EMBARGOS DE EXECUTADO
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
CRÉDITO SOBRE A INSOLVÊNCIA
CRÉDITO SOBRE A MASSA INSOLVENTE
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Sumário

- Deverão ser tidos como créditos sobre a insolvência aqueles cujo fundamento já existia à data da declaração da insolvência (art.º 47.º do CIRE), sendo que serão já créditos sobre a massa insolvente os que se constituam na pendência do processo (art.º 51.º do CIRE);
- Não pode um crédito exequendo ser considerado como crédito sobre a insolvência, se foi constituído em data posterior à declaração de insolvência, porque falha o requisito temporal previsto no art.º 47º nº 1 do CIRE para ser classificado com crédito sobre a insolvência: ter fundamento em data anterior à data da declaração de insolvência;
- Atendendo a que a declaração judicial exoneração do passivo restante, de que beneficia a recorrente/executada, só abrange os créditos sobre a insolvência - o que não sucede com o crédito exequendo -, bem andou o Tribunal a quo, ao considerar que aquele não se encontra extinto por força do art.º 245º do CIRE.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. O relatório

A presente execução para pagamento de quantia certa foi instaurada em 29-02-24 por “N… Unipessoal Lda” contra CB e AS – sendo apresentado como título executivo uma sentença condenatória (de 21-12-23 no processo 3740/20).

O embargante alega que a sentença foi proferida no decurso do processo da sua insolvência (decretada em 23-05-17), e que foi concedida exoneração do passivo restante em 14-09-22.

 Respondeu a embargada que, por decisão de 19-05-22 e na acção declarativa (transitada em julgado), foi julgado improcedente (por a resolução do contrato ter ocorrido depois do encerramento do processo de insolvência) o pedido de absolvição da instância (por ilegitimidade decorrente da insolvência).

Por despacho de 24-04-24, foram liminarmente admitidos os embargos deduzidos pelo 1º executado – tendo a exequente deduzido contestação.
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Tendo em conta as regras dos arts. 732º/2, 593º/1, 591º/1d) e 595º/1 do CPC, foi dispensada a realização da audiência prévia.
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Em sede de despacho saneador e no dia 07/10/2024, foi proferida a seguinte decisão:

Face ao caso julgado supra, resta saber se a exoneração do passivo restante constitui “facto extintivo ou modificativo” da obrigação (CPC 729º/g)) – estabelecendo o nº 1 do artigo 245º do C.I.R.E. que “A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no nº 4 do artigo 217º.”
Atenta a definição do artigo 47º/2 do C.I.R.E., e a data de resolução do contrato (provada na sentença), não se pode considerar o crédito exequendo como “crédito sobre a insolvência” - pelo que não tem lugar a aplicação da regra supra citada.
Motivo por que se julgam improcedentes as excepções.

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Inconformado, o opoente CB interpôs recurso de apelação para esta Relação e formulou na sua alegação as seguintes conclusões:

I.O Senhor Juiz do Tribunal a quo veio, em 07/10/2024, proferir sentença, julgando improcedente os embargos apresentados pelo ora Recorrente, desconsiderando a exoneração do passivo restante concedida em 14 de Setembro de 2022.
II O Tribunal a quo, considerou que o crédito exequendo não constituía crédito sobre a insolvência com base na data de resolução do contrato, sem observar que os factos geradores do incumprimento ocorreram durante o processo de insolvência, o que torna o crédito parte do passivo restante e, assim, extinto com a exoneração.
III O crédito exequendo foi erroneamente caracterizado, como não estando abrangido pela insolvência.
IV O Tribunal “a quo” falhou ao não aplicar a regra do artigo 47º do C.I.R.E., que inclui o referido crédito no passivo a ser exonerado, uma vez que a sentença condenatória apenas reconhece formalmente uma obrigação preexistente, originada antes da insolvência.
V A finalidade da exoneração do passivo restante tem o objectivo de permitir ao devedor uma “segunda oportunidade” sem o prejuízo de dívidas antigas. Sendo que, ao negar a aplicação da exoneração ao crédito exequendo, o Tribunal viola o princípio fundamental do C.I.R.E., que é assegurar ao devedor um novo começo financeiro.
VI Não foi demonstrado que o crédito exequendo incorre em nenhuma das excepções previstas no artigo 245º, n.º 2 do C.I.R.E., como coimas, créditos fiscais ou factos ilícitos dolosos, razão pela qual deveria ser incluído na exoneração do passivo restante.
VII O Tribunal cometeu um erro de interpretação e aplicação dos artigos 245º e 47º do C.I.R.E. ao qualificar o crédito como excluído da exoneração, desconsiderando o facto de que os eventos que originaram a divida, ocorreram durante o processo de insolvência, devendo, por isso, ser considerados créditos sobre a insolvência. Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão deve o presente Recurso obter provimento, e, em consequência, deve a Sentença proferida pelo Tribunal a quo ser revogada e, consequentemente, ser declarado o crédito exequendo extinto em virtude da exoneração do passivo restante concedido em 14 de Setembro de 2022.

N…, UNIPESSOAL, LDA, exequente, contra alegou nos seguintes termos:

I – A decisão sob recurso
1. Na ação executiva para pagamento de quantia certa, instaurada pela N…, Unipessoal, Lda., ora apelada, contra CB e AS, com base na sentença condenatória proferida no processo 3740/20.4T8OER, do Juízo Local Cível de Oeiras, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, a que os Embargos de Executado com o n.º 883/24.9T8OER-A do Juízo de Execução de Oeiras, vão apensos, veio o ora apelante deduzir Oposição.
2. Apresentadas no requerimento inicial as razões de facto e de Direito pelas quais o embargante peticionou a procedência da Oposição, contestou a embargada, pugnando pela respetiva improcedência. Tramitado o processo nos termos legais, veio a ser proferida a douta sentença em que o Tribunal de 1.ª instância declarou: “Pelo exposto, julgam-se improcedentes os presentes embargos.” É contra esta decisão que se insurge o apelante, com os fundamentos expostos na alegação que remata com as conclusões que enumera de I a VII.
II - As questões a decidir
3. Em face das conclusões da alegação do apelante, salvo melhor entendimento, considera a apelada que a questão a decidir pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa é apenas a seguinte: Tendo o embargante sido declarado insolvente, com exoneração do passivo restante concedida em 14/09/2022, deve o crédito exequendo ser considerado como crédito sobre a insolvência e, como tal, subtraído à ação executiva instaurada pela exequente? Vejamos, então, qual o entendimento da apelada no que respeita à questão contida nas conclusões do apelante.
III – Da existência de facto extintivo (ou modificativo) do crédito exequendo
4. Depende a procedência da oposição por embargos da existência, no caso em apreço, de facto extintivo ou modificativo da obrigação cujo cumprimento a exequente exige por via da ação executiva. Entende, pois, o apelante que a concessão da exoneração do passivo restante no processo em que foi declarado insolvente, consubstancia esse facto extintivo do crédito exequendo. Porém, com o devido respeito, sem razão.
5. Fundamentou o M.mo Senhor Juiz a quo a decisão recorrida, em síntese, no seguinte: (…) estabelecendo o nº 1 do artigo 245º do C.I.R.E. que “A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no nº 4 do artigo 217º.” Atenta a definição do artigo 47º/2 do C.I.R.E., e a data de resolução do contrato (provada na sentença), não se pode considerar o crédito exequendo como “crédito sobre a insolvência” - pelo que não tem lugar a aplicação da regra supra citada.”
6. Impugnando a douta decisão, invoca o apelante que “O Tribunal a quo, considerou que o crédito exequendo não constituía crédito sobre a insolvência com base na data de resolução do contrato, sem observar que os factos geradores do incumprimento ocorreram durante o processo de insolvência, o que torna o crédito parte do passivo restante e, assim, extinto com a exoneração” – conclusão II que, na verdade, sintetiza os fundamentos do recurso. Porém, salvo o devido respeito, labora sobre um equívoco, quanto ao momento em que é gerada a dívida exequenda.
7. Com efeito, dispõe o artigo 47.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE: «(1) Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio. (2) Os créditos referidos no número anterior, bem como os que lhes sejam equiparados, e as dívidas que lhes correspondem, são neste Código denominados, respectivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência. (…)». Contudo, o crédito exequendo não tem por fundamento factos anteriores à data da declaração de insolvência do apelante.
8. O crédito da apelada, fixado na sentença condenatória dada à execução, decorre da resolução de um contrato, promovida pela exequente, por virtude do incumprimento contratual por parte dos executados. É, salvo melhor opinião, pela resolução do contrato que se constitui a obrigação dos executados, que ocorreu em data posterior à declaração de insolvência, e não com os factos que correspondem ao incumprimento contratual, os quais podem ter ocorrido no decurso do processo de insolvência ou em momento anterior.
9. Sobre esta questão releva mencionar a fundamentação do douto despacho de 19/05/2022, transitado em julgado e com o qual o apelante se conformou, proferido nos autos declarativos (Processo 3740/20.4T8OER), da qual consta o seguinte: “No caso em apreço verifica-se que à data da declaração de insolvência do Réu [o ora apelante] (23/05/2017) ainda não tinha emergido na esfera jurídica da Autora o direito de que se arroga titular, o qual só despontou com a resolução do contrato (ocorrida em 31/07/2020) razão pela qual nunca o poderia ter sindicado no processo de insolvência, uma vez que, nessa data, este processo já se encontrava encerrado.”
10. Deste modo, nunca o crédito exequendo poderia ser considerado como “parte do passivo restante [na insolvência do apelante] e, assim, extinto com a exoneração”. Bem andou, portanto, o M.mo Senhor Juiz do Juízo de Execução de Oeiras ao decidir pela improcedência dos Embargos de Executado.
Pelo exposto, e sempre com o mui douto suprimento dos Meritíssimos Senhores Desembargadores deste Tribunal da Relação, deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se em tudo a douta sentença recorrida.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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II. Objecto e delimitação do recurso

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo. Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável).
Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, a questão a resolver é a seguinte:
-Tendo o embargante sido declarado insolvente, com exoneração do passivo restante concedida em 14/09/2022, saber se deve o crédito exequendo ser considerado como crédito sobre a insolvência e, como tal, subtraído à ação executiva instaurada pela exequente.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
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III. Os factos

Os factos relevantes são os referidos no relatório supra, acrescidos dos factos dados como provados na sentença exequenda e que infra damos como reproduzidos:

1. A Autora alterou a sua denominação social para N…, Unipessoal, Lda.
2. A Autora acordou com os Réus, no exercício da atividade comercial própria da Autora e da 1.ª Ré para o seu estabelecimento comercial o acordo escrito n.º 29281 datado de 25-05-2015 de fornecimento de café, comparticipação publicitária, comodato de equipamento e comodato material ponto de venda, conforme documento n.º 1 nos precisos termos aqui dados por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
3. A duração do acordo n.º 29281 foi inicialmente estipulada por um período de 60 meses e com início em 25-05-2015 (Cláusula 7ª do doc. n.º 1).
4. No âmbito deste acordo, a 1.ª Ré obrigou-se a consumir, em exclusivo, no seu estabelecimento comercial, café de marca BUONDI, Lote PREMIUM, comercializado pela Autora (Considerandos e Cláusulas 1ª e 2ª do doc. 1);
5. Tendo-se obrigado a adquirir 3.900 Kgs deste produto, num mínimo mensal de 65kgs (cláusula 2ª nº 2 do doc. 1).
6. Como contrapartida das obrigações assumidas, a Autora entregou à 1.ª Ré a título de comparticipação publicitária a quantia de 38.868,00€ IVA incluído (cláusula 4ª do doc.1 e documentos 2 e 3).
7. Como contrapartida das obrigações assumidas, a Autora colocou no estabelecimento comercial da 1.ª Ré, em regime de comodato, o seguinte equipamento:
a) 1 Moinho Rancilio Md50 At, no valor de 728,30€ + IVA;
b) 1 Máquina de café Rancilio Basic 2G, no valor de 4.500,00€ + IVA à taxa em vigor;
Tudo no valor global de 6.430,81€ IVA incluído (cláusula 5ª do doc.1);
8. Como contrapartida das obrigações assumidas, a Autora colocou no estabelecimento comercial da 1.ª Ré, em regime de comodatado, o seguinte material ponto de venda:
a) 2 (dois) Paraventos no valor de 754,00€ + IVA à taxa legal em vigor;
b) 1 (um) Reclame Luminoso no valor de 11.927,00€ + IVA à taxa lega em vigor;
Tudo no valor global de 15.597,63€ IVA incluído (cláusula 6.ª do doc.1)
9. Em Maio de 2017 a 1.ª Ré realizou a última aquisição de café à Autora e não mais retomou o seu consumo.
10. Tendo apenas comprado à Autora 992 Kgs de café dos 3.900Kgs que se havia obrigado.
11. Nos termos do acordado no n.º 2 da Cláusula 9.ª do doc. 1 é fundamento de resolução do contrato um desvio nos consumos mensais acordados nos termos do nº 2 da Clausula 2ª superior a 20%, por um período de 6 meses consecutivos.
12. Em consequência, a Autora enviou aos Réus, carta registada com aviso de receção, datadas de 26-05-2020, interpelando-os para que corrigissem o incumprimento contratual (vide documentos 4, 5 e 6).
13. Não obstante, a carta enviada à 1.ª Ré ter sido devolvida pelos CTT, foi remetida para a morada constante do contrato.
14. As cartas remetidas aos 2.º e 3.º Réus foram recebidas, em 28-05-2020.
15. Face à persistência no incumprimento contratual acima descrito, por cartas registadas com aviso de receção datadas de 31-07-2020 enviadas aos Réus, a Autora procedeu à resolução do contrato e interpelou aqueles para que efetuassem o pagamento dos valores indemnizatórios estabelecidos nos termos dos números 2 e 3 da cláusula 5ª do documento n. º1 (documentos 7, 8 e 9).
16. Não obstante, a carta enviada à 1.ª Ré ter sido devolvida pelos CTT, foi remetida para a morada constante do contrato, não tendo sido comunicada à Autora nova morada.
17. As cartas remetidas aos 2.º e 3.º Réus foram recebidas, em 06-08-2020.
18. Nos termos do n.º 3 da cláusula 5.ª da epígrafe “Comparticipação Publicitária”, terminado o contrato, sem que os Réus adquiram a totalidade dos quilogramas de café contratados, estão obrigados a indemnizar a Autora, no montante de 10,00€ por cada quilograma de café não consumido, dos 3.900 kgs contratados.
19. O valor da indemnização a pagar à Autora nos termos do identificado artigo atinge o montante de 29.080,00€ (3.900Kgs contratados – 992Kgs consumidos = 2.908 Kgs em falta x 10,00€).
20. Os 2º e 3.º Réus assinaram o contrato identificado nos autos como doc. 1, na qualidade de fiadores, obrigando-se nessa qualidade.
21. Com efeito e de acordo com a cláusula 10ª do doc. 1 resulta claramente que os ditos Réus, constituíram-se expressamente fiadores e principais pagadores de todas as obrigações assumidas pela segunda outorgante no presente contrato.
22. Os Réus, apesar de interpelados pela Autora pelas cartas datadas 31-07-2020 respetivamente, não realizaram o pagamento de qualquer quantia.

E, ainda, os seguintes factos:

a) Em 16/04/2024, o ora Recorrente apresentou nos autos Embargos de Executado e Oposição à Penhora, nos quais alegou:

“Por sentença de 23/05/2017, proferida no âmbito do processo n.º 11520/17.8T8LSB, o qual correu termos no Juízo de Comércio de Lisboa, Juiz 3, foi o Executado declarado insolvente.”

b) Em 14/09/2022, no âmbito do referido processo de insolvência foi proferida Sentença nos seguintes termos:

“Decisão final do pedido de Exoneração do Passivo Restante conforme despacho de 22.2.2018 foi deferido o pedido de exoneração do passivo restante e fixado como rendimento indisponível, o valor correspondente a uma vez e meia a Remuneração Mínima Garantida.”
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IV. O mérito do recurso
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O Direito

Estabilizado o quadro factual do litígio, cumpre agora analisar juridicamente a pretensão do recorrente, à luz do mesmo.
Na execução a que os presentes autos de oposição se encontram apensos, o título executivo é uma sentença judicial já transitada em julgado.
Na sentença exequenda, já transitada em julgado, a aqui recorrente/executada foi condenada no pagamento de “… no pagamento à Autora da quantia de 29.080,00€, a título de  indemnização por café não consumido, e, dos juros moratórios vencidos, aplicando as taxas de juro legais e sucessivas fixadas para os créditos de que são titulares empresas comerciais, contados desde a data limite fixada pela Autora para os Réus procederem ao pagamento da sua divida (19-08- 2020), os quais até 13-11-2020, ascendem a 479,62€, e juros vincendos até integral e efectivo pagamento.”
A recorrida, em 29/02/2024, instaurou execução para cobrança coerciva das importâncias supra referidas.
Em 16/04/2024, o ora recorrente alegou nos autos Embargos de Executado e Oposição à Penhora, que “Por sentença de 23/05/2017, proferida no âmbito do processo n.º 11520/17.8T8LSB, o qual correu termos no Juízo de Comércio de Lisboa, Juiz 3, foi o Executado declarado insolvente.”
Ainda no âmbito de tal processo de insolvência, conforme despacho de 22.2.2018, foi deferido o pedido de exoneração do passivo restante pelo insolvente/recorrente e fixado como rendimento indisponível, o valor correspondente a uma vez e meia a Remuneração Mínima Garantida.
Dissentido da decisão sob escrutínio,  o recorrente entende que  o Tribunal a quo considerou que o crédito exequendo não constituía crédito sobre a insolvência, com base na data de resolução do contrato, sem observar que os factos geradores do incumprimento ocorreram durante o processo de insolvência, o que torna -no entender do recorrente- o crédito parte do passivo restante e, assim, extinto com a exoneração.
Entende, pois, o recorrente que o crédito exequendo se encontra extinto e que o Tribunal a quo errou ao não considerar que o crédito exequendo, originado na resolução de contrato anterior ao encerramento do processo de insolvência, deveria ser considerado crédito sobre a insolvência e, como tal, abrangido pela exoneração concedida em 14 de Setembro de 2022.
Apreciemos, então, a pretensão recursiva do recorrente.

Constituem fundamentos de oposição à execução baseada em sentença (art.º 729º do CPC):
a) Inexistência ou inexequibilidade do título;
b) Falsidade do processo ou do traslado ou infidelidade deste, quando uma ou outra influa nos termos da execução;
c) Falta de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva, sem prejuízo do seu suprimento;
d) Falta de intervenção do réu no processo de declaração, verificando-se alguma das situações previstas na alínea e) do artigo 696.º;
e) Incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução;
f) Caso julgado anterior à sentença que se executa;
g) Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento; a prescrição do direito ou da obrigação pode ser provada por qualquer meio;
h) Contracrédito sobre o exequente, com vista a obter a compensação de créditos;
i) Tratando-se de sentença homologatória de confissão ou transação, qualquer causa de nulidade ou anulabilidade desses atos.
Depende a procedência da oposição por embargos da existência, no caso em apreço, de facto extintivo ou modificativo da obrigação cujo cumprimento a exequente exige por via da ação executiva.
Entende o apelante que a concessão da exoneração do passivo restante no processo em que foi declarado insolvente, consubstancia esse facto extintivo do crédito exequendo.
Em sentido contrário, a decisão recorrida entendeu o seguinte:

(…) estabelecendo o nº 1 do artigo 245º do C.I.R.E. que “A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no nº 4 do artigo 217º.”
Atenta a definição do artigo 47º/2 do C.I.R.E., e a data de resolução do contrato (provada na sentença), não se pode considerar o crédito exequendo como “crédito sobre a insolvência” - pelo que não tem lugar a aplicação da regra supra citada.”

Retrocedendo no tempo, segundo a sentença exequenda o contrato que vigorou entre as partes deve ser caracterizado como um contrato misto, complexo, avultando e prevalecendo a celebração de um contrato de fornecimento.
Em tal sentença deu-se como assente que Face à persistência no incumprimento contratual acima descrito, por cartas registadas com aviso de receção datadas de 31-07-
2020 enviadas aos Réus, a Autora procedeu à resolução do contrato e interpelou aqueles para que efetuassem o pagamento dos valores indemnizatórios estabelecidos nos termos dos números 2 e 3 da cláusula 5ª do documento n. º1 (ponto 15 da factualidade assente).E, com base neste facto, conjugado com outros dados como assentes, concluiu-se que o incumprimento, não regularizado, pese embora as interpelações efectuadas aos réus, legitimou a resolução do contrato pela autora, com base em incumprimento definitivo – cfr. factos 11 a 17 da factualidade assente da sentença exequenda.
Façamos uma resenha sobre o instituto jurídico da resolução do contrato.
Segundo o art.º 406.º, n.º 1 do CC, o contrato só pode extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.
Um desses casos é justamente o direito à resolução do contrato previsto no art.º 432.º, n.º 1 do CC, direito potestativo com eficácia extintiva, o qual depende do incumprimento definitivo (ou defeituoso) decorrente de uma cláusula resolutiva expressa no contrato ou da lei, como sucede no caso de impossibilidade de cumprimento da prestação, por culpa do devedor.
O exercício deste direito potestativo pressupõe a verificação de um fundamento enquadrável no inadimplemento, grave e relevante, da obrigação a que o devedor se encontra adstrito, de forma a poder-se concluir que a relação contratual não poderá subsistir.
No caso sub judice, e como supra acentuámos, concluiu a sentença exequenda pela validade e eficácia do direito de resolução da exequente/recorrida, razão pela qual o contrato de fornecimento foi declarado extinto, por incumprimento definitivo do devedor/executado/recorrente - cfr. art.º 801.º do CC.
Quanto aos efeitos da resolução contratual.
No caso de resolução do contrato, os efeitos são equiparados à nulidade ou à anulabilidade dos negócios jurídicos, devendo as partes ficar na situação em que estariam se não tivessem celebrado o contrato, não abrangendo, no presente contrato, de execução continuada ou periódica, as prestações já efectuadas - cfr. arts. 433.º e 434.º, n.º 2 do CC.
Porque não remuneratória para a análise do caso em apreço, não vamos deter-nos, deixando-a de parte, com a problemática da cumulação da resolução do contrato com a indemnização pelo prejuízo causado, abundantemente discutida, no sentido de saber em tal indemnização se deverá ser considerado o interesse contratual positivo ou apenas o interesse contratual negativo.
Para o caso aqui em análise, no qual o recorrente alega a extinção do crédito exequendo por força da exoneração concedida em 14 de Setembro de 2022 em processo de insolvência, importa considerar o enquadramento jurídico emergente do CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE), a saber:

Art.º 47º nums.1 e 2 do CIRE:

1 - Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.
2 - Os créditos referidos no número anterior, bem como os que lhes sejam equiparados, e as dívidas que lhes correspondem, são neste Código denominados, respectivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência.

E art.º 245º do C.I.R.E. que estatui: “A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no nº 4 do artigo 217º.”

  Deverão ser tidos como créditos sobre a insolvência aqueles cujo fundamento já existia à data da declaração da insolvência (art.º 47.º do CIRE), sendo que serão já créditos sobre a massa insolvente os que se constituam na pendência do processo (art.º 51.º do CIRE); enquadram-se nestes últimos, entre outros, as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente, bem como as dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções – artigo 51.º, n.º 1, als. c) e d) do CIRE. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2024, proferido no proc. 20730/15.1T8SNT-B.L1-1).
No caso sob sindicância, o crédito exequendo emerge da extinção do contrato existente entre as partes, extinção essa operada por resolução por cartas registadas com aviso de recepção datadas de 31-07-2020 enviadas aos réus e recepcionadas em 06-08-2020.
De tais factos, decorre que o crédito exequendo existe na esfera jurídica da exequente desde 06-08-2020 e, não emergindo dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente, nem das dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência, dada a sua natureza, nunca estaríamos perante crédito sobre a massa insolvente nos termos do art.º 51º do CIRE, mas sim, hipotecticamente, perante crédito sobre a insolvência, na classificação do art.º 47º do CIRE.
Porém, e contrariamente ao sustentado pelo recorrente, não pode o crédito exequendo ser considerado como crédito sobre a insolvência, porquanto foi constituído em data largamente posterior à declaração de insolvência - o crédito foi constituído em 06-08-2020 e a insolvência foi declarada em 23-05-2017- logo, falha o requisito temporal previsto no art.º 47º nº 1 do CIRE para ser classificado com crédito sobre a insolvência: ter fundamento em data anterior à data da declaração de insolvência.
Perante tal conclusão, e atendendo a que a declaração judicial exoneração do passivo restante, de que beneficia a recorrente/executada, só abrange os créditos sobre a insolvência -o que não sucede com o crédito exequendo-, bem andou o Tribunal a quo, ao considerar que aquele não se encontra extinto por força do art.º 245º do CIRE.
Pelas razões expostas, improcederá a presente apelação.
*
V. Decisão

 Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em julgar totalmente improcedente a apelação apresentada, mantendo-se na íntegra a sentença proferida na primeira instância.

Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 20-02-2025
João Manuel P. Cordeiro Brasão
Vera Antunes (com declaração de voto de vencida).
Eduardo Petersen Silva


Declaração de voto de vencida da Exma. Sra. Juiz Desembargadora Vera Antunes:

Votei vencida no presente Acórdão por entender que o Recurso devia proceder e consequentemente, decretar a procedência dos embargos.
Para tanto deve ter-se em consideração os seguintes factos, constantes da Matéria de Facto Assente:
Exequente e executados celebraram em 25/5/2015 o contrato de fornecimento de café, comparticipação publicitária, comodato de equipamento e comodato de material de ponto de venda, com a duração de 60 meses, ou seja, cinco anos.
Entre outras, o executado obrigou-se a adquirir 3.900 Kgs deste produto, num mínimo mensal de 65kgs, o que se traduz em 780 kg. anuais.
Em Maio de 2017 a 1.ª Ré realizou a última aquisição de café à Autora e não mais retomou o seu consumo, sendo que nessa data, ou seja, passados dois anos do início do contrato, o executado apenas havia comprado à exequente 992 Kgs de café dos 3.900 Kgs que se havia obrigado, i. é; nessa data devia ter adquirido 1560 kg.
Nos termos do acordado no n.º 2 da Cláusula 9.ª do doc. 1 é fundamento de resolução do contrato um desvio nos consumos mensais acordados nos termos do nº 2 da Clausula 2ª superior a 20%, por um período de 6 meses consecutivos.
É certo que não constam dos autos os consumos mensais efectuados, mas 20% de consumos mensais equivale a 13 kg., que no cômputo anual ascende a 156 kg; em dois anos 312 kg e o executado em dois anos deixou de consumir 568 kg, o que dá uma média de 23 kg por mês, pelo que se afigura altamente provável que o incumprimento do contrato susceptível de fundamentar a resolução já se havia verificado.
Mas ainda que tal não sucedesse, a verdade é que em 23/05/2017 (facto que não foi posto em causa) o Executado foi declarado insolvente, no processo n.º 11520/17.8T8LSB, o qual correu termos no Juízo de Comércio de Lisboa, Juiz 3.
Não há qualquer dúvida que nessa data estava em vigor entre as partes o contrato em causa.
Ora, o processo de insolvência é um processo de execução universal, tal como previsto no art.º 1º n.º 1 do CIRE: “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.”
Significa isto que, verificando-se os pressupostos para a declaração de insolvência, pretende-se que todos os credores do insolvente sejam chamados ao processo para aí reclamarem os seus créditos; a insolvência é uma execução coletiva que não se destina à satisfação do direito individual de cada credor, mas antes visa o tratamento igualitário de todos os credores do devedor (par conditio creditorum) dado que a situação económica do devedor torna previsível que nem todos os credores verão satisfeitos o seu crédito.
Veja-se o que refere Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2ª edição, pág. 167, escreve: “a razão de ser do processo de insolvência é a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um único processo e o façam em condições de igualdade (par conditio creditorum), não tendo nenhum credor quaisquer outros privilégios ou garantias, que não aqueles que sejam reconhecidos pelo Direito da Insolvência e nos precisos termos em que este os reconhece.”
Como refere Catarina Serra, em O Regime Português da Insolvência, pág. 56 e ss, os efeitos da declaração de insolvência destinam-se a tornar mais fácil a satisfação paritária dos interesses dos credores ou, pela negativa, impedir que, após a declaração de insolvência algum credor obtenha uma satisfação mais eficaz do que e (em prejuízo de) os restantes credores.
Os efeitos da declaração da insolvência têm subjacente o princípio da igualdade dos credores (par conditio creditorum) e é este que deve orientar a aplicação das normas que os consagram.
A par conditio creditorum corresponde a uma exigência de “justiça distributiva” – de distribuição de sacrifício, de comunhão no risco ou de comunhão de perdas.
A declaração de insolvência não faz mais que reconhecer uma situação de facto - a impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações - e desencadear a aplicação das providências adequadas (cf. Catarina Serra, em Lições de Direito de Insolvência (2018), pág. 138).
O referido princípio acarreta uma limitação generalizada dos direitos dos credores, com a declaração de insolvência.
Daqui resulta que todos os credores do insolvente serão tratados de forma equivalente, pela previsão de que não irão receber a totalidade do seu crédito, mas apenas parte, no confronto com os demais credores do insolvente.
Esta conclusão tem a sua expressão legal no art.º 47º do CIRE, quando dispõe no seu n.º 1: “Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.”
Ora, ao contrário do que se refere no Acórdão, integra-se nesta previsão o crédito do exequente.
Declarada a insolvência do executado aos contratos em execução têm aplicação os art.ºs 102º a 119º do CIRE.
Estipula o art.º 102º do CIRE:
“Princípio geral quanto a negócios ainda não cumpridos
1 - Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento.
2 - A outra parte pode, contudo, fixar um prazo razoável ao administrador da insolvência para este exercer a sua opção, findo o qual se considera que recusa o cumprimento.
3 - Recusado o cumprimento pelo administrador da insolvência, e sem prejuízo do direito à separação da coisa, se for o caso:
a) Nenhuma das partes tem direito à restituição do que prestou;
b) A massa insolvente tem o direito de exigir o valor da contraprestação correspondente à prestação já efectuada pelo devedor, na medida em que não tenha sido ainda realizada pela outra parte;
c) A outra parte tem direito a exigir, como crédito sobre a insolvência, o valor da prestação do devedor, na parte incumprida, deduzido do valor da contraprestação correspondente que ainda não tenha sido realizada;
d) O direito à indemnização dos prejuízos causados à outra parte pelo incumprimento:
i) Apenas existe até ao valor da obrigação eventualmente imposta nos termos da alínea b);
ii) É abatido do quantitativo a que a outra parte tenha direito, por aplicação da alínea c);
iii) Constitui crédito sobre a insolvência;
e) Qualquer das partes pode declarar a compensação das obrigações referidas nas alíneas c) e d) com a aludida na alínea b), até à concorrência dos respectivos montantes.
4 - A opção pela execução é abusiva se o cumprimento pontual das obrigações contratuais por parte da massa insolvente for manifestamente improvável.”
Veja-se o que se diz a propósito desta norma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/6/2024, no Proc. 3197/21.2T8STS-H.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt: “Em relação aos negócios em curso, o n.º 1 do artigo 102 do CIRE fixa o princípio da suspensão do cumprimento declarada a insolvência até que o administrador de insolvência declare optar pela execução do contrato ou a recusa do seu cumprimento.
Este artigo 102.º do CIRE, como é entendimento pacifico na doutrina e jurisprudência, não contém um princípio tão geral como a sua epígrafe sugere e a solução que consagra tem que ser integrada e completada pelos artigos seguintes. Certo é que o regime aí estabelecido é fundamentalmente um regime para contratos em curso ou em fase de execução, em que não há ainda cumprimento total do contrato por qualquer uma das partes.
E daí que a doutrina tenha sublinhado que o regime dos artigos 102.º e seguintes do CIRE não se aplica a contratos que já foram resolvidos anteriormente à data da declaração de insolvência, encontrando-se agora em uma fase de liquidação (cf. neste sentido Ac. do STJ de 29.07.2016, proc. 193/13.0TBBRG-H.G1.S1, relator Júlio Gomes).
O douto acórdão recorrido considerou corretamente, com apoio unânime dos autores que cita, que o artigo 102º do CIRE, só se aplica a contratos bilaterais e ser necessário que não haja cumprimento total dos mesmos, nem pelo insolvente, nem pela outra parte.
O n.º 2 do citado artigo 102º do CIRE confere apenas ao credor o direito de fixar um prazo razoável ao administrador da insolvência para este exercer a sua opção, findo o qual se considera que recusa o cumprimento.
O credor com a declaração de insolvência fica privado de emitir a declaração de resolução dos contratos em curso em que o insolvente seja parte.
A não existir essa limitação e podendo a resolução fazer-se por mera declaração à parte contrária, sendo eficaz logo que chega à sua esfera de disponibilidade material, nos termos dos artigos 436º n.º 1 e 224º n.º 1 e 2 do Código Civil e tendo efeito retroativo, nos termos do artigo 434º n.º 1 do CC, tornar-se-ia o meio do credor obter um tratamento mais favorável, em prejuízo dos demais credores, em violação do princípio da igualdade de tratamento dos credores.
Como é sabido a resolução funciona como um instituto vocacionado para proteger os interesses do credor em face do incumprimento (culposo ou não culposo) da outra parte (cf. neste sentido Brandão Proença, A Resolução do Contrato de Direito Civil pág. 128).
Ora, como supra se referiu, o processo de insolvência deve perseguir, não uma satisfação individual ou seletiva, mas sim uma satisfação coletiva e paritária – a satisfação mais completa possível do maior número de credores (cf. Catarina Serra, Lições de Direito de Insolvência, (2018) pág. 227).
Entendemos, assim, que a resolução do contrato pelo contraente cumpridor mediante declaração à outra parte não é legalmente admissível, depois da declaração de insolvência, por ser contrária aos princípios norteadores do processo de insolvência.”
Volvendo ao caso concreto, declarada a insolvência do executado, a exequente viu a execução do contrato suspensa por força do art.º 102º do CIRE e até que houvesse uma declaração do AI, nos termos do n.º 1 dessa norma, podendo este optar por continuar a execução do contrato ou recusar o seu cumprimento.
Desconhece-se se houve essa declaração (embora seja considerado pela Jurisprudência a possibilidade de declaração tácita, do que é um exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no proc. 727/14.0TBLGS.E1.S1); partindo do pressuposto que não houve declaração, devia o exequente ter lançado mão do que dispõe o n.º 2 do art.º 102º, que se entende constituir um verdadeiro ónus para o credor, que é o de exigir que o AI se pronuncie em prazo razoável.
Não fixando a lei por sua vez um prazo para o credor exija tal declaração, tem de entender-se que esta deverá ser feita pelo menos até ao prazo para a reclamação ulterior de créditos, previsto pelo art.º 146º, n.º 2, b) do CIRE: “b) Só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, ou no prazo de três meses seguintes à respetiva constituição, caso termine posteriormente.”
Concorda-se a este propósito com a Declaração de voto de Catarina Serra constante do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/2/2019, proferido no 5685/15.0T8GMR-G.P1.S1 (disponível em https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2019:5685.15.0T8GMR.G.P1.S1.42?search=U3lFgJQXgOvwZXWYehg):
“I. Concordando embora com a decisão final, distancio-me da fundamentação exposta no presente Acórdão, essencialmente, pelas seguintes razões:
1.ª) Entendo que os direitos de crédito respeitantes ás dívidas previstas no artigo 102.º, n.º 3, als. c) e d), do CIRE se constituem no momento da declaração de insolvência (em conformidade com o Acórdão desta 6.ª Secção de 21.06.2016, Proc. 3415/14.3TCLRS-C.L1.S1) e não no momento da declaração de recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência.
2.ª) Entendo que a ausência desta declaração pode constituir um impedimento ao exercício do ónus de reclamação do direito mas não é, de todo, uma condição de que dependa a constituição do direito.
II. Os dois pressupostos acima referidos implicam, naturalmente, que a solução assente num raciocínio diverso do seguido no presente Acórdão, a saber:
a) Estando o crédito constituído à data da declaração de insolvência, seria, em abstracto, possível que o credor tivesse reclamado o crédito (como condicional) dentro do prazo geral de reclamação de créditos [cfr. artigo 36.º, n.º 1, al. f), do CIRE].
b) No artigo 146.º do CIRE, prevê-se, no entanto, a possibilidade de reclamação ulterior de créditos. Esta aproveita, em geral, aos credores que não tenham reclamado atempadamente o seu crédito (em regra, por desconhecerem a pendência de processo de insolvência) e é independente das circunstâncias que ocasionaram a não reclamação atempada, pelo que o credor era livre de propor a acção de verificação ulterior, posto que observadas as condições aí impostas.
c) Sendo uma destas condições a propositura da acção no prazo de seis meses a contar da data do trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência e tendo esta acontecido em 2.02.2016, a acção, proposta em 7.04.2017, seria, em princípio, intempestiva.
d) Deverá considerar-se, porém, que só com a declaração (tácita) de recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência, ou seja, com a verificação da condição, ficou o credor plenamente em condições de exigir o crédito e de exercer o ónus de reclamação.
e) Admitindo que o prazo em causa é processual (em conformidade com o Acórdão desta 6.ª Secção de 5.12.2017, Proc. 1856/07.1TBFUN-L.L1.S1), deverá considerar-se que, até àquela data, o credor estava impedido de exercer o ónus de reclamação por facto que não lhe era imputável, existindo, então, uma situação de justo impedimento (cfr. artigos 139.º, n.º 4, e 140,º, n.º 1, do CPC), que não carece de ser alegado (cfr. artigos 140.º, n.º 3, e 412.º do CPC), e podendo e devendo a acção ser admitida como tempestiva.
III. A solução propugnada assegura a realização do princípio da tutela jurisdicional efectiva e não põe em causa o efeito útil do prazo previsto na 2.ª parte da al. b) do n.º 2 do artigo 146.º do CIRE (três meses a contar da constituição do crédito).
A previsão deste segundo prazo assegura, também, a realização do princípio da tutela jurisidicional efetiva quando estejam em causa – mas só quando estejam em causa – créditos que se constituam passada mais de metade do prazo previsto na 1.ª parte do preceito, concedendo aos titulares um prazo especial para reclamar. Estão, portanto, excluídos os direitos de crédito referidos no artigo 102.º, n.º 3, als. c) e d), do CIRE, que se constituem no momento da declaração de insolvência, mas outras hipóteses existem (como comprova, só para um exemplo, o caso apreciado no referido Acórdão desta 6.ª Secção de 5.12.2017, Proc. 1856/07.1TBFUN-L.L1.S1). O disposto na 2.ª parte da al. b) do n.º 2 do artigo 146.º do CIRE não se transforma, pois, em “letra morta”.
A tese, seguida no presente Acórdão, de que o crédito se constitui aquando da declaração do administrador da insolvência e, consequentemente, de que o prazo previsto na 2.ª parte da al. b) do n.º 2 do artigo 146.º do CIRE é aplicável em situações como a do caso dos autos implica o risco de que a reclamação ulterior se eternize sem justificação (i.e., mesmo que saiba do processo, o credor não age, porque dispõe de um prazo que só começa a contar depois daquela declaração).”
Do que se vem expondo resulta que não era lícito à exequente proceder à resolução extra-judicial do contrato, nos termos em que o fez, por carta de 31/7/2020, uma vez que esta situação pode constituir um verdadeiro desvio aos princípios da insolvência acima enunciados. Note-se que as normas que se vêm citando são de carácter imperativo. Não pode o credor estar a resolver um contrato mais de três anos após a data da insolvência para desta forma diligenciar obter o pagamento integral do seu crédito (ou as indemnizações correspondentes ao decurso desse prazo) sem estar em confronto com os demais credores no processo de insolvência, tendo o seu crédito origem num contrato que se iniciou e estava em vigor à data da insolvência.
No caso, não se olvida que a resolução foi decretada por Sentença transitada em julgado; no entanto esta decisão, como se referiu, ofende o princípio do par conditio creditorum, de carácter imperativo.
No entanto, quer se entenda que se deve considerar a resolução do contrato operada por sentença proferida com trânsito em julgado; quer se considerasse que esta afinal não podia produzir os seus efeitos por força da violação de normas imperativas legais e, assim, o contrato estava apenas com a execução suspensa por falta de tomada de posição do AI, a verdade é que o crédito do exequente - que se deve entender, nos termos supra expostos, como um crédito sobre a insolvência nos termos do art.º 47º do CIRE - se tem de julgar extinto com a decisão final do pedido de Exoneração do Passivo Restante, proferida em 22/2/2018, pela qual foi deferido o pedido de exoneração do passivo restante e fixado como rendimento indisponível, o valor correspondente a uma vez e meia a Remuneração Mínima Garantida.
De facto, a declaração de exoneração do Passivo restante tem como efeitos os previstos no art.º 245.º, n.º 1 do CIRE (não sendo o caso de aplicação do n.º 2 desta norma): “A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º”
Pelo exposto, julgava procedente o Recurso, com revogação da decisão proferida em 1ª Instância e procedentes os Embargos.
Vera Antunes