ÓNUS DE PROVA
PRESUNÇÃO DE CULPA
DEVER DE VIGILÂNCIA
DANO BIOLÓGICO
JUROS DE MORA
Sumário

1- Pode ser admissível que, na sentença, sejam selecionados e enunciados factos conclusivos desde que integrem a previsão da norma jurídica em aplicação - mas, já não factos preenchedores da estatuição normativa - cabendo sempre ao juiz ponderar se, no caso, por uma questão de clareza da decisão, é preferível utilizar o facto concreto subsumível a esse facto conclusivo integrador da previsão ou hipótese da norma.
2- As presunções legais estão conexionadas com o princípio do ónus de prova, não carecendo, a parte que delas beneficia, de demonstrar todos os factos constitutivos do seu direito, mas, apenas, aqueles em volta dos quais foi estabelecida uma presunção (de culpa). Pelo contrário, a parte onerada com essa presunção de culpa tem o ónus de a ilidir se não quer sofrer as consequências da presunção.
3- Em face da presunção de culpa que nos termos do art.º 493º nº 1 do CC sobre ela recai, a pessoa onerada com o dever de vigilância pode exonerar-se da sua responsabilidade alegando e provando que: i) cumpriu os respectivos deveres de custódia;  ou ii) que o dano se produziria ainda que os tivesse cumprido.
4- A jurisprudência tem entendido, a propósito da aplicação do art.º 493º nº 1 do CC, que o lesado apenas tem de provar que os danos que sofreu tiveram origem em coisa sob a guarda de outrem, não sendo exigível que o lesado tenha de alegar e provar a subcausa do acontecimento danoso.
5- O dano biológico pode ter consequências de natureza patrimonial, por exemplo quando afecta a capacidade do lesado angariar rendimentos, máxime de natureza laboral ou de outras actividades remuneradas. Além disso, os danos decorrentes da ofensa à integridade física, podem implicar danos não patrimoniais: pense-se na dor física, tristeza, desgosto, frustrações no projecto de vida, actividade social, capacidade recreativa e de lazer, vida sexual.
6- Num caso em que se verificaram danos de gravidade elevadíssimos (91% de incapacidade permanente/tetraplegia, quanto doloris de grau 7, dependência permanente de terceiro) e, há culpa presumida dos obrigados à vigilância de coisa e, fraca capacidade económica dos responsáveis, ponderando ainda casos análogos da jurisprudência, acha-se adequado fixar a indemnização por dano biológico de natureza não patrimonial na quantia de 200.000€.
7- Quanto ao dano biológico na vertente patrimonial traduzido na incapacidade permanente de angariar qualquer sustento, achando-se razoável que, em situações normais, o lesado auferiria cerca de 1.000€ de salário mensal, considerando que terá uma esperança média de vida de mais de mais 42 anos (83-39) e uma taxa de juro de 3%, aplicando as Tabelas Financeiras e, considerando casos análogos da jurisprudência, obteríamos um valor da ordem dos 343.262,94€, a que importa abater uma percentagem de 25%, obteremos um valor indemnizatório de danos patrimoniais futuros a quantia de 257.446,46€.
8- Na falta de elementos que possibilitem fixar, desde já, os valores necessários a suportar os tratamentos especializados e os tratamentos fisiátricos futuros, relega-se a respectiva liquidação para momento posterior.  
9- Por se considerarem actualizados à data da decisão, nos termos da doutrina do AUJ nº 4/2002, os juros de mora quanto à indemnização pelos danos biológicos quer na vertente não patrimonial quer na vertente patrimonial, serão devidos desde o trânsito da decisão.
Já os juros de mora relativos à indemnização pelos danos patrimoniais emergentes, são devidos desde a citação, à taxa legal para os juros civis.

Texto Integral

Acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO * (segue-se, parcialmente, o relatório da sentença)

1- CCG, instaurou acção declarativa, com processo comum, contra JF e AL, pedindo:
A - A condenação dos réus no pagamento das seguintes quantias:
- €200.000,00 (duzentos mil euros) a título de danos nãos patrimoniais;
- €5.158,59 a título de danos patrimoniais emergentes;
- €378.000,00 a título de danos patrimoniais futuros, respeitantes à incapacidade permanente parcial da Autora que determinam uma perda da capacidade de ganho;
- €33.745,10 a título de danos patrimoniais futuros, respeitantes às cadeiras de rodas prescritas pela médica fisiatra do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão.
B) - Serem os Réus condenados no pagamento dos cuidados continuados especializados, bem como de tratamentos fisiátricos, de que a Autora carecerá até ao fim da sua vida, cujo valor exato só será possível apurar em sede de liquidação de sentença.
C) Serem os Réus condenados no pagamento de juros de mora vincendos calculados à taxa legal sobre as importâncias referidas na alínea anterior, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que em 2017 era titular do direito de superfície sobre a fração autónoma designada pela letra … correspondente ao 1.º andar …a qual constituía a sua habitação; nesse dia, cerca das 17h05, deflagrou um incêndio na fração autónoma designada pela letra …correspondente ao Rés-do-Chão do mesmo prédio, cujo direito de superfície é da titularidade dos réus; aquando da ocorrência do supra referido incêndio, a autora encontrava-se no interior da sua fração, que é imediatamente acima da fração dos aqui réus, a ouvir música, só se tenho dado conta da referida ocorrência quando as chamas se encontravam no interior da sua habitação, sendo impossível a circulação e/ou saída pelo interior do prédio; o fogo teve o seu ponto de ignição na fracção dos réus; a fração da autora, começou a ser consumida pelas chamas, sem que chegasse qualquer tipo de socorro, tendo a autora, já com as chamas do incêndio no interior da sua habitação, começado a ficar intoxicada com o fumo proveniente do mesmo, sendo o ar irrespirável. Não tinha como fugir e encontrava-se encurralada no interior da sua própria habitação, sem o auxílio de terceiros, tendo saltado pela janela da sua fração em direção ao solo, numa derradeira tentativa de preservar a sua vida; após uma queda de uma altura de 9 m a autora ficou prostrada no solo; o incêndio atingiu grandes proporções.
Na sequência da participação de incêndio elaborada pelo Agente da PSP, DB, foi instaurado inquérito, que concluiu pela “ocorrência de causa não humana.”, o que determinou o arquivamento do supra referido inquérito.
Foi causa do incêndio a inobservância dos réus do dever de vigiar o seu imóvel e, nomeadamente, do aparelho elétrico que se encontrava no quarto no local onde deflagrou o incêndio, razão pela qual os mesmos são responsáveis nos termos do art.º 493.º do CC.
Desse incêndio resultaram danos vários para a autora tendo a mesma sofrido traumatismo vertebro-medular, com luxação da C5-C6, tetraplegia Ais A e esfacelo da coxa direita, tendo a autora permanecido em coma induzido pelo período de 2 semanas, e suportado dores atrozes, que se prolongaram por diversos meses e ainda subsistem, bem como o sofrimento resultante de tratamentos clínicos, da intervenção cirúrgica e de violentas sessões de fisioterapia; a autora ficou a padecer de um grau de incapacidade de 91%, deslocando-se em cadeira de rodas e necessitando da ajuda permanente de terceira pessoa para as suas actividades básicas do dia-a-dia; a autora careceu, carece e carecerá toda a vida de permanente controlo médico e medicamentoso, facto que lhe causa enorme preocupação e ansiedade; a autora sempre se preocupou bastante com a sua condição física e com a sua aparência, sendo com enorme desgosto e profunda tristeza que aceita a sua imagem atual, apresentando dificuldades de aceitação da sua autoimagem, pelas alterações corporais verificadas após a lesão, e evidencia perturbação de stress pós-traumático, facto que a obrigou a vender a fração supra; depois do incêndio, a autora não mais entrou no supra referido imóvel, mas, não obstante, teve de custear as despesas com a aquisição e montagem de novas janelas, tendo despedindo a quantia de €1.099,99. Não pode ter relações sexuais, nem ser mãe, vê-se privada de contactar pessoalmente com os seus familiares e amigos porquanto vive confinada em Centros de Reabilitação, carecendo em absoluto de apoio técnico especializado permanente e, ainda que assim não fosse sempre teria de cumprir com as suas rotinas diárias medicamentosas e careceria sempre de ajuda de terceiros em tarefas tão simples como comer ou urinar, tendo igualmente de custear as despesas com a contratação desses serviços permanentes, os quais nunca serão prestados por valor inferior ao que a autora se encontra a pagar mensalmente, a saber 617,83€ a que crescem despesas mensais com mensagens terapêuticas e pedologista. A autora nunca mais poderá trabalhar, desde logo, porque tal é totalmente incompatível com as suas atuais rotinas diárias, que lhe permitem estar viva, resumindo-se a sua vida a uma vigilância constante para assegurar a toma de medicamentos, fazer análises, exames médicos, usar algálias, fraldas e resguardos, tudo cuidados garantidos a expensas suas, o que exponencia a sua preocupação com o presente e com o futuro; alegou ainda, a par dos danos não patrimoniais, toda uma panóplia de danos patrimoniais emergentes da situação em que ficou, e dos tratamentos/deslocações que se vê obrigada a efectuar; mais alega danos patrimoniais na vertente de lucros cessantes, na medida em que a sua situação profissional se alterou radicalmente em face da incapacidade definitiva de que ficou a padecer.
Termina assim concluindo pela procedência da acção e consequente condenação dos
réus no pedido por ela formulado.

2- Citados, os réus contestaram.
Impugnaram a versão dos factos trazida aos autos pela autora, alegando que quando o incendio deflagrou tentaram avisar a autora, sendo que a mesma não terá ouvido por estar a ouvir música, e que os danos resultantes da sua decisão de saltar da janela apenas a si são imputáveis, na medida em que o socorro dos bombeiros foi pronto e poderia ter retirado a autora em condições de segurança, à semelhança do que sucedeu com outros condóminos. Alegam ainda que a responsabilidade depende de os réus terem agido com culpa, sendo que nenhuma culpa lhes é imputável pela ocorrência de um facto imprevisível e fortuito. Invocam que não se verifica incumprimento de qualquer obrigação específica que sobre eles recaísse enquanto proprietários da fracção; não sendo exigível aos réus aquilo que é humanamente inexigível, devendo-se considerar-se ilidida a presunção de culpa que sobre eles recai. Impugnam os danos, a sua concausalidade com o sinistro em causa e a adequação dos valores peticionados. Salientam que à data do sinistro a autora era viúva e estava desempregada.
Deduziram incidente de intervenção principal provocada da seguradora M Seguros S.A., com a qual tinham, à data do acidente, um contrato de seguro em vigor, com a apólice nº …38, mediante o qual transferiram para a mesma, entre outros, a responsabilidade civil por danos causados pelos bens seguros e que viessem a ser exigidos aos réus.
Concluem assim pela improcedência da presente acção e consequente absolvição do pedido.

3- Por despacho de 24-04-2019 foi admitida a intervenção principal da Seguradora dos
réus e determinada a sua citação nos termos e para os efeitos da presente acção.

4- Citada veio a interveniente apresentar contestação na qual excepcionou o valor da cobertura contratada na apólice como sendo de 50.000€. No demais, por desconhecimentos dos factos, impugnou a interveniente os factos, danos e montantes alegados e peticionados pela Autora.
Conclui a interveniente pela decisão em conformidade com o julgamento e absolvição do pedido na eventual parte excedente relativamente ao capital seguro contratado.

5- Por requerimento de 21-02-2022 a autora veio ampliar o pedido, reclamando, a título de despesas supervenientes, a quantia adicional de 20.020,29€. 
6- Foi dispensada a realização da audiência prévia e, por despacho foi saneado o processo, indicado o objecto do litígio, os temas de prova e os meios de prova incluindo perícia médico-legal à pessoa da autora.

7- Realizada a audiência final, com data de 21/11/2023, foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:
Face ao exposto, julgo a presente acção improcedente, por não provada, e, em consequência absolvo os Réus do pedido.”

8- Inconformada, a autora interpôs recurso de Revista per saltum, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
1. Em …de 2017, deflagrou um incêndio na fração autónoma correspondente ao R/C …do prédio urbano sito…que, à data, estava onerada com um direito de superfície a favor dos RR., ora Recorridos.
2. A Autora, ora Recorrente, habitava nesse mesmo prédio, na fração autónoma correspondente ao 1.º andar…
3. Fruto do deflagrar do incêndio e da sua propagação à habitação da ora Recorrente, sofreu lesões e sequelas permanentes várias que poderão ser melhor conferidas na matéria de facto dada como provada na decisão do douto Tribunal a quo.
4. Conforme consta da matéria de facto provada, o Sr. Inspetor da PJ, RV, autor do Relatório realizado âmbito de autos de outra natureza (inquérito crime instaurado para investigação de crime de incêndio) concluiu que o ponto de início do incêndio teria sido a “zona envolvente à cama de casal localizada num dos compartimentos utilizados como quarto” da fração autónoma habitada pelos ora Recorridos, indicada supra, sendo que, em concreto, tal ponto de início teria sido um “objeto elétrico não identificável devido ao elevado grau de carbonização”, concluindo ainda que o incêndio teve causa no sobreaquecimento de um aparelho elétrico.
5. Ora, o artigo 493.º n.º 1, do CC, estabelece que “salvo se provar [quem tiver em seu poder coisa (…) imóvel, com o dever de a vigiar] que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”, quem estava obrigado a tal vigilância “responde pelos danos que a coisa…” causar.
6. Sucede que, apesar de ter o douto Tribunal a quo entendido (e muito bem face ao entendimento maioritário da jurisprudência), que seria de aplicar a presunção legal de culpa (e ilicitude) prevista no supra citado artigo 493.º, n.º 1 do CC, operando assim a inversão do ónus da prova e, consequentemente, competindo aos RR provar a inexistência de culpa da sua parte no dever de vigilância, considerou igualmente (desta feita mal, no entendimento da A., ora Recorrente), que seria de dar tal presunção por ilidida e, em consequência, julgar a ação improcedente.
7. Facto com o qual a A. não se conforma por entender não existir matéria de facto, alegada e, muito menos provada, que permitisse suster tal ilisão e, em consequência, tal improcedência. Com efeito,
8. Entende a A. que, para ilidir aquela presunção, seria, no mínimo, de exigir que existisse um acervo de factos dados como provados que permitisse, por exemplo, e no limite, extrair a conclusão de que os equipamentos da casa e as instalações e aparelhagens elétricas e, eventualmente, aquele equipamento em concreto eram, em regra, prudentemente utilizados e mantidos pelos RR., , em termos de padrões de normalidade social, sob pena de não convertermos a responsabilidade extracontratual em responsabilidade objetiva (como sugere o douto Tribunal a quo) mas sim, antes, ignorarmos que o legislador estabeleceu uma presunção de culpa.
9. Ora, se a parte onerada com a prova eram os RR. e ora Recorridos, então o facto de não se ter provado que não existiam, por exemplo, cabos soltos ou fios descarnados no equipamento em causa, ou, pelo menos, que os equipamentos eram utilizados de forma normal, o que de forma alguma lograram alegar quanto mais provar, deveria ter significado que essa parte não conseguiu ilidir a presunção que sobre ela impendia.
10. A douta sentença aqui em crise cita profusamente, assentando o essencial dos seus argumentos na lógica aí esgrimida, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 28/02/2019 e relatado pelo Venerando Juiz Desembargador Eduardo Petersen da Silva, proc. n.º 18/17.4T8CSC.L1-6, porém, ao contrário do que sucede na sentença ora recorrida, naquele outro Acórdão fazem parte do acervo da matéria dada como provada (transcritas mais acima no presente articulado) diversos factos que permitiam conduzir à conclusão de que a presunção de culpa fora ilidida pelos RR.
11. Assim, e salvo o devido respeito, tendo em conta a matéria de facto dada como provada no caso sub judice (para a qual se remete por uma questão de economia processual), de forma alguma se provou que os RR. e ora Recorridos mantinham os equipamentos elétricos num “estado de normalidade”, pelo que, e nos termos referidos pela própria douta sentença aqui em crise, a função indemnizatória deveria ainda, aqui, ter prevalecido sobre a função sancionatória.
12. Não se trata, pois, de converter o que é responsabilidade por culpa em responsabilidade objetiva, mas sim de não aligeirar de tal forma a prova da observância do dever de vigilância, que, na prática, torne impossível responsabilizar os detentores de facto de coisas imóveis em situações como a dos autos, deixando totalmente desprotegida a A. e ora Recorrida, até de forma injusta, como frontalmente reconhece a douta sentença ora recorrida. Pois se é verdade que o legislador entendeu não consagrar aqui uma responsabilidade objetiva, a verdade é que consagrou uma presunção de culpa.
13. Assim, ao decidir como decidiu o Tribunal a quo, aplicou e interpretou de forma errónea os artigos 344.º, n.º 1, 1.ª parte, 346.º, in fine, e 350.º, n.º 2, e 493.º, n.º 1, todos do CC, bem como os artigos 414.º e 607.º, n.º 4 do CPC porquanto, aplicada que foi a presunção legal de culpa (e ilicitude) do artigo 493.º do CC, era, salvo melhor opinião e com o devido respeito, aos Recorridos (RR e interveniente), que competia provar os factos tendentes à comprovação da não violação do dever de vigilância da sua parte relativamente àquele aparelho elétrico, o que, não sucedendo, deveria ter determinado a procedência da ação.
14. Ademais, não se consegue ainda descortinar razões que permitam a conclusão jurídica – porque é disso que aqui se trata, mau grado a sua inserção na “matéria de facto” (cfr. ponto 82) – segundo a qual “O incêndio teve origem no sobreaquecimento de um aparelho elétrico, sem contribuição activa ou omissiva de causa humana” (sublinhado nosso).
15. Antes do mais, há que ter presente que o STJ é competente para apreciar se determinada afirmação inserida na decisão sobre a factualidade provada consubstancia ou não conclusão jurídica, por estar em causa o conhecimento de um erro de direito (A este respeito veja-se os Acórdãos proferidos pela 7.ª Secção deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 30-11-2023, relatado pelo Exmo. Conselheiro Oliveira Abreu e proferido no âmbito do proc. n.º 10967/17.4T8PRT.P1.S1, e Acórdão proferido pela 6.ª Secção deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça, datada de 22/02/2022, no âmbito do
proc. n.º 5688/17.0T8GMR.G1.S1, relatado pela Exma. Desembargadora Graça Amaral).
16. Posto isto, importa entender o alcance da expressão exarada na parte final do artigo 82.º da matéria de facto: “sem contribuição activa ou omissiva de causa humana”, cuja fundamentação decorreu (cfr. consta da douta sentença): “…da análise cuidada e conscienciosa dos relatórios da PJ juntos aos autos a fls 30 e ss.”, do que se não duvida, e que se interpretada no sentido de que o incendio não teve diretamente origem/causa humana mas antes decorreu de uma causa naturalística (sobreaquecimento de aparelho elétrico), nem sequer se questiona.
17. Porém, se interpretada no sentido de que não houve contribuição humana (ativa ou omissiva) para o sobreaquecimento de tal aparelho elétrico, (o que incluirá a mera omissão de dever de vigilância), interpretação que se admite apenas por mero dever de patrocínio e à cautela, então tal consubstanciaria um juízo de direito sobre o objeto do processo, o que de forma algum seria admissível na matéria de facto (a este respeito, veja-se a título meramente exemplificativo, a seguinte jurisprudência Acórdão proferido pela 1.ª Secção deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça, datada de 01/10/2019, no âmbito do proc. n.º 109/17.1T8ACB.C1.S1, relatado por Exmo. Conselheiro Fernando Samões e Acórdão proferido pelo douto Tribunal da Relação de Évora, datada de 28/06/2018, no âmbito do proc. n.º 170/16.6T8MMN.E1, relatado pela Exma. Desembargadora Florbela Moreira Lança).
18. Na verdade, aliás, o que tal relatório da PJ (realizado no âmbito de autos de outra natureza e com propósito diverso ao dos presentes autos) indica é que se trata de ocorrência não-humana, no sentido de que não foi conduta humana que fez deflagrar tal incêndio em virtude de não existirem sinais de arrombamento anteriores ao início do incêndio nem se encontrar ninguém na casa quando ele deflagrou bem como a conclusão de que foi o tal “objeto elétrico não identificável” que teve na sua origem. (cfr. aliás já consta do ponto 22 dos factos provados).
19. Se como vimos, o pensamento legislativo efetivamente pretendeu onerar os RR. e ora Recorridos com a prova de que teriam observado o dever de vigilância, de todo em todo resulta de tal Relatório, e salvo o devido respeito, que não tenha havido violação desse mesmo dever. E é disso que se trata: demonstrar que não contribuíram para o deflagrar do incêndio em virtude da conduta ativa/omissiva que se consubstancia na violação do dever de vigilância - nomeadamente, não ter o cabo que ligava aquele aparelho em más condições, entre outras situações fácticas supra elencadas o que, de forma absoluta se conhece e não se podia de forma alguma ter dado como provado (conclusão jurídica) face ao acervo fáctico provado.
20. Termos em que, é a A. de opinião que, também aqui, o douto Tribunal a quo errou na aplicação e interpretação do artigo 607.º, n.º 4 do CPC porquanto “à semelhança do que dispunha o anterior CPC no seu art.º 646.º, n.º 4, 1.ª parte, embora o NCPC não contenha norma correspondente, mas cuja conclusão se impõe por imperativo do disposto no seu art.º 607.º, n.º 4 segundo o qual na fundamentação da sentença o juiz declara os “factos” que julga provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos” – cfr. acórdão proferido pela 1.ª Secção deste Colendo Supremo Tribunal de Justiça, datada de 01/10/2019, no âmbito do proc. n.º 109/17.1T8ACB.C1.S1, relatado por Exmo. Conselheiro Fernando Samões).
21. E assim, dado que tratando-se aqui exclusivamente de determinar a correta aplicação do Direito, este Colendo STJ deverá, na opinião da A. e ora Recorrente, intervir para esclarecer a forma correta de interpretar e aplicar os artigos em causa face ao caso concreto.
22. Requerendo, portanto, a A. e ora Recorrente que o presente recurso suba diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça (per saltum), dado estarem preenchidos os requisitos cumulativos do n.º 1 do art.º 678.º do CPC.
Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogada a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância e substituída por outra que, com a correta interpretação e aplicação das normas identificadas, dê por não escrita a parte final do ponto 82.º da matéria de facto; julgue a ação procedente por provada condenando as Recorridas RR. E interveniente nos pedidos., determinando-se, eventualmente, a baixa do processo ao Tribunal a quo para determinação do quantum indemnizatório e demais questões suscitadas.

9- A seguradora, M SA, interveniente principal, pugnando pela improcedência do recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1. Compulsados os autos, a Recorrida/Interveniente entende que os pressupostos da admissibilidade do recurso per saltum supra expostos não se encontram preenchidos, porquanto, por um lado, a ora Recorrente, nas alegações por si apresentadas, não suscitou apenas questões de Direito, mas também questões de facto e, por outro, impugnou uma decisão interlocutória preliminar em relação à sentença.
2. Relativamente ao primeiro requisito, alega a Recorrente não conseguir descortinar razões que permitam chegar à conclusão jurídica referida no ponto 82. da matéria de facto dada como provada, segundo o qual “O incêndio teve origem no sobreaquecimento de um aparelho elétrico, sem contribuição ativa ou omissiva de causa humana”, tratando-se, refere, de um efetivo erro de direito na subsunção jurídica dos factos e pedindo que se dê por não escrita a parte final do referido ponto 82.
3. Mais alegando a Recorrente que os Réus não provaram que os equipamentos elétricos eram prudentemente utilizados e mantidos, em termos de padrões de normalidade social, pelo que veio peticionar a alteração da matéria de facto dada como provada constante na parte final do ponto 82.
4. Contudo, a matéria de facto é tão-só da competência das Instâncias, sublinhando-se que a vocação do Supremo Tribunal de Justiça está balizada no conhecimento das questões de Direito, pelo que apenas o Tribunal da Relação é competente pela alteração da matéria de facto.
5. Acresce que, uma vez que o recurso per saltum é processado como revista (cfr. n.º 3 do artigo 678.º do CPC), resulta do disposto no n.º 3 do artigo 674.º do CPC que “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” (negritos e sublinhados nossos).
6. E o n.º 2 do artigo 682.º do CPC renova que “a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º” (negritos e sublinhados nossos).
7. Ora, no caso concreto, salvo o devido respeito, é evidente que não estamos perante a situação elencada no n.º 3 do artigo 674.º do CPC, porquanto não houve qualquer erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa pelo Tribunal de 1ª Instância e muito menos uma ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
8. Assim, será de concluir que o Supremo Tribunal de Justiça não tem competência para conhecer da matéria de facto, mas tão só de matéria de Direito.
9. Por outro lado, vem a ora Recorrente peticionar a referida alteração da matéria factual com base em presunções judiciais.
10. No entanto, é clara a limitação da jurisdição do Supremo Tribunal de Justiça quando se trata de concluir, como pretende a ora Recorrente, que determinados factos dados por provados, nomeadamente o ponto 82., não têm subjacente nenhum elemento probatório a comprová-los, uma vez que a ora Recorrente não deixa de impugnar e pronunciar-se sobre a decisão de facto.
11. Face ao exposto, não se encontra verificado o pressuposto legal da alínea c) do n.º 1 do artigo 678.º do CPC.
12. Sem prejuízo, sempre se dirá, que o último requisito plasmado no n.º 1 do artigo 678.º do CPC para que o recurso per saltum seja procedente é a não impugnação de quaisquer decisões interlocutórias.
13. No caso concreto, a ora a Recorrente impugnou o despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas de prova, com referência Citius n.º 124763714, tendo apresentado reclamação ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 596.º do CPC.
14. Ou seja, a ora Recorrente impugnou uma decisão interlocutória, pelo que, consequentemente, não se encontra preenchido o requisito da alínea d), do n.º 1 do artigo 678.º do CPC.
15. Face ao exposto, não se encontram verificados os pressupostos da admissibilidade do recurso per saltum, pelo que, o recurso deverá ser indeferido liminarmente.
Nestes termos e nos melhores de Direito,
Deverá o presente recurso interposto pelo Recorrente ser indeferido liminarmente e, em consequência, ser a sentença recorrida mantida nos seus precisos termos.

10- Os réus contra-alegaram, deduzindo as seguintes CONCLUSÕES:
1 – A Recorrente alegou que a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo incorreu em “erro na aplicação e interpretação do direito, porquanto aplicou e interpretou de forma errónea os artºs 344º, nº 1, 1ª parte, 346º, in fine e 350º, nº 2, 493º, nº 1, todos do C.C. e
ainda os artºs 414º e 607º, nº 4 do C.P.C. - ilisão da presunção de culpa do art.º 493º do C.C.”.
2 - Pretendendo ver alterada a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, no sentido de “dar-se por não escrita a parte final do ponto 82º da matéria de facto”.
3 – Não existe fundamento para o recurso apresentado pela Recorrente, pois a o Tribunal a quo fez uma interpretação correcta da factualidade em causa, de acordo com os elementos probatórios e subsunção dos factos provados às normas jurídicas aplicáveis.
4 – Resulta das alegações da Recorrente que esta não suscitou somente questões de Direito, mas também matéria de facto, quando alega não conseguir descortinar razões que
permitam chegar à conclusão jurídica referida no ponto 82. da matéria de facto dada como
provada, segundo o qual “O incêndio teve origem no sobreaquecimento de um aparelho elétrico, sem contribuição ativa ou omissiva de causa humana”, tratando-se, refere, de um
efetivo erro de direito na subsunção jurídica dos factos e pedindo que se dê por não escrita a parte final do referido ponto 82.
5 – Alegando ainda não existir matéria de facto alegada e provada que permite suster a conclusão de que a presunção constante no artigo 493.º, n.º 1 do Código Civil se encontra
ilidida, uma vez que, alegadamente, os Réus não provaram que os equipamentos elétricos
eram prudentemente utilizados e mantidos, em termos de padrões de normalidade social.
6 – Ora, a matéria de facto é da competência das Instâncias e a alteração da mesma é da
competência do Tribunal da Relação, enquanto que o S.T.J. conhece questões de direito.
7 – Entendendo, assim, os ora Recorridos, que não se encontram preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso per saltum, nomeadamente o referido na alínea c) do art.º 638º do C.P.C., pois a Recorrente não suscitou apenas questões de direito, mas também questões de facto.
8 – Conforme dispõe o nº 3 do art.º 678º do C.PC., o recurso per saltum é processado como
de revista, resultando do disposto no nº 3 do art.º 674º do mesmo Código que: “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”
9 – E ainda o nº 2 do artigo 682.º do CPC que vem dispor que “a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional
previsto no n.º 3 do artigo 674º do C.P.C.”.
10 – Ora, no presente caso não houve qualquer erro na apreciação das provas e na fixação
dos factos materiais da causa pelo Tribunal a quo e muito menos uma ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
11 – A Recorrente vem ainda peticionar a alteração de matéria factual com base em presunções judiciais, impugnando e pronunciando-se sobre matéria de facto que foi incorrectamente provada, nomeadamente o ponto 82 que alega não ter subjacente nenhum
elemento probatório a comprová-lo, quando é clara a limitação da jurisdição do S.T.J. para tal concluir.
12 – Face ao supra exposto, não tendo o S.T.J. competência para conhecer de matéria de facto, mas tão só de Direito, não se encontrando verificado o pressuposto legal constante da alínea c) do art.º 678º do C.P.C. de admissibilidade do recurso per saltum.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V.Exas doutamente suprirão, deve o presente recurso ser indeferido liminarmente e, em consequência, manter-se a sentença recorrida nos seus precisos termos.

***
12 - Por despacho da Exma. Conselheira relatora do Supremo Tribunal de Justiça, não foi admitida a Revista per saltum e, foi ordenada a baixa dos autos a esta Relação, vindo a ser distribuídos a este colectivo.

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II- FUNDAMENTAÇÃO.

1- Objecto do Recurso.

1-É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art.º 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e, ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
a)- A Modificação da Matéria de Facto;
b)- A revogação da sentença, com a consequente procedência da acção.

***

2- Fundamentação de Facto.

A 1ª instância decidiu a matéria de facto do seguinte modo:

- Factos Provados:
1. Em …de 2017, o direito de superfície sobre a fração autónoma designada pela letra … correspondente ao 1.º andar ... do prédio urbano sito…, encontrava-se inscrito a favor da Autora.
2. A fração supra identificada constituía a habitação da Autora.
3. Em …, cerca das 17h05, deflagrou um incêndio na fração autónoma designada pela letra …correspondente ao Rés-do-Chão…do prédio urbano referido em 1., cujo direito de superfície se encontra inscrito a favor dos Réus.
4. Aquando da ocorrência do supra referido incêndio, a Autora encontrava-se no interior da sua fração, que é imediatamente acima da fração dos aqui Réus, a ouvir música.
5. Quando a Autora se apercebeu da ocorrência do mesmo, já as chamas não permitiam a circulação pedonal pelo interior do prédio.
6. O incêndio em causa deflagrou na habitação dos Réus e propagou-se para a fração da Autora.
7. O fogo teve o seu ponto de ignição na fração cujo direito de superfície é titulado pelos Réus.
8. As frações da Autora e Réus situam-se na fachada tardoz do prédio urbano sito na …
9. A fração que constituía a habitação da Autora e onde esta se encontrava, começou a ficar cheia de fumo e irrespirável, sem que chegasse qualquer tipo de socorro.
10. A Autora começou a ficar intoxicada com o fumo proveniente do mesmo, sendo que o mesmo tornava o ar irrespirável.
11. Encontrando-se a Autora encurralada no interior da sua habitação, não tendo por onde fugir e face à ausência de auxílio, a Autora pendurou-se na parte de fora da janela da sua marquise, acabando por cair em direcção ao solo.
12. O Agente da PSP, DB, que à data dos factos exercia as suas funções na …ª Esquadra… foi a primeira pessoa a tomar contacto com a Autora, que após a queda de uma altura de 9 metros ficou prostrada no solo.
13. Não obstante terem-se deslocado 10 viaturas das corporações dos Bombeiros Voluntários de Queluz, Belas, Cacém e Barcarena, que chegados ao local promoveram a extinção do incêndio e o auxílio médico/transporte das vítimas, entre as quais se encontrava a Autora, às unidades hospitalares, com o total de 25 operacionais, quando os meios de socorro chegaram ao local, já o incêndio havia tomado proporções que não permitiam a circulação no seu interior.
14. O incêndio resultou de causa fortuita relacionada com sobre aquecimento de aparelho eléctricos, conforme resulta do auto lavrado pela PSP (doc. 4) que: “(…) Chegados ao local, constatamos que se encontravam 3 pessoas/residentes na fração do 1.º piso, em pânico na janela da mesma, encontrando se já todo o prédio envolvido em fumo. (…) Da análise e recolha de informações no local, não se conseguiu apurar a causa da ignição e do incêndio, suspeitando-se no entanto de que a origem poderia ser no quarto do menor HF (acima associado como Outro) o qual consumiu toda a habitação do R/C letra …, da qual é proprietário o Sr. JF (acima associado como Proprietário) havendo danos visíveis em todas as frações do prédio, nomeadamente estuque, janelas, vidros, todo o material consumível ao fogo; bem como há a registar danos nas paredes das partes comuns do mesmo (devido ao fumo libertado). (…) De salientar o facto de o calor ter eventualmente afetado a estrutura/placa do prédio, facto pelo qual foi contatada a Proteção Civil de Sintra, ficando esta inteirada de toda a situação; volvidos alguns minutos, compareceram no local do sinistro o Sr. Comandante da Proteção Civil de Sintra, bem como o Sr. Presidente da União de Freguesias de …, acompanhados pelas Dra. VN (psicóloga) e a Dra. VS (assistente social); vindo a ser tomada como medida de precaução e de segurança para todos os moradores do prédio n.º 2, o seu acolhimento temporário em casas de familiares dos envolvidos, ou instituições indicadas pela Proteção Civil e União de Freguesias de ….( …) De realçar que existiu o perigo do incêndio se propagar ao prédio contíguo ao n.º 2 da referida artéria, devido à intensidade das chamas, colocando assim em perigo a vida e integridade física das pessoas e dos respetivos bens.
15. O incêndio aqui em causa tratou-se de um incêndio de complexidade elevada, em que a intervenção das corporações dos Bombeiros Voluntários de Queluz, Belas e Cacém no mesmo durou 6 horas e 27 minutos.
16. Referiu o Sr. Comandante dos Bombeiros Voluntários de Queluz no relatório de ocorrência (Documento n.º 5): “(…) Incêndio de complexidade elevada face à total combustão, severa carga térmica na habitação, combate moroso privilegiando a não propagação a mais frações. Após extinção, trabalhos de ventilação e remoção de produtos da combustão para o exterior consolidando o rescaldo. Danos muito consideráveis.”
17. Órgãos de comunicação social estiveram no local e transmitiram imagens do incêndio.
18. Na sequência da participação de incêndio elaborada pelo Agente da PSP, DB, foi instaurado inquérito, que correu termos pela 2.ª Secção do DIAP do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Sintra, sob o número de processo 13/17.3PHSNT.
19. A investigação do supra referido inquérito coube à Policia Judiciária da Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo, nomeadamente aos inspetores AF e RV, que se deslocaram à fração cujo direito de superfície é titulado pelos Réus no dia … 2017 pelas 10h30.
20. Realizadas as diligências probatórias apurou o Sr. Inspetor RV e fez constar do relatório por si elaborado o seguinte: “(…) Ponto de início: Zona envolvente à cama de casal localizada num dos compartimentos utilizados como quarto. (…) Atentos à leitura dos indicadores de propagação, foi possível identificar a área que apresentava um maior grau de carbonização no compartimento utilizado como quarto, na zona envolvente à cama. Esta zona esteve sujeita durante mais tempo à fonte de calor o que coincide com a zona de início do incêndio. Neste local, ao nível do chão, detectou-se um a presença de um objecto eléctrico não identificável devido ao elevado grau de carbonização. (…) Conclusão: Face à informação recolhida e ao facto de não existirem sinais de arrombamento anteriores ao início do incêndio e de, à data, não se encontrar ninguém no interior da habitação bem como de, na zona de início do incêndio, ter sido detectado um objecto eléctrico não identificável, podemos inferir estarmos perante uma ocorrência de causa não humana.”
21. De igual forma concluiu o Sr. Inspetor Chefe EC, conforme Documento n.º 4, onde refere: “Parecendo resultar que o incêndio que deu origem aos presentes autos não configure crime, mas resultado problema elétrico, ao SREA para remessa aos serviços do MP do DIAP de Lisboa Oeste (Sintra), para apreciação e decisão.”
22.O Ministério Púbico determinou o arquivamento do referido inquérito.
23. A Autora nasceu a … à data do sinistro tinha 39 anos de idade.
24. Em resultado da queda, de uma altura de cerca de 9 metros, a Autora ficou prostrada no solo, sem se conseguir movimentar.
25. Foi socorrida no local e transportada para o Hospital de S. José, sito em Lisboa, integrado no Centro Hospitalar de Lisboa Central, Epe, tendo dado entrada nos serviços de urgência desta unidade hospitalar pelas 18h46.
26. Em consequência da queda em … de 2017, a Autora sofreu traumatismo vertebro-medular, com luxação da C5-C6, tetraplegia Ais A e esfacelo da coxa direita.
27. Tendo naquela unidade hospitalar, em …de 2017, sido submetida a intervenção cirúrgica, mais concretamente a discectomia C5/C6, colocação de cage e fixação anterior com placa de 4 parafusos.
28. No pós-operatório, a Autora ficou internada nos Neurocríticos da supra referida unidade hospitalar, só tendo retomado à unidade vertebro medular 1, onde se encontrava antes da cirurgia, em …de 2017.
29. A Autora permaneceu no estado de coma induzido durante duas semanas.
30. Durante o internamento na supra referida unidade hospitalar, a Autora foi acompanhada nas especialidades de cirurgia plástica, medicina física e de reabilitação, psicologia e psiquiatria, tendo recebido alta em 8 de Junho de 2017.
31. Aquando da alta atribuída pelos serviços clínicos da unidade vertebro medular 1 do Hospital de S. José, sito em Lisboa, a Autora foi conduzida, por prescrição médica, ao Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, onde deu entrada em 8 de Junho de 2017 a fim de realizar tratamento fisiátrico em regime de internamento.
32. Resulta da informação clínica da Médica Fisiatra Dra. AF – doc.10 - que, a Autora apresenta “quadro neuromotor de tetraplegia completa AIS A com nível sensitivo-motor C6, score motor MSD (13/25), MSE (15/25), MID (0/25), MIE (0/25), mantém ausência de movimentos voluntários dos membros inferiores. Tónus grau 2 nos membros inferiores. Iniciou treino vesical com esvaziamentos realizados por terceira pessoa de 5/5h com algália no período nocturno e tem treino intestinal instituído que é eficaz em dias alternados. Mantém dependência de terceira pessoa nas atividades de vida diária e transferências. O equilíbrio sentado estático é eficaz o dinâmico não é eficaz. Ao nível da função da mão apresenta bilateralmente uma destreza muito reduzida que é parcialmente compensada com alguns dispositivos de compensação. Deambula em cadeira de rodas mecânica conduzida pela própria para distâncias moderadas em pisos regulares e com elásticos a nível dos aros. Faz posição de pé terapêutica na cadeira de rodas de verticalização.”
33. Atento o quadro clínico da Autora, foi a mesma sujeita ao programa de medicina física e de reabilitação de intervenção, consubstanciado em:
. Exercícios de equilíbrio na posição de sentada em short-sitting.
. Exercícios de equilíbrio na posição de sentada em long-sitting;
. Mobilização passiva dos membros inferiores.
. Treino de atividades funcionais no colchão (rolar, mudança de decúbitos, passagem da posição de decúbito dorsal para a posição de sentada, passagem de decúbito ventral para a posição de gatas).
. Treino de transferências.
. Treino de destreza manual na cadeira de rodas.
. Treino funcional na cadeira de rodas.
. Ensino de auto-mobilizações.
. Alongamentos musculares.
. Exercícios de fortalecimento dos membros superiores e tronco.
. Exercícios respiratórios associado ao treino de fortalecimento e ao treino
funcional no colchão.
. Posição de pé na verticalização na cadeira elétrica.
. Mobilização motorizada em ciclo ergómetro de membros superiores e membros
inferiores.
. Ensino ao utente.
. Grupo de Fisioterapia Respiratória.
. Grupo de Atividades Funcionais.
34. Em consequência das lesões sofridas para fugir ao incêndio que deflagrou na habitação dos Réus a Autora suportou dores atrozes, que se prolongaram por diversos meses e ainda subsistem, e teve de suportar o sofrimento resultante de tratamentos clínicos, da intervenção cirúrgica e de violentas sessões de fisioterapia.
35. Durante todo o período de tempo que permaneceu internada no Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, ou seja, desde 8 de Junho de 2017 a 6 de Novembro de 2017, a Autora realizou diversos exames auxiliares de diagnóstico:
- análises, estudo urodinâmico, provas da função respiratória, ecografia reno-vesical, electrocardiograma, Rx de abdómen sem preparação, Rx do ombro direito,  Rx da coluna cervical e Rx tórax.
36. No Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, foram prescritos à Autora os seguintes produtos de apoio: luvas de condução de cadeira de rodas, bolsa palmar para cabos finos, tríade de escrita e par de individualizadores do indicador, meias de contenção elástica (2 pares), inspirómetro, tábua de transferência, faixa de contenção abdominal.
37. Para adquirir a tábua de transferência a Autora despendeu, em 20 de Julho de 2017, a quantia de €80,56 (oitenta euros e cinquenta e seis cêntimos).
38. Para o seu dia-adia a Autora carece, atento o seu grau de incapacidade de 91%, de: (i) cadeira de rodas elétrica com comando de direção elétrico, para deambulação autónoma no exterior, bem como almofadas para sentar e materiais de proteção para prevenir úlceras de pressão e respetivo sistema de estabilização do ocupante na cadeira de rodas; (ii) - cadeira de rodas manobrada bimanualmente por rodas, bem como sistema de estabilização do ocupante na cadeira de rodas e respetivas unidades de propulsão.
39. A aquisição das supra referidas cadeiras foi orçada, no que se refere à cadeira de rodas elétrica, em €30.787,70 (trinta mil, setecentos e oitenta e sete euros e setenta cêntimos), e €2.957,40 (dois mil, novecentos e cinquenta e sete euros e quarenta cêntimos), no que se refere à cadeira de rodas mecânica, tudo no total de €33.745,10 (trinta e três mil, setecentos e quarenta e cinco euros e dez cêntimos).
40. Para adaptar as cadeiras de rodas, a Autora teve de adquirir um encosto de posicionamento para cadeira de rodas, uma almofada antiescaras e aros de propulsão siliconados tendo despendido a quantia de €1.237,81 (mil, duzentos e trinta e sete euros e oitenta e um cêntimos).
41. A necessidade de tais acessórios advém da circunstância de a Autora não ter força nos braços nem movimento de punho cerrado.
42. Em consequência das lesões sofridas, a Autora ficou a padecer de uma incapacidade funcional permanente de 91% com incapacidade total e permanente para o trabalho.
43. Atualmente, a Autora desloca-se em cadeira de rodas e necessita de assistência permanente de terceira pessoa nos atos da vida diária.
44. A Autora carece de auxílio de terceira pessoa para as atividades mais básicas e elementares do seu dia-a-dia, tais como comer, virar-se na cama para dormir de 3 em 3 horas para não criar feridas de pressão, proceder ao esvaziamento do intestino grosso e delgado, vestir-se, tomar banho, etc.
45. Tendo perdido todos os movimentos e sensibilidade dos membros inferiores, designadamente nos órgãos sexuais, nos esfíncteres, no ânus, no recto, nos intestinos, no estômago, no aparelho urinário e no aparelho respiratório.
46. A Autora tem, alguma, sensibilidade nas mãos, no entanto, estas perderam a sua funcionalidade, não conseguindo a Autora segurar objetos pois está privada do movimento básico de pinça/tenaz, o que a impede de agarrar, sequer, numa folha de papel de pouca gramagem.
47. Diariamente, a Autora toma comprimidos para as dores, relaxantes musculares, hipotensores e fármacos para incontinência urinária.
48. Atento o quadro clínico a Autora esteve em regime de internamento no Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro desde 5 de Novembro de 2017 até 30 de Agosto de 2018, a Autora esteve em regime de internamento no Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro – ..., realizando programa de reabilitação, nas seguintes vertentes:
- Enfermagem geral e de reabilitação;
- Fisioterapia (incluindo ginásio terapêutico e hidrocinesiterapia em piscina aquecida);
- Terapia ocupacional;
- Desporto adaptado terapêutico;
- Apoio de Psicologia;
- Apoio de Serviço Social.
49. Para tanto, a Autora teve de custear o transporte em ambulância do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão para o Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro – ..., tendo despendido a quantia de €291,60.
50. Pontualmente a Autora tem situações de disreflexia autonômica e hipotensões (baixa tensão com quase perda de consciência), tem crises de ansiedade sempre que cheira a queimado ou presencia um fogo.
51. A Autora carece e carecerá toda a vida de permanente controlo médico e medicamentoso, facto que lhe causa enorme preocupação e ansiedade, razão pela qual teve alta com encaminhamento para Unidade de Cuidados Continuados (UCC),
52. A Autora carece de terceiros para organizarem a sua medicação, tomando diariamente medicação vária.
53. A Autora sempre foi uma pessoa preocupada com a sua condição física e com a sua aparência, sendo com desgosto e tristeza que aceita a sua imagem atual, conforme Documento n.º 27 que ora se junta.
54. A Autora apresenta dificuldades de aceitação da sua autoimagem, pelas alterações corporais verificadas após a lesão, evidenciando perturbação de stress pós-traumático.
55. A Autora acabou por vender a fração referida em 1.
56. Por força do incêndio a custeou as despesas com a aquisição e montagem de novas janelas, tendo despedindo a quantia de €1.099,99 (mil, noventa e nove euros e noventa e nove cêntimos).
57. A Autora, até à data do incêndio, era uma pessoa ativa, que praticava desporto com regularidade.
58. Não pode ter relações sexuais, nem ser mãe.
59. Desde a data da alta do Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro – ..., ocorrida em finais de Agosto de 2018 até Dezembro de 2020 a Autora esteve encontra internada na Unidade de Cuidados Continuados Integrados …, tendo suportado nesse período o montante total de € 17.053,55 pagando mensalmente €617,83.
60. Ao valor mensal do internamento acrescem, ainda, as despesas mensais fixas com massagens terapêuticas para o alívio crónico da dor muscoesquelética e serviços especializados de podologia, cujo intuito é desencravar e cortar as unhas infetadas da Autora, que em Novembro de 2018 se computam um total de €635,00.
61. A Autora vive momentos de amargura e angústia devido ao seu quadro clínico atual, que a impede de ter uma vida normal.
62. A Autora esmoreceu na vontade de viver, sendo que não tem esperança num futuro melhor em termos funcionais.
63. A Autora está impedida de ter uma vida ativa, quer na sua perspetiva pessoal, quer profissional.
64. À data do incêndio a Autora não se encontrar com vínculo laboral, estando a terminar a sua tese de mestrado.
65. A Autora tem uma licenciatura em Política Social, obtida com uma média de 14 valores.
66. A Autora apresenta um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 90 pontos estando dependente de ajuda de terceira pessoa a título permanente.
67. Até ao fim da vida a Autora vai necessitar da toma de medicamentos, realização de análises, exames médicos, uso algálias, fraldas e resguardos.
68. O que tem sido por si custeado.
69. À data da interposição da presente acção a Autora já havia custeador € 1.813,63, referentes ao internamento na Unidade de Cuidados Continuados Integrados ….
70. A Autora carecerá de apoio de terceiro especializado de forma permanente até ao fim da sua vida, bem como de consulta anual e tratamentos fisiátricos, no mínimo de três blocos anuais de 20 sessões cada um.
71. A Autora padece de um dano estético permanente de grau 6 (numa escala de 7 graus de gravidade crescente), tendo em atenção as cicatrizes na face anterior e posterior do pescoço e na face medial da coxa direita, a necessidade de utilização de cadeira de rodas, a globalidade do seu quadro motor e a necessidade permanente de uso de fralda e algália.
72. A Autora teve uma repercussão de grau 6, numa escala de 7 graus de gravidade crescente) nas suas actividades desportivas e de lazer, tendo em atenção o abandono da equitação, natação e ginásio, assim como as suas actividades de lazer e sociais.
73. A Autora está dependente no futuro de (i) ajudas medicamentosas (analgésicos, antiespasmódicos ou antipiléticos, assim como de fármacos para a incontinência urinária e hipotensores), (ii) tratamentos médicos regulares (consultas e fisioterapia), (iii) produtos de apoio (como faixa de contenção abdominal, faixa de estabilização na cadeira de rodas, tábua de transferência, luvas, meias elásticas, cadeira de rodas eléctrica e cadeira de rodas mecânica, almofada anti-escaras, cadeira de banho, cama articulada e materiais descartáveis, tais como fraldas, algálias e cateteres), (iv) adaptação do domicílio à cadeira de rodas e ajuda de terceira pessoa para as actividades básicas e instrumentais da vida diária, de complemento e de substituição, a realizar dentro e fora do domicílio.
74. A Autora teve dores físicas e psíquicas de grau 7 (uma escala de 7 graus de gravidade crescente), tendo em atenção o traumatismo sofrido, a gravidade das lesões, o longo período de recuperação – até à consolidação médico legal das lesões – que foi de 693 dias, os tratamentos efectuados e os internamentos suportados.
75. Em Dezembro de 2020 a Autora teve alta da Unidade de Cuidados Continuados Integrados para o domicílio, com acompanhamento 24h/dia, sete dias por semana.
Ampliação do pedido
76. Em mensalidades no internamento em cuidados continuados a Autora despendeu a quantia referida em 59.
77. Após a apresentação da petição inicial, a Autora teve – em virtude das lesões sofridas no acidente – necessidade de realizar tratamentos médicos, massagens, adquirir medicamentos, produtos de higiene, suplementos alimentares, transporte adaptado, pagar internamentos e adquirir um computador adaptado às suas limitações dos membros superiores, no que despendeu a quantia de € 2.924,89.
78. Os Réus celebraram com a M Seguradora SA contrato de seguro titulado pela apólice 1…, tendo como objecto seguro o r/c …do prédio sito na Rua…, cujas coberturas no âmbito da responsabilidade civil para com terceiros tinha como limite de indemnização € 50.000,00, e que se encontrava em vigor à data do sinistro.

79. Quando deflagrou o incêndio nem os Réus nem o seu filho se encontravam em casa.
80. O primeiro a chegar a casa foi o filho dos Réus que, quando abriu a porta de casa se deparou com fumo no seu interior e de imediato pediu ajuda a SP, que se encontrava a executar obras de remodelação no interior da fracção do r/c B.
81. De imediato SP fechou a porta da fracção dos Autores.
82. O incêndio teve a sua causa no sobreaquecimento de um aparelho eléctrico. (“sem contribuição activa ou omissiva de causa humana”). * trecho a negrito e itálico desconsiderado em consequência da impugnação da matéria de facto.

Factos Não Provados.
a) quando a Autora se apercebeu da ocorrência do incêndio já as chamas se encontravam no interior da sua habitação.
b) que a fracção que constituía a habitação da Autora começou a ser consumida pelas chamas.
c) que depois do incêndio, a Autora não mais tenha entrado no supra referido imóvel.
d) que a Autora tenha a sua expectativa de vida encurtada.
e) que a Autora esteja privada de contactar pessoalmente com os seus familiares e amigos porquanto vive confinada em Centros de Reabilitação, carecendo em absoluto de apoio técnico especializado permanente.
f) que a Autora tenha perdido a vontade de viver.
g) que quando o filho dos Réus e SP tenham fechado a porta da fracção e saído para o exterior não fosse visível fumo no interior do edifício e das escadas.
h) que SP e o filho dos Réus tenham tocado às campainhas no sentido de alertar para a ocorrência.
i) que a intervenção da PSP e dos Bombeiro tenha sido rápida e eficiente.
j) que quando as autoridades chegaram a maior parte dos condóminos já se encontrava no exterior do prédio.
k) que a Autora não ouviu a campainha a avisar para sair da habitação porque estava a ouvir música.
l) que se assim não fosse teria podido sair da habitação pelo próprio pé.
m) que se a Autora não se tivesse precipitado a saltar da janela teria sido retirada da sua residência através de escadas face à rápida intervenção da PSP e Bombeiros.
n) que o fumo proveniente do incêndio não era suficiente para intoxicar e permitia sair do prédio em segurança.
o) que a Autora tenha decidido saltar pela janela em vez de pedir ajuda como fizeram os outros residentes do 1.º piso.
p) que a Autora, por ser viúva e desempregada, passasse por períodos depressivos
que contribuíram para o pânico que a levaram a saltar pela janela da sua fracção
sem medir as consequências.
***

3- As Questões Enunciadas.

3.1- A Alteração da Matéria de Facto.

Como menciona a Exma. Conselheira Relatora - no despacho que não admitiu a Revista per saltum - a apelante pretende se “…dê por não escrita a parte final do ponto 82º da matéria de facto”.
Concretamente, pretende, a recorrente, seja eliminado o trecho final do ponto 82º “…sem contribuição activa ou omissiva de causa humana”, por, segundo ela, se tratar de uma conclusão jurídica e constituir um erro de direito.
Além disso, a recorrente impugna que do meio de prova invocado pela 1ª instância na fundamentação da sua decisão – o Relatório elaborado pela Polícia Judiciária – se possa extrair aquele excerto final do ponto 82º dos factos provados, defendendo que tal meio de prova conduz a uma conclusão totalmente oposto à que consta da sentença.
Lê-se naquele douto despacho da Exma. Relatora do STJ, que “Tendo o tribunal recorrido fundamentado o juízo constante do ponto 82, unicamente, no teor deste relatório, na parte relativa à origem e causa do incêndio, como resulta da respetiva fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, repete-se, temos de concluir que estamos no domínio da livre apreciação da prova pelo tribunal. (…) estando em causa a livre apreciação de prova pericial, está vedado ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar a decisão sobre a matéria de facto fundamentada nesse tipo de prova. (…) O presente recurso não está, portanto, circunscrito exclusivamente a matéria de direito, implicando também uma questão de facto relativa à impugnação parcial do ponto 82 dos factos provados.” * (sublinhado nosso).
A esta luz, cumpre, pois, apreciar se deve permanecer, nos factos provados, o trecho final do ponto 82 com o referido teor “…sem contribuição activa ou omissiva de causa humana.”.
A 1ª instância fundamentou a sua decisão de dar como provado o ponto 82, escrevendo:
O facto 82 resultou da análise cuidada e conscienciosa dos relatórios da PJ juntos aos autos a fls. 30 e ss.”
A apelante funda a sua pretensão de eliminação do trecho final do ponto 82 dos factos provados - sem contribuição activa ou omissiva de causa humana - baseando-se em dois argumentos:
i)- Tratar-se de mera conclusão jurídica e, por isso, insusceptível de ser inserida na matéria de facto;
ii)- O meio de prova invocado pela primeira instância, não permitir a conclusão tirada.
Vejamos se assim é.

3.1.1- A inadmissibilidade do facto conclusivo constar do elenco dos factos provados.
Não é pacífica a questão relativa à admissibilidade de prova e enunciação de factos conclusivos.
De um lado, a jurisprudência que vem entendendo que apenas os factos concretos podem integrar a selecção da matéria de facto, referidos no art.º 607º nº 4 do CPC, estando arredada a enunciação de factos conclusivos e conceitos jurídicos integradores do objecto do processo.
Assim, a título de exemplo, neste sentido, podem ver-se:
- STJ, de 01/10/2019 (Proc. 109/17, Fernando Samões):
Apenas os factos concretos podem integrar a selecção da matéria de facto relevante para a decisão, embora lhe sejam equiparáveis os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, desde que não integrem o objecto do processo.”
- TRP, de 25/09/2023 (Proc. 13265/18, Manuel Domingos Fernandes):
“…a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos…”
- TRG, de 31/03/2022 (Proc. 294/19, Pedro Maurício):
Os factos conclusivos não podem integrar a matéria de facto quando estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem a perceção da realidade concreta, e/ou ditam por si mesmo a solução jurídica do caso, normalmente através da formulação de um juízo de valor.”
- TRL, de 12/09/2024 (Proc. 11962/21, Laurinda Gemas):
Não devem constar da decisão da matéria de facto as alegações de direito, nem as meras conclusões sobre conjuntos de factos que envolvam juízos de valor a formular também com base em regras jurídicas…”
Na doutrina, Paulo Ramos de Faria entende:
“…é manifestamente errada a inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto. Sinalizado o erro, tais proposições devem ser tidas por imprestáveis, inúteis ou irrelevantes – vale qualquer predicação que evidencie a sua inidoneidade para, no lugar de um facto, servir de premissa ao silogismo judiciário –, mas nunca por inexistentes ou não escritas”. (Escrito ou não escrito, eis a questão! (A inclusão de proposições de direito na pronúncia de facto), Revista Julgar online, Novembro de 2017).
O Prof. Teixeira de Sousa, defende que:
Tanto na enunciação dos temas da prova, como na apreciação da matéria de facto nada pode impedir a utilização de “factos conclusivos” e mesmo de factos jurídicos. Naturalmente, cabe sempre ao juiz ponderar se, no caso concreto, algo fica menos claro através da utilização de “factos conclusivos” ou jurídicos e se, nesse mesmo caso, é conveniente referir, não o “facto conclusivo” ou facto jurídico, mas o facto concreto que é subsumível a esse “facto conclusivo” ou jurídico. (…)”.
E acrescenta este Professor:
Não podem ser enunciados como temas da prova as consequências jurídicas, isto é, os efeitos que decorrem da aplicação das regras jurídicas.” (…) “(i) as consequências jurídicas são os efeitos definidos nas estatuições das regras jurídicas; (ii) os factos jurídicos são os factos que integram as previsões das regras jurídicas cujo preenchimento desencadeia a produção de efeitos jurídicos. Como os temas da prova enunciam os factos que devem ser provados para que se possa produzir um determinado efeito jurídico, é claro que desses temas nunca pode constar o efeito que se produzirá se a previsão de uma regra se encontrar preenchida.” (CPC online, Livro II, anotações 47 e 48 ao art.º 410º, Blog do IPPC, consultado a 10/02/2025). * (realce e sublinhados nossos).
Pois bem, deste entendimento decorre que, crucial para a compreensão desta problemática é a distinção entre previsão e estatuição como elementos da estrutura da norma jurídica.
A estatuição da norma não pode constar no elenco dos factos enunciados na sentença; diferentemente, a previsão da norma, rectius, os factos simples ou complexos e até conclusivos integradores da previsão normativa, podem constar do enunciado fáctico da sentença ou dos temas de prova.
Em termos simples, numa norma jurídica completa podemos distinguir um antecedente e um consequente, ou seja, uma previsão e uma estatuição.
A estatuição, ou consequência, corresponde à premissa maior do silogismo judiciário.
A premissa menor corresponde à previsão, ou hipótese da norma. (Cf Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 25º reimpressão, 2018, pág. 79 e seg.; Santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, 9ª edição, 2018, pág. 140 e segs).
No caso em apreço, estamos no âmbito da aplicação da norma do art.º 493º nº 1 do CC com a seguinte letra:
“1. Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.”
A regra jurídica que resulta da norma, relativamente a quem tem o encargo de vigilância de coisas, é a de presumir a respectiva culpa (adiante verificaremos se se trata de mera presunção de culpa ou também de ilicitude e causalidade) e, por conseguinte, coloca a cargo do obrigado à vigilância, o ónus de provar que os danos não procedem de culpa sua. O mesmo é dizer (por ora) que não teve comportamento activo ou omissivo que podia e devida ter evitado.
Portanto, na estatuição da norma está a responsabilidade pelos danos: “responde pelos danos”.
Na previsão da norma temos as hipóteses:
(i)-Pelo lado do autor, o dano causado por animais ou coisas em poder ou à guarda de alguém;
(ii) Pelo lado do réu, a prova da falta de culpa ou, que o evento se despoletaria igualmente mesmo sem culpa do vigilante.
Ora, embora de modo conclusivo, o trecho do ponto 82 dos factos provados “…sem contribuição activa ou omissiva de causa humana.”, não deixa de corresponder à previsão normativa do art.º 493º nº 1. Não à respectiva estatuição.
Em termos abstractos, à luz da posição do Prof. Teixeira de Sousa, acima referida, até poderíamos admitir que do elenco dos factos, na sentença, constassem factos conclusivos respeitantes à previsão da norma: “…sem contribuição activa ou omissiva de causa humana…”.
Recorde-se que o actual CPC, resultante da reforma de 2013, deixou de conter regra correspondente à do anterior art.º 646º nº 4 que determinava terem-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e que levava (e leva) a jurisprudência a não admitir a enunciação de factos conclusivos na sentença.
Portanto e reiterando: a esta vista, em abstracto, não se levantaria óbice a que aquele trecho do ponto 82º dos factos provados - sem contribuição activa ou omissiva de causa humana – pusesse constar na enunciação dos factos da sentença.

Diferentemente é a questão de saber se, em concreto, esse trecho - sem contribuição activa ou omissiva de causa humana – pode permanecer no ponto 82 dos factos provados. E isso tem a ver com a questão enunciada acima:

3.1.2- Se o meio de prova invocado pela primeira instância, não permite a conclusão factual vertida na parte final do ponto 82.

Entramos, assim, no segundo argumento utilizado pela autora para a pretendida eliminação do referido trecho de facto do ponto 82: o único meio de prova invocado pela 1ª instância para considerar provado aquele trecho de facto foi o Relatório elaborado pela Polícia Judiciária.
A questão que se coloca é, justamente, saber se somente aquele Relatório e o respectivo teor são suficientes para que dele se retire o facto conclusivo “…sem contribuição activa ou omissiva de causa humana…”.
Vejamos então.
Como é sabido, a prova, rectius, as provas têm por função a demonstração da realidade de factos (art.º 341º do CC). A actividade probatória corresponde à instrução realizada num processo pelas partes e, em certas circunstâncias, pelo tribunal.
Em termos amplos, a instrução tem por objecto os factos carecidos de prova (art.º 410º do CPC), ou seja, os factos controvertidos que correspondem, grosso modo, aos factos alegados por uma parte e impugnados pela outra parte.
Com a produção da prova pretende-se, de acordo com critérios de razoabilidade, convencer o julgador da veracidade de certo facto. O destinatário da convicção que a prova tende a criar é o julgador. Nas palavras de Antunes Varela (et alii, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 436) “A prova, no processo, pode assim definir-se como a actividade tendente a criar no espírito do juiz a convicção (certeza subjectiva) da realidade de um facto.”
A demonstração dos factos mediante a actividade probatória reconduz-se a um processo cognitivo, através do qual o juiz acede a uma realidade existencial ou experimentável ou do foro psicológico, seja por via da percepção directa (inspecção judicial) ou indirecta (prova testemunhal) seja até por via de presunções apoiadas nas regras da experiência ou da própria lógica do pensamento.
O juízo de apreciação da matéria de facto consiste, assim, numa actividade decisória objectivada no juízo de conformidade (ou desconformidade) entre os factos alegados e o correlativo acontecer fáctico, juízo esse que se estriba na convicção do julgador ou no valor legalmente atribuído ao meio de prova (Manuel Tomé Soares Gomes, Noções e Quadros Elementares do Direito Probatório Civil e Comercial, CEJ, edição policopiada, 1994, pág. 5).
Por outro lado, nos artºs 342º a 344º do CC, o Legislador regula a distribuição do ónus de prova pelas partes. Dessas normas decorre, em primeiro lugar que, cada parte tem o ónus de provar os factos que lhe são favoráveis, ou seja, quanto ao autor, tem o ónus de provar os factos que lhe permitam a procedência da acção; e, por sua vez, ao réu, tem o ónus de provar os factos que lhe assegurem a improcedência da causa. É por isso que o autor tem o ónus de provar os factos constitutivos do seu direito e, o réu, tem o ónus de provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor.

Paralelamente ao ónus de prova existe o ónus de alegação referido no art.º 5º nº 1 do CPC: “1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.”.
O ónus de alegação ou de afirmação (onus allegandi) no fundo, traduz-se em saber quem corre o risco da falta de alegação de factos indispensáveis para se decidir um pleito em certo sentido; já o ónus de produção, ou ónus de prova (onus probandi) refere-se ao risco de saber sobre quem corre o risco de não provar o respectivo facto alegado (Cf. Rui Soares Pereira, O Nexo de Causalidade na Responsabilidade Delitual, Teses, Almedina, 2019 reimpressão, pág. 1112 e seg.)
Assim, ao autor cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, ou seja, os necessários para individualizar o direito ou interesse que a parte pretende ver alcançada com o processo. Ao réu cabe alegar os factos essenciais constitutivos da excepção invocada.

Feitas estas considerações e, voltando ao caso em análise, pergunta-se, pela positiva, se o meio de prova invocado pela primeira instância, permite a conclusão factual vertida na parte final do ponto 82.
Pois bem, adiantando a resposta, dizemos desde já, que não.
Isto porque o Relatório elaborado pela Polícia Judiciária não permite criar uma convicção firme e segura sobre ter sido afastada a presunção de culpa dos réus na ocorrência do incêndio.
E, é disso que se trata.
E não permite alcançar essa convicção, por três razões essenciais:
i)- A inobservância, pelos réus, do ónus de alegação dos factos essenciais da ilisão da presunção de culpa (excepção);
ii)- Inadmissibilidade de consideração oficiosa de factos essenciais não alegados;
iii)- Inaptidão probatória do Relatório para demonstrar o afastamento da presunção de culpa dos réus.

Vejamos então cada uma destas sub-questões.
Assim:
-3.1.2.1- A inobservância, pelos réus, do ónus de alegação dos factos essenciais da ilisão da presunção de culpa (excepção).
Dissemos acima que o réu tem o ónus de alegar (e de provar) os factos essenciais constitutivos da excepção que levem à improcedência da causa.
O art.º 493º nº 1 do CC estabelece uma presunção legal de culpa sobre aqueles que, num interesse próprio ou alheio e com ou sem fim lucrativo, têm o dever de vigiar coisas móveis ou imóveis que estejam, de forma duradoura ou temporária, na sua esfera de poder efectivo e que pela sua natureza, estrutura ou utilização são susceptíveis de causar danos. (Cf. Brandão Proença, Balizas Perigosas e Responsabilidade Civil, Cadernos de Direito Privado, nº 17, Jan./Març. 2007, pág. 35).
 A presunção de culpa não se baseia na própria coisa mas na situação do homem relativamente a ela; em qualquer caso, está-se sempre em face de um dano que a coisa não teria causado sem um comportamento indevido do seu guarda (Vaz Serra, Responsabilidade civil pelos danos causados por coisas ou actividades, BMJ 85, pág. 368).
Ora, as presunções legais estão conexionadas com o princípio do ónus de prova, não carecendo, a parte que delas beneficia, de demonstrar todos os factos constitutivos do seu direito, mas apenas aqueles em volta dos quais foi estabelecida uma presunção.
Pelo contrário, a parte onerada com a presunção de culpa tem o ónus de ilidir essa presunção se não quer sofrer as consequências (da presunção).
Assim, a esta luz, os réus tinham o ónus de alegar os factos constitutivos da ilisão da presunção de culpa. O mesmo é dizer que “…a pessoa que se queira exonerar de uma presunção de culpa, mais do que aduzir causas que a excluam (tanto mais que estas têm sempre de ser provadas por quem as invoque e delas se pretende fazer valer) alegará factos que provem a licitude da sua conduta…” (Rui Mascarenhas Ataíde, Responsabilidade Civil por Violação de Deveres no Tráfego ,Almedina, Teses, 2019,  pág. 856). Ou seja, em face da presunção de culpa que sobre ele recai, a pessoa onerada com o dever de vigilância pode exonerar-se da sua responsabilidade comprovando que cumpriu os respectivos deveres de custódia ou que o dano se produziria ainda que os tivesse cumprido.

No caso dos autos, lida e relida a contestação, verifica-se que os réus não alegam qualquer facto que ilida a presunção de culpa que nos termos do art.º 493º nº 1 do CC sobre eles recai.
Na verdade, não invocam qualquer facto que demonstre que cumpriram o dever de vigilância sobre a casa e sobre o aparelho eléctrico que esteve na origem do incêndio – curiosamente (ou não) nem sequer mencionam que aparelho eléctrico era esse, nem mesmo o disseram à Polícia Judiciária – nem alegaram factos dos quais pudesse resultar que o dano se produziria ainda que tivessem cumprido o dever de vigilância (relevância negativa da causa virtual).
Com efeito, os réus limitam-se a alegar que, aquando da deflagração do incêndio, nem eles nem o filho se encontravam em casa (ponto 11º da contestação); quando o filho dos réus chegou a casa deparou-se com o incêndio e de imediato pediu socorro (13º da contestação); que a autora se encontrava no interior da sua habitação, a ouvir música e, por isso, não se apercebeu que a tocaram à sua campainha para sair de casa (Pontos 19º, 20º e 27º); o que teria evitado que tivesse saltado pela janela em direcção ao solo (ponto 21º); que de acordo com o Relatório da Polícia Judiciária estamos perante uma causa não humana (31º ); e que o inquérito crime foi arquivado por resultar que o incêndio que deu origem aos autos não configurar crime, mas resultado de problema eléctrico (32º); que enquanto proprietários da fracção sempre diligenciaram por todas e quaisquer medidas destinadas a acautelar quaisquer prováveis danos (36º); não podendo deixar de se considerar que a ocorrência em causa como um acontecimento fortuito e inevitável e imprevisível (40º).
Pois bem, para ilidirem a presunção de culpa que sobre eles impende por força do art.º 493º nº 1, os réus teriam de alegar factos que demonstrassem que foram vigilantes e tiveram o cuidado de guarda sobre a concreta coisa que deu origem ao incêndio: um aparelho eléctrico, colocado no chão, na zona envolvente da cama de casal.
Não basta, para cumprirem o ónus de alegação dos factos essenciais do ónus de ilisão da presunção de culpa, limitarem-se a alegar, vaga e genericamente, que “…enquanto proprietários da fracção sempre diligenciaram por todas e quaisquer medidas destinadas a acautelar quaisquer prováveis danos.”
De resto, nem se dignaram “identificar” que tipo de aparelho eléctrico colocaram no chão na envolvente da cama de casal e que deu origem ao incêndio.
Não sabiam que aparelho seria esse?
Esta “ignorância” de qual fosse o aparelho, por si só, demonstra falta de diligência na vigilância, demonstrando mesmo falta de cuidado na guarda das coisas eléctricas sob o seu poder! Isto para não dizer que é estranho que os autores não soubessem que aparelho eléctrico tinham colocado junto à cama… Não sabiam, ou não lhes interessou dizerem qual era?
Além disso, também não invocaram factos dos quais pudesse decorrer que uma outra causa desencadearia idêntico dano ainda que não tivesse ocorrido falta de diligência na vigilância (relevância negativa da causa virtual) (Cf. Ana Prata, CC anotado, vol. I, anotação 3 ao art.º 493º do CC. Na vigência do Código de Seabra, para outros desenvolvimentos, veja-se a tese de doutoramento de Francisco Pereira Coelho: O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, 1955, mormente ponto 52, págs. 298 e segs., onde este autor, expressamente, menciona: “A prova da causa hipotética compete, numa acção de indemnização por perdas e danos, ao réu. (…) Ao réu cumprirá provar duas coisas: que a causa hipotética se teria verificado sem a causa real; segundo, que ela teria provocado efectivamente o dano de que se trata (o dano cuja indemnização é pedida pelo autor.”)
Seja como for, conclui-se que os réus não alegaram os factos essenciais da ilisão da presunção de culpa que sobre eles impendia por força do art.º 493º nº 1 do CC.

3.1.2.2- Inadmissibilidade de consideração, pela 1ª instância, de factos essenciais não alegados.
Como se referiu, resulta do art.º 5º nº 1 do CPC, que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. E, do nº 2 do mesmo artigo decorre que para “…além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.”
Pois bem, destes dois normativos, resulta que está vedado ao tribunal o conhecimento de factos essenciais não alegados pelas partes. Somente nos casos em que o processo faculta ao juiz o uso de poderes inquisitórios, como sucede nos processos de jurisdição voluntária (art.º 986º nº 2 do CPC), é que o juiz pode conhecer de factos essenciais não alegados, constitutivos da pretensão do autor ou da defesa do réu.
Vimos, acima, que os réus não alegaram factos essenciais à ilisão da presunção de culpa que sobre eles impendia. Igualmente vimos que o trecho final do ponto 82º da matéria de facto - sem contribuição activa ou omissiva de causa humana - não deixa de corresponder à previsão normativa do art.º 493º nº 1 do CC a cargo dos réus. Com a análise agora efectuada demonstra-se que a 1ª instância não podia considerar aquele facto essencial não alegado.
Confirma-se, assim, o que se afirmou: inadmissibilidade de consideração, pela 1ª instância, de factos essenciais não alegados.

3.1.2.3- Inaptidão probatória do Relatório da Polícia Judiciária para demonstrar o afastamento da presunção de culpa dos réus.
Como se referiu, a 1ª instância fundamentou a sua decisão de considerar provado o ponto 82º dos factos provados - O incêndio teve a sua causa no sobreaquecimento de um aparelho eléctrico, sem contribuição activa ou omissiva de causa humana – invocando, apenas:
O facto 82 resultou da análise cuidada e conscienciosa dos relatórios da PJ juntos aos autos a fls. 30 e ss.”
A questão que se coloca é a de saber se aquele relatório da Polícia Judiciária é apto para, por si só, permitir formar a convicção, firme e segura, sobre terem os réus ilidido a presunção de culpa que sobre eles impende.
Entendemos que não.
Em primeiro lugar, trata-se de um Relatório elaborado para efeitos do art.º 253º do CPP, que, sob epígrafe “Relatório” determina:
1- Os órgãos de polícia criminal que procederem a diligências referidas nos artigos anteriores elaboram um relatório onde mencionam, de forma resumida, as investigações levadas a cabo, os resultados das mesmas, a descrição dos factos apurados e as provas recolhidas”.
Em termos simples, é um Relatório elaborado no âmbito de um inquérito penal e que, no fundo, se destina a apurar da ocorrência de indícios da prática de um crime e quem seja o seu autor. Concretamente, no caso, um crime de incêndio.
O crime de incêndio tem previsão no art.º 272º nº 1, al. a) do C Penal (na forma dolosa); e, na forma negligente, nos nºs 2 e 3 do mesmo artigo do C Penal.
Como é fácil de alcançar, essencial para a ocorrência de um crime é, justamente, que seja identificado o respectivo autor.
Naquele relatório da Polícia Judiciária consta que não foram identificados suspeitos (da prática do crime de incêndio). E, na “Conclusão” é dito:
Face à informação recolhida e ao facto de não existirem sinais de arrombamento anteriores ao início do incêndio e de, à data, não se encontrar ninguém no interior da habitação bem como de, na zona de início do incêndio, ter sido detectado um objecto eléctrico não identificável, podemos inferir estarmos perante uma ocorrência de causa não humana.”
Ou seja, de acordo com a “inferência” daquele Relatório, não foi detectado o agente/autor do incêndio. E, porque não “identificaram” o objecto eléctrico que originou o incêndio, não imputaram indícios da prática de crime de incêndio a quem quer que fosse.
Ora, desta transcrição do Relatório da Polícia Judiciária não consta aquele facto conclusivo correspondente ao trecho final do ponto 82º dos factos provados: “…sem contribuição activa ou omissiva de causa humana.”. O que o Relatório salienta é que não existiam indícios de arrombamento anteriores ao incêndio; e que não se identificou o objecto eléctrico que deu causa/início ao incêndio em que estava colocado junto à cama do casal dos réus.
Na verdade, consta do mencionado Relatório que:
“…foi possível identificar a área que apresenta uma maior área de carbonização no compartimento utilizado com o quarto, na zona envolvente da cama. Esta zona esteve sujeita durante mais tempo à fonte de calor o que coincide com a zona de início do incêndio. Neste local, ao nível do chão, detectou-se a presença de um objecto eléctrico não identificável devido ao elevado grau de carbonização.
Para além disso, consta do Relatório que:
Questionado o proprietário sobre o presumível tipo de objecto eléctrico detectado na zona do início do incêndio, o mesmo não o soube identificar.”
Como é evidente, a averiguação de factos constitutivos do tipo de crime de incêndio e do respectivo agente, não se confunde com a verificação de factos principais constitutivos da ilisão da presunção de culpa no dever de vigilância e cuidado que recai sobre quem tem a seu cargo coisas.
A norma do art.º 493º nº 1, e outras semelhantes, constituem manifestações do chamado “dever de prevenção do perigo”, isto é, de um “…dever geral de não expor os outros a mais riscos ou perigos de danos do que aqueles que são, em princípio, inevitáveis.” (…) “Não fora a existência de um dever legal de vigilância, poder-se-ia falar…na violação de um dever de actuação sobre o foco do perigo” (Antunes Varela e Menezes Cordeiro, apud Brandão Proença, Balizas Perigosas…, cit., pág. 40 e seg.).
Acresce que, em rigor, aquele Relatório produzido pela Polícia Judiciário no âmbito de um inquérito crime, não pode ser tido como uma perícia realizada nos termos dos art.º 467º e segs. CPC, com indicação de objecto da perícia e participação das partes na respectiva delimitação.
Além disso, a respectiva valoração cai fora do âmbito do art.º 421º nº 1 do CPC porque não foi produzida num processo com audiência contraditória da parte.
Finalmente, também não são invocáveis as normas dos artºs 623º ou 624º do CPC, dado que o arquivamento do inquérito crime não constitui uma “decisão penal condenatória transitada em julgado”, nem “uma decisão penal absolutória transitada em julgado”.

A esta vista, somos a entender que daquele Relatório elaborado pela Polícia Judiciária não pode retirar-se, com a certeza e segurança, que o incêndio ocorreu “…sem contribuição activa ou omissiva de causa humana.”.
Competia aos réus alegar e provar esse facto conclusivo da ilisão da presunção da culpa que sobre eles recai nos termos do art.º 493º nº 1 do CC; ou seja, criar no juiz a convicção da ocorrência de factos dos quais resultasse ilidida a presunção de culpa.
A convicção da ocorrência/verificação de factos baseia-se nas máximas da experiência. Aplicando a máxima da experiência aos factos específicos sobre os quais deve formular a decisão, ao juiz aferirá das condições necessárias para, mediante um raciocínio do tipo dedutivo, afirmar conclusões dotadas de elevado grau de probabilidade. A máxima da experiência é uma regra que exprime aquilo que sucede na maior parte dos casos. A experiência permite formular um juízo de relação entre os factos, ou seja, é uma inferência que permite a afirmação de uma determinada categoria de casos normalmente acompanhada de uma outra categoria de factos.
No caso, como dissemos acima, não é credível que os réus não soubessem que concreto aparelho eléctrico colocaram junto à cama de dormir e que foi a causa do início do incêndio. As regras da experiência não permitem concluir que, nessa situação, os réus “…enquanto proprietários da fracção em causa (r/c C) sempre diligenciaram por todas e quaisquer medidas destinadas a acautelar quaisquer prováveis danos” (ponto 36º da contestação). E muito menos convencem, minimamente, que não tiveram culpa (presumida) no incêndio.
Assim sendo, concluiu-se que não pode considerar-se como provado que o incêndio teve lugar “…sem contribuição activa ou omissiva de causa humana”.

A esta vista, desconsidera-se, esse trecho do ponto 82º dos factos provados, a que será feita referência no local próprio desse ponto 82.

***
3.2- A revogação da sentença, com a consequente procedência da acção.

A autora pugna pela procedência da acção invocando que os réus são responsáveis pelos danos que sofreu (e sofre), socorrendo-se, para o efeito, da aplicação do regime do art.º 493º nº 1 do CC.
A 1ª instância absolveu os réus do pedido baseando, em síntese, na ideia de que os réus ilidiram a presunção de culpa que sobre eles recaia nos termos do art.º 493º nº 1 do CC.
Alude a 1ª instância, para estribar o seu juízo de improcedência da acção, as seguintes sínteses:
Transpondo para o caso dos autos, incumbia à A. a alegação e prova de que o incêndio que teve origem no apartamento dos RR., resultou de qualquer defeito de construção ou manutenção da coisa/equipamento, que os RR. tinham em seu poder (detenção material), estando obrigado à sua vigilância e que aquela coisa lhe causou danos.
A verdade é que o relatório é expresso quanto ao foco de incêndio, com origem no apartamento dos RR., o que, aliás, foi confirmado pelo seu relator em audiência de julgamento. Ora, a A. apenas alegou serem os RR. proprietários da fração onde deflagrou o incêndio. Todavia, não foi a fração do R., em si, que causou os danos, sendo desconhecida a concreta "coisa" que está na origem do incêndio.
É, assim, pressuposto de aplicação da norma em análise que os danos tenham sido causados pela coisa sob vigilância - e não foi alegado nem ficou determinado qual foi a coisa causadora do incêndio: se um defeito no sistema elétrico, numa televisão, etc.”
(…)
“…os deveres de vigilância do proprietário de coisa imóvel exigíveis não podem exceder o que seja mediana e humanamente razoável, medida ou critério que se estende à apreciação do cumprimento do dever de vigilância.
Ora, indo agora ao caso dos autos, a verdade é que o incendio teve por causa o sobreaquecimento de um aparelho eléctrico (que não foi possível face ao seu estado de carbonização), não tendo resultado provado, nem sendo possível fazê-lo, que o mesmo tinha fios descarnados, cabelagem à vista ou qualquer outra causa, que fizesse suspeitar que pudesse fazer surgir, a qualquer momento, um incêndio, e, em bom rigor nem se afigura muito razoável. Sendo verdade que os aparelhos estão sujeitos a deterioração, também não é verdade que o proprietário da casa tenha de examinar minuciosamente, até porque salvo casos claros de cablagens cortadas, fios descarnados e similares, que a normal prudência aconselha a imediatamente por de lado, o normal é não se ver nada de anormal quando se está ou se utiliza a casa.”
(…)
Em vista dos factos provados que revelam um cenário de normalidade na fracção dos Réus, com alguma razoabilidade poderiam aqueles confiar que o aparelho eléctrico – qualquer que o mesmo fosse - não se iria iniciar uma combustão lenta e incendiar a qualquer momento!” * (sublinhados nossos)
Será assim?
Concretamente, face aos argumentos da sentença, pergunta-se:
- Será exigível que a autora tenha de alegar e provar que o incêndio teve origem no apartamento dos RR., resultou de qualquer defeito de construção ou manutenção da coisa/equipamento, que os RR. tinham em seu poder; isto é, estará o lesado onerado com a alegação e prova da subcausa do incêndio?
- Será possível afirmar um cenário de normalidade na fracção dos réus que ilida a presunção de culpa que sobre eles incide?
Pois bem para responder a estas questões importa que se considere a norma em questão e se compreenda o seu âmbito subjectivo e objectivo de aplicação.
Assim.


3.2.1- O âmbito de aplicação do art.º 493º nº 1 do CC.

Já vimos que o art.º 493º nº 1 do CC, com epígrafe “Danos causados por coisas, animais…” tem a seguinte letra:
1. Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
Ora, em termos do respectivo âmbito subjectivo de aplicação, a norma reporta-se a qualquer pessoa (singular ou colectiva) que tenha em seu poder qualquer coisa móvel ou imóvel com o dever de a vigiar (sobre os diversos tipos de sujeitos que caem no âmbito da aplicação subjectiva da norma, veja-se Brandão Proença, Balizas perigosas…, cit. pág. 35 e, para outros desenvolvimentos, Rui Mascarenhas Ataíde, Responsabilidade Civil…cit., págs. 295 a 332). Entre esses sujeitos encontra-se o proprietário da coisa desde que sobre ele recaia o dever de a vigiar.
Vaz Serra (Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades, BMJ 85, pág. 361 e segs) explicava “Haverá, com efeito, razão para impor ao dono ou ao guarda de uma coisa, qualquer que ela seja, a responsabilidade pelos danos por esta causados, salvo provando o caso fortuito, a falta de culpa”. (…) “Trata-se apenas de presumir que o guarda da coisa tem culpa no facto causador do dano (…) porque quem tem as coisas à sua guarda deve tomar as medidas necessárias para evitar o dano…por outro lado, está em melhor situação que o prejudicado para fazer a prova relativa à culpa, visto que tem a coisa à sua disposição e deve saber, como ninguém, se realmente foi cauteloso na guarda. Com a prova da falta de culpa, exonerar-se-ia da responsabilidade.” (pág. 365 e seg.).
E mais adiante escreve “Se o dano é causado pela coisa, presume-se a culpa do guarda dela; se é causada com a coisa, há que provar a culpa.” (pág. 373) “A responsabilidade especial pelos danos causados por coisas guardadas resulta, como se disse, do dever de adoptar, quanto as essas coisas, certas cautelas e supõe, por conseguinte, que o dano se produz por falta dessas cautelas.” (pág. 374).
A institucionalização de uma cláusula geral de responsabilidade dos vigilantes pelos danos provocados por quaisquer coisas sob a sua guarda, independentemente da respectiva perigosidade explica-se porque “…segundo a teoria das esferas da responsabilidade quem está ou participa no tráfego mediante o controlo de determinados complexos de meios, ainda que não perigosos, assume a correspondente competência funcional de providenciar as necessárias medidas de segurança para evitar que desses segmentos materiais sob o seu domínio, resultem lesões danosas para terceiros, encontrando-se em situação especialmente favorável pela sua situação de facto em relação à coisa, para demonstrar que o prejuízo não resultou da falta ou insuficiência dessas providências. (…) Na alçada do art.º 493º nº 1, podem, portanto, cair, por mais inócuo que em abstracto se revele o seu potencial danoso, todas as coisas que fazem parte do tráfego e que estejam em poder do sujeito comum.” (Rui Mascarenhas Ataíde, Responsabilidade Civil…cit., pág. 357).
Há um sem-número de coisas que em si não são perigosas e que, contudo, podem provocar danos, seja por omissão de cuidados, seja por uma utilização deficiente.
O vigilante comum pode exonerar-se da sua responsabilidade comprovando que cumpriu os respectivos deveres de custódia ou que o dano se produziria ainda que os tivesse cumprido.
A perigosidade é, portanto, uma condição que as coisas em geral podem assumir, verificadas determinadas circunstâncias de facto. Coisas em si inócuas podem, descurados os cuidados devidos, tornar-se perigosas, funcionando como causa de lesões… (…) …o cerne da imputação não são as qualidades naturais das coisas, mas a (in)observância necessária…” (da guarda) (Rui Mascarenhas Ataíde, ob. cit., pág. 364).
A jurisprudência tem entendido, a propósito da aplicação do art.º 493º nº 1, que o lesado apenas tem de provar que os danos que sofreu tiveram origem em coisa sob a guarda de outrem, não sendo exigível que o lesado tenha de alegar e provar a subcausa do acontecimento danoso (neste sentido, acórdão do STJ, de 14/09/2010, Salazar Casanova e a jurisprudência do STJ aí mencionada, acerca de inundação em apartamento proveniente de fracção vizinha; ainda o acórdão do STJ, de 10/12/2013 (Nuno Cameira, cujo sumário menciona “V - O ónus da prova de que o facto danoso ocorreu ou foi causado pela coisa sob vigilância incumbe ao autor, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC, e mostra-se cumprido com a prova de que o incêndio que destruiu o imóvel teve origem na casa das rés, mais precisamente, na sala onde a salamandra estava colocada e foi acesa; não é exigível a prova da sub-causa que, em concreto, originou o incêndio (sobreaquecimento ou rebentamento da salamandra, inopinada libertação duma acha do seu interior, etc.).
E percebe-se que assim seja, como acima vimos da lição de Vaz Serra: “Trata-se apenas de presumir que o guarda da coisa tem culpa no facto causador do dano (…) porque quem tem as coisas à sua guarda deve tomar as medidas necessárias para evitar o dano…por outro lado, está em melhor situação que o prejudicado para fazer a prova relativa à culpa, visto que tem a coisa à sua disposição e deve saber, como ninguém, se realmente foi cauteloso na guarda.”
 E acrescenta (BMJ 85, pág. 368), expressamente que “…na hipótese de incêndio desencadeado num edifício, aplica-se tal doutrina e o guarda do edifício responderia, salvo provando a falta de culpa.”
Os deveres de controlo sobre a coisa visam assegurar um status quo tão seguro e inofensivo quanto possível das coisas que estão sob responsabilidade do titular do poder de determinação, constituindo o reverso dos poderes de fiscalização de pessoas.
Saliente-se que as presunções de culpa em geral e no caso do art.º 493º nº 1 do CC em particular, não são meios de prova, mas, antes meios de dispensa de prova, porquanto a demonstração do facto probatório ou indiciário liberta a parte a favor da qual a presunção funciona, de provar o facto essencial presumido. (Teixeira de Sousa, As partes, o objecto e a prova na acção declarativa, pág. 210).

Por outro lado, a pessoa que se queira exonerar de uma presunção de culpa, rectius, das consequências de uma presunção de culpa que sobre ela recaia, mais do que deduzir causas que a excluam, alegará factos que prove a licitude da sua conduta ou a ausência de nexo de causalidade. Em rigor, as ditas presunções de culpa constituiriam a final presunções de ilicitude, nexo de causalidade e culpa. (Rui Mascarenhas Ataíde, Responsabilidade Civil…, cit., pág. 856).Também a jurisprudência do STJ o menciona, conforme se alcança do acórdão do STJ de 10/12/2013, Nuno Cameira, em cujo sumário se pode ler “I - A norma do art.º 493.º, n.º 1, do CC estabelece uma presunção de culpa que, em bom rigor, é, simultaneamente, uma presunção de ilicitude, de tal modo que, face à ocorrência de danos, se presume ter existido, por parte da pessoa que detém a coisa, incumprimento do dever de vigiar.”).
Portanto, no art.º 493º nº 1 do CC estabelece-se uma presunção legal de culpa por parte de quem tem a seu cargo a vigilância da coisa potenciadora de perigo.
No caso, os réus para afastarem a sua responsabilidade teriam de convencer que nenhuma culpa houve da sua parte, demonstrando que haviam levado a cabo as medidas de precaução que se impunham. (Cf. TRC, de 17/06/2008, Costa Fernandes, CJ, ano XXXIII, tomo III, 2008, pág. 27 a 31, concretamente, 29).
Ou, provar, que o evento lesivo ocorreria igualmente mesmo que tivessem diligentemente exercido vigilância sobre a coisa.
Destes ensinamentos decorre, contrariamente ao que é mencionado pela 1ª instância, que a autora não tinha de alegar e provar a que o incêndio que teve origem no apartamento dos RR., resultou de qualquer defeito de construção ou manutenção da coisa/equipamento, que os RR. tinham em seu poder.

Por outro lado, como vimos acima, aquando da análise da Alteração da Matérias de Facto, os réu não lograram ilidir a presunção de culpa que a norma do art.º 493º nº 1 do CC lhes impõe e, por isso, não se concorda com a 1ª instância quando afirma e co-fundamenta a sua decisão de improcedência da acção na premissa de ser “…possível afirmar um cenário de normalidade na fracção dos réus que ilida a presunção de culpa que sobre eles incide.”
A esta luz, resta concluir que os réus e a interveniente principal são responsáveis pelo ressarcimento dos danos da autora.

Assim, impõe-se a revogação da sentença e, por consequência, importa que se analise e decida sobre o ressarcimento dos danos peticionados pela autora.

3.2.2- O Ressarcimento dos danos.

Vimos, acima, que a autora pediu a condenação dos réus e, por efeito do incidente de intervenção principal, também da seguradora, no ressarcimento de:
- €200.000,00 (duzentos mil euros) a título de danos nãos patrimoniais;
- €5.158,59 a título de danos patrimoniais emergentes;
- €378.000,00 a título de danos patrimoniais futuros, respeitantes à incapacidade permanente parcial da Autora que determinam uma perda da capacidade de ganho;
- €33.745,10 a título de danos patrimoniais futuros, respeitante às cadeiras de rodas prescritas pela médica fisiatra do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão.
-Serem os Réus condenados no pagamento dos cuidados continuados especializados, bem como de tratamentos fisiátricos, de que a Autora carecerá até ao fim da sua vida, cujo valor exato só será possível apurar em sede de liquidação de sentença.

Uma primeira nota: antes de entrarmos na análise e quantificação dos danos peticionados pela autora, em face de não ter sido provada matéria de facto que os réus alegavam, concretamente, a factualidade elencada nas alíneas k) - que a Autora não ouviu a campainha a avisar para sair da habitação porque estava a ouvir música –; l) - que se assim não fosse teria podido sair da habitação pelo próprio pé -; m)  - que se a Autora não se tivesse precipitado a saltar da janela teria sido retirada da sua residência através de escadas face à rápida intervenção da PSP e Bombeiros -; n) - que o fumo proveniente do incêndio não era suficiente para intoxicar e permitia sair do prédio em segurança -; o) - que a Autora tenha decidido saltar pela janela em vez de pedir ajuda como fizeram os outros residentes do 1.º piso -  fica arredada a necessidade de analisar a eventual aplicação do regime previsto no art.º 570º do CC, relativo à culpa do lesado e, eventual redução ou afastamento do dever de indemnizar.

Uma segunda nota.
É conhecida a noção de dano: consiste na supressão, na esfera jurídica do lesado, das utilidades que ele podia auferir enquanto titular da posição activa ofendida pelo facto constitutivo da obrigação de indemnizar.
São igualmente conhecidas as diversas qualificações dos tipos de dano: danos emergentes e lucros cessantes, danos patrimoniais e não patrimoniais, danos presentes e danos futuros, danos directos e indirectos, dano biológico e dano existencial (Cf., por todos, Rui Mascarenhas Ataíde, Direito da Responsabilidade Civil, 2023, pág. 391 e segs).
Não se justifica teorizar ou dar noções sobre cada uma destas qualificações, a não ser o estritamente necessário, quando se justifique, face ao concreto dano em causa.

Uma terceira nota.
Vem sendo entendido, pacífica e uniformemente, pela doutrina e pela jurisprudência que em acções de responsabilidade civil, perante pedidos parcelares de indemnização, se considere que o limite de cada parcela se reporta ao valor global peticionado (Cf. Geraldes/Pimenta/Sousa, CPC anotado, vol. I, 2ª edição, pág. 754 e seg., anotação 5 ao art.º 609º do CPC).
A esta luz, nada impede que se atribuam quantias diferentes, das que foram parcelarmente peticionadas pela autora, desde que, o somatório das quantias atribuídas, por cada tipo de dano, não ultrapasse o valor do pedido global solicitado.

Quarta nota.
Por força do contrato de seguro celebrado entre os réus e a interveniente principal, esta apenas responde até ao limite de 50 000€. (ponto 78).

Dito isto, vejamos cada uma das quantias indemnizatórias cujo ressarcimento vem solicitados pela autora.

3.2.2.1- Assim, no que toca aos danos patrimoniais emergentes.
Provou-se que a autora despendeu:
- 80,56€ com aquisição de uma tábua de transferência (ponto 37);
- 33.745,10€ na aquisição de duas cadeiras de rodas (ponto 39);
- 1.237,81€ na aquisição de almofada antiescaras (ponto 40);
- 291,60€ de custos com ambulância (ponto 49);
- 1.099,99€ em reparações na habitação em consequência do incêndio (ponto 56)
- 17.053,55€ com internamentos na Unidade de Cuidados Continuados (ponto 59);
- 635€ com cuidados pessoais (ponto 60);
- 1.813,63€ com internamento em Unidade de Cuidados Continuados (ponto 69);
- 2.924,89€ em medicamentos, fraldas e um computador adaptado às suas limitações (ponto 77).
Do somatório destas parcelas resultam danos patrimoniais da autora, no total de 58.882,13€, que compete aos réus e seguradora ressarcirem. Não se justifica, quanto a este tipo de danos, comprovadamente sofridos pela autora, tecer outras considerações sobre danos patrimoniais e a respectiva ressarcibilidade.
 
3.2.2.2- Danos não patrimoniais.
A autora peticiona uma indemnização por danos não patrimoniais no montante de 200.000€.
Em termos simples, danos não patrimoniais são normalmente definidos como as desvantagens sofridas em consequência da lesão de utilidades não susceptíveis de avaliação pecuniária. Por ora, basta-nos esta definição.
Paralelamente ao conceito de dano não patrimonial, importa ter presente o conceito de dano biológico, enquanto lesão no corpo e na saúde psicofísica do lesado e que vem sendo entendido como dano evento e dano consequência que pode ter repercussões quer de natureza não patrimonial, quer patrimonial.
Quer dizer, o dano biológico pode ter consequências de natureza patrimonial, por exemplo quando afecta a capacidade do lesado angariar rendimentos, máxime de natureza laboral ou de outras actividades remuneradas. Além disso, os danos decorrentes da ofensa à integridade física, podem implicar danos não patrimoniais, pense-se na dor física, tristeza, desgosto, frustrações no projecto de vida, actividade social, capacidade recreativa e de lazer, vida sexual.
Assim, o dano biológico deve ser analisado enquanto dano-evento e como dano-consequência.
A este propósito, pela sua relevância, transcreve-se o sumário do acórdão do STJ, de 21/04/2022 (Fernando Baptista, Proc. 96/18):
I. O dano biológico vem sendo entendido como dano-evento, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, independentemente de dele decorrer ou não perda ou diminuição de proventos laborais; é um prejuízo que se repercute nas potencialidades e qualidade de vida do lesado, susceptível de afectar o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas, determinando perda das faculdades físicas e/ou intelectuais em termos de futuro, perda essa eventualmente agravável em função da idade do lesado.
II. Tal dano tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral. Depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade.
III. Não sendo possível determinar o valor exacto deste dano, tal avaliação terá de ser efectuada recorrendo à equidade, nos termos do artigo 566 º n.º 3 do CC. Isto é, a equidade terá de ser sempre um elemento essencial no cálculo deste dano, independentemente de se considerar o dano biológico numa vertente meramente patrimonial, mais ou menos patrimonial ou até... como um tertium genus.
IV. Na determinação do seu quantum indemnizatório, deve ter-se em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, face ao que dispõe o art.º 8°, n° 3, do CC, fazendo-se a comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, sem se perder de vista a sua evolução e adaptação às especificidades do caso concreto – não podendo, assim, o dano biológico ser indemnizado por obediência a tabelas rígidas, de forma que a uma mesma pontuação em pessoas de idade aproximada tenha de corresponder necessariamente a fixação do mesmo valor a ressarcir.
V. Particularmente relevante é a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, assim como de atividades profissionais ou económicas alternativas (tendo em conta as qualificações e competências do lesado).
(V-…)
VII. Na quantificação dos danos não patrimoniais deve o julgador procurar encontrar o valor que repute justo no quadro da equidade e tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, não deixando de trazer à colação e analisar decisões jurisprudenciais mais ou menos semelhantes, no fito de procurar que a indemnização atribuída esteja em sintonia com o cumprimento de um regime jurisprudencial de segurança e igualdade na realização da justiça equitativa.”
Maria da Graça Trigo (O Conceito de Dano Biológico como Concretização Jurisprudencial do Princípio da Reparação Integral dos Danos – Breve Contributo, in Revista Julgar, nº 46 Jan./Abril 2022, págs. 257 e segs.), refere “Coexistem na doutrina e na jurisprudência diferentes acepções de dano biológico. Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, actualmente o significado com que mais frequentemente tal expressão é usada é aquela que corresponde à de consequências patrimoniais da incapacidade geral ou genérica do lesado, aferida em função das Tabelas de Incapacidade Geral Permanente em Direito Civil. Mas este significado coexiste com outro, designadamente com o de dano biológico como consequência não patrimonial de uma lesão psicofísica.” (pág. 269). E refere ainda esta autora relativamente ao dano biológico na vertente de dano não patrimonial “O dano consequência não patrimonial é definido pela negativa, como a afectação de vantagens insusceptíveis de avaliação pecuniária, isto é, vantagens de ordem espiritual, ideal ou moral. Não podendo operar-se a reconstituição natural, o dano não patrimonial não pode ser indemnizado por equivalente monetário, mas apenas copensado. (pág. 259).
No acórdão do STJ, de 24/02/2022 (Maria da Graça Trigo) é mencionado:
“III. A indemnização pela afectação da capacidade geral ou funcional, sendo indeterminável, deve ser fixada com recurso à equidade (cfr. art.º 566.º, n.º 3, do CC), em função dos seguintes factores: (i) a idade do lesado (a partir da qual se pode determinar a sua esperança média de vida à data do acidente); (ii) o seu grau de incapacidade geral permanente; (iii) as suas potencialidades de ganho e de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, como em profissão ou actividades económicas alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências; (iv) a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas (também aqui, tendo em conta as suas qualificações e competências).”
Veja-se ainda o acórdão do STJ, de 29/6/2017 (Lopes do Rego):
“…o juízo de equidade das instâncias, essencial à determinação do montante indemnizatório por danos não patrimoniais, assente numa ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida - se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade” .
Entendemos que estas considerações e jurisprudência têm aplicação no caso dos autos: em consequência das lesões a autora sofreu danos não corporais que se repercutem nas potencialidades e qualidade de vida susceptível de afectar, totalmente, o seu dia-a-dia nas vertentes laborais, sociais, sentimentais, sexuais, recreativas, determinando perda das faculdades físicas em termos presentes e de futuro.
Com efeito, a factualidade provada revela um extensíssimo rol de lesões, gravíssimas, que, manifestamente, mudaram, radicalmente, a vida da autora.
Bastará relembrar os seguintes pontos de facto que sucintamente se enunciam:
- A data do sinistro, tinha 39 anos (23);
- Sofreu traumatismo vertebro-medular e esfacelo da coxa (26);
- Foi submetida a cirurgia com colocação de placas e parafusos nas vertebras (27);
- Esteve internada no Serviço dos Neurocriticos do hospital até 30/01 (28);
- Coma induzido durante duas semanas (29);
- Saiu do hospital a 08/06 e foi para o Centro de Alcoitão em regime de internamento, onde permaneceu até 30/08/2018 e foi daí transferida para o Centro de Reabilitação ... onde permaneceu até 05/11/2018 (30, 31 e 48);
- Não movimenta os membros inferiores e nos membros superiores embora tenha alguma sensibilidade, não consegue segurar coisas; é submetida a esvaziamento vesical, de 5 em 5 horas e algália em período nocturno, treino intestinal em dias alternados (32)
- Submetida a programa de medicina física e de reabilitação (33);
- Suportou dores atrozes que se prolongaram por meses e continua a ter dores, com um quantum doloris 7/7 (34, 47 e 74);
- Grau de incapacidade de 91%, com incapacidade total para o trabalho (38 e 42);
- Desloca-se em cadeira de rodas e necessita de assistência permanente de 3ª pessoa para actividades básicas da vida diária (44, 52, 70, 73, 75);
- Perda de sensibilidade dos membros inferiores, órgãos sexuais, esfíncteres, ânus, recto, intestinos, estomago, aparelho urinário, aparelho respiratório (45);
- Carece toda a vida de controlo médico (51);
- Défice funcional de 90% (66);
- Dano estético 6 em 7 (71);
- Repercussão de grau 6, numa escala de 7 graus nas suas actividades desportivas e de lazer, tendo em atenção o abandono da equitação, natação e ginásio, assim como as suas actividades de lazer e sociais (72);
- Apoio medicamentoso e paramédico para o resto da vida (73).
Sem necessidade de grandes considerandos, é fácil concluir que as lesões sofridas pela autora tiveram e têm consequências, numa palavra: gravíssimas.

Impõe-se determinar o quantum indemnizatório deste dano biológico na vertente de dano não patrimonial.
Como é sabido, nos termos do art.º 496º nº 1 do CC, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito. Sendo certo que face ao nº 4 desse art.º 496º, o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494º, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Daqui resulta que a indemnização por danos não patrimoniais não reveste natureza exclusivamente ressarcitória, mas também possui cariz punitivo, assumindo faceta de pena privada, estabelecida no interesse da vítima, por forma a desagravá-la do comportamento do lesante (Cf. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 7ª edição, pág. 341; Paula Meira Lourenço, A função punitiva da responsabilidade civil, Coimbra Editora, 2006, pág. 285 e segs.).
Pois bem, em face da gravidade daquelas lesões, com realce para a tetraplegia, as dores atrozes sofridas, o dano estético, a dependência permanente de terceiro para o resto da vida, para coisas tão básicas como fazer as necessidades, vestir-se, alimentar-se higienizar-se, voltar-se na cama, os internamentos prolongados, a submissão a dolorosa fisioterapia que, de resto, será perpétua, o desânimo, tristeza o dano pessoal extremo, apontam, como se referiu acima, para danos de gravidade extrema.
Por outro lado, como se referiu e decorre do art.º 494º importa ter presente o grau de culpabilidade do agente. No caso, a culpa dos réus decorre de presunção legal – acima analisada – nos termos do art.º 493º nº 1 do CC. Não pode dizer-se que seja culpa grave, ou negligência grave – muito menos dolosa. Apenas se pode dizer tratar-se de culpa presumida.
Por outro lado, ainda importa ter em atenção a situação económica do agente, rectius, réus e, da lesada.
Pois bem, no caso, o único elemento que temos disponível para apreciar a situação económica do agente (réus) consiste na circunstância de a ambos ter sido concedido apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado de taxas de justiça. Desta circunstância pode inferir-se que as suas situações económicas serão baixas.
Quanto à autora, embora não litigue com apoio judiciário e se desconheça se tem bem ou rendimentos (não laborais) pode presumir-se que a sua situação económica será igualmente baixa, dado que desde a data do acidente não pode angariar sustento.
Portanto, destes critérios determinativos do cálculo do montante indemnizatório, se por um lado temos um dano não patrimonial gravíssimo, por outro, estamos perante um caso de culpa presumida do agente e de fraca capacidade económica dos réus, o que determina que o montante indemnizatório seja mais baixo que em situações como sucede quando está em causa responsabilidade civil de seguradoras ou de pessoas singulares ou colectivas com altos rendimentos.
Por outro lado, ainda face ao que determina o art.º 8º nº 3 do CC, devem ser tidos em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação uniforme do direito.
Assim, vejamos as decisões do STJ sobre situações com consequências gravosas semelhantes à que se verificam no caso dos autos, embora relativas a acidentes de viação:
-STJ, de 21/06/2022, Isaías Pádua, para vítima de 26 anos, que ficou tetraplégico, dependência de terceiros, quanto doloris 7 e dano estético 6, indemnização por danos não patrimoniais de 500.000€ (www.dgsi);
- STJ, de 14/03/2024, Catarina Serra, adolescente de 13 anos, incapacidade de 92%, quanto doloris 7, dano estético 6, dependência de terceiros, indemnização por dano não patrimonial de 350.000€ (www.dgsi);
- STJ, de 19/09/2019, José Rainho, criança de 7 anos, 92% de incapacidade, dependente de terceiros, 250.000€ de indemnização por danos não patrimoniais (www.dgsi);
- STJ, de 25/11/2019, Raúl Borges, criança de 8 anos, 80% de incapacidade, paraplégico, 250.000€ de indemnização por danos não patrimoniais (www.dgsi);
- STJ, de 19/09/2024, Ferreira Lopes, 40 anos, 72% de incapacidade, paraplégico, quantum doloris 7, dano estético 5, 200.000€ de indemnização por danos não patrimoniais (www.dgsi);
Ora bem, destas decisões do STJ, que mais se aproximam da gravidade da lesão da ora autora e da sua idade, temos indemnizações por danos não patrimoniais de 500.000€, e 350.000€; e de lesões com menor gravidade, indemnizações de 350.000€, 250.000€ e de 200.000€.
Pois bem, sopesando as circunstâncias acima analisadas – danos de gravidade elevadíssimos, culpa presumida e fraca capacidade económica - acha-se adequado fixar a indemnização por danos não patrimoniais pelo valor de 200.000€, aliás, igual ao que foi peticionado pela autora.
Valor esse que se considera actualizado nesta decisão.

3.2.2.3- Quanto aos danos patrimoniais.
A autora peticiona a indemnização de 370.000€ a título de danos patrimoniais correspondente à perda total de capacidade de ganho.
Baseia-se na circunstância de, face às suas habilitações literárias, ser razoável admitir que auferiria um salário mensal na ordem dos 1.000€, catorze vezes por anos, no montante anual de 14.000€. Multiplica este valor anual pelo número de anos que teria de vida activa, 27 anos, o que perfaz a quantia dos 370.000€ que peticiona.
Vejamos se assim pode ser.
É pacífico na jurisprudência que, idealmente, a indemnização pelos danos futuros deve corresponder a um capital susceptível de gerar rendimento que permita cobrir a diferença com a situação anterior, correspondente ao dano verificado, durante o tempo provável de vida da vítima, de forma que o capital se extinga no termo desse período.
Relativamente ao período de tempo pelo qual se deve contabilizar a perda de capacidade de ganho, o STJ vem entendendo que o cálculo baseado no tempo de vida activa , aquele durante o qual o lesado trabalharia, não é o mais correcto porque, após o termo da vida activa o lesado continuará a carecer de rendimento que, em termos de normalidade lhe adviria da pensão de reforma mas, em face da perda de capacidade total de ganho o lesado carece de continuar a receber meio de subsistência. Assim, entende-se ser adequado que o cálculo tenha por base a esperança média de vida que, no caso das mulheres ronda os 83,5 anos (Cf. Ac. STJ, de 27/05/2021, Rijo Ferreira, www.dgsi).
Por outro lado, o cálculo do montante da indemnização, embora não se possa basear exclusivamente nas fórmulas matemáticas, estas constituem um auxiliar que deve ser considerado.
Segundo o mencionado acórdão do STJ de 27/05/2021, maior dificuldade se apresenta a escolha da taxa de juros a considerar, tendo em conta a extensão temporal do período a que ela se pretende aplicar e a variabilidade da mesma. A taxa de juros nos depósitos a prazo nas últimas duas décadas tem variado entre os 4% e, até os 0% e, por isso, uma taxa considera-se equilibrado a utilização de uma taxa de 3%.
No caso, entende-se ser adequado considerar um valor de remuneração anual de 14.000€, uma esperança média de vida de mais 42 anos (83-39) e uma taxa de juro de 3%.
Seguindo o entendimento daquele mesmo acórdão do STJ, “…Se utilizarmos antes, e como se nos afigura mais apropriado, a tabela financeira para uma taxa de 3% (cf. Manuel Ferreira de Sá Ribeiro, ‘Tabelas Financeiras’, Universidade Católica Portuguesa, 1981) obtemos o valor de 362.452,73 € (14.782,70 x 24,51871).”
Aplicando este raciocínio ao caso dos autos, obtemos um valor de 343.261,94€ (14.000x24,51871).
E voltando a seguir o entendimento daquele acórdão do STJ, “Encontrados esses valores haverá de os ajustar, como já se referiu, tendo em conta por um lado a aleatoriedade inerente à prognose efectuada (que não considera situações infortunísticas que poderiam vir a ocorrer, como desemprego, doença ou mesmo morte prematura e que parte de um rendimento bruto, desconsiderando que ele estaria sujeito a tributação em IRS e em contribuições para a segurança social) e por outro lado as circunstâncias particulares do caso concreto (e.g., a maior ou menor probabilidade de progressão/valorização profissional, que com a reforma ocorre uma quebra de rendimento uma vez que a pensão será menor do que o salário e será apenas calculada com base não no rendimento mas nas contribuições efectuadas, a situação familiar, que o facto de receber antecipadamente todo o capital permite melhores oportunidades de rentabilização do mesmo).
É nesse ajustamento e tendo em conta os factores referidos que é usual proceder-se a um abatimento ao valor encontrado na ordem dos 25%.
No caso dos autos, procedendo a tal abatimento, teremos um valor de 257.446,46€.
Assim, entende-se ser adequado atribuir indemnização por danos patrimoniais futuros a quantia de 257.446,46€.
Valor esse que se considera actualizado nesta decisão.


***

3.2.2.4-A indemnização pelos danos correspondentes ao valor do pagamento dos cuidados continuados especializados e tratamentos fisiátricos, a apurar em liquidação posterior.

A autora formula este pedido genérico: condenação em quantia a fixar em liquidação posterior.
O art.º 609º nº 2 determina que: “Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.
Quer dizer, o legislador, expressamente, confere ao juiz o poder/dever de, na falta de elementos que possibilitem fixar o objecto ou a quantidade, condenar no que vier a ser liquidado posteriormente. Portanto, mesmo nos casos em que o autor tenha quantificado a sua pretensão, a acção pode culminar com uma sentença de teor genérico ou ilíquido desde que, sendo apurada a existência do direito e da correspondente obrigação, os elementos de facto se revelem insuficientes para a quantificação (Cf. Por todos, Geraldes/Pimenta/Sousa, CPC anotado, vol. I, 2ª edição, pág. 755, anotações 6 e 8).
No caso em apreço, resulta da factualidade dada como provada que a autora necessita de assistência permanente de terceira pessoa para os actos da vida diária (43); carecerá toda a vida de permanente controlo médico e medicamentoso (51); Carece que terceiros organizem a sua medicação diariamente (52); necessita de ajuda de terceira pessoa a título permanente (66); até ao fim da vida (67); carecerá de apoio de terceiro especializado e de fisiatria no mínimo de três blocos anuais de 20 sessões (70); necessitará de tratamentos médicos regulares (73); e de acompanhamento no domicílio 24 hortas por dia (75).
Pois bem, apuraram-se os “danos” com tratamentos fisiátricos e de apoio de terceiro, mas não se apurou o respectivo custo.
A esta vista e em face do que dispõe o art.º 609º nº 2, deve proceder este pedido da autora de condenação dos réus a pagarem os valores necessários a suportar os tratamentos especializados e os tratamentos fisiátricos a liquidar posteriormente.

3.2.2.5- Finalmente, uma referência aos juros de mora.
A autora peticiona que, independentemente da natureza, tipo e modo de cálculo do montante indemnizatório do dano, os juros de mora sejam devidos desde a citação.
Pois bem, entendemos que se impõe distinguir entre a indemnização dos danos patrimoniais, supra analisados no ponto 3.2.2.1 e, os danos não patrimoniais e patrimoniais consequência do dano biológico referidos em 3.2.2.2. e, 3.2.2.3. Isto à luz da norma interpretativa que emana do Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 4 /2002, (DR 146/2002, série I-A de 27/06/2002) que determina:
Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação
No caso dos danos ajuizados em 3.2.2.1, no montante total de 58.882,13€, os respectivos juros contar-se-ão desde a citação, à taxa legal para os juros civis (artºs 805º nº 1 e 806º nº 2 do CC).
Já no que tange às quantias indemnizatórias arbitradas em 3.2.2.2. e, 3.2.2.3, respectivamente nos montantes de 200.000€ e 257.446,46€, visto tratarem-se de cálculos indemnizatórios actualizado na decisão, os respectivos juros de mora apenas serão devidos desde o trânsito em julgado da decisão final.

Do que se expôs, conclui-se que o recurso procede parcialmente.

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III- DECISÃO.

Em face do exposto, acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência:
a)- Revogam a sentença sob impugnação;
b)- Condenam os réus e a interveniente principal (esta até ao limite de 50.000€ cinquenta mil euros) a pagar à autora:
i)- A quantia de 58.882,13€ (cinquenta a oito mil, oitocentos e oitenta e dois euros e treze cêntimos) a título de danos patrimoniais, acrescida de juros desde a citação, à taxa legal;
ii)- A quantia de 200.000€ (duzentos mil euros) a título de dano biológico não patrimonial, acrescida de juros, à taxa legal, deste o trânsito da decisão final;
iii)- A quantia de 257.446,46€ (duzentos e cinquenta e sete mil, quatrocentos e quarenta e seis euros e quarenta e seis cêntimos) a título de dano biológico patrimonial acrescida de juros, à taxa legal, desde o trânsito da decisão final;
iv)- A quantia necessária a suportar os tratamentos especializados e os tratamentos fisiátricos a liquidar posteriormente.
c)-Absolvem os réus e a interveniente principal do demais peticionado.

Custas, em ambas as instâncias, pela autora e pelos réus e interveniente, na proporção do decaimento, tendo-se em conta o apoio judiciário dos réus.

Considerando a natureza da acção, entende-se adequado dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça por valor superior a 275.000€.

Lisboa, 20/02/2025
Adeodato Brotas
Eduardo Petersen Silva
Nuno Lopes Ribeiro