16/6/16, e, ainda, o Acórdão do STJ, de 7/6/11). Dir-se-á, como naquele Acórdão de 16/6/16, que o dano biológico pode projectar-se em duas vertentes: - a perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua actividade profissional habitual ou específica, durante o período previsível dessa actividade, e consequentemente, dos rendimentos que dela poderia auferir; - a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da actividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa actividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expectável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual. Do quadro fáctico … não se extrai que a autora tenha deixado de exercer a sua profissão habitual, por ter ficado a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica …. Consequentemente, não se mostra ajustado determinar a indemnização devida na base de um cálculo matemático, em função do rendimento profissional da autora. Na verdade, em casos como o dos autos, atentas as circunstâncias, a consideração do dano biológico servirá para cobrir, no decurso do tempo de vida expectável, a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, mesmo fora do quadro da profissão habitual, ou para compensar custos de maior onerosidade com o desempenho ou suprimento dessas actividades ou tarefas. No caso, haverá, pois, que ter em consideração que a autora ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica …, o qual, embora compatível com a sua actividade profissional, implica esforços suplementares, o que é de molde a influir negativamente na sua produtividade. Por outro lado, tal limitação é susceptível de reduzir o leque de possibilidades de conseguir outra actividade económica similar, alternativa ou complementar, para mais num mercado competitivo tão exigente como o actual.»
No Acórdão de 21-04-2022, proc. n.º 96/18.9T8PVZ.P1.S1, in www.dgsi.pt, o Supremo Tribunal de Justiça afirma o seguinte:
«Diverge a jurisprudência quanto à classificação, ou melhor, à natureza do chamado dano biológico (o decorrente da incapacidade permanente sem reflexo profissional): se um dano meramente patrimonial, se um dano moral, se um tertium genus. E procuram os vários arestos, cada um à sua maneira, justificar o quantum indemnizatório arbitrado para estes danos geradores de incapacidade permanente que se não repercutam directamente na capacidade de ganho do lesado (na medida em que não implicam uma diminuição da retribuição, embora implicando esforços acrescidos, ou, então, porque o lesado está fora do mercado de trabalho, como ocorre com desempregados, crianças, reformados).
O dano biológico tem suscitado especiais perplexidades na relação com a dicotomia tradicional da avaliação de danos patrimoniais versus danos não patrimoniais, por poder incidir numa, noutra ou em ambas as vertentes. Este dano vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais[..]. É um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, susceptível de afectar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas. Determina perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro, perda essa eventualmente agravável em função da idade do lesado. Poderá exigir do lesado, esforços acrescidos, conduzindo-o a uma posição de inferioridade no mercado de trabalho[..]. Ou, por outras palavras, é um dano que se traduz na diminuição somático-psíquica do indivíduo, com natural repercussão na vida de quem o sofre.
Ora, o dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral; tanto pode ter consequências patrimoniais como não patrimoniais. Ou seja, depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade. Tem a natureza de perda ‘in natura’ que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar [..].
Como quer que seja visto ou classificado este dano, o certo é que o mesmo é sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou do dano não patrimonial. É indemnizável em si mesmo, independentemente de se verificarem consequências para o lesado em termos de diminuição de proventos.
[…] Assim, é entendimento pacífico que mesmo as pequenas incapacidades ainda quando não impliquem directamente uma redução da capacidade de ganho, constituem sempre um dano patrimonial indemnizável (seja de natureza patrimonial, seja como dano não patrimonial – ou, se quisermos, classificado naquele tertium genus), dada a inferioridade em que o lesado se encontra na sua condição física, quanto à resistência e capacidade de esforço.
Com efeito, uma incapacidade permanente parcial não se esgota na incapacidade para o trabalho, constituindo em princípio um dano funcional, mas sempre, pelo menos, um dano em si mesmo que perturba a vida da relação e o bem-estar do lesado ao longo da vida. Pelo que é de considerar autonomamente esse dano, distinto do referido dano patrimonial, não se diluindo no dano não patrimonial, na vertente do tradicional pretium doloris ou do dano estético.
[…] seguindo a posição maioritária da jurisprudência e por uma questão de rigor, dado que o dano biológico é distinto do dano não patrimonial (artigo 496.º do Código Civil) que se reconduz à dor, ao desgosto, ao sofrimento de uma pessoa que se sente diminuída fisicamente para toda a vida, entendemos (tal como se fez na decisão recorrida) ser de autonomizar, como dano patrimonial futuro esse maior esforço que a Autora terá de efectuar ao longo da sua vida activa.
Ora, não sendo possível determinar o valor exacto do dano ora em causa, tal avaliação terá de ser efectuada recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566 º n.º 3 do CC. Isto é, a equidade terá de ser sempre um elemento essencial no cálculo do dano aqui sob apreciação, independentemente de se considerar o dano biológico numa vertente meramente patrimonial, mais ou menos patrimonial ou... como um tertium genus.
[…] E porque não estamos perante uma imediata redução da capacidade de ganho, como já observámos, não se justifica o recurso às tabelas financeiras para se encontrar um capital que se extinga no fim da vida activa e seja susceptível de garantir, durante esta, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho.
Sendo um dano biológico sem reflexo na capacidade de ganho, apenas impondo um maior esforço, a acarretar um dano funcional que perturba a vida de relação e bem-estar da Autora, para o cálculo da respectiva indemnização, há, portanto, que fazer apelo aos supra aludidos juízos de equidade, tendo em consideração, designadamente, a esperança de vida da Autora, o grau de incapacidade permanente de que ficou a padecer e a sua actividade profissional.»
Não obstante, Paulo Mota Pinto, in Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Volume I, Coimbra Editora, 2008, pág. 531, afirma, com total pertinência, que:
«distinguir em concreto entre o que é “dano-evento” e os “danos-consequência” resulta frequentemente difícil, desde logo, porque todos os danos são consequentes ao facto que obriga à reparação (nomeadamente, ao facto ilícito). […] se pode existir um ilícito sem dano, se há um verdadeiro dano (ainda que como “evento”), não podem deixar de existir também consequências danosas, não se podendo operar uma cisão entre os dois momentos, “existencial” e “quantitativo”, do dano. Pensamos que entre nós deve rejeitar-se o emprego da noção de “dano” para designar o evento lesivo ou lesão ilícita em si mesmos, não existindo a mesma necessidade de duplicação do dano em “dano-evento” e “dano-consequência”. Esta distinção … difundiu-se mais recentemente em Itália, designadamente pela jurisprudência, sobretudo para permitir ultrapassar a tipicidade do ressarcimento de danos não patrimoniais resultante do artigo 2059.º do Codice Civile (“nos casos determinados pela lei”, e em particular os de crime), quer do chamado “dano biológico’’, quer de uma série de outros danos, considerados como “dano-evento” (…). Tal duplicação do dano – incluindo logo a mera lesão do interesse, independentemente de consequências prejudiciais – não é, aliás, defendida normalmente na nossa doutrina, salvo raras excepções. Por outro lado, ela também não resulta do Código Civil, que fala antes na “lesão” (ou no “evento que obriga à reparação”) e nos “danos” desta resultantes (cf. os arts. 562.º, 563.º, 564.º, n.º l), situando-se os últimos, claramente, na previsão normativa relativa às consequências da lesão (para o que concorre também o facto de se falar de “danos”, e não de dano), e não na que incide sobre a fundamentação da responsabilidade. Preferimos, pois, falar (em vez de “dano-evento” e “dano-consequência”) de “lesão”, ou evento lesivo, relevante para a fundamentação da responsabilidade, e de “danos”, pertinentes inteiramente à determinação das consequências da responsabilidade. É a lesão (rectius, a conduta lesiva), enquanto afecta interesses (viola deveres), que é objecto do juízo que fundamenta a responsabilidade (ilicitude), enquanto o dano se traduz, mais rigorosamente, em geral numa ofensa ou lesão de bens, patrimoniais ou não, relevante já em sede de avaliação das consequências da responsabilidade».
O que dizer, segundo a nossa opinião.
Quando o lesado é atingido no corpo ou na saúde, sofre um dano biológico (rectius, no corpo).
O dano biológico corresponde ao dano no corpo e/ou na saúde da vítima e a sua repercussão no desempenho das tarefas da vida da vítima, sejam elas pessoais ou profissionais (e aqui estamos a incluir o chamado dano do esforço e/ou sofrimento acrescido no desempenho das tarefas profissionais ou da vida pessoal), reiteradas ou ocasionais, instantâneas ou duradouras.
Sempre que há uma afectação ou perturbação da integridade psicofísica do indivíduo, produz-se este dano, independentemente das sequelas e consequências que venham depois a derivar da lesão.
Se a lesão é totalmente curada e não deixa sequelas, o dano biológico foi temporário e deve ser indemnizado como tal. Se, após a cura, a lesão deixa sequelas que se traduzem em défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, o dano biológico é permanente e deve ser indemnizado, além do mais, como dano futuro.
As consequências desse dano podem ser bem distintas.
Nuns casos a perda genérica de potencialidades funcionais do lesado determina uma redução efectiva das capacidades para angariar rendimentos do trabalho e/ou para realizar as tarefas da vida privada quotidiana, pelo que o dano tem uma repercussão patrimonial inequívoca que deve ser levada em conta no método de cálculo da indemnização, autorizando o recurso ao cálculo do dano com as tabelas financeiras conhecidas.
São os casos, por exemplo, em que o lesado tem de ser objecto de uma reconversão profissional ou as suas funções têm de ser reduzidas e passa a receber um salário diferente; ou se torna incapaz de realizar determinada tarefa e necessita de contratar outrem para a realizar.
Noutros casos, as sequelas das lesões, não obstante determinarem um défice funcional permanente, permitem ao lesado continuar a desenvolver a sua actividade privada e/ou laboral, situação em que já não é tão líquida a repercussão patrimonial do dano, rectius, a sua recondução a uma diferença com expressão patrimonial.
Entre estes casos, podem ainda distinguir-se as situações em que o exercício da actividade profissional só é possível em condições mais penosas e/ou com maior sacrifício pessoal, das situações em que nem isso ocorre, ainda que o défice funcional exista e não deixe de se repercutir nas actividades da vida pessoal, social e profissional do lesado.
Na primeira das situações pode entender-se que o défice funcional tem repercussão ao nível da capacidade de angariação de rendimentos, não por determinar uma perda efectiva de rendimentos do trabalho, mas por ter a potencialidade de fazer diminuir a capacidade de melhorar a situação profissional (separando as noções de perda de capacidade de ganho e perda funcional com reflexo negativo nas possibilidades de incrementar os ganhos).
No caso, resulta da matéria de facto provada que as lesões determinaram para a autora sequelas que equivalem a um défice funcional permanente de apenas 2 pontos em 100.
Esse défice tem repercussão nas actividades da vida diária, profissionais e pessoais, na medida em que importa maior sacrifício ou mais dificuldade na sua execução, mas é impossível sustentar que tal défice, precisamente pela sua baixa expressão (2 pontos em 100) importa quer uma perda de capacidade de ganho quer uma perda funcional com reflexo negativo nas possibilidades de incrementar os ganhos.
Nessa medida, aplicando a interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça vem fazendo, o dano biológico em causa deve ser avaliado com base na equidade e não com recurso às tabelas financeiras usadas para calcular o dano patrimonial futuro quando sobrevém uma perda da capacidade de ganho.
A essa indemnização apurada com base na equidade não acresce uma indemnização autónoma pela perda futura da capacidade aquisitiva de rendimentos, uma vez que os factos provados não revelam ter havido comprometimento da capacidade de angariação de rendimento.
Em sede de apuramento do valor da indemnização por recurso à equidade, cremos que não é necessário distinguir entre a repercussão das dores no âmbito profissional e no âmbito pessoal.
Desde logo, porque no caso a matéria de facto não contém qualquer descrição da natureza dos actos que a autora executa no exercício da sua profissão em ordem a permitir uma avaliação mais precisa do conteúdo que a expressão «esforços acrescidos» (usada pelos peritos médicos em todo e qualquer caso em que a pessoa exerce uma profissão!) pretende significar no caso, sendo certo que isso não pode ser idêntico para quem desempenha funções que implicam esforço e desenvoltura física ou para quem executa as suas tarefas profissionais sentado numa secretária.
Diga-se que na petição inicial só é alegado que a autora tem formação académica de nutricionista e é técnica superior por conta de um Município, que a fundamentação de facto apenas refere que a autora exerce funções de assistente operacional; e que a autora só juntou aos autos parte do contrato de trabalho em funções públicas sem a parte com a … definição do conteúdo das funções.
Depois não faz sentido porque sejam os actos profissionais ou pessoais (próprios da vida familiar, doméstica ou mesmo íntima) estamos sempre a falar do mesmo: das dores que a autora sente na realização de determinados actos, movimentos, posturas ou esforços. É disso e só disso que se trata.
Por fim, não faz sentido porque quanto mais distinguirmos o que é indistinguível em concreto maior risco corremos de incorrer em indemnizar mais que uma vez o mesmo dano.
Dito isso.
Levando em conta a afectação corporal suportada pela autora (apenas um traumatismo), os tratamentos que implicou (unicamente de fisioterapia) e as sequelas que determinou (apenas a maior dificuldade ou sacrifício pessoal), em particular o baixo grau de défice permanente da integridade física (2/100) e a sua repercussão ao nível das actividades pessoais e familiares, e tendo presentes os valores fixados noutras decisões dos tribunais superiores nacionais publicadas tendo por objecto situações em que as sequelas são aproximadas, afigura-se-nos que o valor indemnizatório fixado em 1.ª instância (€5.809 + €21.000 = €26.809) excede o adequado à justa indemnização pelo dano biológico, incluindo a sua repercussão ao nível do desempenho de actividades, sejam elas pessoais e/ou laborais.
Importa com efeito não descurar que se trata de uma fixação com base na equidade e para ressarcimento de danos que não têm expressão patrimonial directa (não são calculáveis por aplicação da teoria da diferença) e que a autora tem uma profissão que lhe proporciona um salário mensal inferior a €800.
Acresce que no caso concreto (e a justiça é sempre a que o caso concreto reclama e justifica) para além de o défice ser muito reduzido, quase nulo, não está demonstrado que a profissão da autora exija que ela que permaneça sentada durante períodos alargados e contínuos, que utilize incessantemente o corpo e, em particular, os membros, que realize tarefas e movimentos repetidos continuamente e para cuja execução se requeira disponibilidade física, agilidade e destreza (situação que justificaria uma indemnização superior).
Assim, e só porque se leva já em conta a circunstância de no futuro a autora ir necessitar por vezes de tomar alguma medicação para as dores (analgésicos e anti-inflamatórios), entende-se fixar o montante da indemnização pelo dano biológico suportado pela autora (note-se, correspondente à soma das duas parcelas da indemnização fixada na 1.ª instância e que são objecto do recurso) no montante de 10.000,00€.
Segunda questão: deve manter-se a condenação no pagamento de indemnização por danos futuros em montante a liquidar?
O artigo 564.º do Código Civil relativo ao cálculo da indemnização estabelece que o dever de indemnizar compreende todos os danos, sejam eles o dano emergente (prejuízo causado) ou o lucro cessante (benefícios que o lesado deixou de obter), mais precisando que a indemnização pode incluir os danos futuros, desde que estes sejam previsíveis, e se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior.
Para Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. 1, 10ª edição, 2000, pág. 911, a lei manda atender ao danos futuros, desde que previsíveis, devendo o requisito da previsibilidade verificar-se «com suficiente segurança». Para Vaz Serra, in Boletim do Ministério da Justiça, 84, 1959, págs. 253-254, com base nos trabalhos preparatórios, é necessário que os danos futuros «sejam previsíveis com segurança bastante, porque, se o não forem, não pode o tribunal condenar o responsável a indemnizar danos que não se sabe se virão a produzir-se; se não for seguro o dano futuro, a sua reparação só pode ser exigida quando ele surgir. A segurança do dano pode resultar de probabilidades».
Enquanto requisito da indemnização de danos futuros a previsibilidade demanda um elevado grau de probabilidade do dano, considerando os efeitos comuns associados à lesão causada e as circunstâncias particulares do lesado e do evento.
Como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-01-2025, proc. n.º 8450/21.2T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt:
[A] «decisão que condene na reparação de danos futuros reclama, necessariamente, um juízo de prognose, que assenta em dados probabilísticos aplicados aos factos presentes de que o tribunal disponha, previsão do juiz que versa sobre a ocorrência do dano, a sua extensão e a sua quantificação. Quanto à ocorrência do dano, a lei requer apenas que ela seja previsível, para que o tribunal possa condenar o responsável na indemnização; quanto à extensão e à quantificação do dano, não se exige que possam ser logo previstas; caso o sejam, a condenação versará o dano com a extensão e o valor que esteja apurado; caso contrário, será proferida uma condenação genérica, que não dispensa uma decisão ulterior (art.º 564.º, n.º 2, in fine, do Código Civil, 358.º a 361.º do CPC). O critério do dano futuro é o da previsibilidade da sua produção, à luz do curso normal ulterior dos acontecimento, do id plerumque accidit, daquilo que, de harmonia com regras de experiência e critérios sociais, normalmente acontece. Não basta, todavia, que o dano seja antevisto como simplesmente possível, sendo necessário que seja previsível com um razoável grau de certeza: a produção do dano não carece de ser representada como inevitável – mas não basta que seja representada como uma mera eventualidade
Alterada que foi a fundamentação de facto e excluída a prova de que em consequência das lesões sofridas neste acidente a autora vai necessitar no futuro de realizar de forma regular tratamentos de fisioterapia, está afastado o pressuposto de que dependia aquela condenação.
O mero facto de ter ficado provado que volta e meia irá necessitar de tomar anti-inflamatórios e analgésicos não justifica essa condenação uma vez que se tratará sempre de um dano de reduzida expressão que pode perfeitamente ser atendido já na fixação da indemnização do dano biológico, como foi feito.
Terceira questão: deve ser atribuído um valor indemnizatório específico por a autora ter sido afectada na execução das tarefas da sua vida familiar e doméstica?
Conforme já foi referido a propósito do dano biológico, o dano corporal sofrido pela autora gerou efeitos tanto a nível profissional como a nível da vida familiar e doméstica.
Em consequência do traumatismo (golpe de coelho) causado pelo choque dos veículos a autora sofreu dores, as quais limitaram a sua capacidade de aproveitar o corpo para realizar actos que envolvessem a utilização dos membros, a realização de esforços, a movimentação do corpo.
Por isso a autora sofreu um dano e esse dano deve ser indemnizado na totalidade, quer no que respeita às respectivas consequências no desempenho da profissão, quer no que tange às consequências ao nível da vida pessoal, privada, familiar. Não há qualquer diferença; não há que excluir quaisquer consequências ou repercussões.
A questão não é essa, porém. O que a recorrente questiona é se a afectação da vida familiar e pessoal deve ser monetarizada, convertida em pecúnia, como se se tratasse de uma actividade geradora de riqueza económica.
Salvo melhor opinião, quando faz a vida doméstica, passa a ferro, faz as refeições, cuida dos filhos, faz compras, tem relações íntimas, etc., uma pessoa não gera rendimentos e, consequentemente, também não os perde quando executa essas actividades com dores, com mais esforço, com menos disponibilidade ou vontade!
Se a privação impuser a necessidade de a pessoa recorrer a um terceiro para a substituir mediante remuneração ou compensação pecuniária, a pessoa sofre um dano emergente, passível de ser computado economicamente através da teoria da diferença. Não sendo esse o caso, sofre um dano não patrimonial susceptível de mera compensação por equivalente, ou seja, fixando-se um valor indemnizatório, com base na equidade, para dar à pessoa um benefício que ela possa encarar como compensador do sofrimento suportado.
Foi isso que se fez em sede de apreciação do dano biológico e que esteve presente na aferição das consequências que conduziram ao valor da indemnização então fixado. Não há, pois, que fixar qualquer outro valor específico para indemnizar/compensar também esta repercussão além do já fixado.
Repare-se que no caso a autora pretende ser indemnizada como se durante a totalidade do período que decorreu até à consolidação médico-legal das lesões tivesse estado impedida de realizar qualquer todas as tarefas da sua via familiar e doméstica, quando não existe absolutamente nenhum facto que indicie sequer essa impossibilidade e muito menos uma impossibilidade dessa magnitude.
Bem andou pois o tribunal a quo ao recusar atribuir o valor indemnizatório reclamado pela autora com essa finalidade ressarcitória.
Quarta questão: que valor deve ser fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais?
A apreciação desta questão pressupõe que se tenham presentes os factos provados a respeito deste dano.
· Em consequência do acidente a autora sentiu apenas dor na articulação temporo mandibular e temporo occipital esquerda.
· Foi conduzida ao hospital, realizou exames radiográficos que nada acusaram, teve alta no próprio dia. Manteve-se em casa no dia seguinte em descanso, por causa das dores.
· Quatro dias depois foi a uma consulta médica com queixas de cefaleias, cervicalgia e dificuldade em mastigar. Foi-lhe prescrita a realização de sessões de fisioterapia, tendo realizado 20 sessões.
· Depois disso, ainda com queixas de cefaleias, foi a uma consulta de neurologia, tendo realizada uma ressonância magnética que também nada acusou, e foi-lhe prescrita medicação analgésica e anti-inflamatória, que tomou.
· Toma pontualmente anti-inflamatórios ou paracetamol, o que continuará a suceder, no futuro, pontualmente, nos períodos de agudização.
· Apresenta dor quando se pressionam as apófises espinhosas cervicais e contractura para vertebral bilateral, o que causa dificuldade em posicionar os membros superiores no espaço e cervicalgia com irradiação ao ombro esquerdo e frequentemente ao ombro direito.
· Por vezes dorme mal, tem dificuldade em lavar o cabelo, passar a ferro, aspirar e usar esfregona, tem algumas dificuldades na condução automóvel em períodos de maior cervicalgia,
· Em consequência disso passou a sentir mais dificuldade em tocar órgão, tendo reduzido a actividade de organista, tem alguma dificuldade em permanecer muito tempo sentada ao computador, sentiu grandes dificuldades em prestar cuidados ao seu filho bebé e nalgumas actividades profissionais que implicassem pegar em pesos, como distribuição de cabazes por pessoas necessitadas.
· As lesões tiveram consolidação médico-legal em 05/11/2020.
· A autora sofreu défice funcional temporário de 404 dias, com repercussão temporária total da actividade profissional de 2 dias e parcial de 402 dias, quantum doloris de grau 3 em 7.
· À data do acidente a autora era assistente operacional no Município ... e auferia a remuneração líquida mensal de cerca €625,34.
Na decisão recorrida foi fixada a indemnização por este dano no montante de €10.000.
Deitando os olhos às decisões jurisprudenciais publicadas que arbitram indemnização por danos não patrimoniais em situações aproximadas e sopesando a baixíssima expressão das lesões e a muito pequena repercussão do acidente na vida da autora, o valor fixado na 1.ª instância não nos merece reservas e, sobretudo, parece-nos injustificado e indefensável o seu aumento.



VI. Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso da autora totalmente improcedente e o recurso da ré parcialmente improcedente; em consequência, fixam o valor da indemnização pelo dano biológico que a 1.ª instância dividiu em €5.809 e €21.000, no valor único de €10.000 (dez mil euros), mantendo no mais a sentença recorrida.

Custas dos recursos na medida dos respectivos decaimentos.
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Porto, 20 de Fevereiro de 2025.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 875)
1.º Adjunto: António Carneiro da Silva
2.º Adjunto: Paulo Duarte Teixeira



[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]