1 - Procede à alteração da matéria de facto, resultante da procedência da impugnação ampla, resultando sanados os vícios de contradição entre fundamentação e entre fundamentação e decisão [artigo 410º nº2 alínea b) do Código de Processo Penal] e o vício de erro notório na apreciação da prova [artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal].
2 - A transição dos factos elencados em a) a d) dos factos não provados, para os factos provados, relativos ao processo psíquico, nas suas vertentes cognitiva e volitiva, vem a resultar na verificação do elemento subjectivo do crime de prevaricação, previsto e punido pelo art.º 11º da Lei n.º 34/87, de 16/07, que lhe vinha imputado.
3 - O facto descrito em 9. [A junta de freguesia não certificou a publicitação edital dos referidos regulamentos] da matéria de facto provada deve ser eliminado do elenco dos factos, porque não consta da pronúncia ou da contestação, sendo mera referência a uma diligência de prova e não constitui, por isso, um facto que, nos termos do disposto no artigo 368º, nº 2 do Código de Processo Penal, releve para as questões enumeradas nas alíneas do citado preceito legal.
4 - Mostra-se provado que o arguido, no exercício do seu mandato de Presidente da Junta de Freguesia ... (sendo, por isso, titular de cargo político) pretendendo construir um jazigo e sabedor, em virtude daquelas suas funções, que existia um procedimento administrativo (requerimento de autorização para a construção e pagamento de uma taxa) legalmente previsto para o efeito, decidiu contra direito, construir esse jazigo, omitindo a sujeição àquele procedimento, eximindo-se ao pagamento da respetiva taxa, em tudo atuando conhecedor de que, assim agindo, violava o regulamento em vigor, tudo, com o objetivo, conseguido, de obter benefício (não pagamento da taxa devida, no valor de €1 200,00), causando à assistente o correspetivo prejuízo. Permitiu ainda, com a mesma consciência e vontade e servindo-se do cargo que exercia, que o direito da assistente de liquidar a taxa referida caducasse, como caducou.
5 - A factualidade apurada preenche os elementos objetivo e subjetivo constitutivos do tipo legal de crime de prevaricação, previsto e punido pelo art.º 11º da Lei n.º 34/87, de 16/07.
6 - Consequentemente, procedeu-se à determinação da espécie e medida da pena, em obediência ao decidido no AUJ n.º4/2016 que fixou jurisprudência no sentido de que «Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a Relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, nº 3, al. b), 368º, 369º, 371º, 379º, nº 1, al. a) e c), primeiro segmento, 424º, nº 2, e 425º, nº 4, todos do Código de Processo Penal».
Acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. RELATÓRIO
1. No processo comum coletivo, com o NUIPC253/21.0T9FND que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco no Juízo Central Criminal de Castelo Branco, foi proferido acórdão, em 13-07-2023 [referência36128806], com o seguinte dispositivo (transcrição):
«Nos termos e pelos fundamentos expostos, delibera-se:
Absolver o arguido AA da autoria do crime de prevaricação, previsto e punido pelo art.º 11º da Lei n.º 34/87, de 16/07.
Sem custas.»
2. Inconformada, a assistente Freguesia ..., interpôs recurso para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«1.º - O presente recurso tem por objecto o Acórdão que decidiu: “Nos termos e pelos fundamentos expostos, delibera-se: Absolver o arguido AA da autoria do crime de prevaricação, previsto e punido pelo art.º 11º da Lei n.º 34/87, de 16/07”.
2.º - Tal decisão judicial deve ser revogada, tendo o presente recurso por objecto quer a decisão proferida sobre a matéria de facto (a qual se impugna nos termos infra referidos) quer, ainda, a decisão acerca da matéria de direito.
3.º - A Assistente, aqui recorrente, entende que o douto Acórdão recorrido padece cumulativamente, dos vícios de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão (artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal) e de erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal).
4.º - Sem prejuízo do que antecede, entende ainda a Assistente que o referido Acórdão apresenta igualmente pontos incorrectamente julgados, atenta a prova carreada para os autos, quer testemunhal quer documental, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, do citado diploma legal, tendo o Tribunal da Relação liberdade para apreciar tal questão, posto ser esta uma questão de que a decisão recorrida poderia ter conhecido, como tudo resulta do n.º 1 do Artigo 410.º do Código de Processo Penal.
5.º - A Recorrente pretende, assim, ver sindicada a matéria de facto que impugna, invocando, além do mais, os vícios das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 410.° do Código de Processo Penal e a violação do princípio da livre apreciação da prova.
6.º - No que respeita especificamente à decisão sobre a matéria de facto impugnada constitui objecto do recurso a reapreciação das alíneas a), b), c) e d) da matéria dada como não provada, que na nossa óptica deve ser dada como provada.
7.º - De resto, os vícios invocados levam exactamente à mesma conclusão, posto que a sanação de tais vícios levará a que as alíneas não provadas sejam dadas como provadas.
8.º - O Acórdão recorrido padece, pois, de erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal); uma vez que o Tribunal a quo seguiu um raciocínio ilógico e contraditório, por si só e conjugado com as regras da experiência comum, de onde se pode concluir, com absoluta segurança, pela existência de um erro notório na 129 apreciação da prova.
9.º - Ademais, e cumulativamente, afigura-se-nos evidente uma contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão.
10.º - Efectivamente, o Tribunal recorrido deu como provados factos que contradizem os factos que deu como não provados e vice-versa, sendo que da matéria provada e não provada, bem como da respectiva “Motivação” decorrem de erros lógicos e ostensivos que conduzem aos vícios invocados.
11.º - De tal forma é evidente que padece ainda de erro notório na apreciação da prova, uma vez que basta o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, para facilmente se aferir que o tribunal violou as regras da experiência e que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios – sendo que ademais, as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
12.º - O vício de apuramento da matéria de facto é de tal forma evidente que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
13.º - Refira-se, aliás, que ambos os vícios são de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, sendo que tais vícios resultam patentes da decisão recorrida, nomeadamente, através do confronto do provado com o não provado e com a respectiva fundamentação e não exigem a reapreciação da prova produzida em audiência, antes dela prescindem.
14.º - Para chegar à conclusão da existência de tais vícios, basta atentar nos pontos 8, 10 e 16 da matéria de facto provada, donde decorre que os Regulamentos de Tabela de Taxas foram aprovados e vigoraram nas datas ali referidas:
8. Foi aprovado pelo Executivo do qual o arguido era o presidente, o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2011, datado de 22-04-2010, bem como Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2012, datado de 23-04-2012, tendo os valores relativos àquelas taxas permanecido inalterados; [nosso destacado]
10. O arguido pagou o valor de 750,00 EUR (setecentos e cinquenta euros) relativo à compra dessas duas sepulturas com 4 m2, valor previsto na referida Tabela de Taxas de 2012, no valor de 187,50 EUR (cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos)/ m2, sendo que, mesmo antes da entrada em vigor de tal regulamento as sepulturas eram vendidas pela Junta. [nosso destacado e sublinhado]
16. À data da construção do jazigo J4, a junta de freguesia exigia uma taxa de construção de jazigo de 300,00 EUR (trezentos euros) o m2.
15.º - Por outro lado, na alínea b) dos factos não provados, refere-se que: “b) O arguido sabia que era devida a taxa para construção do jazigo”.
16.º - Quanto ao ponto provado 16, a referência a J4 consiste num erro de escrita, posto que o jazigo J4 foi o jazigo a que se alude no ponto 2 dos factos provados (e que já existia à data do processo judicial ali referido e segundo o arguido foi contruído em 2005), de onde a mulher do arguido foi trasladada para o jazigo J7.
17.º - E sendo que o próprio arguido refere (para além de que tal não é posto em causa) que em tal data não havia taxas para a construção de jazigos, invocando precisamente tal facto para se ter eximido ao pagamento (facto, entenda-se, de que começou a construir o Jazigo que viria a ser o J7 antes dos regulamentos a que se alude no ponto 8 dos factos provados e de que não haveria então lugar ao pagamento de taxas referentes a jazigos, mas apenas a sepulturas).
18.º - De resto, a não ser assim, até a tese do arguido de que não pagou porque não tinha de o fazer fica desmontada, pois que a data da construção do jazigo seria anterior aos Regulamentos e, a ser devido o pagamento em tal data, por maioria de razão resulta a obrigação de pagamento das taxas para construção dos jazigos.
19.º - Ademais, na motivação do Tribunal a quo não se encontra qualquer referência ao que motivou a prova deste facto, sendo porém certo, pela apresentação sequencial, em termos cronológicos, a referência só pode ser ao J7 e não ao J4.
20.º - Encontra-se, sim, o seguinte na dita motivação, que reforça o entendimento de que a referência J4 devia ser J7: “Falou com o secretário da junta, que foi medir e começou a construir; mais disse estar convencido de não serem devidas taxas pela construção do jazigo porque começou a diligenciar pelas sepulturas logo após a morte da esposa”.
21.º - E ainda: “a testemunha BB, que fez parte da junta de freguesia entre 2009 e 2017; recorda-se da comunicação verbal do arguido de ter a posse de duas sepulturas juntas, que não havia taxas antes de Abril de 2010; foi de opinião de que que o arguido não devia pagar pelo jazigo, na medida em que a obra foi iniciada antes da entrada em vigor do regulamento”.
22.º - Em suma, deve, pois, no ponto 16 corrigir-se a referência a J4 por J7, sendo que, ainda que assim não seja, persiste (e até de forma reforçada) a mesma lógica da obrigatoriedade do pagamento da taxa para construção do jazigo.
23.º - Voltando à questão dos vícios invocados, e bem ilustrativo da lógica contraditória do Acórdão, atente-se na seguinte parte da motivação [nosso destacado]: “regulamento e tabela de taxas, aprovada em sede de Executivo da Junta de Freguesia ..., durante o mandato autárquico 2009-2013, presidido por AA, que entrou em vigor a 22-04-2010 (fls. 122 a 127)”.
24.º - E no parágrafo imediatamente anterior, em sede de motivação, contrariando todas as referências acima e infra transcritas, igualmente insertas em sede de motivação e de decisão proferida sobre matéria de facto, referindo-se à questão da vigência do acórdão: “Em qualquer caso, também se não deu como provado que o regulamento estivesse em vigor, poisa Junta de freguesia, apesar de, expressamente, lhe ter sido solicitado, não certificou a publicitação do regulamento por edital, alegando não ter encontrado edital certificado, conforme depoimentos do legal representante da Junta de freguesia/ actual presidente e informação vertida no requerimento de 6/07.”. [nosso destacado e sublinhado]
25.º - A questão é que se deu como provado, sim, que os Regulamento estavam em vigor, sim, como decorre dos pontos da decisão da matéria de facto a que já se aludiu, sendo que e ao contrário do que se diz no trecho acima citado da motivação, o tribunal recorrido deu como provados factos (vide factos 8, 10 e 16 supra destacados) onde menciona que existia um regulamento e que o mesmo se encontrava em vigor à data dos factos (não pagamento pelo arguido da taxa devida).
26.º - Ora, para além do demais que resulta evidente dos pontos acima citados, o Tribunal recorrido refere, no ponto 16, que a junta de freguesia exigia uma taxa de construção de jazigo”, daqui decorrendo evidente se exigia era porque estava em vigor, sendo anódino o que consta do ponto 9 dos factos provados, “9) A junta de freguesia não certificou a publicitação edital dos referidos regulamentos”.
27.º - Resumindo, o tribunal recorrido deu como provados factos donde decorre que havia regulamentos em vigor onde era exigida uma taxa que tinham de ser paga (isto ao tempo dos factos sub judice) relativamente à construção de jazigos mas depois contradiz-se ao desconsiderar tal facto nos precisos termos a que já se aludiu.
28.º - É, pois, evidente que tinha de ser tido em conta que os Regulamentos estavam em vigor (provado que foi tal facto), e, como infra se demonstrará, não sendo verosímil que o arguido desconhecesse a obrigatoriedade de pagamento de uma taxa inserta num Regulamento que estava em vigor [como se demonstrou acima], que o executivo a que presidia aprovou, tendo ainda em conta que pagou outra taxa inserta no mesmo Regulamento.
29.º - Efectivamente, resultou igualmente provado que: “10. O arguido pagou o valor de 750,00 EUR (setecentos e cinquenta euros) relativo à compra dessas duas sepulturas com 4 m2, valor previsto na referida Tabela de Taxas de 2012, no valor de 187,50 EUR (cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos)/ m2, sendo que, mesmo antes da entrada em vigor de tal regulamento as sepulturas eram vendidas pela Junta.“ [nosso destacado]
30.º - Ora, se pagou as sepulturas com base em tal regulamento, é evidente (sendo ilógico o contrário) que aceitava como estando em vigor tal regulamento – facto que o tribunal dá como provado: a vigência dos Regulamentos –, sendo certo que do mesmo regulamento resulta a obrigação do pagamento de uma taxa de construção do jazigo de 300,00 EUR (trezentos euros) o m2 – o que o tribunal, como já se viu, cuidou de dar como provado sob o ponto 16.
31.º - Dito de outra forma, sendo o arguido presidente de junta de freguesia no mandato autárquico 2009-2013 (altura em que aconteceram os factos) e tal regulamento ter sido aprovado pelo executivo a que presidia, como pode o tribunal recorrido concluir que o arguido não tinha conhecimento da existência de tal taxa (alínea b) dos factos não provados) se foi ele que a aprovou, tendo outorgado, inclusive, o respectivo regulamento?
32.º - E sendo certo que o supra dito resulta da conjugação dos factos provados sob os pontos 8, 10 e 16 e de todos os factos não provados – que têm (estes, os não provados) necessariamente, pela lógica intrínseca à conjugação de todos os factos, de ser dados como provados.
33.º - É notório que o arguido bem conhece o regulamento e seus anexos, uma vez que foi baseando-se nele que teve em conta qual o valor das taxas a liquidar pela aquisição
das sepulturas – refira-se aliás que, no mesmo regulamento, no mesmo anexo de tal regulamento, na mesma folha de tal anexo e na mesma tabela, logo após as taxas atribuídas para a aquisição das sepulturas, está referido o mesmo quanto às taxas aplicadas para construção do Jazigo (vide pontos provados sob os n.ºs 7, 10 e 11)
34.º - Assim, é evidente que é do conhecimento de um presidente de junta de freguesia da existência de tais taxas e dos Regulamentos onde se inserem uma vez que, reitera-se, foi ele que os aprovou – e o tribunal recorrido valorou esse documento na sua motivação, para além de garantir, como indica nos factos 8, 10 e 16 dos factos provados, que os regulamento estavam em vigor.
35.º - Em suma, o arguido pagou as taxas referentes à aquisição das sepulturas [ponto 10 dos factos provados] mas desobrigou-se do pagamento das taxas referentes à construção do Jazigo.
36.º - Reitera-se que uma e outra taxa estão na mesma folha dos regulamentos invocados no acórdão recorrido – pelo que, pagou uma taxa porque quis, não pagou a outra porque não quis.
37.º - De tudo decorre, cumulativamente, uma contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e também o erro notório na apreciação da prova, realçando-se o referido em sede de decisão instrutória proferida nos presentes autos a este propósito, nomeadamente quando ali se refere: “Ainda a respeito, note-se que o conhecimento do arguido quanto àquele Regulamento era tão patente, que o mesmo liquidou a taxa pela compra das sepulturas que adquiriu, taxas essas aprovadas no mesmo Regulamento, e por singular curiosidade no mesmo artigo, daquele diploma.”.
38.º - Pelo que, e em suma, ocorre erro notório na apreciação da prova e também contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, evidenciado pelo confronto da matéria de facto provada com a matéria de facto não provada e em conjugação com a respectiva motivação inserta no acórdão.
39.º - Sendo que, salvo melhor opinião, a melhor forma de sanar os vícios, não passa pela necessidade de reenvio para novo julgamento, mas sim pela correcta reordenação dos factos provados e não provados (com estes a passarem a provados), e o
arguido condenado pela crime de prevaricação, previsto e punido pelo artigo 11.ᵒ da Lei n.ᵒ 34/87, de 16 de Julho.
40.º - Ou seja, ao decidir do modo que decidiu incorreu o acórdão recorrido nos vícios previsto no n.º 2, alíneas b) e c), do artigo 410.º do Código de Processo Penal, devendo ser substituído por outro que dê como provados os factos indicados sob os pontos a), b), c), d) dos factos não provados, e que condene o arguido pela prática do crime que lhe estava imputado no despacho de pronúncia: “cometeu o arguido, em autoria imediata e na forma consumada, um crime de prevaricação, previsto e punido pelo artigo 11.ᵒ da Lei n.ᵒ 34/87, de 16 de Julho”.
41.º - Quanto à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto: sem prejuízo, e por mera cautela de patrocínio, ainda que se viesse a entender não existirem os vícios invocados com o efeito que acima se propugna, a consequência teria de ser o exactamente a mesma em termos de decisão proferida sobre a matéria de facto, como consequência da respectiva impugnação a que de seguida se procede.
42.º - A Audiência de julgamento foi gravada através do sistema integrado de gravação digital áudio, disponível na aplicação informática do Tribunal Judicial de Castelo Branco, como aliás tinha de ser, pelo que, este douto Tribunal da Relação está, assim, em condições de poder sindicar a decisão proferida pela primeira instância sobre a matéria de facto, quanto àquela matéria de facto.
43.º - Pelo que, nas partes concernentes, começa por aqui se reproduzir tudo o supra dito, por ter aqui igual cabimento, caso não proceda desde logo a substituição do Acórdão por outro que dê como PROVADOS os factos indicados sob as alíneas a), b), c) e d) dos factos não provados, considerando os vícios já invocados de erro notório na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão.
44.º - Da decisão recorrida, nomeadamente a fundamentação da matéria de facto, e as referências que na mesma são feitas às declarações do Arguido e aos depoimentos das testemunhas, no âmbito da imediação e da oralidade, verifica-se que o Tribunal recorrido, ao dar como não provada a matéria constante das alíneas a), b), c) e d), seguiu um raciocínio ilógico, arbitrário e contraditório, por si só e conjugado com as regras da experiência comum, de onde se pode concluir, com absoluta segurança, pela existência da violação da livre apreciação da prova.
45.º - Efectivamente, articulando o conteúdo da prova produzida e os depoimentos invocados pela recorrente, tudo permite colocar em causa o juízo valorativo de convicção na decisão recorrida.
46.º - Quanto à matéria que se pretende modificada no que respeita à decisão sobre a matéria de facto: resulta que os factos não provados sob as alíneas a), b), c) e d), não se coadunam, minimamente, com aprova efectivamente feita em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, pelo que devem ser dados como provados, o que se requer.
47.º - O Tribunal recorrido desatendeu parcialmente o que foi dito pelo próprio arguido, pelo legal representante da Assistente, CC, e pelas testemunhas DD, BB, EE, FF e GG, bem como o que conta dos Regulamentos referidos no ponto 8 dos factos provados desatendendo assim matéria essencial para o julgamento da causa e para a descoberta da verdade material e que levaria (e espera-se, levará) necessariamente à condenação do arguido.
48.º - Alicerçando-se pois tal conclusão, e para além do mais, nos extractos dos depoimentos, supra transcritos nas partes relevantes na Motivação, para os quais se remete, das já referidas testemunhas, que nesta sede de Conclusões apenas se sintetizarão.
49.º - Desentendeu, de resto, e como já se expôs em sede de invocação de vícios (Ponto A) ao facto de os Regulamentos estarem em vigor, como resulta dos pontos 8, 10 e 16 dos factos provados.
50.º - Os depoimentos, nas partes infra referidas e transcritas na Motivação, demonstram e sustentam cabalmente a tese da Assistente e do Despacho de Pronúncia, no sentido de que à data da construção do jazigo (data não apurada, mas posterior a Julho de 2011 e antes de 15-11-2012 – facto provado n.º 11) existiam taxas que tinham que ser pagas à Assistente pela aquisição de sepulturas e para construção de jazigos; o Arguido não liquidou as taxas relativas à construção do jazigo J7 e apenas liquidou as taxas relativas às sepulturas, baseando-se num Regulamento que estava em vigor, em cuja aprovação participou (como Presidente do Executivo), uma vez que à data era presidente de junta de freguesia e donde resultam discriminados ambos os valores; tendo desta forma, perfeita noção da existência das taxas relativas à construção de Jazigos e de que tinha de os liquidar.
51.º - Dos depoimentos infra sobressai também a questão do erro material de escrita a que se aludiu aquando da invocação dos vícios e que aqui se dá por reproduzido, ipsis verbis, pela respectiva pertinência e por uma questão de sistematização, devendo, pois, no ponto 16 corrigir-se a referência a J4 por J7, sendo que, ainda que assim não seja, persiste (e até de forma reforçada) a mesma lógica da obrigatoriedade do pagamento da taxa para construção do jazigo.
52.º - Atentemos, agora, no depoimento do arguido, do legal representante da assistente, CC e das testemunhas DD, BB, EE, FF e GG.
53.º - O Arguido prestou as suas Declarações, no dia 18-05-2023, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, com início pelas 10:06:37 horas e o seu termo pelas 11:06:42 horas e início pelas 11:13:16 horas e termo pelas 11:24:43 horas.
54.º - De tal depoimento, em referência aos tempos de gravação, atente-se que o arguido refere que iniciou a construção antes da morte da esposa, em 2010 [00:06:04], sendo que na sequência o arguido falta à verdade quanto à data da construção do jazigo, o que é relevante para aferir da forma como se apresentou em juízo e do grau fidedignidade do que vai dizendo, tanto que resultou provado que: “11. Em data não apurada, mas não anterior a Julho de 2011, mas posteriormente à aquisição das sepulturas, e antes de 15-11-2012, o arguido construiu nessas um jazigo (que viria a ser registado como jazigo n.ᵒ J7 na Junta de Freguesia ...)”.
55.º - Sendo que aos minutos 00:19:34 – para além do mais transcrito em sede Motivação – refere que pagou as sepulturas e “nunca, nunca, nunca me foi posto sequer a hipótese de ter de pagar uma taxa. Isto é um facto. Nunca, nunca, nunca foi posto.”
56.º - Também aqui resulta evidente da matéria de facto provada sob os pontos 8, 10 e 16 a relação que, no caso sub judice, o arguido tem com a verdade, não se podendo ignorar a sua então qualidade de Presidente da Junta. Obviamente, havia na altura da construção a obrigatoriedade de pagamento de uma taxa, sendo a data da construção a referida no ponto 11. dos factos provados.
57.º - Sendo que à pergunta se nesse período (de efectiva construção do Jazigo) vigoravam os Regulamentos, responde o Tribunal a quo nos factos provados 8, 10 e 16, já citados.
58.º - Continuando com o depoimento do arguido sobressaem os minutos 00:24:31 se seguintes (vide transcrição em sede de motivação) onde confirma que pagou as taxas das sepulturas e que já tinha o Jazigo.
59.º - Entre os minutos de gravação 00:28:32 e 00:29:16 confirma ser o responsável pela Junta toda (o que reitera adiante entre 00:32:12 e 00:32:56 ), incluindo o cemitério, sendo que entre os minutos de gravação 00:30:03 e 00:32:08 tenta justificar porque não pagou as taxas referentes ao Jazigo, afirmando que em relação a este “não era obrigado a pagar taxa porque na altura não havia taxa. Na altura não havia taxa”.
60.º - Entre os minutos de gravação 00:34:59 e 00:46:21, confirma ter feito as permutas das sepulturas no seu interesse, embora afirme depois “não era no meu interesse. Aqui tire “presidente da Junta”! Não! Peço perdão, mas tire “o presidente”! Foi no interesse de eu querer fazer o jazigo! Por amor de Deus!”; confirma ter estado envolvido na aprovação do regulamento, embora reafirme que quando começou a fazer o jazigo não havia regulamento; bem como que sabia como as coisas se processavam antes da aprovação do regulamento e depois da aprovação do regulamento, terminando ao minuto 00:46:21 por dizer: “Das taxas aprovadas é normal que sei, tenho consciência que tinham de pagar a taxa, como normal! Eu não tinha de pagar a taxa porque comecei a construir antes da taxa!”, confirmando ainda entre os minutos 00:54:01 e 00:56:37 que o “primeiro regulamento da ..., o Regulamento de Taxas, foi aprovado num dos seus mandatos” concluindo novamente que quando iniciou a construção do Jazigo não estava em vigor qualquer regulamento que obrigasse ao pagamento de qualquer taxa.
61.º - Aqui chegados, atente-se nas seguintes conclusões que se impõem em face de três singelas questões que se colocam e respectivas respostas, independentemente do que diz o arguido, e aqui e ali conjugado com tal depoimento:
A - Quando foi contruído o jazigo? Facto Provado 11: “Em data não apurada, mas não anterior a Julho de 2011, mas posteriormente à aquisição das sepulturas, e antes de 15-11-2012, o arguido construiu nessas um jazigo (que viria a ser registado como jazigo n.ᵒ J7 na Junta 138 de Freguesia ...)”.
B - O Regulamento de taxas estava em vigor? Reitera-se que a esta questão responde o Tribunal a quo nos factos provados 8, 10 e 16, já citados, destacando-se novamente o ponto 8 [nosso destacado]: “Foi aprovado pelo Executivo do qual o arguido era o presidente, o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2011, datado de 22-04-2010, bem como o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de2012, datado de 23-04-2012, tendo os valores relativos àquelas taxas permanecido inalterados”;
C - E quem mandava na Junta? Quem era a Junta? Vide supra e devidamente sistematizadas em sede de Motivação, as respostas dadas pelo arguido entre os minutos 00:28:59 e 00:29:06: “O responsável pela Junta sou eu”, sendo que instado pela Digna Magistrada do MP “…da gestão do cemitério? Também era o senhor?”, responde o arguido: “Eu era o responsávelpela Junta toda”.
62.º - Em face destas conclusões supra, as quais se impõem, é impossível não dar como provadas as alíneas a), b), c) e d) da decisão proferida sobre matéria de facto.
63.º - Sendo notório que o arguido tem perfeita noção que havia e há taxas aplicadas para a construção de jazigos, para além de que exercia ele o cargo de presidente de junta e foi ele que aprovou o regulamento onde eram exigidas essas taxas (logo sabia perfeitamente da existência das mesmas), mas também pelo facto de que se baseou em tal Regulamento para regularizar as taxas das sepulturas, onde estava também a obrigação de pagamento de taxas pela construção do jazigo.
64.º - Quanto ao ponto 9 dos factos provados, refira-se que todo o depoimento do arguido foi no sentido de que não pagou porque à data em que diz ter começado a construção do jazigo não se pagava qualquer taxa e não pela ausência de qualquer edital – tendo-se vindo a demonstrar que a construção do jazigo não foi na data referida pela arguido mas no período a que se alude no ponto 11 dos factos provados. 65.º - Sendo a questão levantada no Acórdão a esse propósito não só é errada como intrinsecamente contraditória, bastando para tal atentar na teleologia da lei, no que o arguido diz a propósito da vigência do relatório (que não contesta) – e que o próprio Tribunal veio a dar como provado, nos termos a que já se aludiu.
66.º - Se é certo que a publicação do edital é uma forma de os potenciais destinatários dos regulamentos deles terem conhecimento, é ainda mais certo que este destinatário em concreto (o arguido) não o podia ignorar, guiou-se por ele para pagar as sepulturas, aprovou-o e foi também por tal Regulamento que toda a população da ... passou a pagar as suas taxas quando se dirigia à entidade que as podia cobrar, a própria Junta, como é lógico – porém, em face do que resultou provado (o Regulamento vigorava) trata-se até de uma não-questão.
67.º - A não ser assim, todas as taxas cobradas ao abrigo de tal regulamento seriam não devidas, com as consequências que daí adviriam para a Junta e para o próprio arguido (em termos de direito de regresso).
68.º - Ademais, ao colocar-se na posição em que se coloca, em termos de quem manda na junta, não sobram quaisquer dúvidas que o mero depoimento do arguido infirma as alíneas não provadas.
69.º - Para além das declarações do Arguido, atente-se agora nas declarações do legal representante da Assistente CC, que, conjuntamente com as declarações das testemunhas DD, BB, EE, FF e GG, teria também de ter levado a que o Tribunal, tivesse atentado no que aludem, a dar como provadas as alíneas a), b), c) e d) da tábua de factos não provados.
70.º - O legal representante da Assistente, CC prestou as suas primeiras declarações, no dia 18-05-2023, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 11:25:52 horas e o seu termo pelas 11:44:43 horas.
71.º - De tal depoimento releva, entre os minutos 00:01:04 e 00:14:41 do tempo de gravação: que foi detectada a irregularidade porque, devido a falta de espaço, houve necessidade de fazer um levantamento referente ao cemitério, tendo-se constatado que no caso do arguido não existia alvará, sendo o respectivo procedimento, cuja tramitação explicou quanto à hipotética construção de um jazigo, obrigatório desde Abril de 2010 – mais afirmando que tal procedimento era o mesmo em 2012 e em 2017 (quando assumiu o mandato de Presidente da Junta) e justificado a forma de cálculo quer para a taxa referente à sepultura quer pela referente ao jazigo.
72.º - A Testemunha DD prestou as suas declarações, no dia 18-05-2023, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, consignando o seu início pelas 11:45:58 horas e o seu termo pelas 12:01:27 horas.
73.º - De tal depoimento releva, entre os minutos 00:00:42 e 00:05:10 do tempo de gravação, que fez parte de um executivo da Junta de Freguesia com o arguido, entre 2009 e 2013, como Tesoureiro, e que a questão da “troca ou permuta ou qualquer coisa…” das sepulturas “Isso foi tratado pela Junta, pelo Senhor Presidente”.
74.º - A Testemunha BB prestou as suas declarações, no dia18-05-2023, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, o seu início ocorreu pelas 12:02:45 horas e o seu termo pelas 12:37:47 horas.
75.º - De tal depoimento releva, entre os minutos 00:00:51 e 00:04:03 do tempo de gravação, os minutos 00:06:42 e 00:10:17, os minutos 00:10:59 e 00:18:01, os minutos 00:27:50 e 00:28:40 e ainda entre os minutos 00:33:53 e 00:34:51, que integrou o Executivo, juntamente com o arguido, entre 2009 e 2013 e depois 2013 a 2017; que no início do primeiro mandato quem quisesse comprar uma sepultura teria de se sujeitar a uma decisão do executivo, após o respectivo procedimento que explicou; sendo que se “Para construir um jazigo na altura havia necessidade de fazer a comunicação verbal e de ter em posse duas sepulturas juntas. Esses eram os dois critérios necessários para poder iniciar a construção do jazigo”, o que mudou em Abril de 2010, “com a entrada em vigor de um regulamento”, altura em que passou a haver necessidade de pagar uma taxa de construção e que “Ficou a indicação do Professor AA na altura, que cumpriu os requisitos para a construção, portanto, ter as duas sepulturas juntas após a comunicação, de que mais tarde iria regularizar o processo”; mais acrescentando que a decisão de que o arguido não iria pagar a taxa da construção do jazigo foi tomada pelo executivo; tendo ainda acrescentado que o apuramento do valor a pagar para as sepulturas foi feito de acordo com o regulamento aprovado, de 2010 ou de 2011, mas o do jazigo não porque se entendeu que “na altura em que construiu já existiam pagamentos de sepulturas e na altura que construiu não existiam taxas para a construção de jazigos”; sendo que em tal reunião estava presente o arguido, o qual não ignorava, posto que “Foi ele que aprovou o regulamento e é natural que não ignorasse”, que nenhum membro do Executivo se opôs a que não fosse emitida taxa para a construção do jazigo, que o arguido não se manifestou e “absteve-se”, embora tenha depois tenha afirmado que “não houve necessidade de votação” e ainda que a lógica aplicada foi a da não retroactividade das taxas [posto que o Jazigo havia sido contruído antes dos Regulamentos].
76.º - Em relação a este depoimento, para além das três questões colocadas e respondidas supra, como pontos chave que são [1 - data de construção das sepulturas; 2 -vigência dos Regulamentos e 3 - Quem mandava na Junta] importa dizer que a questão da retroactividade é uma falsa questão, precisamente porque resultou provado que quando o jazigo foi construído os regulamentos vigoravam, donde decorre a obrigação de pagamento das respectivas taxas.
77.º - E, obviamente, se havia alguém que conhecia a data de construção e que sabia que a tal construção não podia ter sido feita antes da aquisição das campas, esse alguém era obviamente o arguido.
78.º - Daqui decorre que, ao contrário do que foi decidido: a) O arguido não pagou a taxa aproveitando-se das suas funções e presidente da Junta, b) O arguido sabia que era devida a taxa para construção do jazigo, c) O arguido permitiu ainda que o direito de liquidar a taxa referida haja caducado, e d) O arguido, como titular de cargo político e aproveitando-se do mesmo, em tudo agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
79.º - A Testemunha EE prestou as suas primeiras declarações, no dia18-05-2023, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, o seu início ocorreu pelas 14:12:09 horas e o seu termo pelas 14:29:56 horas.
80.º - De tal depoimento releva, entre os minutos 00:02:08 e 00:06:49, e ainda entre os minutos 00:12:12 e 00:13:49, que foi e é funcionária da junta e tesoureira no actual mandato, explicou os procedimentos de aquisição de sepulturas e jazigos antes e depois dos regulamentos, deu nota do que aconteceu aquando das permutas das sepulturas, que situou em 2012, e que se não houve “uma reunião prévia sobre a decisão se incluía o jazigo ou se se excluía o jazigo”, entende que “deveria ter havido, sim, com certeza, porque é tudo registado”, inclusive no tempo daquele executivo.
81.º - A Testemunha FF prestou a as suas declarações, no dia18-05-2023, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, o seu início ocorreu pelas 14:30:57 horas e o seu termo pelas 14:49:42 horas.
82.º - Este depoimento, designadamente entre os minutos 00:03:15 e 00:08:10, demonstra a impossibilidade de o arguido ter adquirido as sepulturas e começado a construção do jazigo em 2009 e 2010, donde resulta que fica igualmente patente a inverdade transmitida aos demais membros da Junta de que começou a contruir antes do período definido e dado como assente no ponto 11 dos factos provados.
83.º - Donde tudo decorre que o arguido bem sabia que tinha de pagar a taxa referentes ao jazigo, tal como pagou as referentes às sepulturas. Em suma, pagou as que escolheu pagar, eximindo-se à restante, aproveitando-se necessariamente das funções que exercia.
84.º - Ademais, dos depoimentos supra vê-se igualmente que não se tratou de um mero formalismo de que se passou ao lado. Foi uma decisão, pensada e ponderada, sendo que os demais membros do executivo, no mínimo, agiram no convencimento de que era certo o que o arguido lhes transmitia quanto à data em que começou a contruir o Jazigo.
85.º - Já ao arguido não pode valer o mesmo raciocínio, por lhe ser um facto pessoal e que não poderia ignorar. Aliás, o arguido refere ao longo do seu depoimento a razão de não ter pago. Razão essa assente no falso pressuposto que bem conhecia – facto é que, antes do período referido no ponto 11 dos factos provados não podia ter construído jazigo algum.
86.º - Determinada pelo Tribunal a quo a reabertura de audiência de julgamento, o legal representante da Assistente, CC prestou as suas segundas declarações, no dia 27-06-2023, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 14:30 horas e o seu termo pelas 14:34 horas.
87.º - A Testemunha GG prestou a as suas declarações, no dia 27-06-2023, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, o seu início ocorreu pelas 14:36 horas e o seu termo pelas 14:50 horas.
88.º - A Testemunha EE prestou as suas segundas declarações, no dia27-06-2023, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, o seu início ocorreu pelas 14:51 horas e o seu termo pelas 15:05 horas.
89.º - Ora, quanto a estes últimos depoimentos, cujos trechos de maior relevo contam da Motivação, prestados após reabertura da audiência, resulta claro como o Meritíssimo Juiz Presidente acabou por concluir que o Regulamento foi aplicado: “Já era claro que aplicaram esse… A questão, como sabe, não é bem essa, mas eles aplicaram o regulamento, disso não há dúvida nenhuma. Ninguém tem dúvidas sobre isso e a senhora foi clara sempre desde o princípio a dizer isso”.
90.º - Diz o Meritíssimo Juiz Presidente que a questão não é essa, mas a questão, salvo o elevado e devido respeito, que é efectivamente muito, a questão é também essa. Aliás, se não fosse essa não teria sido dado como provado o que foi provado nos pontos 8, 10 e 16.
91.º - Efectivamente, as passagens supra citadas são relevantes para os factos impugnados, porquanto demonstram cabalmente a tese da Assistente, que é a mesma do Despacho de Pronúncia, no sentido de que vigorava um regulamento com tabela de taxas em anexo e o arguido, apesar de saber perfeitamente e ter conhecimento das mesmas (como toda e qualquer pessoa da freguesia) incumpriu com o pagamento das taxas que eram aplicadas e devidas à Assistente para a construção do jazigo.
92.º - A douta sentença recorrida, salvo o devido respeito, assenta uma conclusão (a inexistência do conhecimento pelo arguido das taxas aplicadas) em cima de factos notórios de oposto e de fácil entendimento, posto que desde logo nem uma única vez o próprio arguido coloca em causa o facto de o regulamento ter entrado em vigor.
93.º - Quanto aos pontos da matéria de facto aqui em crise, temos, pois, por inequívoco que a prova produzida em audiência, impunham, numa análise crítica assente nas regras da experiência e bom senso que se dessem tais factos como provados.
94.º - Pelo que a conjugação de todos os meios de prova que a defesa pôs à disposição do Tribunal, se apreciados nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, com recurso às regras da experiência e à normalidade das situações, imporia uma decisão de condenação.
95.º - Ao decidir como decidiu, a sentença viola claramente o artigo 127.º do Código de Processo Penal e ainda o art. 124.º, n.º 1 e 125.º do Código de Processo Penal.
96.º - Nenhuma testemunha, em nenhum depoimento, coloca em causa o facto de o regulamento estar em vigor – nem as testemunhas que como cidadãos a ele se sujeitam, nem quem o impõe, nem tampouco as testemunhas que fizeram parte do processo deliberativo e executivo de tais regulamentos.
97.º - Nas circunstâncias concretas em que o arguido não liquidou o que devia ter liquidado só o arguido podia ter decidido pagar ou não pagar, posto nas suas próprias palavras, “Eu era o responsável pela Junta toda”. E não desconsiderando igualmente o que acima se disse, de que o arguido bem sabia quando tinha iniciado a construção do Jazigo.
98.º - Dado como provado o que resultou provado no ponto 11 cai por terra toda a defesa do arguido, de que só não pagou porque começou a construir o Jazigo antes da entrada em vigor dos regulamentos – na verdade, não pagou porque assim decidiu.
99.º - Quanto ao arquivo, o que resultou evidente no que tange às datas em que o arguido foi Presidente da Junta é que o mesmo está desorganizado ao ponto de não se terem logrado encontrar os editais referentes aos regulamentos, não podendo, porém, tal facto jogar a favor do arguido (atendo a sua qualidade de presidente à data) – o que não invalida que tais editais não tenham sido afixados.
100.º - Obviamente, e sem prejuízo de ser certo que os Regulamentos passaram a vigorar nas datas respectivas (correspondentes às da aprovação pela Assembleia de Freguesia, sendo que no mesmo dia era sempre afixado o Edital), roçaria o absurdo (já assim acontece, aliás) o arguido vir invocar como favorável um facto negativo a que ele próprio teria dado causa – sublinha-se: sem prejuízo de se voltar a dizer que a publicitação foi feita e de que o arquivo estava num estado caótico.
101.º - O facto dado como provado sob o ponto 9) foi causado pelo próprio arguido, mas em termos que a junta de freguesia não pôde certificar a publicitação edital dos referidos regulamentos, considerando o estado do arquivo à época em que o arguido era presidente – ainda assim e apesar de a decisão de absolvição assentar em pressupostos aparentemente inversos, certo é que se deu como provado (como já se reiterou) que os regulamentos vigoravam.
102.º - Se este singular facto levasse à absolvição do arguido (como levou, sendo certo que é evidente que está desmontada a tese de que não sabia que tinha de pagar e que o Jazigo havia sido construído antes da vigência dos Regulamentos), estava encontrada a fórmula mágica para todos os autarcas, findos os respectivos mandatos, se eximirem ao que bem quisessem – basta não haver arquivo organizado.
103.º - E não se olvide: pela mesma lógica, todos as habitantes que pagaram taxas durante esse período, teriam direito ao ressarcimento pelos montantes pagos, o que inclui.
104.º - E sejamos claros, o arguido não pagou uma taxa que era devida e que sabia ser devida, referente a um Regulamento que estava em vigor, o que fez aproveitando-se das suas funções, sendo a questão do edital uma falsa questão mas que também é imputável ao arguido.
105.º - Por tudo o exposto, do contexto geral da factualidade constante da matéria de facto provada, da prova documental e do teor dos depoimentos transcritos, deverá considerar-se incorrectamente julgada a matéria de facto provada sob as alíneas acima assinaladas devendo, ao invés, ser reformulados tais factos, bem como serem considerados provados os factos identificados como não provados na matéria de facto constante da decisão sob as alíneas a), b), c) e d), tendo em conta o disposto nos artigos 127.º e 412.º, n.ºs 2 e 3, todos do Código de Processo Penal, com as devidas consequências, designadamente, a condenação do arguido pela prática do crime pelo qual foi pronunciado.
106.º - Por outras palavras, e pelos motivos expostos, os factos constantes das alíneas a), b), c) e d), da tábua de factos não provados devem ser considerados como factos provados, ou seja, deve ser feita a alteração dos factos provados nos termos aludidos, dando-se como provado que:
a) O arguido não pagou a taxa aproveitando-se das suas funções de presidente da Junta, esclarecendo-se ainda que omitiu o pagamento da taxa devida pela construção do jazigo, que se computava no caso concreto em 1.200,00 EUR (mil e duzentos euros) – (300,00 EUR (trezentos euros) o m2), bem sabendo que existiam regulamentos que obrigavam ao pagamento dessa taxa, os quais, aliás, foram aprovados no decorrer de mandato do mesmo.
b) O arguido sabia que era devida a taxa para construção do jazigo.
c) O arguido permitiu ainda que o direito de liquidar a taxa referida haja caducado.
d) O arguido, como titular de cargo político e aproveitando-se do mesmo, em tudo agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
107.º - Da decisão tendo em conta a alteração da matéria de facto: Tendo em conta a alteração dos factos provados acima propugnada, deve o Arguido ser condenado pela prática do que crime pelo qual vinha pronunciado, e de que foi absolvido.
108.º - Ou seja, em face da materialidade que se propõe venha a ser dada como provada resta concluir que os factos apurados, como um todo, integram a previsão normativa do artigo 11.º da Lei n.ᵒ 34/87, de 16 de Julho, mostrando-se provados os elementos típicos objectivos e/ou subjectivos de tal crime: “O titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos.”.
109.º - Efectivamente, o arguido agiu sabendo que tal acção era contrária ao direito e teve o propósito de prejudicar a Junta de que era Presidente e de se beneficiar, termos em que deve ser condenado.
110.º - E por ser assim, não restam dúvidas de que o arguido cometeu, em autoria material, um crime de prevaricação na sua forma consumada, devendo pelo mesmo ser condenado, na medida da pena adequada e que este Tribunal da Relação melhor julgue adequada em face dos factos que resultaram provados.
111.º - Tudo, sem prejuízo dos vícios invocados no Ponto A da motivação deste recurso, que são de conhecimento oficioso, não se nos afigurando ser necessário o reenvio do processo para novo julgamento, posto que nos termos do n.º 1 do Artigo 426.º, como se expôs, é possível ao Tribunal de Recurso decidir da causa.
112.º - No Acórdão recorrido verifica-se, pelo exposto, a violação de todas as normas acima referidas, que de seguida se sistematizam: artigo 11.º da Lei n.ᵒ 34/87, de 16 de Julho, Artigos 124.º, 125.º, 127.º, 374.º, n.º 1 e alíneas b) e c) do Artigo 410.º, todos do Código de Processo Penal.
Nestes termos, nos mais de Direito e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser julgado procedente o presente recurso e, consequentemente, tendo em conta a alteração dos factos provados acima propugnada, e o demais alegado relacionado com os vícios invocados (contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova), deve o Arguido ser condenado pelo crime que lhe foi imputado, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!»
3. Ao recurso interposto pela Assistente respondeu o Ministério Público, pugnando pela sua improcedência considerando inexistir qualquer vício de erro notório na apreciação da prova, pois que a Recorrente não se queda, na sua invocação pelo texto da decisão, fazendo apelo às provas produzidas, o que traduz, na verdade a impugnação da matéria de facto nos termos do disposto no artigo 412º do Código de Processo Penal.
Quanto à decisão sobre a matéria de facto, a mesma mostra-se devidamente fundamentada e dessa fundamentação resultam claros os juízos probatórios levados a cabo pelo Tribunal a quo, os quais, não merecem qualquer censura, tendo sido observado o princípio da livre apreciação da prova.
4. Ao recurso interposto pela Assistente respondeu o Arguido, pugnando pela sua improcedência, sintetizando a sua posição nas seguintes conclusões (transcrição):
«1ª - A Recorrente alega que o Acórdão recorrido enferma, cumulativamente, dos vícios de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 410º, º 2, alíneas b) e c), invocando ainda erro de julgamento quanto ao factos dados como não provados.
2ª - Como claramente dimana do disposto no nº 2 do artigo 410º do CPP, e constitui entendimento uniforme da doutrina e da Jurisprudência, nos recursos interpostos ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 410º do CPP, o vício invocado tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência.
3ª - No que concerne ao vício a que alude o artigo 410º, nº 2, alínea b) do CPP, este apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões antagónicas entre si e que não podem ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá como provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão.
4ª - A Recorrente pretende evidenciar que o tribunal “a quo”, na fundamentação da decisão de facto afirma que o regulamento e tabela de taxas entrou em vigor e o seu contrário (cfr. conclusões 23º e 24º).
5ª - Lido o douto Acórdão recorrido com a devida atenção, facilmente se conclui que a Assistente não tem razão. VEJAMOS:
6ª - No segundo parágrafo de tal fundamentação, consta do acórdão recorrido que, e citamos, “(…) também se NÃO deu como provado que o regulamento estivesse em vigor, pois a Junta de Freguesia, apesar de, expressamente, lhe ter sido solicitado, não certificou a publicitação do regulamento por edital certificado, conforme depoimentos do legal representa da Junta de Freguesia/ atual presidente e informação vertida no requerimento de 6/07”.
7ª –Por seu turno, no quarto parágrafo da mesma fundamentação, refere-se que, “(…) sobre o facto de a Junta ter cobrado taxas, nada mais se concluindo, valorou-se (…) regulamento e tabela de taxas, aprovado em sede de Executivo da Junta de Freguesia ..., durante o mandato autárquico de 2009-2013, presidido por AA, que entrou em vigor em 22/4/2010 (fls. 122 a 127)”.
8ª – Assim, ao invés do pretendido pela Recorrente, no douto Acórdão recorrido afirma-se, de forma cristalina, que NÃO SE DEU COMO PROVADO que o Regulamento de taxas estivesse em vigor e que o regulamento e tabela de taxas aprovado em sede de Executivo da Junta de Freguesia ..., durante o mandato autárquico 2009-2013, presidido por AA (e demais documentos elencados nesse trecho da fundamentação), apenas foi valorado “sobre o facto de a Junta ter cobrado taxas”.
9ª – Da fundamentação do Acórdão recorrido resulta, consequentemente, claramente que o tribunal “a quo” não deu como provado que o Regulamento de taxas estivesse em vigor e que o mesmo apenas foi valorado quanto ao facto de a Junta de Freguesia ter cobrado taxas, nada mais se concluindo desse documento para a formação da convicção do tribunal e para a factualidade dada como provada e como não provada.
10ª - O referido regulamento de taxas encontra-se junto aos autos (fls.122 a 127) e do mesmo nem sequer consta que entrou em vigor em 22/4/2010, mas, sim, que foi aprovado pelo executivo da Junta de Freguesia em reunião extraordinária de 22 de abril de 2010. Mais:
11ª – O artigo 17º de tal regulamento estabelece que “(…) entra em vigor no primeiro dia útil do mês seguinte à sua aprovação pela Assembleia de Freguesia e após a sua publicitação em edital a afixar no edifício da sede da Freguesia”.
12ª - É, assim, manifesto que não ocorre a invocada contradição da fundamentação e, ainda que existisse, face à prova existente nos autos, o mesmo seria sanável.
13ª - Também não ocorre qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão.
14ª - O tribunal “a quo” afirma, de forma claríssima, na fundamentação da decisão recorrida, que não deu como provado que o regulamento estivesse em vigor e nos pontos 8, 10 e 16 da tábua de factos provados não deu como provado, contrariamente ao pretendido pela Recorrente, que o mesmo entrou em vigor.
15ª – Não há, assim, contradição entre a fundamentação e a matéria de facto dada como provada, nomeadamente nos pontos 8, 10 e 16 da tábua de factos provados.
16ª – A decisão recorrida também não enferma de erro na apreciação da prova.
17ª – A Recorrente não indica, pelo menos de forma entendível, qual a prova que o tribunal apreciou erradamente em que se verifica erro notório, que resulta da própria decisão ou desta conjugada com as regras da experiência.
18ª - O erro invocado pela Recorrente emerge da leitura seletiva e da interpretação subjetiva que faz do Acórdão recorrido, olvidando, deliberadamente, entre outros aspetos, que o tribunal “a quo” NÃO DEU como provada que o regulamento e tabela de taxas entrou em vigor.
19ª - Haveria, sim, erro notório na apreciação da prova se o tribunal tivesse dado como provado que os Regulamentos e tabelas de taxas de 2010 e 2012 entraram em vigor, quando de tais documentos, juntos aos autos, consta que só entrariam em vigor no primeiro dia útil do mês seguinte à sua aprovação pela Assembleia de Freguesia e após a sua publicação em edital a afixar no edifício da sede da Freguesia e não se provou a sua publicação em edital, como decorre do ponto 9 dos factos provados.
20ª - Deve, assim, improceder o recuso quanto aos invocados vícios de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e também de erro notório na apreciação da prova.
21ª - A Recorrente vem ainda impugnar a decisão proferida quanto à matéria de facto, alegando que o tribunal “a quo”, ao dar como não provada a factualidade vertida nas alíneas a) a d)dos factos não provados, seguiu um raciocínio ilógico, arbitrário e contraditório, que, por si só e conjugado com as regras da experiência comum, permite concluir pela existência de violação da livre apreciação da prova, afirmando que os depoimentos que transcreve na Motivação demonstram e sustentam cabalmente a sua tese, no sentido de que à data da construção do Jazigo existiam taxas que tinham de ser pagas à Assistente pela aquisição de sepulturas e para a construção de jazigos, tendo o arguido liquidado as taxas respeitantes à aquisição da sepultaras, não pagando as respeitantes à construção do jazigo.
22ª - Independentemente dos depoimentos prestados em julgamento, que foram todos no sentido de que à data em que o arguido iniciou a construção não era devida a taxa em causa nos autos, dos Regulamentos e tabelas de taxas para 2011 e 2012 juntas aos autos resulta inequivocamente que a sua entrada em vigor dependia de aprovação da Assembleia de Freguesia e publicação em edital, vigorando decorridos 30 dias após a sua publicação, que não se demonstrou que tenha sido feita.
23ª - Por isso, o tribunal “a quo” refere perentoriamente na fundamentação da decisão fáctica que não se deu como provado que os aludidos regulamentos, nomeadamente o elaborado para o ano de 2011, tenham entrado em vigor, salientando que a Junta de Freguesia, apesar de, expressamente, lhe ter sido solicitado, não certificou a publicitação do regulamento por edital, alegando não ter encontrado edital certificado –conforme depoimentos do legal represente/ Presidente da atual Junta e informação vertida no requerimento da Assistente de 6/7.
24ª - Face à prova produzida em julgamento, não podia o tribunal “a quo” ter concluído que os Regulamentos e tabelas de taxas elaborados para os anos de 2011 e 2012 entrarem em vigor e, caso tal tivesse sucedido, em que data ocorreu.
25ª – Assim, também quanto à impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto deve naufragar o recurso interposto.
26ª – Deve, pois, julgar-se o recurso interposto totalmente improcedente, mantendo-se integralmente o douto acórdão recorrido.»
5. Neste Tribunal da Relação, a Ex.ª Senhora Procuradora-geral Adjunta, emitiu parecer, do qual se destaca o seguinte trecho (transcrição):
«Com os pressupostos acima enunciados acerca dos fundamentos dos recursos e dos vícios que podem afectar as decisões, designadamente os previstos no artigo 410º do código de processo penal, lido o acórdão e vista a prova, parece-nos que tem razão a assistente na invocação de vícios, máxime o da contradição entre os factos provados e não provados e, também e por conseguinte, o da contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e erro de julgamento.
Conjugada a motivação com a matéria de facto provada, ressalta evidente contradição.
Na realidade, não se entende que, tendo ficado provado que o arguido foi presidente da junta de freguesia no mandato de 2009 a 2013 e no mandato de 2013 a 2017, que no primeiro mandato foi aprovado pelo seu executivo o Regulamento e Tabela de Taxas, em vigor no ano de 2011, datado de 22/04/2010, bem como o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2012, datado de 23/04/2012, tendo os valores relativos àquelas taxas permanecido inalterados, se dê, depois, como não provado que sabia que era devida a taxa para construção do jazigo.
Por outro lado, também se nos afigura que a não certificação nos autos da publicitação edital dos referidos regulamentos não permite, por si, a conclusão de que não estavam em vigor, facto que necessariamente tem de ser conjugado com a restante prova, máxime as próprias declarações do arguido, os depoimentos das testemunhas, todos referenciados no recurso, e com a documentação.
Aliás, não ficou provado que não foram publicados. O que ficou provado foi, tão-só, que essa publicação não foi certificada nos autos (talvez pelas razões invocadas na motivação).
A decisão é, para além do mais, confusa neste particular, pois que, por um lado, dá como provado que os regulamentos estavam em vigor, e, por outro, contradiz esse facto na fundamentação.
Atente-se, por outro lado, que ficou provado que não existe requerimento do arguido, nem autorização da assistente, para a construção do referido jazigo, que, no entanto, foi contruído sem que tenha sido liquidada taxa de construção.
Assim, e tal como vem alegado, o tribunal deu como provados factos donde decorre que havia regulamentos em vigor onde era exigida uma taxa que tinham de ser paga relativamente à construção de jazigos, mas depois contradiz-se ao desconsiderar tal facto.
E concorda-se, também como alegado, que não pode acolher-se como verosímil, sendo até inconsequente, que o arguido, como presidente da junta, desconhecia a obrigatoriedade de pagamento de uma taxa inserta num regulamento que estava em vigor, que o executivo a que presidia aprovou, tendo ainda em conta que pagou outra taxa inserta no mesmo regulamento. Veja-se que ficou provado que o arguido pagou as taxas referentes à aquisição das sepulturas - ponto 10 dos factos provados.
Ora, se pagou essas, porque não pagou as referentes à construção do jazigo?
É, portanto, lógica, e decorre das regras da experiência, a conclusão da assistente no sentido de que “Se é certo que a publicação do edital é uma forma de os potenciais destinatários dos regulamentos deles terem conhecimento, é ainda mais certo que este destinatário em concreto (o arguido) não o podia ignorar, guiou-se por ele para pagar as sepulturas, aprovou-o e foi também por tal regulamento que toda a população da ... passou a pagar as suas taxas quando se dirigia à entidade que as podia cobrar, a própria
Junta.”.
O princípio da livre apreciação da prova não é um princípio absoluto, não se podendo confundir com uma apreciação arbitrária ou discricionária da prova, de todo em todo imotivável, cabendo, portanto, ao julgador apreciar livremente a prova e procurar através dela atingir a verdade material, com observância das regras de experiência comum e utilizando como método de avaliação a aquisição do conhecimento através de critérios objectivos, genericamente susceptíveis de motivação e controlo.
Este princípio assenta nas regras da experiência e critérios lógicos, de modo que a convicção da entidade que aprecia livremente a prova se mostre racional, nada arbitrária, ou meramente impressionista, e deverá ter sempre subjacente uma motivação ou fundamentação, ou seja, o substrato racional da convicção que dela emerge. Trata-se de um livre conhecimento vinculado a estritos critérios de objectividade, lógica e motivação.
Apresentando-se a fundamentação esclarecedora sobre as provas de que o tribunal se socorreu para chegar a determinada conclusão e, bem assim, como as conjugou entre si, seguindo um processo lógico e racional, e revelando-se o juízo de inferência razoável, respeitando a lógica da experiência da vida, e não já arbitrário, absurdo ou infundado, não ocorre violação da livre apreciação da prova.
Mas, pelo que se deixou dito, não é isso que acontece no caso.
Em conclusão, aderindo à argumentação constante da motivação da assistente, somos de parecer que o recurso deve ser julgado procedente e que os vícios detectados terão de ser sanados, se não em sede de recurso, pelo reenvio à primeira instância.»
6. O recurso foi julgado em conferência e, por este Tribunal da Relação foi proferido acórdão em 21-02-2024 [referência11237453], cujo dispositivo se transcreve:
«III. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal em:
A) - Julgar procedente o recurso e, em consequência:
- Nos termos do disposto no artigo 380º do Código de Processo Penal, determinar a correção de lapso de escrita constante do ponto 16. dos factos provados elencados no acórdão em recurso, por forma a que onde consta: «jazigo J4», dever constar, «Jazigo J7».
- Modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos seguintes termos:
. eliminar o ponto 9. da matéria de facto provada;
. eliminar do elenco dos factos não provados a matéria ali descrita sob as alíneas a) a d), fazendo constar tal matéria do elenco dos factos provados.
B) - Revogar o acórdão recorrida na parte em que absolveu o arguido AA da autoria do crime de prevaricação, previsto e punido pelo art.º 11º da Lei n.º 34/87, de 16/07.
C) - Condenar o mesmo arguido AA pela prática de um crime de prevaricação, previsto e punido pelo art.º 11º da Lei n.º 34/87, de 16/07, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
Sem custas.»
7. Inconformado, o Arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual veio a proferir douto acórdão, [referência 12709403] com o seguinte teor, na parte relativa à respetiva fundamentação e dispositivo (transcrição):
«Âmbito e objeto do recurso
15. O recurso tem por objeto um acórdão condenatório proferido pelo Tribunal da Relação que aplica uma pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, em recurso interposto de um acórdão absolutório da 1.ª instância, sendo a decisão recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça (n.º 1, al. e), do artigo 400.º do CPP, na redação da Lei n.º 94/2021, de 21.12).
De acordo com o artigo 434.º do CPP, na parte que agora releva, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito.
Tratando-se de um recurso de acórdão da Relação proferido em recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP], não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro).
O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo, se for caso disso, dos poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP [acórdão de fixação de jurisprudência («AFJ») n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995], de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).
16. Tendo em conta as conclusões da motivação, o arguido pretende a revogação do acórdão recorrido, por discordar da decisão da Relação que modificou a matéria de facto dada como provada no acórdão da 1.ª instância com fundamento na verificação dos vícios de erro na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (artigo 410.º, n.º 2, al. b) e c), do CPP), que considera violadora de várias normas processuais penais, mantendo-se a decisão absolutória da 1.ª instância, ou, caso se considerem verificados estes vícios, seja ordenado o reenvio do processo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 426.º, n.º 2, do CPP.
17. O objeto do recurso suscita a questão prévia de saber se o Tribunal da Relação poderia ter modificado a matéria de facto nos termos em que o fez (supra, 9, 10 e 11), por considerar verificados os vícios de erro na apreciação da prova e de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (artigo 410.º, n.º 2, al. b) e c), do CPP).
18. Como se viu (supra, 2, 3 e 11), do acórdão absolutório da 1.ª instância interpôs a assistente, Freguesia ..., recurso para a Relação, colocando duas questões: «a) Vícios de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova – Artigo 410.º n.º 2 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal [conclusões 1º a 40º]; b) Erro de julgamento relativo à matéria de facto descrita nas alíneas a) a d) dos factos não provados [conclusões 41º a 106º]»
Começando por apreciar os invocados vícios (primeira questão), concluiu a Relação que (a) ambos os vícios se verificaram pelo que, «sanando, simultaneamente o vício de erro notório na apreciação da prova e de contradição, assinalados supra, os factos dados como não provados, devem passar a integrar o elenco dos factos provados», (b) que «tem de concluir-se também, que o arguido permitiu ainda que o direito de liquidar a taxa referida haja caducado», e (c) que «o facto descrito em 9. [A junta de freguesia não certificou a publicitação edital dos referidos regulamentos] da matéria de facto provada é eliminado», pelo que, (d) «tendo em conta quer o teor da pronúncia, quer a decisão supra sobre a correção de lapso de escrita e o mencionado sobre o ponto 9. dos factos provados, a matéria de facto assente e a considerar» é a que se especifica nos pontos 9. e 10. (supra), com eliminação do n.º 9 dos factos provados em 1.ª instância, a inclusão dos factos não provados na enumeração dos factos provados e o aditamento de novos factos, como descritos nos pontos 9 a 22 da matéria de facto provada estabelecida pela Relação.
Em consequência, julgou prejudicado o conhecimento da impugnação da decisão em matéria de facto (segunda questão).
19. Dispõe o artigo 410.º, n.º 1, do CPP, que, sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. Estabelecendo o n.º 2 que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova.
Pretendendo impugnar a decisão em matéria de facto, questionando erro de julgamento dos factos e das provas, deve o recorrente, nos termos do n.º 3 do artigo 412.º do mesmo diploma, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, se for o caso, as provas que devem ser renovadas, estabelecendo o n.º 6 que o tribunal procede à audição ou visualização das passagens das gravações indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
20. As relações conhecem de facto (artigo 428.º do CPP) nos recursos em que é impugnada a matéria de facto, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 412.º do CPP, sendo que a lei processual não atribui às relações poderes de conhecimento oficioso de erros de julgamento em matéria de facto.
O conhecimento dos vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, entre os quais se inclui o vício de erro notório na apreciação da prova, o qual, sendo manifesto, ostensivo e evidente à observação do leitor, se traduz num vício de lógica da decisão resultante do texto da decisão, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, que não se confunde com o erro de julgamento na apreciação da prova produzida em audiência, limita-se pelo texto da decisão recorrida, não sendo admissível o apelo a elementos exteriores que não constem desse texto.
Citando de entre muitos outros, o eloquente acórdão deste Supremo Tribunal de 08.07.2020 (Raul Borges), Proc. 142/15.8PKSNT.L1.S1, em www.dgsi.pt, refletindo jurisprudência sólida e reiterada: «XIII – A sindicância de matéria de facto consentida pelo artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tem um âmbito restrito, pois as anomalias, os vícios da decisão elencados no n.º 2 do artigo 410.º têm de emergir, resultar do próprio texto, da peça escrita, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma. XIV – O errovício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. XV – Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo suscetível de apreciação. XVI – Por outras palavras. Uma coisa é o vício de erro notório na apreciação da prova, outra é a valoração desta, o resultado da prova, (…). XVII – Enquanto a valoração da prova (…) obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é necessariamente prévia à fixação da matéria de facto, o vício da alínea c), bem como os demais constantes das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, só surge perante o texto da decisão proferida em matéria de facto, que resultou daquela valoração da prova. XVIII – Estamos perante duas realidades que correspondem a dois passos distintos, sequenciais, tendo uma origem na outra: o de aquisição processual em resultado do julgamento; um outro, posterior, de consignação do que se entendeu ter ficado provado e não provado, no exercício final de um juízo decisório que se debruçou sobre a amálgama probatória carreada para os autos e dissecada/ponderada/avaliada após o exame crítico das provas, no seu conjunto e interligação, no jogo dialético das conexões, proximidades, desvios, disfunções, antagonismos. XIX – A primeira relaciona-se com a atividade probatória que consiste na produção, exame e ponderação crítica dos elementos legalmente admissíveis - excluídas as provas proibidas - a habilitarem o julgador a formar a sua convicção sobre a existência ou não de concreta e determinada situação de facto. XX – O erro vício será algo detetável, necessariamente a jusante desse iter cognoscitivo/deliberativo, lançado no texto da decisão, cujo sentido e conformação resultou da convicção assumida, que tem a natureza intrínseca de um “produto” de uma reflexão sobre dados adquiridos em registo de oralidade e imediação e que a partir daí ganha alguma cristalização. (…) XXII – Não se pode confundir o vício de erro notório na apreciação da prova com a valoração desta. Enquanto esta obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é prévia à fixação da matéria de facto, aquele – bem como os demais vícios constantes das alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP – só surgem perante o texto da decisão em matéria de facto que resultou daquela valoração da prova».
21. É assim que, em harmonia com estas disposições, o artigo 431.º do CPP impõe requisitos específicos e restrições aos poderes das relações para modificação, em recurso, das decisões proferidas em matéria de facto, ao dispor que:
“Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou
c) Se tiver havido renovação da prova.”
A Relação não estaria, assim, impedida de, embora com fortes restrições, alterar a matéria de facto constante da sentença da 1.ª instância, mesmo que não tivesse sido interposto recurso da decisão em matéria de facto, por alegado erro de julgamento [caso previsto na al. b)]. Porém, como se consignou nos acórdãos de 22.06.2022 e de 19.12.2023, proferidos nos processos 215/18.5JAFAR.E1.S1 e 1066/16.7T9CLD.C3.S1, em www.dgsi.pt, que se seguem de perto, esta possibilidade só poderia ocorrer por via e na sequência da verificação e declaração de vício a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP nas condições impostas pelos artigos 426.º e 431.º, al. a), do CPP, em vista da superação desse vício, para uma boa decisão de direito.
Estabelece o n.º 1 do artigo 426.º que «sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio». O que impõe ao tribunal da relação uma dupla decisão ou uma decisão em dois momentos: em primeiro lugar, a deteção e aferição (determinação e concretização) do vício e, em segundo lugar, a verificação e avaliação das possibilidades de sanação do vício e, sendo caso disso, a respetiva sanação, com base num juízo sobre a suficiência das provas necessárias para essa finalidade, que são as provas existentes no processo que serviram de base à decisão [al. a) do artigo 431.º do CPP].
Fora do âmbito do recurso em matéria de facto ou dos casos de renovação da prova – que depende sempre do recurso em matéria de facto e de pedido (artigos 412.º, n.ºs 1 e 3, al. c), 423.º, n.º 2 e 430.º do CPP) –, o Tribunal da Relação apenas pode modificar a matéria de facto, para remover um vício que for identificado e que impeça a decisão de direito, «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base» [al. a) do artigo 431.º do CPP – neste sentido, designadamente, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 30.1.2002 (Armando Leandro), Proc. 3264/01-3.ª, apud Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª ed., Quid Juris, 2020, p. 1067-1068, de 23.3.2006 (Santos Carvalho), Proc. 06547, em www.dgsi.pt, e de 24.5.2018 (Carlos Almeida), Proc. 632/13.7PARGR.L2.S1, apud Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, cit., 3.ª ed., p. 1384.
22. Como se afirmou nos mencionados acórdãos de 22.06.2022 e de 19.12.2023, havendo arguição de vício do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, o Tribunal da Relação deve verificar se «é possível decidir da causa» (artigo 426.º, n.º 1, do CPP) com os «elementos de prova que constam do processo», excluindo a documentação (gravação) da prova em audiência, que apenas pode servir de base à modificação da decisão em matéria de facto «se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º» – neste sentido, GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2000, p. 368, onde se lê: «Não havendo lugar a reenvio para novo julgamento [por existirem os vícios do n.º 2 do artigo 410.º], a decisão do tribunal da 1.ª instância em matéria de facto pode ser impugnada (art.º 431.º): a) Se do processo constarem todos os elementos de prova quer serviram de base á decisão; b) Se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do artigo 412.º, n.º 3; c) Se tiver havido renovação da prova. (…) Havendo documentação da prova, para que o tribunal possa modificar a decisão em matéria de facto, é necessário que esta tenha sido impugnada» (no mesmo sentido, PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do CPP, Católica Editora, 2007, p. 1181).
Se assim não fosse, perderia sentido a autonomização das alíneas a) e b) do artigo 431.º, pois que a previsão da al. a) absorveria a da al. b), conferindo à apreciação dos vícios em matéria de facto um âmbito e uma dimensão idêntica à da impugnação da matéria de facto, a que é imposto o ónus de especificação do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, ou mesmo mais alargada na ausência de tal ónus. Assim se devendo considerar que a eliminação da expressão «havendo documentação da prova» constante da al. b), pela Lei n.º 48/2007, de 29/8, não introduziu qualquer elemento de novidade na sua previsão, que se define pela conjugação com o n.º 4 do artigo 412.º, que se refere à gravação (documentação) das provas.
Com efeito, como se extrai da história do artigo 431.º do CPP, introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25/08, este preceito veio suprir uma lacuna do regime processual do direito ao recurso em matéria de facto (cfr., a este propósito, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 322/93 e respetivos votos de vencido), inspirando-se no artigo 712.º («Modificabilidade da decisão de facto»), n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil de 1961, então vigente, segundo a qual, «[a] decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida».
23. Como se vê da fundamentação do acórdão recorrido, o Tribunal da Relação, depois de reconhecer a existência de vícios, prosseguiu na sanação desses vícios, fundando a sua decisão de modificação da decisão em matéria de facto em elementos estranhos ao texto da decisão recorrida e em depoimentos de testemunhas, bem como em juízos de valoração (de «inferência») formulados a partir desses elementos e desses depoimentos, aditando, ainda, factos que não constavam da descrição dos factos provados e não provados.
E foi com base nestas provas e nessa valoração que concluiu no sentido de que se mostravam preenchidos os elementos objetivos e subjetivo (dolo) do tipo de crime que justificou a aplicação da pena.
24. Atendendo ao discurso argumentativo que fundamenta a decisão, mostra-se que os erros indicados correspondem, na avaliação da Relação, a erros de julgamento, identificados na decorrência de apreciação e valoração das provas efetuadas pelo Tribunal da Relação, em divergência da decisão da 1.ª instância.
Ora, não contendo o processo todas as provas que serviram de base à decisão (aqui não se incluindo as provas gravadas) e não estando em apreciação o recurso da decisão em matéria de facto, não podia o Tribunal da Relação, verificados os vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, modificar a decisão em matéria de facto dada como provada e como não provada na 1.ª instância, em suprimento desses vícios, face ao disposto no artigo 431.º, al. a) e b), do CPP.
25. Assim sendo, se conclui que o acórdão do Tribunal da Relação, ao proceder ao suprimento dos vícios, se pronunciou sobre uma questão de que não podia tomar conhecimento, o que constitui causa de nulidade, por excesso de pronúncia, prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do mesmo diploma.
Devendo, em consequência, a decisão recorrida ser substituída por outra que, em conhecimento do recurso da assistente, aprecie a impugnação da decisão da 1.ª instância em matéria de facto, quanto aos pontos da matéria de facto que aquela considera incorretamente julgados, em particular quanto à controversa questão da vigência dos regulamentos da junta de freguesia aplicáveis aos caso, tendo em conta as provas indicadas como impondo decisão diversa e as provas indicadas pelo arguido em exercício do contraditório, nomeadamente as provas gravadas, em conformidade com o disposto no artigo 412.º, n.º 6, do CPP.
III. Decisão
26. Nestes termos, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em declarar nulo o acórdão do Tribunal da Relação, o qual deve ser substituído por outro que conheça do recurso interposto pela assistente em impugnação da decisão em matéria de facto, nos termos expostos.
Sem custas.»
8. Baixaram os autos a este Tribunal da Relação tendo a Exma. Senhora Procuradora-geral Adjunta se pronunciado no sentido de dever ser dado cumprimento ao decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça.
9. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 418º nº1 do Código de Processo Penal.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objeto do recurso.
Segundo jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como seja a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto resultantes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal[1], e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do mesmo código - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza os fundamentos de discordância com o decidido e resume as razões do pedido (artigo 412º, n.º 1, do referido diploma), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do conhecimento do mesmo pelo tribunal superior.
Atentas as conclusões formuladas pela Recorrente, as questões a decidir são as seguintes:
a) – Vícios de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova – Artigo 410º nº2 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal [conclusões 1º a 40º]
b) – Erro de julgamento relativo à matéria de facto descrita nas alíneas a) a d) dos factos não provados [conclusões 41º a 106º];
2. Da decisão recorrida.
O acórdão proferido pelo Tribunal a quo é do seguinte teor (transcrição):
1. O arguido, AA, exerceu funções de presidente de Junta de Freguesia ... no mandato de 2009 a 2013 e no mandato de 2013 a 2017.
2. Aquando das partilhas feitas no processo de inventário n.ᵒ723/07...., que correu termos no 2.ᵒ Juízo do Tribunal Judicial ..., relativamente à herança dos pais do aqui arguido, HH e II, foi decidido que o jazigo da família, registado na Junta de Freguesia ... com o n.ᵒ J4, fosse atribuído ao irmão do arguido, JJ.
3. Nesse jazigo, estava sepultado o corpo da mulher do aqui arguido, II, falecida a 28-06-2010.
4. Por sua vez, foi autorizado pelo Executivo (do qual o arguido fazia parte) a permuta de sepulturas entre a assistente e KK (registado na acta n.ᵒ 48 de 27-04-2012), tendo sido realizado um contrato de permuta da sepultura, registado na acta n.ᵒ 49 de 25-05-2012, em que KK cedeu as sepulturas n.ᵒˢ 244 e 246, em troca da sepultura n.ᵒ 213, propriedade da assistente.
5. Além disso, foi realizado um outro contrato de permuta, desta feita da sepultura n.ᵒ 245, pertença de LL, o qual foi registado na acta n.ᵒ 51 de 2012 de 27-07-2012, onde este cedeu a referida sepultura em troca da sepultura n.ᵒ 228, propriedade da assistente.
6. Tais acções tiveram como finalidade que as sepulturas n.ᵒˢ 244 e 245 fossem posteriormente adquiridas pelo arguido para a construção de um jazigo.
7. O arguido comprou as sepulturas n.ᵒˢ 244 e 245, tendo tal acto sido registado na acta n.ᵒ 52 de 2012, realizada no dia 31-08-2012, sendo emitido o alvará de concessão de terreno no cemitério da ..., a que foi atribuído o n.ᵒ 261.
8. Foi aprovado pelo Executivo do qual o arguido era o presidente, o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2011, datado de 22-04-2010, bem como o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2012, datado de 23-04-2012, tendo os valores relativos àquelas taxas permanecido inalterados;
9. A junta de freguesia não certificou a publicitação edital dos referidos regulamentos.
10. O arguido pagou o valor de 750,00 EUR (setecentos e cinquenta euros) relativo à compra dessas duas sepulturas com 4 m2, valor previsto na referida Tabela de Taxas de 2012, no valor de 187,50 EUR (cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos)/m2, sendo que, mesmo antes da entrada em vigor de tal regulamento as sepulturas eram vendidas pela Junta.
11. Em data não apurada, mas não anterior a Julho de 2011, mas posteriormente à aquisição das sepulturas, e antes de 15-11-2012, o arguido construiu nessas um jazigo (que viria a ser registado como jazigo n.ᵒ J7 na Junta de Freguesia ...).
12. Não existe requerimento do arguido, nem autorização da assistente, para a construção do referido jazigo, do mesmo modo que não foi liquidada a taxa de construção do mesmo.
13. No dia 15-11-2012, foi requerida pelo arguido a trasladação do corpo da sua falecida esposa, do jazigo n.ᵒ J4 para o jazigo entretanto contruído no local das sepulturas adquiridas sob os n.ᵒˢ 244 e 245, agora registado com o n.ᵒ J7 na assistente.
14. Tal pedido foi deliberado pelo Executivo no «Ponto 4 – Requerimento para Trasladação» da ordem de trabalhos, na reunião ordinária da Junta de Freguesia ..., registada na acta n.ᵒ 55 de 2012 de 30-11-2012.
15. A trasladação do corpo de II foi efectuada no dia 08-02-2013 para este «novo» jazigo.
16. À data da construção do jazigo J4, a junta de freguesia exigia uma taxa de construção de jazigo de 300,00 EUR (trezentos euros) o m2.
17. O arguido não pagou a taxa pela construção do jazigo, que lhe não foi solicitada.
18. Não foi preenchido o averbamento no alvará de concessão de sepultura.
19. O arguido não tem antecedentes criminais;
20. Colhe-se do relatório da DGRSP que:
a) - O arguido provém de um agregado familiar estruturado aos vários níveis, referindo uma dinâmica sociofamiliar pautada pelos valores educativos transmitidos pelos progenitores e que tem de referência a todos os níveis.
b) AA concluiu o ensino regular em idade própria, integrando o serviço militar aos 19 anos.
c) Após regressar à vida civil, o arguido inicia atividade como professor do ensino básico, profissão que desenvolveu até à aposentação em 2008.
d) AA contraiu matrimónio com II em 1970. Do matrimónio resultam dois filhos, MM e NN, de 52 e 47 anos respetivamente. Ambos os filhos mantêm relação próxima e de entreajuda com o arguido, com quem privam regularmente.
e) Atualmente o arguido já não exerce cargos políticos tendo deixado de ser presidente de Junta em 2017.
f) Ocupa maioritariamente o seu quotidiano numa propriedade na ..., onde desenvolve trabalhos agrícolas, essencialmente como forma de ocupação do tempo, privilegiando a companhia familiar e de amigos próximos.
g) Apresenta uma condição socioeconómica estruturada. Aufere um rendimento mensal aproximado de 2500,00€ (constituído pela sua reforma e pensão de viuvez).
h) AA não apresenta especiais necessidades de reinserção.
Não provados:
a) O arguido não pagou a taxa aproveitando-se das suas funções e presidente da Junta.
b) O arguido sabia que era devida a taxa para construção do jazigo.
c) O arguido permitiu ainda que o direito de liquidar a taxa referida haja caducado.
d) O arguido, como titular de cargo político e aproveitando-se do mesmo, em tudo agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Motivação
Os factos dados como provados colhem a sua demonstração nas declarações do arguido que declarou ter exercido as funções de Presidente da Junta no período referido em 1) conjugado com a cópia das actas e/ou termos de posse do órgão autárquico de fls 50 e 51; que a sua esposa faleceu em 28/06/2010, (certidão do assento de óbito de fls 108) e foi sepultada no jazido da família, mandado construir por seu pai. Tal jazigo de que veio a ser atribuído em partilhas ao seu irmão, pelo que pensou em adquirir sepulturas juntas para construir um jazido, tendo de imediato começado a diligenciar pela aquisição das sepulturas, o que conseguiu. Falou com o secretário da junta, que foi medir e começou a construir; mais disse estar convencido de não serem devidas taxas pela construção do jazigo porque começou a diligenciar pelas sepulturas logo após a morte da esposa, embora a aquisição tivesse sido formalizada muito depois, tal como resulta dos contratos de permuta e aquisição das sepulturas resulta dadas como provadas nos pontos 4 a 7 que colhem a sua demonstração na guia de recebimento relativo à venda de sepulturas (alvará n.ᵒ 251 e sepultura n.ᵒ 283) a OO, datado de 09-07-2009 (fls. 109); acta da Assembleia da Freguesia ... em que se deliberou o deferimento da venda da sepultura n.ᵒ 258 do Cemitério ... a PP (fls.110); - guia de recebimento relativo à venda de sepulturas (alvará n.ᵒ 252 e sepultura n.ᵒ258) a PP, datado de 09-07-2009 (fls. 111), com a respectiva cópia do cheque (fls. 111 verso); - acta da Assembleia da Freguesia ... em que se deliberou o deferimento da venda de terreno para jazigo com a área de 6.875 m2, ocupando os lugares das sepulturas n.ᵒˢ 247 e 248 do Cemitério ... a QQ (alvará n.ᵒ 52), revertendo a sepultura n.ᵒ 243 para a Freguesia (fls. 112); - ficha da sepultura relativa ao jazigo J6 pertencente a QQ e datada de 06-11-2014 (fls. 113); - guia de recebimento relativo à «venda de sepulturas – terreno para jazigo» a QQ, datado de 30-10-2009 (fls. 114); - acta da Assembleia da Freguesia ... relativa ao averbamento da sepultura n.ᵒ 256 (243) – alvará n.ᵒ 52, datada de 28-03-2012 (fls. 115);
O entendimento/convencimento do arguido de nada dever pagar está reforçado pelos depoimentos das testemunhas arroladas pela acusação DD, que foi tesoureiro da Junta de Freguesia ... (pagamentos/recebimentos), disse que era da responsabilidade do secretário o cumprimento do regulamento; que se recorda de o arguido ter dito "ter conseguido as sepulturas" não se tendo valorado o seu depoimento sobre a data da construção, face ao depoimento da testemunha FF claro e motivado, nada mais sabendo. Mais disse que a testemunha EE, fazia o trabalho de secretaria; nada mais acrescentado sobre a conduta do arguido; a testemunha BB, que fez parte da junta de freguesia entre 2009 e 2017; recorda-se da comunicação verbal do arguido de ter a posse de duas sepulturas juntas, que não havia taxas antes de Abril de 2010; foi de opinião de que que o arguido não devia pagar pelo jazigo, na medida em que a obra foi iniciada antes da entrada em vigor do regulamento. Sem prejuízo de, como se deu como provado, que a obra do jazido apenas teve início após Julho de 2011, o certo é que tais testemunhas, executivo da Junta tinham o entendimento que não eram devidas taxas, para além das pagas, sendo que não foi produzida qualquer prova de que o arguido tivesse decidido pelo não pagamento, pelo que se deu com o não provado o facto vertido em a) dos não provados e, ainda não provados os factos atinentes ao elemento subjectivo e vertidos nesta sede.
Em qualquer caso, também se não deu como provado que o regulamento estivesse em vigor, pois a Junta de freguesia, apesar de, expressamente, lhe ter sido solicitado, não certificou a publicitação do regulamento por edital, alegando não ter encontrado edital certificado, conforme depoimentos do legal representante da Junta de freguesia/actual presidente e informação vertida no requerimento de 6/07.
A testemunha RR prestou depoimento no sentido de apenas cumprir ordens, não tendo poder de decisão.
Sobre o facto de a junta ter cobrado taxas, nada mais se concluindo, valorou-se a acta da Assembleia da Freguesia ... relativa ao averbamento da sepultura n.ᵒ 256 (243) – alvará n.ᵒ 52, datada de 28-03-2012 (fls. 115); - assento de óbito n.ᵒ 411, de QQ falecido a 31-10-2014 (fls. 116); guia de recebimento relativo à venda de sepulturas (alvará n.ᵒ 254 e sepultura n.ᵒ 31) a SS, datado de 01-02-2010 (fls. 117); guia de recebimento relativo à venda de sepulturas (alvará n.ᵒ 255 e sepultura n.ᵒ 238) a TT, datado de 01-02-2010 (fls. 118); guia de receita relativa à venda de terreno para a construção de jazigo Subterrâneo (sepultura n.ᵒ 21) a SS, datado de 18-06-2018 (fls. 119); - regulamento e tabela de taxas, aprovada em sede de Executivo da Junta de Freguesia ..., durante o mandato autárquico 2009-2013, presidido por AA, que entrou em vigor a 22-04-2010 (fls. 122 a 127); -edital no qual foi solicitado à população da Freguesia ... a actualização dos alvarás, relativa à operação de reorganização do cemitério, devido à falta de sepulturas disponíveis e desactualização de dados, datado de 05-04-2018 (fls. 128).
As datas referidas no ponto 10 colhem a sua demonstração nas declarações da testemunha FF que referiu que só após do pai em Julho de 2011, lhe foi solicitada a permuta, pelo que só após essa data se iniciou a construção; mais afirmando que se deslocava ao cemitério e não viu as obras de construção do jazigo; que a sua lembrança é dele construído.
Situação pessoal e económica – relatório da DGRSP e CRC junto aos autos.
De direito
Dispõe o artigo 117º da Constituição da República Portuguesa com a epígrafe “Estatuto dos titulares de cargos políticos” que:
1. Os titulares de cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelas ações ou omissões que pratiquem no exercício das suas funções.
2. A lei dispõe sobre os deveres, responsabilidades e incompatibilidades dos titulares dos cargos políticos, as consequências do respetivo incumprimento, bem como sobre os respetivos direitos, regalias e imunidades.
3. A lei determina os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respetivos efeitos, que podem incluir a destituição do cargo ou a perda do mandato.
Para os efeitos da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, são cargos políticos, tal como se refere no seu artigo 3 n.º 1 alínea i), “o de membro de órgão representativo de autarquia local.”
Ora, as freguesias são uma autarquia local (artigo 236 n.º 1 da Constituição da República Portuguesa). Os órgãos representativos da freguesia são a assembleia de freguesia e a junta de freguesia (artigo 244 da Constituição da República Portuguesa). A junta de freguesia é o órgão executivo colegial da freguesia (artigo 246º da Constituição da República Portuguesa). A junta é constituída por um presidente e por vogais (artigo 23º n.º 2 da Lei 169/99, de 18 de setembro, em vigor durante a data da prática dos factos. Por via da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, a referida disposição legal passou a ser o número único do citado preceito).
Ora, sendo o arguido na data da prática dos factos, presidente da junta de freguesia, era, pelo exposto, membro de órgão representativo da respetiva autarquia local e, por isso, titular de cargo político relevante.
Sob a epígrafe “Dos crimes de responsabilidade de titular de cargo político em especial” figura o acima referenciado art. 11º da Lei n.º 34/87 de 16.07 o qual reza que:
O titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos.
Percorrendo alguma jurisprudência relativa à matéria em questão:
1. Ac. do TRE de 02.10.2018 Prevaricação elementos essenciais do crime)
I- Para o cometimento do crime de prevaricação não é necessária a existência de prejuízo para a entidade adjudicante, mas que o agente, conscientemente, conduza - ou decida - contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém;
II- Comete o referido crime, o arguido, presidente de uma junta de freguesia, que, tendo esta deliberado que a adjudicação da obra de alteração das suas instalações seria efectuada por concurso, conjuntamente com um terceiro, construtor civil, orquestraram e levaram a cabo, de comum acordo e em conjugação de esforços, um plano que visava que a adjudicação da obra fosse feita por esse terceiro, plano esse que consistia, basicamente, em criar as condições necessárias e adequadas a dar a aparência - a quem tinha a competência para decidir - de que haviam sido convidadas outras empresas para apresentarem propostas e que a proposta desse terceiro, construtor civil, era a mais vantajosa, garantindo que outras propostas não seriam admitidas por conterem um valor acima do valor base definido pela autarquia.
2- Ac. RL de 09-11-2011 (proc. nº311/09.0TAPTS.L1-3)
I – Os elementos constitutivos do tipo objectivo e subjectivo de ilícito do crime de prevaricação p. e p. pelos arts. 11.º da Lei n.º 34/84, de 16 de Julho, por referência aos arts. 1.º, 2.º e 3.º, n.º 1, al. i), do mesmo diploma legal são: a) A qualidade de membro de órgão representativo de autarquia local do agente; b) A condução ou decisão contra direito de um processo por parte do agente, no exercício das respectivas funções; c) A vontade consciente por parte do agente em assim proceder, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém.
II – Desde logo, o agente deve ser membro de órgão representativo de uma assembleia municipal, uma câmara municipal, uma assembleia de freguesia ou uma junta de freguesia – cf. art. 2.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro.
III – Depois, em procedimento administrativo inerente às suas funções, o agente deve cometer actos ou omissões contrárias ao direito, entendido este como conjunto de princípios e normas jurídicas vinculativas ao processo e à decisão respectiva.
IV – Finalmente, o tipo subjectivo só admite dolo directo, sendo que neste contexto, o agente deve:
a) Bem saber da sua qualidade de membro de órgão representativo de autarquia local;
b) Bem saber que a acção ou omissão em causa é cometida no exercício das funções inerentes àquela qualidade;
c) Bem saber que tal acção ou omissão é contrária ao direito;
d) Agir com o propósito de prejudicar ou beneficiar alguém.
V – Não é necessário que a conduta do agente prejudique e simultaneamente beneficie alguém; basta que apenas prejudique ou beneficie.
VI – Por outro lado, o «alguém» de que se fala pode ser uma pluralidade de pessoas, singulares ou colectivas, desde que concretamente determinadas.
VII – Actuando o agente como membro de órgão representativo de autarquia local e prosseguindo esta enquanto tal o interesse comum, parece que o cometimento do crime não ocorre quando a conduta em causa tenha em vista tão-só o interesse comum.
VIII – Neste contexto, o bem jurídico protegido com a incriminação da prevaricação em causa é realização da função administrativa autárquica segundo o direito e no interesse do bem comum, sem ilegalidades, nem compadrios ou malquerenças particulares.
Escreveu-se neste último acórdão “ …O artigo 1.º [Na sua redacção originária o artigo 1.º referia que «a presente lei determina os crimes de responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhes são aplicáveis e os respectivos efeitos», ao passo que o mesmo preceito legal na redacção da Lei n.º 4/2011 estipula que «a presente lei determina os crimes da responsabilidade que titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos cometam no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhes são aplicáveis e os respectivos efeitos»]. Nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 34/87 na sua versão originária, inalterada entretanto, «consideram-se praticados por titulares de cargos políticos no exercício das suas funções, além dos como tais previstos na presente lei, os previstos na lei penal geral com referência expressa a esse exercício ou os que mostrem terem sido praticados com flagrante desvio ou abuso da função ou com grave violação dos inerentes deveres». Segundo o disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea i), da mesma Lei n.º 34/1987, também na versão primitiva, entretanto inalterada, «são cargos políticos, para os efeitos da presente lei: o de membro de órgão representativo de autarquia local». Finalmente, em conformidade com o disposto no artigo 11.º da referida Lei, que mantém a sua redacção originária, sob a epígrafe de «prevaricação», «o titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos».
Nestes termos, os elementos constitutivos do tipo de ilícito e de culpa do crime de prevaricação em causa nos autos são:
A qualidade de membro de órgão representativo de autarquia local do agente,
A condução ou decisão contra direito de um processo por parte do agente, no exercício das respectivas funções,
A vontade consciente por parte do agente em assim proceder, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém,
A ilicitude da respectiva conduta, o que implica que o agente actue sem uma causa de justificação do facto,
A culpa do agente fundada na sua liberdade de decisão, no conhecimento do carácter proibido da sua conduta e na inexistência de uma causa de exclusão de culpa.
O agente deve ser membro de órgão representativo de uma assembleia municipal, uma câmara municipal, uma assembleia de freguesia ou uma junta de freguesia – cf. artigo 2.º [Segundo o qual «1 - Os órgãos representativos da freguesia são a assembleia de freguesia e a junta de freguesia. 2 - Os órgãos representativos do município são a assembleia municipal e a câmara municipal».] da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro.
Por isso, em causa está um crime específico próprio. O agente deve actuar no âmbito das suas funções.
Mais, em procedimento administrativo inerente àquelas, o agente deve cometer actos ou omissões contrárias ao direito, entendido este como conjunto de princípios e normas jurídicas vinculativas ao processo e à decisão respectiva.
«A actuação contra o direito inclui não apenas a interpretação objectivamente errada da norma, mas também a incorrecta apreciação e subsunção dos factos à norma, seja em decisão interlocutória ou final, singular ou colectiva» [Cf. Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código Penal, edição de 2008, página 872, quanto ao crime de denegação de justiça e prevaricação previsto no artigo 369.º do Código Penal, onde igualmente se refere na actuação «contra direito»].
O tipo subjectivo só admite dolo directo. Neste contexto, o agente deve
- Bem saber da sua qualidade de membro de órgão representativo de autarquia local;
- Bem saber que a acção ou omissão em causa é cometida no exercício das funções inerentes àquela qualidade;
- Bem saber que tal acção ou omissão é contrária ao direito;
- Agir com o propósito de prejudicar ou beneficiar alguém.
Não é necessário que a conduta do agente prejudique e simultaneamente beneficie alguém; basta que apenas prejudique ou beneficie. Por outro lado, o «alguém» de que se fala pode ser uma pluralidade de pessoas, singulares ou colectivas, desde que concretamente determinadas. Actuando o agente como membro de órgão representativo de autarquia local e prosseguindo esta enquanto tal o interesse comum, parece que o cometimento do crime não ocorre quando a conduta em causa tenha em vista tão-só o interesse comum.
Dito de outro modo, o delito em causa tão-só sucede quando a atitude do agente é pautada pela intenção de favorecer ou prejudicar alguma ou algumas pessoas concretamente determinadas.
Não é necessário, contudo, que tal resultado ocorra.
«Não se exige que (…) o prejuízo ou benefício de uma pessoa tenham efectivamente ocorrido, bastando (…) a existência daquele particular elemento intencional» [Cf. Medina de Seiça, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, página 622, também quanto ao crime de denegação de justiça e prevaricação previsto no artigo 369.º do Código Penal, que igualmente se refere à «intenção de prejudicar ou beneficiar alguém».] .
Está-se, assim, perante um crime de intenção ou resultado cortado.
Neste contexto, o bem jurídico protegido com a incriminação da prevaricação em causa é realização da função administrativa autárquica segundo o direito e no interesse do bem comum, sem ilegalidades, nem compadrios ou malquerenças particulares [Quanto ao bem jurídico, Maria do Carmo Silva Dias, Comentário das Leis Penais Extravagantes, volume I, página 751, refere que «o que se tutela é a necessidade de garantir a submissão à lei e aos princípios fundamentais do Direito do titular de cargo político que, por virtude do cargo que ocupa, tem a função de conduzir ou decidir processo que lhe está afecto.
São, por isso, interesses (colectivos) supra-individuais que se protegem, independentemente de mediatamente também poderem vir a ser afectados interesses (privados) individuais e, nessa medida, estes poderem ser protegidos reflexamente».]
No caso está provado que o executivo e assembleia de freguesia, em reunião e sessões ordinárias de 22 e 23/04/2010 aprovaram o regulamento e tabela de taxas da Freguesia ..., regulamento que veio a ser actualizado em 30 de Março e e 22 e Abril de 2102.
Dispunha o art.º 17 do citado regulamento que " o presente regulamento entra em vigor no primeiro dia útil do mês seguinte à sua aprovação pela assembleia de freguesia e após a sua publicação edital a afixar na sede da freguesia.
A publicação dos atos de conteúdo genérico dos órgãos do poder local, já decorre do consignado no art.º 119º da Constituição da República Portuguesa (CRP), sendo uma forma de os potenciais destinatários dos regulamentos deles terem conhecimento.
Acresce referir que a falta de publicidade destes regulamentos determina a sua ineficácia jurídica, o que significa que não são obrigatórios, nem oponíveis a terceiros.
Assim, não estando em vigor na data dos factos, o regulamento não poderia a Freguesia exigir o pagamento da referida taxa e nessa medida verifica-se que o arguido não incumpriu qualquer regulamento, nem nessa medida decidiu contra regulamento, mesmo na hipótese errónea de o ter por estando em vigor.
Mas mesmo que assim se não entendesse, face à materialidade dada como provada resta concluir que os factos apurados não integram a previsão normativa do citado art. 11º - não se mostram provados os elementos típicos objectivos e/ou subjectivos do crime (que o arguido tenha agido – sabendo que tal acção ou omissão era contrária ao direito ou com o propósito de prejudicar ou beneficiar alguém) pelo que há que absolver o arguido.
Decisão:
Nos termos e pelos fundamentos expostos, delibera-se:
Absolver o arguido AA da autoria do crime de prevaricação, previsto e punido pelo art.º 11º da Lei n.º 34/87, de 16/07.
Sem custas. Notifique e deposite.»
3. Apreciação do recurso.
3.1. – Questão prévia.
Compulsado o texto da decisão, concretamente os pontos 2. e 11. dos factos provados, logo se percebe a existência de manifesto lapso de escrita, no que concerne ao ponto 16., na parte em que ali consta a referência a J4.
Com efeito, é muito claro que o jazigo registado com o nºJ4 é o jazigo mencionado em 2., isto é, o jazigo de família que, em partilhas, foi atribuído ao irmão do arguido e onde veio a ser sepultada, num momento inicial, a esposa deste, - ponto 3. dos factos provados.
O Jazigo que viria a ser registado com o nºJ7, foi o construído pelo Arguido nos termos mencionados em 13. – “No dia 15-11-2012, foi requerida pelo arguido a trasladação do corpo da sua falecida esposa, do jazigo n.ᵒ J4 para o jazigo entretanto construído no local das sepulturas adquiridas sob os n.ᵒˢ 244 e 245, agora registado com o n.ᵒ J7 na assistente.”
Portanto, a referência a J4 no ponto 16., é um manifesto lapso de escrita, aliás, reconhecido como tal pelo próprio arguido na sua resposta ao recurso, querendo ali referir-se J7.
Assim, nos termos do disposto no artigo 380º do Código de Processo Penal, corrige-se esse lapso pela seguinte forma:
No ponto 16. da matéria de facto provada onde consta: «jazigo J4», deverá passar a constar, «Jazigo J7».
3.2. Dos vícios de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova – Artigo 410º nº2 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal.
Compulsadas as conclusões 1º a 40º, constata-se que a Recorrente considera que a decisão em recurso padece de ambos os vícios.
No que concerne ao primeiro, porque existe manifesta contradição entre o teor dos pontos 8., 10. e 16., onde consta que em 2011 e 2012 estavam em vigor regulamentos e tabelas de taxas devidas à Assistente, nomeadamente, pela compra de sepulturas e pela construção de jazigos, sendo que, à data da construção do jazigo por parte do arguido, a Assistente exigia uma taxa de construção de €300,00 por m2, Regulamentos e tabelas aprovadas pelo executivo a que o arguido presidia e o teor da alínea b) dos factos não provados de onde resulta que não se provou que o mesmo soubesse que era devida taxa para construção do jazigo.
Para além disso, existe contradição entre aquela matéria de facto provada e a fundamentação, na parte em que refere que não se deu como provado que o mesmo regulamento estivesse em vigor, pois que, da matéria de facto provada consta expressamente que os regulamentos estavam em vigor e que a Assistente à data da construção do jazigo (portanto, pelo menos, em Julho de 2011) exigia uma taxa de construção de €300,00 por m2.
Quanto ao vício de erro notório na apreciação da prova, de acordo com a Recorrente, o mesmo está relacionado com o primeiro, pois que, atenta a matéria de facto provada, nomeadamente a que consta dos pontos 8., 10. e 16., o juízo de inferência que se impunha era o de considerar provados os factos que se consideraram não provados.
De todo o modo, no que se refere aos vícios em causa, cabe ao Tribunal, conhecer da sua eventual ocorrência, mesmo que os mesmos não sejam invocados.
Na verdade, tal conhecimento oficioso impõe-se também, no que respeita aos vícios a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal, conforme jurisprudência fixada pelo acórdão nº7/95, do STJ, de 19 de outubro, in Diário da República, I. Série-A, de 28/12/1995 – “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.”
Dispõe o artigo 410º do Código de Processo Penal:
«1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 – O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada”.
Como ensina Maria João Antunes,[2] “os vícios do nº 2 do artigo 410º, do C. P. Penal, não são vícios do julgamento, mas vícios da decisão, que surgem umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, que impõe a fundamentação das decisões de facto e de direito, sob pena da nulidade da sentença, mas que com eles se não confundem”.
No mesmo sentido, escreve Gama Lobo[3] relativamente aos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º que “une todas estas situações, que o código apelida de “vícios”, o facto de serem endógenas da sentença, isto é, resultam sem mais, da leitura da sentença, não admitindo elementos exteriores para a sua constatação. É inoperante no recurso aludir a quaisquer outros elementos externos à sentença, como sejam declarações no decurso do inquérito ou da instrução ou até mesmo do julgamento, defeito que acontece muitas vezes”.
Analisado o acórdão em recurso, reconhecemos razão à Recorrente, considerando que o mesmo enferma do vício de contradição da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão [artigo 410º nº2 alínea b) do Código de Processo Penal] e bem assim, do vício de erro notório na apreciação da prova [artigo 410º nº2 alínea c) do Código de Processo Penal].
Assim, com as limitações mencionadas supra (recurso apenas ao texto da decisão acima transcrita), analisemos os vícios previstos no nº 2 alíneas b) e c) do artigo 410º do Código de Processo Penal.
3.2.1. – Do vício da contradição insanável entre fundamentação e decisão [Artigo 410º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Penal].
No caso dos autos, ocorre simultaneamente, o vício de contradição insanável entre fundamentação e entre fundamentação e decisão.
Sobre o vício em causa se vem pronunciando abundantemente a Doutrina e a Jurisprudência.
Refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-10-2011[4], que:
“IV - A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (al. b) do n.º 2 da referida norma), pode ser perceptível, antes do mais, na motivação da convicção do julgador que levou a que se desse por provado certo facto, mas pode também decorrer dos próprios factos dados por provados e por não provados; já quanto à contradição entre a fundamentação e a decisão, ela resultará, em princípio, da fundamentação apontar num sentido e a decisão ir noutro.”
Como mencionado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/01/2015[5]:
“VIII - A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
IX - Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.”
Segundo o aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/05/2015[6]:
«O vício em apreço, como resulta da letra do art. 410, n.º 2 al. b) do CPP, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, isto é, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é susceptível de o integrar, mas apenas a que se mostre insanável, ou seja, aquela que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
Qualquer um dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do nº 2 do art. 410 do CPP, como decorre da letra da lei, só se poderá ter por verificado se resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, isto é, com exclusão de exame e consulta de quaisquer outros elementos do processo (cf. entre outros os ac. do STJ de 90-01-10 e de 94-07-13, o primeiro publicado na AJ, 5, 3 e o segundo na CJ/STJ, ano II, tomo III, 197), pelo que a actividade de fiscalização e de controlo do tribunal superior neste particular, conquanto incida sobre toda a decisão, com destaque para a proferida sobre a matéria de facto, não constitui actividade de apreciação e julgamento da prova, sendo que ao exercê-la se limita a verificar se a mesma contém algum ou alguns dos mencionados vícios, sendo que no caso de aquela deles enfermar e, em face disso, se tornar impossível decidir a causa, deverá o processo ser reenviado para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426, n.º1 do CPP).
Este vício ocorre quando se afirma e nega ao mesmo tempo uma coisa ou uma emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas. A contradição pode suceder entre segmentos da própria fundamentação – dão-se como provados factos contraditórios, dá-se como provado e não provado o mesmo facto, afirma-se e nega-se a mesma coisa, enfim, as premissas contradizem-se - , como entre a fundamentação e a decisão - esta não se encontra em sintonia com os factos apurados (cf., neste sentido, Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 2ª Ed., Editorial Verbo, págs. 340 e 341).
A contradição a que se reporta a alin. b) do art. 410 do CPP é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência e que incida sobre elementos relevantes do caso submetido a julgamento.»
Volvendo ao caso vertente, adiantamos, desde já, que o mesmo se verifica.
É que, o Tribunal a quo considerou provado que:
- Foi aprovado pelo Executivo do qual o arguido era o presidente, o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2011, datado de 22-04-2010, bem como o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2012, datado de 23-04-2012, tendo os valores relativos àquelas taxas permanecido inalterados;
- O arguido pagou o valor de 750,00 EUR (setecentos e cinquenta euros) relativo à compra dessas duas sepulturas com 4 m2, valor previsto na referida Tabela de Taxas de 2012, no valor de 187,50 EUR (cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos)/ m2, sendo que, mesmo antes da entrada em vigor de tal regulamento as sepulturas eram vendidas pela Junta.
- À data da construção do jazigo J4 (peia-se, J7), a junta de freguesia exigia uma taxa de construção de jazigo de 300,00 EUR (trezentos euros) o m2.
Por outro lado, o Tribunal a quo considerou não provado que o arguido soubesse que era devida a taxa para construção do jazigo [alínea b) dos factos não provados].
Trata-se de factos contraditórios, pois não pode dizer-se simultaneamente que os regulamentos em causa (que previam o pagamento de taxas, quer pela compra de sepulturas, quer pela construção de jazigos) em vigor no ano de 2011 e no ano de 2012 foram aprovados pelo executivo a que o arguido presidia, e que o mesmo desconhecia que aquela taxa de construção de jazigo era devida.
Note-se que nem sequer se diz que o arguido estava convencido de que aquela taxa não era devida pela concreta construção que levou a cabo, o que se diz é que desconhecia ser aquela taxa devida, o que é bem diferente e que, de todo, não pode afirmar-se sem entrar em contradição com a assinalada matéria de facto provada.
A contradição é manifesta.
Por outro lado, ocorre contradição entre a fundamentação e a decisão.
Na verdade, o Tribunal a quo decide dar como provado que “Foi aprovado pelo Executivo do qual o arguido era o presidente, o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2011, datado de 22-04-2010, bem como o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2012, datado de 23-04-2012, tendo os valores relativos àquelas taxas permanecido inalterados” e simultaneamente, em sede de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto afirma: “Em qualquer caso, também se não deu como provado que o regulamento estivesse em vigor, pois a Junta de freguesia, apesar de, expressamente, lhe ter sido solicitado, não certificou a publicitação do regulamento por edital, alegando não ter encontrado edital certificado, conforme depoimentos do legal representante da Junta de freguesia/actual presidente e informação vertida no requerimento de 6/07.”
Por outras palavras, o Tribunal a quo em sede de decisão sobre a matéria de facto considera provado que os Regulamentos e Taxas datados de 22-04-2010 e de 23-04-2012 vigoraram, respetivamente, nos anos de 2011 e 2012 e, em sede de fundamentação da mesma decisão começa por afirmar que “Não deu como provado que os regulamentos estivessem em vigor”, discorrendo, depois, sobre as razões de assim entender.
E não se diga, como o faz o Arguido na sua douta resposta ao recurso, que a expressão “que entrou em vigor” constante dos factos provados é meramente identificativa do respetivo Regulamento.
A matéria de facto provada e não provada constitui o elemento definidor do objeto do processo e quanto a ela não podem subsistir quaisquer ambiguidades. Se o Tribunal a quo considera que aqueles Regulamentos e taxas não estavam em vigor (independentemente de subscrevermos, ou não a respetiva fundamentação) para que não existisse a apontada contradição impunha-se-lhe que decidisse em conformidade fazendo constar tal facto dos factos não provados, dando apenas como provado que aqueles Regulamentos foram aprovados nos termos resultantes do documento de fls.122 a 127.
Mas não foi assim, dos pontos 8. e 10. consta expressamente que tais regulamentos estavam em vigor nos anos de 2011 e 2012 e no ponto 10. consta a expressão “mesmo antes da entrada em vigor de tal regulamento (…)” o que não deixa dúvidas sobre o sentido do que se afirma no ponto 8.
Consideramos, pois, que as contradições existem e são, por si só, insanáveis, muito embora, como veremos infra, e no cumprimento do determinado pelo douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, possam as mesmas ser sanadas na decorrência da apreciação da questão enunciada em II-1. B).
3.2.2. - Do vício do erro notório na apreciação da prova [Artigo 410º nº2 alínea c) do Código de Processo Penal].
Existe erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, resulte que se deu como provado ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal – Cfr. artigo 374º, nº2 do Código de Processo Penal.
Como se salienta no Acórdão do STJ de 09/04/2008:[7]
“I - Como é jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, o erro notório na apreciação da prova, como os demais vícios elencados no n.º 2 do art. 410.º do CPP, deve resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência, e tem de ser de tal modo evidente que uma pessoa de mediana compreensão o possa descortinar.
II - E existe quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos. Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
III - Os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente o erro notório na apreciação da prova, não podem, por outro lado, ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova inscrito no art. 127.º do CPP.
IV - Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.”
O erro notório na apreciação da prova, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Perante a simples leitura do texto da decisão, o “homem médio” conclui, legitimamente, que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Neste sentido, o acórdão S.T.J de 28/06/2018[8] no qual se considera “O vício da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP – erro notório na apreciação da prova - tem que decorrer da decisão recorrida ela mesma. Por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Mas tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida”
Refere Sérgio Gonçalves Poças[9] “O erro notório é o erro que se vê logo, que ressalta evidente da decisão por si só ou conjugada com as regras da experiência, adiantando que “embora muito invocado nos tribunais, verdadeiramente o erro notório na apreciação da prova (tal como é desenhado na lei) raramente se verifica, para concluir que “quando o recorrente entende que a prova foi mal apreciada deve proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de factos conforme o artigo 412º, nº 3, e não agarrar-se ao vício do erro notório”.
Volvendo ao caso dos autos.
Do texto da decisão recorrida resulta que o Tribunal deu como não provado que:
a) O arguido não pagou a taxa aproveitando-se das suas funções de presidente da Junta.
b) O arguido sabia que era devida a taxa para construção do jazigo.
c) O arguido permitiu ainda que o direito de liquidar a taxa referida haja caducado.
d) O arguido, como titular de cargo político e aproveitando-se do mesmo, em tudo agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Em sede de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto não provada, (pese embora a dificuldade em destacar essa fundamentação da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto provada), consta do acórdão o seguinte:
“Os factos dados como provados colhem a sua demonstração nas declarações do arguido que declarou (…) Falou com o secretário da junta, que foi medir e começou a construir; mais disse estar convencido de não serem devidas taxas pela construção do jazigo porque começou a diligenciar pelas sepulturas logo após a morte da esposa, embora a aquisição tivesse sido formalizada muito depois (…).
O entendimento/convencimento do arguido de nada dever pagar está reforçado pelos depoimentos das testemunhas arroladas pela acusação DD, que foi tesoureiro da Junta de Freguesia ... (pagamentos/recebimentos), disse que era da responsabilidade do secretário o cumprimento do regulamento; que se recorda de o arguido ter dito "ter conseguido as sepulturas" não se tendo valorado o seu depoimento sobre a data da construção, face ao depoimento da testemunha FF claro e motivado, nada mais sabendo. Mais disse que a testemunha EE, fazia o trabalho de secretaria; nada mais acrescentado sobre a conduta do arguido;
- a testemunha BB, que fez parte da junta de freguesia entre 2009 e 2017; recorda-se da comunicação verbal do arguido de ter a posse de duas sepulturas juntas, que não havia taxas antes de Abril de 2010; foi de opinião de que que o arguido não devia pagar pelo jazigo, na medida em que a obra foi iniciada antes da entrada em vigor do regulamento.
Sem prejuízo de, como se deu como provado, que a obra do jazigo apenas teve início após Julho de 2011, o certo é que tais testemunhas, executivo da Junta tinham o entendimento que não eram devidas taxas, para além das pagas, sendo que não foi produzida qualquer prova de que o arguido tivesse decidido pelo não pagamento, pelo que se deu com o não provado o facto vertido em a) dos não provados e, ainda não provados os factos atinentes ao elemento subjectivo e vertidos nesta sede.”
Ora, é patente na decisão, o vício de erro notório na apreciação da prova no que concerne aos factos dados como não provados.
Trata-se de factos, mormente os descritos nas alíneas b) e d), relacionados com a consciência e vontade de atuação por parte do arguido, por isso, factos de natureza psicológica que, não tendo sido objeto de confissão por parte do arguido, a sua prova inscreve-se no âmbito da prova indireta ou indiciária.
A fundamentação transcrita revela uma apreciação da prova manifestamente incorreta, desadequada, dando como não provados factos com base em raciocínio que contraria a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
A matéria de facto provada vai no sentido diametralmente oposto àquele em que foi a decisão do Tribunal a quo quanto aos factos não provados (do foro interno do sujeito e que têm de retirar-se da conjugação dos factos objetivos dados como provados), traduzindo-se em erro patente e que resulta da leitura da própria decisão.
Com efeito, não pode aceitar-se, porque não é esse o normal acontecer, que pretendendo o arguido (presidente da respetiva Junta, facto que deve ter-se sempre presente na análise da prova) construir um jazigo no cemitério sob jurisdição da Junta de Freguesia a que preside não se sujeite ao procedimento administrativo respetivo, o qual implica, para além do mais, o pagamento de uma taxa, matéria que foi dada como provada nos pontos 12., 16., 17. e 18., com o seguinte teor:
“12. Não existe requerimento do arguido, nem autorização da assistente, para a construção do referido jazigo, do mesmo modo que não foi liquidada a taxa de construção do mesmo.
16. À data da construção do jazigo J4 (leia-se J7, conforme correção supra), a junta de freguesia exigia uma taxa de construção de jazigo de 300,00 EUR (trezentos euros) o m2.
17. O arguido não pagou a taxa pela construção do jazigo, que lhe não foi solicitada.
18. Não foi preenchido o averbamento no alvará de concessão de sepultura.
Em face desta matéria de facto provada e da matéria de facto dada como provada nos pontos 8., 10. e 11. (que estavam em vigor nos anos de 2011 e 2012 os Regulamento e Tabela de Taxas aprovados pelo Executivo da Junta a que o Arguido presidia e datados de 22-04-2010 e de 23-04-2012; que o Arguido pagou a taxa prevista na Tabela de Taxas de 2012 para a compra das sepulturas mencionadas em 7. e que construiu um jazigo em data situada entre Julho de 2011 e 15-11-2012), dar como não provado que o arguido soubesse que era devida taxa pela construção do jazigo, surge contrário à lógica e ao normal acontecer.
Se o arguido nem sequer deu início ao procedimento administrativo previsto para obter autorização para a construção, não lhe tendo, por isso, sido cobrada qualquer taxa, não se pode afirmar, sem ser manifesta a incoerência do que se afirma, que não pagou a taxa porque estava convencido de que a mesma não era devida.
Assim, qualquer cidadão médio que leia o acórdão em recurso, percebe a incongruência do raciocínio que foi feito pelo Tribunal, contrariando aquilo que são os factos objetivos dados como provados.
Em suma, a decisão sobre a matéria de facto no que concerne à factualidade não provada é manifestamente errada.
Dá-se, pois, por verificado o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º nº2 alínea c) do Código de Processo Penal e tem-se por inteiramente procedente o recurso.
***
Dando por reproduzido tudo quanto doutamente se fez constar do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que declarou nulo o nosso precedente acórdão por excesso de pronúncia [artigo 379º, nº1, alínea c) do Código de Processo Penal] e considerando o disposto no artigo 431º alínea b) do Código de Processo Penal, passamos a conhecer da segunda questão enunciada, ou seja, do erro de julgamento relativo à matéria de facto descrita nas alíneas a) a d) dos factos não provados, nos termos da impugnação feita pelo Recorrente.
Averiguaremos, pois, se em virtude da decisão sobre essa impugnação será alterada a decisão sobre a matéria de facto e em que medida tal alteração consubstanciará a sanação dos evidenciados vícios de contradição e erro notório.
***
3.3. – Do erro de julgamento relativo à matéria de facto descrita nas alíneas a) a d) dos factos não provados.
Passamos, pois, a conhecer do invocado erro de julgamento.
Como é sabido, a função do recurso é corrigir os erros cometidos na decisão recorrida e não o reexame da prova produzida em primeira instância. Por isso, compete ao recorrente demonstrar como é que esses erros se manifestam e indicar a forma de os corrigir.
A forma de demonstrar que o Tribunal errou ao dar como provado ou não provado um ou mais factos faz-se, de acordo com o disposto na alínea b) do nº3 do artº412º do C.P.P., indicando prova que imponha decisão diversa da tomada.
E impor é muito mais do que permitir. Com efeito, não basta que a prova permita mais que uma versão. É necessário que a versão pela qual o tribunal a quo, de forma fundamentada, optou, não tenha sustentação lógica nessa prova.
A prova, como decorre do artº127º do C.P.P., é apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador. Porém, a liberdade de convicção «não é, nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação»[10].
Contudo, como se acentua no acórdão do STJ, de 07/09/2016[11], o princípio consagrado no artº127º do C.P.P. «não contende com a possibilidade de o Tribunal da Relação se pronunciar sobre a verosimilhança do relato de uma testemunha, ou perito, e demais meios de prova e para apreciar a emergência da prova directa ou indiciária e de aí controlar o raciocínio indutivo pois que estaremos perante uma questão de verosimilhança, ou plausibilidade, das conclusões contidas na sentença.
Por outro lado, a credibilidade em concreto de cada meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum que informam a opção do julgador. E estas podem, e devem ser escrutinadas.
Pode-se, assim, concluir que o recurso em matéria de facto não pressupõe, uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo Tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na perspectiva do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - artigo 412º, nº 3, alínea b) do CPP, ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova.
Porém, tal sindicância deverá ter sempre uma visão global da fundamentação sobre a prova produzida de forma a poder acompanhar todo o processo dedutivo seguido pela mesma decisão em relação aos factos concretamente impugnados. Não se pode, nem deve substituir a compreensão e análise do conjunto da prova produzida sobre um determinado ponto de facto pela visão parcial e segmentada eventualmente oferecida por um dos sujeitos processuais.»
Isto posto e voltando ao caso em apreciação.
A Assistente veicula por via do douto recurso interposto a sua discordância quanto à forma como o tribunal a quo valorou a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, o que conduziu a que fossem considerados como não provados os factos constantes das alíneas a) a d) que, no seu entender, deveriam ter sido dados como provados, em virtude de toda a prova produzida e os próprios factos dados como provados não permitirem outra decisão que não a que advoga.
Antes de conhecer dos argumentos aduzidos pela Assistente, cabe assinalar que a matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo não foi impugnada, pelo que se deve ter por assente. Esta circunstância assume grande relevo no âmbito da questão de que ora se conhece, pois que a factualidade dada como não provada, atentas as suas características, sempre reclamaria a ponderação da chamada prova indireta (uma vez que se trata de matéria que não foi objeto de confissão e é do foro interno do arguido), a qual, como se sabe, exige todo um caminho de formulação de raciocínios logico dedutivos que partem dos factos objetivos dados como provados, relacionando-os entre si e com as regras de experiência comum, permitindo, por presunção adquirir a prova do facto probando.
A Recorrente, em obediência ao disposto no artigo 412º nº3 alínea a) do Código de Processo Penal, indicou os concretos pontos que considera incorretamente julgados como sendo as alíneas a) a d) dos factos não provados.
Considera, depois, que tendo em conta as concretas passagens das declarações do Arguido e bem assim, dos depoimentos testemunhais que identifica, o Tribunal a quo «ao dar como não provada a matéria constante das alíneas a), b), c) e d), seguiu um raciocínio ilógico, arbitrário e contraditório, por si só e conjugado com as regras da experiência comum».
Assim, a Recorrente, cumprindo o ónus imposto pelo artigo 412º nº3 alínea b) e nº4 do Código de Processo Civil, assenta a sua impugnação em dois momentos, em primeiro lugar, as concretas passagens de declarações e depoimentos que indica, sustentam efetivamente a decisão de dar como provados os factos assentes e que não impugna, porém, não sustentam a decisão de dar como não provada a matéria descrita nas alíneas a) a d), sendo o raciocínio indutivo levado a cabo pelo Tribunal a quo a partir desses factos totalmente inadmissível quando escrutinado à luz da lógica e das regras do normal acontecer.
Cabe aqui lembrar que, conforme refere Germano Marques da Silva [In “Direito Processual Penal”, vol. II, pág. 111.], “A livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.
No âmbito da prova indiciária poderemos dizer que o funcionamento e a creditação da prova indiciária está dependente da convicção do julgador, a qual, sendo pessoal, deverá ser sempre objetivável e motivável, nomeadamente em sede de acórdão.
Os requisitos desse funcionamento reconduzem-se a que os indícios sejam graves, precisos e concordantes.
A gravidade do indício está diretamente ligada ao seu grau de convencimento: é grave o indício que resiste às objeções e que tem uma elevada carga de persuasividade, como sucede quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. Será preciso quando não é suscetível de outras interpretações. Mas sobretudo, o facto indiciador deve estar amplamente provado. Por fim, os indícios devem ser concordantes, convergindo na direção da mesma conclusão. A concorrência de vários indícios numa mesma direção, partindo de pontos diferentes, aumenta as probabilidades de cada um deles com uma nova probabilidade que resulta da união de todas as outras.
Verificados estes requisitos, o funcionamento da prova indiciária desenvolve-se em três momentos distintos: a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência, que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento.
As inferências lógicas aptas a propiciar a prova indiciária podem, também, consistir em conhecimentos técnicos que fazem parte da cultura média ou leis científicas aceites como válidas sem restrição.
Vertendo agora a atenção sobre o caso concreto:
Analisados os autos vemos que destes resulta (matéria de facto não impugnada) que:
1. O arguido, AA, exerceu funções de presidente de Junta de Freguesia ... no mandato de 2009 a 2013 e no mandato de 2013 a 2017.
2. Aquando das partilhas feitas no processo de inventário n.ᵒ723/07...., que correu termos no 2.ᵒ Juízo do Tribunal Judicial ..., relativamente à herança dos pais do aqui arguido, HH e II, foi decidido que o jazigo da família, registado na Junta de Freguesia ... com o n.ᵒ J4, fosse atribuído ao irmão do arguido, JJ.
3. Nesse jazigo, estava sepultado o corpo da mulher do aqui arguido, II, falecida a 28-06-2010.
4. Por sua vez, foi autorizado pelo Executivo (do qual o arguido fazia parte) a permuta de sepulturas entre a assistente e KK (registado na acta n.ᵒ 48 de 27-04-2012), tendo sido realizado um contrato de permuta da sepultura, registado na acta n.ᵒ 49 de 25-05-2012, em que KK cedeu as sepulturas n.ᵒˢ 244 e 246, em troca da sepultura n.ᵒ 213, propriedade da assistente.
5. Além disso, foi realizado um outro contrato de permuta, desta feita da sepultura n.ᵒ 245, pertença de LL, o qual foi registado na acta n.ᵒ 51 de 2012 de 27-07-2012, onde este cedeu a referida sepultura em troca da sepultura n.ᵒ 228, propriedade da assistente.
6. Tais acções tiveram como finalidade que as sepulturas n.ᵒˢ 244 e 245 fossem posteriormente adquiridas pelo arguido para a construção de um jazigo.
7. O arguido comprou as sepulturas n.ᵒˢ 244 e 245, tendo tal acto sido registado na acta n.ᵒ 52 de 2012, realizada no dia 31-08-2012, sendo emitido o alvará de concessão de terreno no cemitério da ..., a que foi atribuído o n.ᵒ 261.
8. Foi aprovado pelo Executivo do qual o arguido era o presidente, o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2011, datado de 22-04-2010, bem como o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2012, datado de 23-04-2012, tendo os valores relativos àquelas taxas permanecido inalterados;
9. A junta de freguesia não certificou a publicitação edital dos referidos regulamentos.
10. O arguido pagou o valor de 750,00 EUR (setecentos e cinquenta euros) relativo à compra dessas duas sepulturas com 4 m2, valor previsto na referida Tabela de Taxas de 2012, no valor de 187,50 EUR (cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos)/m2, sendo que, mesmo antes da entrada em vigor de tal regulamento as sepulturas eram vendidas pela Junta.
11. Em data não apurada, mas não anterior a Julho de 2011, mas posteriormente à aquisição das sepulturas, e antes de 15-11-2012, o arguido construiu nessas um jazigo (que viria a ser registado como jazigo n.ᵒ J7 na Junta de Freguesia ...).
12. Não existe requerimento do arguido, nem autorização da assistente, para a construção do referido jazigo, do mesmo modo que não foi liquidada a taxa de construção do mesmo.
13. No dia 15-11-2012, foi requerida pelo arguido a trasladação do corpo da sua falecida esposa, do jazigo n.ᵒ J4 para o jazigo entretanto contruído no local das sepulturas adquiridas sob os n.ᵒˢ 244 e 245, agora registado com o n.ᵒ J7 na assistente.
14. Tal pedido foi deliberado pelo Executivo no «Ponto 4 – Requerimento para Trasladação» da ordem de trabalhos, na reunião ordinária da Junta de Freguesia ..., registada na acta n.ᵒ 55 de 2012 de 30-11-2012.
15. A trasladação do corpo de II foi efectuada no dia 08-02-2013 para este «novo» jazigo.
16. À data da construção do jazigo J4 (leia-se J7), a junta de freguesia exigia uma taxa de construção de jazigo de 300,00 EUR (trezentos euros) o m2.
17. O arguido não pagou a taxa pela construção do jazigo, que lhe não foi solicitada.
18. Não foi preenchido o averbamento no alvará de concessão de sepultura.
Analisados os segmentos invocados pela Recorrente e ouvidas na íntegra as declarações do arguido AA, do legal representante da Assistente, CC e das testemunhas DD, BB, EE e FF, cremos que efetivamente se imporá a transição dos factos elencados em a) a d) dos factos não provados, para os factos provados.
Senão vejamos:
O Arguido afirmou que que iniciou a construção do jazigo ainda antes da morte da esposa em 2010. Porém, baseando-se na demais prova produzida, e bem, nomeadamente no depoimento prestado pela testemunha FF, o próprio Tribunal a quo não validou tais declarações, uma vez que, deu como provado que tal construção ocorreu em data não apurada, não anterior a Julho de 2011, mas posteriormente à aquisição das sepulturas, e antes de 15-11-2012 (ponto 11. da matéria de facto provada).
Prosseguindo nas declarações do Arguido, afirma o mesmo que nunca lhe foi posta sequer a hipótese de serem devidas taxas pela construção em causa, porém, admite que procedeu ao pagamento das taxas devidas pela aquisição das sepulturas.
Ora, tais taxas constam dos mesmos regulamentos onde se encontra prevista a taxa de construção do jazigo, pelo que, surge contraditório e não pode aceitar-se como boa a afirmação do Arguido de que à data da construção do jazigo, a taxa devida pela mesma não lhe era exigível.
Atente-se uma vez mais que consta da matéria de facto provada e não impugnada que os ditos regulamentos em vigor nos anos de 2011 e 2012, foram aprovados pelo Executivo do qual o arguido era o presidente. Aliás, o próprio Arguido não contesta nunca nas suas declarações que tais Regulamento e Taxas estivessem em vigor naqueles períodos, confirmando que era ele o responsável pela Junta naquela altura e que esteve envolvido na respetiva aprovação, sendo perfeitamente conhecedor das regras em vigor, antes e depois da aprovação dos Regulamento e taxas em causa.
O que afirma é que a taxa de construção não lhe era exigível porque iniciou a construção do jazigo antes de 2011, o que, como já vimos não foi a decisão do Tribunal, nesta parte fundamentada, e bem, no depoimento da testemunha FF.
Em suma, o arguido sustenta que a taxa em causa não era devida porque à data em que construiu o jazigo não tinha, ainda, sido aprovada, mas tal versão dos factos não pode aceitar-se porque como se disse, o que resultou provado foi que a construção do jazigo ocorreu depois de julho de 2011, data em que, o próprio Arguido admite que a taxa já estava em vigor.
Assim, tendo em conta as declarações prestadas pelo arguido, não se vê como não dar como provado que o Arguido sabia que era devida a taxa para construção do jazigo [alínea b) dos facos não provados].
Passando às declarações prestadas pelo representante legal da Assistente.
Destaca a Recorrente nestas declarações (as prestadas em 18-05-2023) segmentos de onde resulta que o mesmo afirmou que que foi detetada a irregularidade porque, devido a falta de espaço, houve necessidade de fazer um levantamento referente ao cemitério, tendo-se constatado que no caso do arguido não existia alvará, sendo o respetivo procedimento, cuja tramitação explicou quanto à hipotética construção de um jazigo, obrigatório desde Abril de 2010 – mais afirmando que tal procedimento era o mesmo em 2012 e em 2017 (quando assumiu o mandato de Presidente da Junta) e justificado a forma de cálculo quer para a taxa referente à sepultura quer pela referente ao jazigo.
O Tribunal a quo ignorou estas declarações na fundamentação da sua decisão quanto aos factos não provados e não o podia fazer porque se revelam importantes para o apuramento da verdade.
Com efeito, e no que tange ao convencimento do Arguido, o Tribunal a quo apenas refere os depoimentos das testemunhas DD e BB, desconsiderando aquelas declarações, o que podia fazer, mas não sem justificar por que razão o fez.
Vejamos, então, os depoimentos destas testemunhas.
Quanto às testemunhas DD e BB, o Tribunal a quo, destaca na fundamentação o seguinte, para fundamentar a sua decisão no que tange à factualidade não provada:
«O entendimento/convencimento do arguido de nada dever pagar está reforçado pelos depoimentos das testemunhas arroladas pela acusação, DD, que foi tesoureiro da Junta de Freguesia ... (pagamentos/recebimentos), disse que era da responsabilidade do secretário o cumprimento do regulamento; que se recorda de o arguido ter dito "ter conseguido as sepulturas" não se tendo valorado o seu depoimento sobre a data da construção, face ao depoimento da testemunha FF claro e motivado, nada mais sabendo. Mais disse que a testemunha EE, fazia o trabalho de secretaria; nada mais acrescentado sobre a conduta do arguido.
A testemunha BB, que fez parte da junta de freguesia entre 2009 e 2017; recorda-se da comunicação verbal do arguido de ter a posse de duas sepulturas juntas, que não havia taxas antes de Abril de 2010; foi de opinião de que que o arguido não devia pagar pelo jazigo, na medida em que a obra foi iniciada antes da entrada em vigor do regulamento.»
Ora, dando o tribunal por adquirido que o jazigo foi construído pelo menos, depois de julho de 2011, e assentando tais depoimentos no pressuposto de que a taxa estava em vigor nessa data, não se vê como não considerar ilógico o raciocínio que, depois, o Tribunal expressa de que, considerou que o arguido estava convencido de que a taxa não lhe era aplicável.
De acordo com a decisão recorrida, o convencimento destas testemunhas de que não era devida taxa pela construção do jazigo assentou unicamente no facto de estarem convencidas de que a construção ocorreu no ano de 2010. Ora, se tal pressuposto não se verifica, não surge legítimo por ilógico e contraditório assentar a convicção do Tribunal nesta matéria nestes depoimentos.
E é o que o tribunal a quo faz quando afirma: «Sem prejuízo de, como se deu como provado, que a obra do jazido apenas teve início após Julho de 2011, o certo é que tais testemunhas, executivo da Junta tinham o entendimento que não eram devidas taxas, para além das pagas, sendo que não foi produzida qualquer prova de que o arguido tivesse decidido pelo não pagamento, pelo que se deu com o não provado o facto vertido em a) dos não provados e, ainda não provados os factos atinentes ao elemento subjectivo e vertidos nesta sede.»
Tem razão, pois, a Recorrente ao indicar como impondo decisão diferente, os segmentos dos depoimentos destas testemunhas que destaca nos seguintes termos [conclusões 72 a 78]:
«72.º - A Testemunha DD prestou as suas declarações, no dia 18-05-2023, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, consignando o seu início pelas 11:45:58 horas e o seu termo pelas 12:01:27 horas.
73.º - De tal depoimento releva, entre os minutos 00:00:42 e 00:05:10 do tempo de gravação, que fez parte de um executivo da Junta de Freguesia com o arguido, entre 2009 e 2013, como Tesoureiro, e que a questão da “troca ou permuta ou qualquer coisa…” das sepulturas “Isso foi tratado pela Junta, pelo Senhor Presidente”.
74.º - A Testemunha BB prestou as suas declarações, no dia18-05-2023, tendo as mesmas sido gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, o seu início ocorreu pelas 12:02:45 horas e o seu termo pelas 12:37:47 horas.
75.º - De tal depoimento releva, entre os minutos 00:00:51 e 00:04:03 do tempo de gravação, os minutos 00:06:42 e 00:10:17, os minutos 00:10:59 e 00:18:01, os minutos 00:27:50 e 00:28:40 e ainda entre os minutos 00:33:53 e 00:34:51, que integrou o Executivo, juntamente com o arguido, entre 2009 e 2013 e depois 2013 a 2017; que no início do primeiro mandato quem quisesse comprar uma sepultura teria de se sujeitar a uma decisão do executivo, após o respectivo procedimento que explicou; sendo que se “Para construir um jazigo na altura havia necessidade de fazer a comunicação verbal e de ter em posse duas sepulturas juntas. Esses eram os dois critérios necessários para poder iniciar a construção do jazigo”, o que mudou em Abril de 2010, “com a entrada em vigor de um regulamento”, altura em que passou a haver necessidade de pagar uma taxa de construção e que “Ficou a indicação do Professor AA na altura, que cumpriu os requisitos para a construção, portanto, ter as duas sepulturas juntas após a comunicação, de que mais tarde iria regularizar o processo”; mais acrescentando que a decisão de que o arguido não iria pagar a taxa da construção do jazigo foi tomada pelo executivo; tendo ainda acrescentado que o apuramento do valor a pagar para as sepulturas foi feito de acordo com o regulamento aprovado, de 2010 ou de 2011, mas o do jazigo não porque se entendeu que “na altura em que construiu já existiam pagamentos de sepulturas e na altura que construiu não existiam taxas para a construção de jazigos”; sendo que em tal reunião estava presente o arguido, o qual não ignorava, posto que “Foi ele que aprovou o regulamento e é natural que não ignorasse”, que nenhum membro do Executivo se opôs a que não fosse emitida taxa para a construção do jazigo, que o arguido não se manifestou e “absteve-se”, embora tenha depois tenha afirmado que “não houve necessidade de votação” e ainda que a lógica aplicada foi a da não retroactividade das taxas [posto que o Jazigo havia sido contruído antes dos Regulamentos].»
Os depoimentos em causa, como se disse, para além de não reforçarem, por nenhuma forma, as declarações do Arguido no sentido de que estava convencido de que não era devida a taxa de construção do jazigo, apontam inequivocamente para a circunstância de, tendo o jazigo sido construído depois de julho de 2011, tal taxa ser devida, a que acresce o facto de, dos mesmos resultar que isso era do total conhecimento do Arguido, não só devido às funções que exercia, mas especificamente, por até ter estado presente em reunião do executivo em que se discutiu a questão. Note-se que a testemunha BB assevera que o arguido não ignorava a existência do regulamento porque “foi ele que o aprovou” e que o que aconteceu nessa reunião foi que foi proposto que o arguido não pagasse esta taxa e a tal não se opuseram os membros do executivo, apenas porque se entendeu não aplicar as taxas retroativamente, tudo no pressuposto (que como resulta da própria matéria de facto provada , não se verifica) de que o Jazigo havia sido contruído antes dos Regulamentos.
Prosseguindo, indica o Recorrente como impondo decisão diversa, os depoimentos das testemunhas EE e FF.
Dos segmentos que destaca, também resulta que a tese apresentada pelo arguido para justificar o seu convencimento de que não era devida aquela taxa de construção não pode prevalecer, pois que, a mesma assenta no pressuposto de que a construção ocorreu antes da aprovação do Regulamento que a prevê e isso não foi o que resultou provado.
Relativamente à testemunha EE, o Tribunal a quo apenas se lhe refere para dizer que do seu depoimento apenas resulta que cumpria ordens e que não tinha poder de decisão, porém, a testemunha em causa, disse mais.
Disse que era, à data e ainda é, funcionária da Assistente, atualmente com o cargo de tesoureira e que os Regulamento e Taxas em causa vieram a estabelecer um procedimento distinto daquele que estava em uso, sendo inequívoco, pois, que os mesmos entraram em vigor e passaram a ser observados pela Junta.
Quanto à testemunha FF, o Tribunal credibilizou o seu depoimento e socorreu-se do mesmo para dar como provado o que consta do ponto 11., isto é, que o Jazigo foi construído em data incerta, mas posterior a julho de 2011. Isto mesmo, assinala a Recorrente de forma pertinente.
Ora, se foi o arguido quem construiu o Jazigo e essa construção ocorreu depois de julho de 2011, como pode afirmar-se, sem ser ilógico e incoerente, que estava convencido que não era devida taxa pela construção, quando nem ele próprio contesta que os Regulamentos e taxas em causa estavam em vigor nesse ano de 2011?
Procedem, pois, as razões de discordância da Recorrente.
Importa, também, analisar o segmento da fundamentação constante da decisão em crise relativa à entrada em vigor do Regulamento.
«Em qualquer caso, também se não deu como provado que o regulamento estivesse em vigor, pois a Junta de freguesia, apesar de, expressamente, lhe ter sido solicitado, não certificou a publicitação do regulamento por edital, alegando não ter encontrado edital certificado, conforme depoimentos do legal representante da Junta de freguesia/actual presidente e informação vertida no requerimento de 6/07.»
Portanto, o Tribunal a quo considerou que, não tendo a Junta certificado a publicitação do Regulamento por edital, não existe prova de que o mesmo estivesse em vigor nos anos de 2011 e 2012.
Ora, importa ter em consideração que, nenhuma das testemunhas ouvidas, nem sequer o Arguido, puseram em causa que o Regulamento tivesse entrado em vigor e, por outro lado, atenta a justificação dada pela Junta (não encontrou o edital devido ao estado caótico em que se encontrava o arquivo da Junta) apenas se pode concluir que o edital não foi encontrado e não que o mesmo não tenha existido e sido afixado.
Aliás, como bem faz notar a Recorrente, e a própria decisão recorrida também o menciona, as taxas eram, nesses anos cobradas aos demais munícipes, nunca tendo existido qualquer dúvida sobre a sua vigência.
Como já se disse, a factualidade dada como não provada e ora impugnada [mormente a constante das alíneas b) e d)], traduz-se em factos atinentes ao processo psíquico, nas suas vertentes cognitiva e volitiva que, quando não surgem admitidos pelo agente não são suscetíveis de serem apreendidos pelas testemunhas ou por outros elementos de prova. Porém, a análise dos factos objetivos apurados (e acima referidos) leva-nos a concluir - em face dos padrões de normalidade e das regras da experiência comum – pelo processo de vontade que lhes subjaz.
A matéria de facto provada apreciada criticamente e interpretada à luz das regras de experiência comum conduz, de forma lógica, à conclusão de que tal matéria (não provada) se deve dar como provada, pois que, a fundamentação transcrita revela uma apreciação da prova incorreta, desadequada, dando como não provados factos com base em raciocínio que contraria a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Voltemos à decisão recorrida.
O Tribunal fundou, em parte, a sua decisão de dar como não provado que o arguido soubesse que eram devidas taxas pela construção do jazigo nas declarações prestadas pelo mesmo na parte em que refere que:
- Falou com o secretário da junta, que foi medir e começou a construir
- (…) estar convencido de não serem devidas taxas pela construção do jazigo porque começou a diligenciar pelas sepulturas logo após a morte da esposa, embora a aquisição tivesse sido formalizada muito depois.
Ora, estas declarações são desmentidas pela restante matéria de facto que foi dada como provada e a sua valoração no sentido por que o foi, não é admissível, patenteando um erro de raciocínio.
Com efeito, não pode aceitar-se, porque não é esse o normal acontecer, que pretendendo o arguido (presidente da respetiva Junta, facto que deve ter-se sempre presente na análise da prova) construir um jazigo no cemitério sob jurisdição da Junta de Freguesia a que preside considere uma atuação legítima limitar-se a falar com o secretário que foi medir …
Tal construção, como é do conhecimento geral, está sujeita a um determinado procedimento administrativo, circunstância que o arguido não podia desconhecer.
Mas, na verdade, consta da matéria de facto provada que o arguido, pretendendo proceder a essa construção, omitiu a realização desse procedimento o qual para além do mais, implicava o pagamento de uma taxa.
É o que consta dos pontos 12., 16., 17. e 18., com o seguinte teor:
“12. Não existe requerimento do arguido, nem autorização da assistente, para a construção do referido jazigo, do mesmo modo que não foi liquidada a taxa de construção do mesmo.
16. À data da construção do jazigo J4 (leia-se J7, conforme correção supra), a junta de freguesia exigia uma taxa de construção de jazigo de 300,00 EUR (trezentos euros) o m2.
17. O arguido não pagou a taxa pela construção do jazigo, que lhe não foi solicitada.
18. Não foi preenchido o averbamento no alvará de concessão de sepultura.
Em face desta matéria de facto provada, as declarações prestadas pelo Arguido não podiam merecer o convencimento do Tribunal a quo, por surgirem contrárias à lógica e ao normal acontecer.
Mais, resulta da matéria de facto provada que a esposa do arguido faleceu em 28-06-2010 (ponto 3.) e que a construção do jazigo ocorreu em data incerta, mas não anterior a julho de 2011 (ponto 11.); que o regulamento e taxas relativo, para além do mais, à dita construção foi aprovado pelo executivo do qual o arguido era o presidente em 22-04-2010, para vigorar em 2011.
Assim, é patente incongruência do raciocínio que foi feito pelo Tribunal louvando-se em declarações frontalmente contrariadas pela demais matéria de facto dada como provada.
Se o arguido estivesse convencido de não ser devida a taxa em causa, o normal seria dar início ao respetivo procedimento entregando requerimento para obtenção da respetiva autorização e requerendo a isenção do pagamento de taxa com os fundamentos que entendesse pertinentes e não, como aconteceu, construir o jazigo, sem mais.
O Tribunal começa por dizer que se deu como provado que a construção se iniciou após julho de 2011 e, depois, faz tábua rasa dessa afirmação e avança como fundamento da sua decisão sobre a matéria de facto não provada (toda ela, note-se) a circunstância de, ao arrepio de tudo o resto que se deu como provado (que o regulamento e taxas em vigor naquele ano foi aprovado em 22-04-2010), aquelas testemunhas terem o “entendimento” de que não eram devidas taxas.
Em suma, tendo em consideração a matéria de facto dada como provada [pontos 1. a 18. dos factos provados], analisada esta conjugadamente e à luz das regras de experiência comum, tem de concluir-se que o arguido não pagou a taxa aproveitando-se das suas funções de presidente da Junta; sabia que era devida a taxa para construção do jazigo e como titular de cargo político e aproveitando-se do mesmo, em tudo agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Finalmente, tem de concluir-se também, que o arguido permitiu ainda que o direito de liquidar a taxa referida haja caducado.
Com efeito, resultou provado que não existe requerimento do arguido, nem autorização da assistente, para a construção do referido jazigo, do mesmo modo que não foi liquidada a taxa de construção do mesmo.
Ou seja, não só o arguido não requereu a autorização em causa previamente à construção, como não o fez posteriormente, pelo que, não foi liquidada a taxa devida. Assim, exercendo o arguido o cargo de presidente da junta até 2017, a sua conduta teve como consequência a caducidade do direito de liquidar a taxa referida, que só o seria no âmbito do procedimento administrativo a que o arguido nunca deu início.
Para além disso, o facto descrito em 9. [A junta de freguesia não certificou a publicitação edital dos referidos regulamentos] da matéria de facto provada deve ser eliminado do elenco dos factos
Na verdade, trata-se de matéria que, não constando da pronúncia ou da contestação, é mera referência a uma diligência de prova e não constitui, por isso, um facto que, nos termos do disposto no artigo 368º nº 2 do Código de Processo Penal, releve para as questões enumeradas nas alíneas do citado preceito legal e que deva, por isso, ser considerado em sede de factos provados, como foi, na medida em que, só a enumeração destes deve constar da sentença, conforme impõe o artigo 374º nº 2 do mesmo código.
Procede, pois, o recurso no que à impugnação ampla da matéria de facto concerne e, tendo em conta quer o teor da pronúncia, quer a decisão supra sobre a correção de lapso de escrita e o mencionado sobre o ponto 9. dos factos provados, a matéria de facto assente e a considerar é a seguinte:
«1. O arguido, AA, exerceu funções de presidente de Junta de Freguesia ... no mandato de 2009 a 2013 e no mandato de 2013 a 2017.
2. Aquando das partilhas feitas no processo de inventário n.ᵒ 723/07...., que correu termos no 2.ᵒ Juízo do Tribunal Judicial ..., relativamente à herança dos pais do aqui arguido, HH e II, foi decidido que o jazigo da família, registado na Junta de Freguesia ... com o n.ᵒ J4, fosse atribuído ao irmão do arguido, JJ.
3. Nesse jazigo, estava sepultado o corpo da mulher do aqui arguido, II, falecida a 28-06-2010.
4. Por sua vez, foi autorizado pelo Executivo (do qual o arguido fazia parte) a permuta de sepulturas entre a assistente e KK (registado na ata n.ᵒ 48 de 27-04-2012), tendo sido realizado um contrato de permuta da sepultura, registado na ata n.ᵒ 49 de 25-05-2012, em que KK cedeu as sepulturas n.ᵒˢ 244 e 246, em troca da sepultura n.ᵒ 213, propriedade da assistente.
5. Além disso, foi realizado um outro contrato de permuta, desta feita da sepultura n.ᵒ 245, pertença de LL, o qual foi registado na ata n.ᵒ 51 de 2012 de 27-07-2012, onde este cedeu a referida sepultura em troca da sepultura n.ᵒ 228, propriedade da assistente.
6. Tais ações tiveram como finalidade que as sepulturas n.ᵒˢ 244 e 245 fossem posteriormente adquiridas pelo arguido para a construção de um jazigo.
7. O arguido comprou as sepulturas n.ᵒˢ 244 e 245, tendo tal acto sido registado na ata n.ᵒ 52 de 2012, realizada no dia 31-08-2012, sendo emitido o alvará de concessão de terreno no cemitério da ..., a que foi atribuído o n.ᵒ 261.
8. Foi aprovado pelo Executivo do qual o arguido era o presidente, o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2011, datado de 22-04-2010, bem como o Regulamento e Tabela de Taxas em vigor no ano de 2012, datado de 23-042012, tendo os valores relativos àquelas taxas permanecido inalterados.
9. O arguido pagou o valor de 750,00 EUR (setecentos e cinquenta euros) relativo à compra dessas duas sepulturas com 4 m2, valor previsto na referida Tabela de Taxas de 2012, no valor de 187,50 EUR (cento e oitenta e sete euros e cinquenta cêntimos)/m2, sendo que, mesmo antes da entrada em vigor de tal regulamento as sepulturas eram vendidas pela Junta.
10. Em data não concretamente apurada, mas posteriormente à aquisição das sepulturas, e antes de 15-11-2012, o arguido construiu nessas um jazigo (que viria a ser registado como jazigo n.ᵒ J7 na Junta de Freguesia ...).
11. Não existe requerimento do arguido, nem autorização da assistente, para a construção do referido jazigo, do mesmo modo que não foi liquidada a taxa de construção do mesmo.
12. No dia 15-11-2012, foi requerida pelo arguido a trasladação do corpo da sua falecida esposa, do jazigo n.ᵒ J4 para o jazigo entretanto contruído no local das sepulturas adquiridas sob os n.ᵒˢ 244 e 245, agora registado com o n.ᵒ J7 na assistente.
13. Tal pedido foi deliberado pelo Executivo no «Ponto 4 – Requerimento para Trasladação» da ordem de trabalhos, na reunião ordinária da Junta de Freguesia ..., registada na ata n.ᵒ 55 de 2012 de 30-11-2012.
14. A trasladação do corpo de II foi efetuada no dia 08-02-2013 para este «novo» jazigo.
15. À data da construção do jazigo J7, era exigida uma taxa de construção pela assistente de 300,00 EUR (trezentos euros) o m2., que o arguido não pagou nem lhe foi solicitada.
17. Não foi preenchido o averbamento no alvará de concessão de sepultura.
18. O Arguido não pagou a taxa mencionada em 15., aproveitando-se das suas funções de Presidente da Junta
19. O arguido sabia que aquela taxa para construção do jazigo era devida.
20. O arguido permitiu ainda que o direito de liquidar a taxa referida haja caducado.
21. O arguido, como titular de cargo político e aproveitando-se do mesmo, em tudo agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
22. O arguido não tem antecedentes criminais;
23. Colhe-se do relatório da DGRSP que:
a) - O arguido provém de um agregado familiar estruturado aos vários níveis, referindo uma dinâmica sociofamiliar pautada pelos valores educativos transmitidos pelos progenitores e que tem de referência a todos os níveis.
b) AA concluiu o ensino regular em idade própria, integrando o serviço militar aos 19 anos.
c) Após regressar à vida civil, o arguido inicia atividade como professor do ensino básico, profissão que desenvolveu até à aposentação em 2008.
d) AA contraiu matrimónio com II em 1970. Do matrimónio resultam dois filhos, MM e NN, de 52 e 47 anos respetivamente. Ambos os filhos mantêm relação próxima e de entreajuda com o arguido, com quem privam regularmente.
e) Atualmente o arguido já não exerce cargos políticos tendo deixado de ser presidente de Junta em 2017.
f) Ocupa maioritariamente o seu quotidiano numa propriedade na ..., onde desenvolve trabalhos agrícolas, essencialmente como forma de ocupação do tempo, privilegiando a companhia familiar e de amigos próximos.
g) Apresenta uma condição socioeconómica estruturada. Aufere um rendimento mensal aproximado de 2500,00€ (constituído pela sua reforma e pensão de viuvez).
h) AA não apresenta especiais necessidades de reinserção.»
Em face desta alteração da matéria de facto, resultante da procedência da impugnação ampla levada a cabo pela Recorrente, resultam sanados os vícios acima dados por verificados, concretamente, o vício de contradição insanável entre fundamentação e entre fundamentação e decisão [artigo 410º nº2 alínea b) do Código de Processo Penal] e o vício de erro notório na apreciação da prova [artigo 410º nº2 alínea c) do Código de Processo Penal].
***
Tendo presente a matéria de facto agora fixada, sem outras considerações, por inúteis, remetendo, nesta parte, para o que vem dito quer no acórdão em crise, quer na decisão instrutória sobre os elementos constitutivos do tipo legal de crime de prevaricação, conclui-se pelo preenchimento de todos eles.
Com efeito, estabelece o artigo 11º da Lei nº 34/87 de 16-07 que:
“O titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos.”
O arguido, no exercício do seu mandato de Presidente da Junta de Freguesia ... (sendo, por isso, titular de cargo político) pretendendo construir um jazigo e sabedor, em virtude daquelas suas funções, que existia um procedimento administrativo (requerimento de autorização para a construção e pagamento de uma taxa) legalmente previsto para o efeito, decidiu contra direito, construir esse jazigo, omitindo a sujeição àquele procedimento, eximindo-se ao pagamento da respetiva taxa, em tudo atuando conhecedor de que, assim agindo, violava o regulamento em vigor, tudo, com o objetivo, conseguido, de obter benefício (não pagamento da taxa devida, no valor de €1 200,00), causando à assistente o correspetivo prejuízo.
Permitiu, ademais, com a mesma consciência e vontade e servindo-se do cargo que exercia, que o direito da assistente de liquidar a taxa referida caducasse, como caducou.
Mostram-se, pois, preenchidos os elementos objetivo e subjetivo constitutivos do tipo legal de crime por que o arguido vinha pronunciado.
Aqui chegados, em obediência ao decidido no AUJ n.º4/2016[12] que fixou jurisprudência no sentido de que «Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a Relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, nº 3, al. b), 368º, 369º, 371º, 379º, nº 1, al. a) e c), primeiro segmento, 424º, nº 2, e 425º, nº 4, todos do Código de Processo Penal», importa agora proceder à determinação da espécie e medida da pena.
Na verdade, consideramos que o processo contém todos os elementos necessários a tal determinação, pois que, foram minimamente apuradas as condições de vida do arguido e constam dos autos os seus antecedentes criminais.
Passamos, então, a escolher e determinar a medida concreta da pena.
O crime de prevaricação previsto no artigo 11º da Lei nº34/87 de 16-07, é punido com pena de prisão de dois a oito anos.
Face ao disposto no artigo 70º do Código Penal, dever-se-á optar pela aplicação de pena não privativa da liberdade sempre que determinado ilícito for punível com pena privativa e não privativa, em alternativa, desde que com tal pena se realizem as finalidades da punição.
Ora, no caso sub judice, não está prevista esta alternativa, pelo que, não há que proceder a tal ponderação e escolha.
A medida da pena é fixada nos termos do artigo 71º nºs 1 e 2 do Código Penal, sendo que a pena concreta é sempre limitada no seu máximo pela medida da culpa, limite este inultrapassável.
Como refere Figueiredo Dias[13], “dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas do ordenamento jurídico”.
Nos presentes autos, o quadro relevante é o que segue:
- As exigências de prevenção geral de integração são de nível médio uma vez que este tipo de conduta, embora não tenha contornos de grande gravidade, é geradora de censura atenta a grande mediatização que atualmente é feita de casos deste tipo, carecendo a norma violada de algum reforço.
- A mediana ilicitude dos factos, revelada na circunstância de a conduta do arguido ter causado um prejuízo de apenas €1 200,00 à Assistente, não podendo, contudo, ignorar-se que o que está em causa é a “necessidade de assegurar aos cidadãos que qualquer serviço que envolva a prestação de uma atividade pública funciona de acordo com a lei, respeitando o ordenamento jurídico, sendo eficaz na sua atuação. É a confiança dos cidadãos nas instituições públicas e a credibilidade destas, que desta forma também se salvaguardam, garantindo-se para o efeito a fidelidade à lei e ao direito jo exercício de funções públicas”[14].
- A intensidade do dolo, que é direto (forma mais grave de culpa).
- A conduta anterior aos factos que, não tendo o arguido antecedentes criminais e tendo mais de 70 anos de idade, se revela conforme ao direito.
- A situação pessoal [atualmente já não exerce cargos políticos tendo deixado de ser presidente de Junta em 2017; ocupa maioritariamente o seu quotidiano numa propriedade na ..., onde desenvolve trabalhos agrícolas, essencialmente como forma de ocupação do tempo, privilegiando a companhia familiar e de amigos próximos; apresenta uma condição socioeconómica estruturada; aufere um rendimento mensal aproximado de 2500,00€ (constituído pela sua reforma e pensão de viuvez)] e o seu percurso de vida [Provém de um agregado familiar estruturado aos vários níveis, referindo uma dinâmica sociofamiliar pautada pelos valores educativos transmitidos pelos progenitores e que tem de referência a todos os níveis; concluiu o ensino regular em idade própria, integrando o serviço militar aos 19 anos; após regressar à vida civil, inicia atividade como professor do ensino básico, profissão que desenvolveu até à aposentação em 2008; contraiu matrimónio com II em 1970 do qual resultam dois filhos, MM e NN, de 52 e 47 anos respetivamente, sendo que, ambos mantêm relação próxima e de entreajuda com o arguido, com quem privam regularmente].
Atento o exposto, consideramos adequado condenar o arguido na pena de prisão de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses.
Aqui chegados, importa ponderar se devem ser aplicadas penas de substituição.
Estabelece o artigo 50º do Código Penal:
“1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 - Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5 - O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.”
Constitui pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão a existência de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido. E, tal como refere o Professor Figueiredo Dias[15] “na formulação do aludido prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto.”
São finalidades de prevenção especial de socialização que estão na base da suspensão da execução da pena de prisão: a finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto consiste no “afastamento do delinquente, no futuro da prática de novos crimes e não qualquer correcção”, “decisivo é aqui o conteúdo mínimo da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência”[16]
No caso do arguido, considerando os factos constantes destes autos, nomeadamente que não tem antecedentes criminais e que já não exerce cargos políticos, bem como a circunstância decorrente da sua situação atual e percurso de vida que levou a que se considerasse no relatório da DGRSP que “não apresenta especiais necessidades de reinserção”, entende este Tribunal que, nestas circunstâncias, não pode deixar de fazer um juízo de prognose favorável.
Atento o exposto, consideramos ser de suspender a pena de prisão aplicada, pelo período de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses.
III. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal em:
A) - Julgar procedente o recurso e, em consequência:
- Nos termos do disposto no artigo 380º do Código de Processo Penal, determinar a correção de lapso de escrita constante do ponto 16. dos factos provados elencados no acórdão em recurso, por forma a que onde consta: «jazigo J4», dever constar, «Jazigo J7».
- Modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos seguintes termos:
. eliminar o ponto 9. da matéria de facto provada;
. eliminar do elenco dos factos não provados a matéria ali descrita sob as alíneas a) a d), fazendo constar tal matéria do elenco dos factos provados.
B) - Revogar o acórdão recorrido na parte em que absolveu o arguido AA da autoria do crime de prevaricação, previsto e punido pelo art.º 11º da Lei n.º 34/87, de 16/07.
C) - Condenar o mesmo arguido AA pela prática de um crime de prevaricação, previsto e punido pelo art.º 11º da Lei n.º 34/87, de 16/07, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
Sem custas.
Coimbra, 05-02-2025
Os Juízes Desembargadores
Fátima Sanches (relatora)
Helena Lamas (1ª Adjunta)
Teresa Coimbra (2ª Adjunta)
(data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)
[1] Neste sentido, vd. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95, proferido pelo Plenário das Secções Criminais do STJ em 19 de outubro de 1995, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995, que fixou jurisprudência no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
[2] In “Revista Portuguesa de Ciência Criminal” Ano 4, 1994, pgs. 118/123.
[3] In “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 3ª ed., pág. 895.
[4] Prolatado no âmbito do processo nº88/09.9PESNT.L1.S1, Relator: Cons.º Souto de Moura, acessível in www.dgsi.pt
[5]Prolatado no âmbito do processo nº 72/11.2GDSRT.C1, Relator: Fernando Chaves, acessível em www.dgsi.pt
[6] Prolatado no âmbito do processo nº 3793/09.6TDLSB.L1-9, Relator: Francisco Caramelo, acessível em www.dgsi.pt,
[7] Prolatado no âmbito do processo nº06P1188, Relator: Cons.º Soreto de Barros, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[8] Prolatado no âmbito do Processo nº687/13.4GBVLN.P1.S1 5.ª Secção, Relator: Cons.º Souto de Moura, publicado in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de acórdãos)
[9] Obra citada, página 29.
[10] Castanheira Neves, citado por Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal I, pág.85.
[11] In http://www.dgsi.pt/jstj. – Processo nº405/14.0JACBR.C1.S1 – Relator: Santos Cabral.
[12] Publicado em Diário da República nº36, Série I de 22/2/2016.
[13] In “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra, 2001, pág. 105.
[14] Cfr. Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias, in “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, Volume I, Universidade Católica Editora, Lisboa 2010, página 751
[15] In “Direito Penal Português – as consequências jurídicas do crime”, pág. 343.
[16] Figueiredo Dias, op. cit.