VALORAÇÃO DAS DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA/FACTOS ALEGADOS NA CONTESTAÇÃO E FALTA DE EXAME CRÍTICO DA PROVA
EXCESSO DE PRONÚNCIA COM VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
EXCESSO DE PRONÚNCIA - PEDIDO DE ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO OFICIOSA NOS TERMOS DO DISPOSTO NO ART. 82º A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário

I - Para além dos factos essenciais, também os factos circunstanciais ou instrumentais, alegados na contestação, mas que sejam relevantes para a prova, ou para que não se provem, os factos probandos descritos na acusação, devem ser objeto de pronúncia por parte do Tribunal e não o fazendo existe omissão de pronúncia que fere a sentença de nulidade (art. 379º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal.
II – Homologada prévia desistência de queixa apresentada pela ofendida, por factos que foram qualificados pelo Ministério Público como integrantes de um crime de ofensa à integridade física, com o consequente arquivamento dos autos, tal factualidade não pode ser de novo valorada, agora, para efeito de poder ser o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica.
III – Valorando a sentença recorrida tais factos viola o princípio ne bis in idem o que a torna nula por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 379.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Penal.
IV- A tomada de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável em situações de violência doméstica é a regra (art.º 33.° n.°1 da Lei 112/2009, de 16 de setembro e art. 24º, nº 6 da lei nº 130/2015 de 4 de setembro).
V – Sendo as declarações para memória futura uma antecipação da audiência impõe-se a observância de todas as regras a estas atinentes, incluindo naturalmente a advertência, prevista no art. 134º, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal que no caso foi cumprido.
VI - Tendo a testemunha sido advertida nesse momento, não pode mais tarde invalidar essa mesma prova afirmando, quando chamada a julgamento, na qualidade de testemunha arrolada pela defesa, que não pretende prestar declarações.
VII - Essa sua manifestação de vontade poderá impedir a prova de alguns factos a que eventualmente poderia responder, no âmbito da matéria da contestação, mas não terá a virtualidade de destruir retroativamente a prova que foi validamente produzida e adquirida em antecipação do julgamento, com o cumprimento de todas as formalidades previstas na lei.
VIII - O art.º 356.º do CPP não contém qualquer referência ao art.º 24.º do Estatuto da Vítima, legislação especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6.
IX - Dado o caráter subsidiário da reparação oficiosa da vítima por via do artigo 82º-A do Código de Processo Penal, tendo sido deduzido pela demandante pedido de indemnização civil, a reparação dos danos eventualmente causados pela conduta do arguido será apreciada e decidida no âmbito do pedido formulado, cessando a aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, cuja apreciação que se torna supervenientemente impossível de conhecer nos termos do disposto no art. 277º, al. e) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 4º do Código de Processo Penal.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

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Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:


I – RELATÓRIO

I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 57/21.0 GACDR.C2 que corre termos pelo Juízo de Competência Genérica de Castro Daire, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, a 13 de junho de 2024, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo [transcrição]:

“VI – DECISÃO

Nestes termos o Tribunal decide:

1. ABSOLVER a arguida AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1 do Código Penal;

2. ABSOLVER a arguida AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180.º, n.º 1 do Código Penal.

3. CONDENAR o arguido BB pela prática, em autoria material de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea a), nº 4 e 5 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;

4. SUSPENDER a execução da pena identificada em 1. por 2 (dois) anos e 6 (seis) meses subordinada às seguintes regras de conduta:

a. a proibição de contactos com a vítima, por qualquer meio (incluindo contactos telefónicos, por telemóvel e através da internet), e de se deslocar à residência da mesma;

b. a frequência de entrevistas/sessões com o técnico de reinserção social, orientadas no sentido de o arguido interiorizar o desvalor da sua conduta, com vista a evitar a prática de novos factos, em moldes a definir pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais;

c. a colaboração com os técnicos de reinserção social na execução do plano que vier a ser elaborado, prestando todas as informações solicitadas, respondendo às convocatórias e recebendo as visitas que aqueles entendam necessárias e pertinentes; e

d. pagamento da indemnização arbitrada à vítima em 5. a comprovar nos autos nos primeiros seis meses da suspensão.

5. ARBITRAR a reparação oficiosa à vítima AA que se fixa em €1.000,00 (mil euros) a pagar nos primeiros seis meses do período da suspensão, comprovando tal pagamento nos autos nos primeiros 6 (seis) meses;

6. ABSOLVER a demandada AA do pedido de indemnização civil contra si deduzido.

7. CONDENAR o demandado BB a pagar ao demandante AA a quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, à qual acrescem juros de mora à taxa legal contados desde a condenação até efetivo e integral pagamento.

8. CONDENAR o arguido BB nas custas criminais do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (duas unidades de conta) - artigos 513.º e 514.º, do Código do Processo Penal e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, com referência ao artigo 8.º, n.º 9 do mesmo diploma.


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I.1 - Recurso da decisão

Inconformado com tal decisão dela interpôs recurso para este Tribunal da Relação, o arguido BB, com os fundamentos expressos nas motivações do qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:

“I      A convicção do Tribunal a quo para dar os factos como provados alicerçou-se essencialmente nas declarações da alegada vítima AA, bem como da filha do ex-casal prestadas em sede de declarações para memória futura.

II       A testemunha CC, filha do ex-casal, compareceu em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, na qualidade de testemunha, sendo que, advertida do direito de se recusar a depor como testemunha, nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do art. 134.º, a mesma optou por exercer esse direito

III      No caso em apreço, inexistiu qualquer oposição – por parte da Assistente/alegada vítima, do Ministério Público ou do Tribunal - à prestação de declarações por parte da testemunha CC, nomeadamente em virtude de já ter prestado declarações para memória futura, nem tão-pouco foi alegado ou conjeturado que a sua prestação em sede de audiência de discussão e julgamento pusesse em causa a sua saúde física ou psíquica, nem tão-pouco foi arguida qualquer irregularidade ou ilegalidade relativamente à notificação para prestar depoimento e à sua presença na qualidade de testemunha em sede audiência de discussão e julgamento, antes foi admitida sem qualquer oposição. nem a testemunha referiu que mantinha as declarações já prestadas.

IV     Simplesmente referiu a testemunha que, tendo o direito de não prestar depoimento (nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 134.º do C.P.P., naturalmente), não pretende prestar declarações, e quer remeter-se ao silêncio.

V      Ao Tribunal a quo estava vedada a apreciação das declarações para memória futura prestadas pela testemunha CC, pelo que, ao ter apreciado e considerado na Sentença proferida as declarações para memória futura da testemunha CC, estamos perante a nulidade de sentença, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do C.P.P..

VI     Nessa senda, o Tribunal a quo violou os artigos 134.º, n.º 1, al. a), 271.º, n.º 8, e 356.º, n.º 6, todos do C.P.P., e art. 33.º, n.º 7, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, pois que numa correta aplicação do direito, nunca poderiam as declarações para memória futura prestadas pela testemunha CC ser consideradas como meio de prova na Sentença proferida pelo Tribunal a quo.

VII    Estamos ainda perante erro notório na apreciação da prova, porquanto do próprio texto da decisão recorrida ressalta, com patente evidência, que o Tribunal a quo valorizou prova contra critérios legalmente fixados, designadamente por ter assentado convicção quanto à quase totalidade dos factos julgados provados na valoração de prova proibida.

VIII  Pelo que deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que não considere as declarações para memória futura prestadas pela testemunha CC, o que se Requer a V. Exas. seja determinado, o que, em ´última instância, determina seja o Arguido BB absolvido dos presentes autos, quer em matéria penal, quer em matéria civil.

IX     Os factos vertidos nos referidos pontos 42., 43. e 44 dos factos dados como provados foram objeto de investigação no processo n.º 127/16...., o qual foi arquivado por despacho datado de 11/07/2017, na sequência da homologação da desistência de queixa por parte da Assistente/alegada ofendida AA, e consequente extinção do procedimento criminal.

X      Não obstante tais factos serem falsos, certo é que os mesmos já foram objeto de procedimento criminal autónomo, na sequência de cuja apreciação pelo titular do inquérito foi declarado extinto em face da desistência de queixa efetuada pela Arguida AA e respetiva qualificação dos factos, sendo que tal despacho não objeto de impugnação, estabilizando-se no ordenamento jurídico.

XI     Não pode, pois, agora, vir o Tribunal “ressuscitar” os factos que foram objeto de arquivamento, na sequência da homologação da desistência de queixa, à luz do enquadramento factual, anulando toda e qualquer certeza e segurança no ordenamento jurídico, e violando de forma flagrante o caso julgado e a garantia constituição ne bis in idem, ínsito no art. 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

XII    A proibição do ne bis in idem corresponde a uma manifestação substantiva daquele princípio do caso julgado, enquanto garantia básica de que ninguém pode ser submetido a um processo duas vezes pelo mesmo facto, seja de forma simultânea ou sucessiva.

XIII   E não podemos deixar de frisar que tais factos ocorreram mais de 4 anos antes dos primeiros factos que o Tribunal a quo deu como provados, pelo que, com o devido respeito, nunca poderiam os mesmos consubstanciar uma conduta continuada dentro do hiato temporal em causa nos presentes autos, ou seja, um evento ocorrido fora do “pedaço de vida” em análise nos presentes autos, existindo um vazio claro entre tal período e o dia 24/12/2020, pelo que nunca poderia o mesmo integrar a prática do “mesmo crime”.

XIV  Ao ter dado como provado os factos vertidos em 42., 43. e 44., o Tribunal a quo violou, além do mais, o n.º 5 do art. 29.º da CRP, o art. 143.º, n.º 1 e 181.º, n.º 1, 116.º, n.º 1 e n.º 2, e 152.º, todos do C.P., e arts. 48.º, 49.º e 51.º e 277.º, todos do C.P.P., sendo a Sentença proferida pelo Tribunal a quo nula, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do C.P.P..

XV   Numa correta aplicação do direito, e em cumprimento do principio ne bis in idem nunca deveriam tais factos ser dados como provados, antes sim deverão tais factos ser eliminados da douta sentença, o que se Requer a V. Exas. Venerandos Desembargadores seja determinado.

XVI  No âmbito de um julgamento pela prática de um crime de violência doméstica, é obrigatório o arbitramento de uma compensação à respetiva vítima sem que seja necessário que estejam verificados os pressupostos previstos no art. 82.º-A.

XVII Não obstante este arbitramento de compensação não deixa de ter carácter subsidiário em relação ao pedido de indemnização civil formulado pela lesada, conforme decorre, do seu n.º 1, sendo, ilegal o arbitramento cumulativo de quantias fixadas no âmbito de um e outro instituto

XVIII           Considerando que pela Assistente/alegada Vítima foi deduzido PIC (e que, inclusive, foi o Arguido aqui Recorrente condenado pelo Tribunal a quo, na qualidade de demandado, “a pagar ao demandante AA a quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, à qual acrescem juros de mora à taxa legal contados desde a condenação até efetivo e integral pagamento”, claro está que não podia o Tribunal a quo arbitrar a reparação oficiosa, cumulando com o valor do PIC.

XIX  Ao arbitrar a reparação oficiosa nos termos em que fez, na sequência de PIC deduzido pela Assistente, estamos perante a nulidade de Sentença, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do C.P.P., e o Tribunal a quo violou o artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, os n.ºs 1 a 3 do art. 82.º-A do C.P.P., bem como os arts. 72.º e 77 do C.P.P..

XX   Pois que, numa correta aplicação do direito e dos citados normativos, ao ter sido formulado o PIC pela demandante, e nomeadamente ao ter proferido decisão (condenatória) quanto ao mesmo, estava vedado ao Tribunal a quo ter arbitrado uma qualquer quantia a título de reparação oficiosa.

XXI  Pelo que, à luz da legislação aplicável, deverá ser tal reparação oficiosa arbitrada à alegada vítima eliminada da Sentença, ou ser o Demandando BB absolvido da mesma, o que se Requer a V. Ex.ª seja determinado.

XXII Não consta da douta Sentença a panóplia de contradições e mentiras detetadas no depoimento da Arguida AA, que relevam de forma essencial para apreciar a sua credibilidade, sob pena de “acreditar em todas as mentiras que não forem apanhadas”, apenas e só porque estaremos perante uma prova diabólica, uma contra-prova impossível e, dessa forma, ilegal.

XXIII            E, sendo um depoimento interessado e parcial, o mesmo apenas e só deverá ser considerado caso se verifique ser um depoimento isento, verdadeiro e, dessa forma, merecedor de credibilidade.

XXIV           As contradições e mentiras detetadas no depoimento da Arguida AA, atenta a matéria em causa nos presentes autos e o que é factualmente possível “apanhar”, consistem no facto de a mesma alegar nunca injuriar o Arguido BB, ou discutir fora de casa, exceto em resposta/retaliação, bem como no facto de não existir qualquer amante em momento prévio aos factos ocorridos no dia 14/11/2022, e o facto de ter medo deste.

XXV Afigura-se-nos assim, de forma clara, notória e inequívoca, em face dos depoimentos prestados pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha FF, e pela testemunha GG, acrescem ainda as mensagens de texto inc. como Doc.3 do requerimento apresentado por BB em 19/05/2021, no proc. 447/21.... (Apenso A dos presentes autos), inc. a fl.s 9 e 11 do Apenso A, bem como print das mensagens inc. a fls 250 a 468 e 590 a 684 dos autos, que a Arguida AA mentiu, sendo certo que injuriou o Arguido BB nos termos descritos, bem como que não tinha receio do mesmo, adotando sim inclusive postura agressiva para com este.

XXVI           Afigura-se-nos assim, de forma clara, notória e inequívoca, atentos os depoimentos prestados pelos Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha HH e pela testemunha II que a testemunha II, com quem assumiu publicamente a relação em dezembro de 2022 e com quem começou a viver em união de facto em Janeiro de 2023.

XXVII          Sendo um atentado às regras de experiência comum que a Arguida AA viva em união de facto, na companhia da sua filha menor, com um homem com quem inicia uma relação um mês antes, e após terminar uma relação de, pelo menos, vinte e dois anos….

XXVIII        É claro, notório e inequívoco, atento o relatório inc. a fls. 473 e 474 dos presentes autos, bem como esclarecimentos prestados pela Perita responsável pela sua elaboração, Dr.ª JJ, e depoimento da testemunha KK, que a testemunha II mentiu, não merecendo o seu depoimento qualquer credibilidade

XXIX           É claro, notório e inequívoco, atento o relatório inc. a fls. 473 e 474 dos presentes autos, bem como esclarecimentos prestados pela Perita responsável pela sua elaboração, Dr.ª JJ, e pelo depoimento da testemunha KK, bem como pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha HH, pela testemunha II, bem como pela Arguida AA, que a testemunha LL mentiu, não merecendo o seu depoimento qualquer credibilidade.

XXX Atento o relatório inc. a fls. 473 e 474 dos autos, depoimentos prestados pelos Arguidos AA e BB, pelas testemunhas DD, EE, KK e MM, bem como esclarecimentos prestados pela Dr.ª JJ, se conclui facilmente que o problema de saúde de que a Arguida AA padece e o respetivo medicamento que toma – varfine – determina que a mesma fique muito facilmente com lesões visíveis, sem que seja preciso muita força ou grande impacto, e que as mesmas demoram mais tempo a sarar, em relação a uma pessoa que não tome tal medicamento.

XXXI           Quanto ao alegado episodio ocorrido no dia 24/12/2020, apenas os Arguidos se pronunciaram quanto ao alegado episódio ocorrido neste dia, sendo que, por um lado, a versão apresentada pela Arguida AA não merece qualquer credibilidade, nos termos já devidamente exposto em supra A.6.1) e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, e sob pena de se acreditar nas mentiras nas partes das versões apresentadas que não permitem contraprova, para além das declarações do Arguido.

XXXII          À luz da prova produzida nos presentes autos, nomeadamente a falta de credibilidade a atribuir ao depoimento prestado pela Arguida AA, tendo em consideração os depoimentos prestados pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha FF, pela testemunha HH, pela Testemunha II e pela testemunha GG, mensagens de texto inc. como Doc.3 do requerimento apresentado por BB em 19/05/2021, no proc. 447/21.... (Apenso A dos presentes autos), inc. a fl.s 9 e 11 do Apenso A, bem como print das mensagens inc. a fls 250 a 468 e 590 a 684 dos autos, bem como a versão apresentada pelo Arguido BB, claro está que inexiste matéria de facto que permita dar como provado os factos dados como provados em 5, 6 e 7 dos factos dados como provados.

XXXIII         À luz de uma análise criteriosa e objetiva da prova produzida, nomeadamente a acima mencionada, e ainda considerando o princípio in dubio pro reo, deveria o Tribunal ter dado como não provado os factos dados como provados em 5, 6 e 7.

XXXIV        Ao não o ter feito, violou o Tribunal a quo o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência, ínsito no n.º 2 do art. 32.º da C.R.P., pelo que deve ser revogada a Sentença  a quo e substituída por outra que julgue não provados os factos dados como provados em n.ºs 5, 6 e 7, o que se Requer a V. Exas. seja determinado, o que, em última instância, determina seja o Arguido BB absolvido dos presentes autos, quer em matéria penal, quer em matéria civil.

XXXV         Quanto ao alegado episódio ocorrido no dia 09/05/2021, A versão apresentada pela Arguida AA não merece qualquer credibilidade, nos termos já devidamente exposto em supra A.6.1) e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, e sob pena de se acreditar nas mentiras nas partes das versões apresentadas que não permitem contraprova, para além das declarações do Arguido, nem tão pouco tais factos foram sequer narrados pela Arguida AA, ou por qualquer outra, antes pelo contrário, desde logo quanto à matéria descrita nos pontos 11. e 17.dos factos dados como provados.

XXXVI        À luz da prova produzida nos presentes autos, nomeadamente a falta de credibilidade a atribuir ao depoimento prestado pela Arguida AA, tendo em consideração os depoimentos prestados pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha FF, pela testemunha HH, pela Testemunha II e pela testemunha GG, mensagens de texto inc. como Doc.3 do requerimento apresentado por BB em 19/05/2021, no proc. 447/21.... (Apenso A dos presentes autos), inc. a fl.s 9 e 11 do Apenso A, bem como print das mensagens inc. a fls 250 a 468 e 590 a 684 dos autos, bem como a versão apresentada pelo Arguido BB, claro está que inexiste matéria de facto que permita dar como provado os factos dados como provados em 8 a 17 dos factos dados como provados.

XXXVII       À luz de uma análise criteriosa e objetiva da prova produzida, nomeadamente a acima mencionada, e ainda considerando o princípio in dubio pro reo, deveria o Tribunal ter dado como não provado os factos dados como provados de 8 a 17.

XXXVIII     Ao não o ter feito, violou o Tribunal a quo o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência, ínsito no n.º 2 do art. 32.º da C.R.P., pelo que deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que julgue não provados os factos dados como provados em n.ºs 8 a 17, o que se Requer a V. Exas. seja determinado, o que, em última instância, determina seja o Arguido BB absolvido dos presentes autos, quer em matéria penal, quer em matéria civil.

XXXIX        Quanto ao alegado episódio ocorrido no dia 14/11/2022, apenas os Arguidos se pronunciaram quanto ao alegado episódio ocorrido neste dia, sendo que, por um lado, a versão apresentada pela Arguida AA não merece qualquer credibilidade, nos termos já devidamente exposto em supra A.6.1) e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, e sob pena de se acreditar nas mentiras nas partes das versões apresentadas que não permitem contraprova, para além das declarações do Arguido.

XL    À luz da prova produzida nos presentes autos, nomeadamente a falta de credibilidade a atribuir ao depoimento prestado pela Arguida AA, tendo em consideração os depoimentos prestados pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha FF, pela testemunha HH, pela Testemunha II e pela testemunha GG, mensagens de texto inc. como Doc.3 do requerimento apresentado por BB em 19/05/2021, no proc. 447/21.... (Apenso A dos presentes autos), inc. a fl.s 9 e 11 do Apenso A, bem como print das mensagens inc. a fls 250 a 468 e 590 a 684 dos autos, bem como a versão apresentada pelo Arguido BB, claro está que inexiste matéria de facto dados como provados.

XLI   Pois que, à luz de uma análise criteriosa e objetiva da prova produzida, nomeadamente a acima mencionada, e ainda considerando o princípio in dubio pro reo, deveria o Tribunal ter dado como não provado os factos dados como provados de 18 a 36.

XLII Ao não o ter feito, violou o Tribunal a quo o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência, ínsito no n.º 2 do art. 32.º da C.R.P..

XLIII            A esta matéria acresce ainda o facto de que, tal como devidamente exposto quanto ao problema de saúde de que a Arguida AA padece e da medicação que toma, mais concretamente em A.6.4) do presente recurso, temos que é completamente contrário às regras da experiência comum, contrariando com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, que se os factos tivessem ocorridos nos termos descritos na douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, a Arguida AA apenas e só tivesse as lesões que apresentou e que se encontram comprovadas.

XLIV           Sendo que a própria perita explicou que as mazelas que tinha eram compatíveis com uma tentativa de imobilização, a qual foi devidamente explicada pelo Arguido BB.

XLV Não se compreende como, bom base nas lesões apresentadas e problema de saúde da Arguida AA, pôde o Tribunal a quo ter dado como provado, única e exclusivamente no depoimento da Arguida AA, que, por ex., “Ato contínuo, BB colocou-se sobre AA, e fazendo uso da sua força, apertou-lhe o pescoço com as duas mãos (…)” e respetiva sequência (facto dado como provado em 23), que desferiu diversos empurrões, fazendo com que a Arguida AA ficasse sentada nos mesmos (factos dados como provados em 24. e 25.), que “BB aproximou-se do sofá onde AA estava sentada, levantou-a em peso e, recorrendo ao uso da força, virou-o ao contrário, fazendo com que esta última caísse no solo e o aludido sofá tombasse sobre corpo deste (facto dado como provado em 26.).

XLVI           Ao não se ter pronunciado e dado como provado que a Arguida AA tomava a medicação com Varfine, facto que determina que a mesma fique muito facilmente com lesões visíveis, sem que seja preciso muita força ou grande impacto, e que as mesmas demoram mais tempo a sarar, em relação a uma pessoa que não tome tal medicamento, por ser essencial à apreciação dos factos imputados ao Arguido BB, a Sentença proferida pelo Tribunal a quo é nula por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art.º 379.º n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, devendo ser tais factos aditados à matéria de facto dada como provada, o que se Requer a V. Exas...

XLVII          Pelo que, ao ter dado como provados tais factos, estamos ainda perante um erro notório na apreciação da prova, nos termos do da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do C.P.P., pelo que deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que julgue não provados os factos dados como provados em n.ºs 18 a 36, o que se Requer a V. Exas. seja determinado, o que, em última instância, determina seja o Arguido BB absolvido dos presentes autos, quer em matéria penal, quer em matéria civil.

XLVIII         Quanto ao alegado episódio ocorrido em julho de 2016, apenas a Arguida AA se pronunciou quanto a tais factos, e de forma completamente desprovida de assertividade ou credibilidade.

XLIX            Além de que a versão apresentada pela Arguida AA não merece qualquer credibilidade, nos termos já devidamente exposto em supra A.6.1) e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, e sob pena de se acreditar nas mentiras nas partes das versões apresentadas que não permitem contraprova, para além das declarações do Arguido

L       À luz da prova produzida nos presentes autos, nomeadamente a falta de credibilidade a atribuir ao depoimento prestado pela Arguida AA, tendo em consideração os depoimentos prestados pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha FF, pela testemunha HH, pela Testemunha II e pela testemunha GG, mensagens de texto inc. como Doc.3 do requerimento apresentado por BB em 19/05/2021, no proc. 447/21.... (Apenso A dos presentes autos), inc. a fl.s 9 e 11 do Apenso A, bem como print das mensagens inc. a fls 250 a 468 e 590 a 684 dos autos, bem como a versão apresentada pelo Arguido BB, claro está que inexiste matéria de facto que permita dar como provado os factos dados como provados em 42. a 44. dos factos dados como provados.

LI      Pois que, à luz de uma análise criteriosa e objetiva da prova produzida, nomeadamente a acima mencionada, e ainda considerando o princípio in dubio pro reo, deveria o Tribunal ter dado como não provado os factos dados como provados de 42. a 44...

LII    Ao não o ter feito, violou o Tribunal a quo o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência, ínsito no n.º 2 do art. 32.º da C.R.P..

LIII   Sendo que, quanto a este último episódio inexiste qualquer menção ao respetivo elemento subjetivo que permita que tais factos tenham qualquer relevância penal (conhecimento e vontade da realização do tipo objetivo de ilícito), pelo que, a ter considerado tais factos na condenação, para além da nulidade e ilegalidade descrita em supra A.4), estamos ainda perante o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto.

LIV  Pelo que deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que julgue não provados os factos dados como provados em n.ºs 42 a 44, o que se Requer a V. Exas. seja determinado, o que, em última instância, determina seja o Arguido BB absolvido dos presentes autos, quer em matéria penal, quer em matéria civil.

LV    Quanto ao facto dado como provado em 46, versão apresentada pela Arguida AA não merece qualquer credibilidade, nos termos já devidamente exposto em supra A.6.1) e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, e sob pena de se acreditar nas mentiras nas partes das versões apresentadas que não permitem contraprova, para além das declarações do Arguido.

LVI  Nem tão pouco tais factos foram sequer narrados pela Arguida AA, ou por qualquer outra, antes pelo contrário, desde logo quanto à matéria descrita no ponto 46 dos factos dados como provados.

LVII À luz da prova produzida nos presentes autos, nomeadamente a falta de credibilidade a atribuir ao depoimento prestado pela Arguida AA, tendo em consideração os depoimentos prestados pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha FF, pela testemunha HH, pela Testemunha II e pela testemunha GG, mensagens de texto inc. como Doc.3 do requerimento apresentado por BB em Apenso A, bem como print das mensagens inc. a fls 250 a 468 e 590 a 684 dos autos, bem como a versão apresentada pelo Arguido BB, claro está que inexiste matéria de facto que permita dar como provado os factos dados como provados em 46 dos factos dados como provados.

LVIII            Além de que não é concretizado qualquer indicação da circunstância temporal dos factos, ainda que genérica ou abstratas, pois que inexistem factos dados como provados que permitam contextualizar o alegado comportamento.

LIX   Pois que, à luz de uma análise criteriosa e objetiva da prova produzida, nomeadamente a acima mencionada, e ainda considerando o princípio in dubio pro reo, deveria o Tribunal ter dado como não provado os factos dados como provados em 46..

LX    Ao não o ter feito, violou o Tribunal a quo o princípio in dubio pro reo e da presunção de inocência, ínsito no n.º 2 do art. 32.º da C.R.P..

LXI   Pelo que deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que julgue não provados os factos dados como provados em n.º 46, o que se Requer a V. Exas. seja determinado, o que, em última instância, determina seja o Arguido BB absolvido dos presentes autos, quer em matéria penal, quer em matéria civil.

LXII O Tribunal a quo fez uma errada subsunção da factualidade provada no crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea a), nº 4 e 5 do Código Penal, para além de que a medida da pena concretamente aplicada pela prática desse crime, ultrapassa a media da culpa e as exigências de prevenção.

LXIII            Ficou também comprovado, em A.6.1), nomeadamente através dos depoimentos prestados pelo Arguido BB, pela testemunha DD, pela testemunha EE, pela testemunha FF, e pela testemunha GG, acrescem ainda as mensagens de texto inc. como Doc.3 do requerimento apresentado por BB em 19/05/2021, no proc. 447/21.... (Apenso A dos presentes autos), inc. a fl.s 9 e 11 do Apenso A, bem como print das mensagens inc. a fls 250 a 468 e 590 a 684 dos autos, que a Arguida AA não tinha medo ou receio do Arguido BB, nem tão pouco este atuava como forma de domínio ou subjugação da alegada vítima, reconduzindo-a uma vivência de medo, de tensão e de subjugação, ou sequer que a alegada vítima era uma pessoa particularmente indefesa, por se encontrar numa situação de particular vulnerabilidade e de especial incapacidade de reação relativamente às investidas do agente.

LXIV           No caso em apreço, claro está que não estamos perante uma pessoa particularmente indefesa, que se encontra numa particular vulnerabilidade e de especial incapacidade de reação relativamente às investidas do agente, ANTES PELO CONTRÁRIO!.

LXV De maneira a que, ao ter subsumido os factos imputados e dados como provados ao Arguido BB na prática de um crime de violência doméstica, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 152.º do C.P. e o disposto no n.º 1 do art. 143.º do C.P..

LXVI           Pois que, numa correta aplicação do direito, deveria o Tribunal a quo ter subsumido os factos dados como provados à prática de, no máximo, e que apenas se concede por dever de patrocínio, um crime de ofensa à integridade física simples, p.p pelo n.º 1 do art. 143.º e, bem assim, considerado a desistência de queixa efetuada pela Arguida AA e homologado a mesma, com as devidas e legais consequências daí advindas, nos termos e em conformidade com o disposto nos arts. 116.º n.º 2, 143.º n.º 2, ambos do C.P., e n.º 2 do art. 51.º do C.P.P..

LXVII          Desta forma, estamos perante insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porquanto a matéria de facto dada como provada não é possível atingir a decisão de direito a que se chegou, nos termos do disposto na al. a) do n.º 2 do art. 410.º do C.P.P..

LXVIII         Estamos ainda perante erro notório na apreciação da prova, porquanto, tendo o Tribunal dado como provado os pontos dados como provados de 48 a 52, não se compreende como pode assumir estarmos perante uma pessoa particularmente indefesa, que se encontra numa particular vulnerabilidade e de especial incapacidade de reação relativamente às investidas do agente, ou seja, que estamos perante uma vítima de violência doméstica.

LXIX            Bem como estamos perante insuficiência para a decisão de matéria de facto, pois que os factos dados como provados na douta sentença proferida pelo Tribunal a quo id. nos pontos 5 a 36, 38 a 44. e 46, não são, por si só, passíveis de consubstanciar a prática de um crime de violência doméstica, pois que a alegada aprática de tais facto, nos termos descritos na Sentença – três episódios sem grande gravidade, ocorridos ao longo de cerca de 4 anos - não atinge a gravidade exigida pela noção de maus tratos físicos ou psíquicos, prevista na incriminação pelo crime de violência doméstica.

LXX Sendo que, numa correta apreciação da prova, e atenta a matéria dada como provada, sempre deveria o Tribunal quo ter subsumido os factos dados como provados à prática de, no máximo, e que apenas se concede por dever de patrocínio, um crime de ofensa à integridade física simples, p.p pelo n.º 1 do art. 143.º e, bem assim, considerado a desistência de queixa efetuada pela Arguida AA e homologado a mesma, com as devidas e legais consequências daí advindas.

LXXI            Ao não ter feito, o Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 152.º e 143.º, ambos do Código Penal, bem como nas als. a) e c) do n.º 2 do art. 410.º do C.P.P..

LXXII          Pelo que, subsidiariamente, deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que absolva o Arguido BB dos presentes autos, pela prática de um crime de violência doméstica, p.p. pelo art. 152.º n.º 1 al. a), n.º 2 al. a), n.ºs 4 e 6, do C.P. bem como quanto ao PIC deduzido pela Arguida AA, o que se Requer a V. Exas..

LXXIII         A considerar que o Arguido deve ser condenado pela prática do crime, o que apenas se admite em termos académicos e por dever de patrocínio, sempre se dirá que, de acordo com os elementos constantes dos autos, e os factos dados como provados, que a pena aplicada se revela pouco criteriosa e desequilibradamente doseada.

LXXIV        De facto, conforme consta dos factos provados na douta Sentença, todos os factos que determinaram a condenação reconduzem-se a três episódios sem grande gravidade, ocorridos ao longo de cerca de 4 anos.

LXXV          Analisada a sentença verificamos que a única agressão imputada e dada como provada terá ocorrido no dia 14/11/2022, i.e., último dia em que Arguidos residiram e estiveram juntos.

LXXVI        O que consta da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo é tão só três discussões, em que terá havido, alegadamente, agressões no último dia em que se manteve a relação entre ambos, e da qual terá determinado 5 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho e sem afetação da capacidade de trabalho profissional.

LXXVII       Atento o disposto no art. 40.º e 71.º do Código Penal, tendo sido aplicado pelo Tribunal a quo ao Arguido uma pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensos na execução subordinado às regras de conduta descritas em 4, na mera hipótese académica que se mantenha a condenação ao Arguido BB, nunca deveria ter sido aplicada pena de prisão superior a 2 anos, por ser o limite da sua culpa e das necessidades de prevenção especial, o que se Requer a V. Ex.ª seja, subsidiariamente, aplicado,

LXXVIII      Pelo que o Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 40.º 1 71.º, ambos do C.P., pois que nunca correta aplicação das referidas normas deve ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo e substituída por outra que condene o Arguido BB em pena não superior a 2 anos, o que se Requer a V. Exas.

LXXIX         Não obstante a irrecorribilidade quanto à indemnização civil, nos termos e em conformidade com o disposto no n.º 2 do art. 400.º in fine, tendo em consideração os critérios de determinação do quantum indemnizatório, previstos nos arts. 483.º n.º 1, 484.º, 496.º n.º 1 e 494.º, todos do C.C., sempre deverá a quantia a que o Arguido BB foi condenado a pagar na sequência do PIC deduzido pela Arguida AA ser reduzida ou o mesmo absolvido, em proporção da alteração e de acordo com a alteração da matéria de facto que vier a ocorrer na sequência do presente recurso, o que se Requer a V. Ex.ª

LXXX          O Tribunal a quo violou as seguintes normas: Os arts. 48.º, 49.º, 51.º, 72.º, 77.º, 82.º-A, 134.º, n.º 1 al. a), 271.º, n.º 8, , 277.º, 356.º n.º 6, 379.º, n.º 1 al. c) e 410.º n.º 2 als. a) e c), todos do Código de Processo Penal; Os artigos 40.º, 71.º, 116.º, n.º 1 e 2.º, art. 143.º n.º 1, art. 152.º, n.ºs 1 e 2, e art. 181.º n.º 1, todos do Código Penal; Os art. 29.º, n.º 5, e art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa; O art. 33.º, n.º 7, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro; O artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.

LXXXI         Quanto ao crime de injúrias, o Tribunal decidiu pela absolvição da Arguida AA pela prática, além do mais, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria, p.p. pelo art. 181.º n.º 1 do Código Penal, bem como da respetiva indemnização civil

LXXXII       O Tribunal a quo tem na sua posse as mensagens trocadas entre Arguidos nos referidos períodos de tempo, na sequência da apreensão levada a cabo ao aparelho do Arguido.

LXXXIII      Dos factos dados como provados o Tribunal a quo não deu como provado qualquer injúria proferida pelo Arguido BB à Arguida AA em data anterior ao dia 14/11/2022.

LXXXIV     Não se compreende, pois, como é que as expressões dadas como provadas em 48 a 52 podem ter sido “num contexto de conflitualidade entre o casal”, ou que terão sido proferidas “num clima de conflitualidade permanente e, não conseguindo o Tribunal apurar quem iniciou”.

LXXXV       O Tribunal apenas não pôde tomar conhecimento de qualquer conduta ou comportamento adotado pelo Arguido BB que pudesse despoletar ou “desculpabilizar”, ou sequer minorar a ilicitude de tais condutas, apenas e só porque não existe tal conduta ou comportamento (!).

LXXXVI     Dos factos dados como provados não se compreende como é que pode o Tribunal a quo concluir que, atentas as injurias proferidas pela Arguida AA descritas nos pontos 48. a 52. dos factos dados como provados – i.e., proferidas entre os anos de 2019 e 2022 - e inexistência de qualquer ação adotada por parte do Arguido BB para despoletar, de maneira a que surgissem num âmbito de eventual reciprocidade, e bem assim de qualquer injúria proferida pelo Arguido BB em data anterior, inexista o elemento subjetivo.

LXXXVII    De acordo os factos dados como provados, entre os dias 16/11/2022 e 17/11/2022 o Arguido BB terá acusado a alegada vítima de ter amantes, de o trair, de ser uma criança, viver romances da escola com 15 anos e de ter um cérebro de canalha, de  ser uma “sem vergonha porca”, e escreveu expressões que insinuavam que AA não foi agredida por si.

LXXXVIII   Na situação descrita e comprovada nos presentes autos, em que é de conhecimento, inclusive de terceiros, que a alegada vítima mantém uma relação extraconjugal desde pelo menos outubro de 2022, referido inclusive pela alegada vítima a terceiros, e da qual o Assistente BB tem fundada convicção, não se nos afigura que, no contexto em que as referidas mensagens de texto são enviadas, e no hiato temporal em que o são, consubstanciam ou integram qualquer crime de violência doméstica, isolada ou conjuntamente, pois que o Arguido tem fundamentos sérios para, em boa fé, reputar tais imputações como verdadeiras.

LXXXIX      Sendo que, ainda que o faça de forma deselegante e de mau gosto no calor do momento, e à luz da ocorrência dos factos, considerando o seu conteúdo e o hiato temporal em que ocorreram, não se releva com a gravidade e carácter suficientemente ofensivo para ser qualificado como crime, nem tão-pouco para ser enquadrado ou fundamentar a prática de um crime de violência doméstica.

XC    Aliás, de frisar que os factos aqui em causa bem demonstram a existência de uma postura agressiva e violenta por parte da Arguida AA que o Tribunal a quo ignorou e desconsiderou de forma inexplicável, e que se encontram devidamente concretizados e contextualizados em supra A.6.1), que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, por uma questão de economia processual.

XCI   Considerado tais factos dados como provados, numa correta apreciação dos factos, de forma criteriosa e objetiva, deveria o Tribunal a quo ter condenado a Arguida AA pela prática de um crime de injúrias, p.p. pelo n.º 1 do art. 181.º do Código Penal, bem como no respetivo pedido de indemnização civil deduzido pelo Assistente/Demandante BB.

XCII Ao não o ter feito, nos termos acima descritos, estamos perante a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, bem como erro notório na apreciação da prova, e, nessa senda, violou a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo o disposto nos arts.181.º n.º 1 do C.P. e als. a) e c) do n.º 2 do art. 410.º do C.P.P..

XCIII De maneira a que deverá ser a douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo revogada e, em consequência, ser a Arguida AA condenada pela prática de um crime de injúrias, p.p. pelo n.º 1 do art. 181.º do Código Penal, bem como no respetivo pedido de indemnização civil deduzido pelo Assistente/Demandante BB, o que se Requer a V. Exas

TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADA A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA E, EM CONSEQUÊNCIA,

O RECORRENTE/ARGUIDO BB SER ABSOLVIDO PELA PRÁTICA DE UMCRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DE QUE FOI CONDENADO

Ou, caso assim se não entenda,

SER A PENA DE DOIS ANOS E SEIS MESES DE PRISÃO REDUZIDA PARA PENA NÃO SUPERIOR A DOIS ANOS, SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO

Devendo, em qualquer das situações, o pedido de indemnização ser reduzido ou excluído em conformidade com a alteração da matéria de facto e do acórdão que vier a se proferido,

Bem como,

SER A RECORRIDA/ARGUIDA AA CONDENADA PELA PRÁTICA DE UM CRIME DE INJÚRIA, P.P. PELO ART. 181.º N.º 1, DO CÓDIGO PENAL, BEM COMO NO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL DEDUZIDO PELO RECORRENTE BB

FAZENDO DESTA FORMA V. EXAS. A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!»


*

O recurso foi admitido nos termos do despacho proferido a 28.11.2024.

*

I.2 -  Respostas ao recurso:

Efetuada a legal notificação:
I.2.1- O Ministério Público respondeu ao recurso interposto apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:

“«I. Por sentença proferida no dia 14-10-2024, foi o arguido/Recorrente condenado como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, alínea a) e n.ºs 4 e 5 do Código Penal, na pena de 2 (anos) e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada às regras de conduta, subordinada às seguintes regras de conduta:

a) proibição de contactos com a vítima, por qualquer meio (incluindo contactos telefónicos, por telemóvel e através da internet), e de se deslocar à residência da mesma;

b) a frequência de entrevistas/sessões com o técnico de reinserção social, orientadas no sentido de o arguido interiorizar o desvalor da sua conduta, com vista a evitar a prática de novos factos, em moldes a definir pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais; c) a colaboração com os técnicos de reinserção social na execução do plano que vier a ser elaborado, prestando todas as informações solicitadas, respondendo às convocatórias e recebendo as visitas que aqueles entendam necessárias e pertinentes; e d) pagamento da indemnização arbitrada à vítima, AA, no valor de € 1.000,00 (mil euros) a comprovar nos autos nos primeiros seis meses da suspensão.

II. Mais foi condenado, na qualidade de demandado, a pagar à demandante AA a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, à qual acrescem juros de mora à taxa legal contados desde a condenação até efetivo e integral pagamento;

III. A arguida AA foi absolvida da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, e de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1 ambos do Código Penal;

IV. Em sede de audiência de julgamento a testemunha CC, filha do ex-casal, recusou-se validamente a depor, usando da faculdade concedida pelo artigo 134.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, pese embora, em sede de inquérito, tenha prestado declarações para memória futura;

V. No entender do Recorrente, tais declarações para memória futura não poderiam ter sido valoradas pelo Tribunal a quo atenta a recusa da testemunha em depor em sede de audiência de julgamento;

VI. As declarações para memória futura, previstas no artigo 271.º do Código de Processo Penal, constituem uma das provas basilares sobretudo quando se está perante crimes de violência doméstica, uma vez que as mesmas têm como escopo primordial evitar a presença da vítima em audiência de julgamento e a evocação por esta de factos passados e vivenciados pela mesma que lhe trazem amarguras e más recordações;

VII. Ademais, a Diretiva da PGR n.º 5/2019, de 15 de novembro obriga o Ministério Público a requerer declarações para memórias futuras das vítimas em contexto de violência doméstica, e em determinadas circunstâncias aí elencadas;

VIII. Legalmente, os artigos 67.º-A, n.ºs 1, alínea b) e 3 do Código de Processo Penal, 20.º, n.º 1 e 33.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, 21.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, preconizam a tomada de declarações para memória futura às vítimas;

IX. Revertendo ao caso concreto, a filha do ex-casal usou do “privilégio do familiar depoente”, recusando-se validamente a depor em sede de audiência de julgamento;

X. Mas não é por via de tal recusa e silêncio que deixam de ser valoradas as declarações para memória futura anteriormente prestadas em sede de inquérito;

XI. São admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei, as quais ficam sujeitas à livre valoração pelo Tribunal, atento o artigo 127.º do Código de Processo Penal;

XII. Nos termos do artigo 356.º, n.º 6 do Código de Processo Penal, “é proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor”, não se confundindo a sua leitura com a sua valoração;

XIII. Não podia o Tribunal a quo, como não o fez e bem, escudar-se no silêncio de CC para evitar valorar as declarações anteriormente prestadas em sede de inquérito e de modo válido, sob pena de serem colocados em causa a descoberta da verdade material e a conservação da prova e a própria proteção da vítima visadas pelo instituto;

XIV. Consequentemente, andou bem o Tribunal a quo ao valorar tais declarações, não padecendo a sentença recorrida de qualquer nulidade, mormente a invocada pelo Recorrente, não tendo aquele Tribunal violado quaisquer normas jurídicas, mormente as invocadas pelo Recorrente – artigos 134.º, n.º 1, alínea a), 271.º, n.º 8, e 356.º, n.º 6, todos do Código de Processo Penal e artigo 33.º, n.º 7, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro – nem a sentença recorrida padece de qualquer nulidade, designadamente a prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal;

XV. A existência de inquérito anterior no qual foram apreciados parte dos factos pelos quais foi agora o Recorrente condenado, e no âmbito do qual foi proferido despacho de arquivamento, implica que tais factos não devam ser de novo valorados e o arguido/Recorrente de novo por eles ser perseguido criminalmente, em virtude de aquele despacho de arquivamento ter adquirido a força de caso julgado, tendo sido violados o n.º 5 do art. 29.º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 143.º, n.º 1 e 181.º, n.º 1, 116.º, n.º 1 e n.º 2, e 152.º, todos do Código Penal, e artigos 48.º, 49.º e 51.º e 277.º, todos do Código de Processo Penal;

XVI. Acresce que, a sentença recorrida decidiu arbitrar a reparação oficiosa à vítima no montante de € 1.000,00 (mil euros), a pagar nos primeiros seis meses do período da suspensão, comprovando tal pagamento nos autos nos primeiros 6 (seis) meses e condenou o arguido/demandado, aqui Recorrente, a pagar à demandante a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, à qual acrescem juros de mora à taxa legal contados desde a condenação até efetivo e integral pagamento;

XVII. O instituto de arbitramento de quantia indemnizatória à vítima, previsto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal é subsidiário em relação à não dedução de pedido de indemnização por esta última;

XVIII. Em caso de condenação por crime de violência doméstica, como é o caso dos presentes autos, por força referido artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, o arbitramento de uma compensação à vítima é obrigatório e  decorre da condenação criminal, não dependendo da verificação dos pressupostos estabelecidos no referido artigo 82.º-A do Código de Processo Penal;

XIX. Pelo que, o arguido/Recorrente, no que respeita à compensação à vítima, deveria ter sido condenado no pagamento da quantia peticionada em sede de pedido de indemnização civil pela vítima, não podendo a sentença recorrida arbitrar uma determinada quantia quando existia tal pedido, assistindo-lhe, assim, razão nesta parte, tendo o Tribunal a quo violado o artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, os artigos 72.º, 77.º e os n.ºs 1 a 3 do artigo 82.º-A do Código de Processo Penal;

XX. Quanto à matéria de facto que o Recorrente impugna não lhe assiste razão;

XXI. Não existiram, e não existem, razões para retirar credibilidade aos depoimentos prestados pela vítima e, sobretudo, pelas testemunhas II e LL, os quais depuseram de forma íntegra e isenta e cujos depoimentos foram esclarecedores e consentâneos com a factualidade constante do libelo acusatório;

XXII. Não assiste razão, assim, ao Recorrente já que os factos dados como provados e aos quais o mesmo se refere encontram sustentação no rol probatório supra referido, devendo os mesmos manter-se como provados, não padecendo a sentença recorrida de qualquer censura;

XXIII. No que respeita à qualificação jurídico-penal do crime de violência doméstica, pelo qual o Recorrente foi condenado, subsumível aoartigo152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, alínea a), n.ºs 4 e 5 do Código Penal, não assiste razão ao mesmo;

XXIV. Resultou da factualidade dada como provada que, e como consequência da conduta do arguido/Recorrente, a vítima sentiu-se psicologicamente perturbada, humilhada e amedrontada, pois, além de ter, a todo o momento, aquele atentasse contra a sua integridade física ou mesmo contra a sua vida;

XXV. E que o arguido/Recorrente como representou, quis e logrou realizar, molestou o corpo e a saúde física e psíquica da vítima, bem sabendo que a mesma se encontrava impossibilitada de se defender das suas investidas, designadamente por força da sua inferior compleição física;

XXVI. O arguido/Recorrente estava também ciente de que praticava os factos na habitação comum com a vítima e sobre esta última, que era, à data, sua ex-mulher e companheira e a quem, nessas qualidades, devia respeito, cuidado e proteção, bem como os perpetrava na presença dos filhos de ambos, inclusivamente de CC que era, naquelas datas, ainda menor de idade, não se abstendo de a expor aos seus comportamentos, que a deixavam amedrontada e psicologicamente transtornada;

XXVII. A subsunção jurídico-penal do crime de violência doméstica pelo qual o Recorrente foi condenado não foi fundada na alínea d) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal, mas na alínea a) por a vítima, à data dos factos, ser sua ex-mulher e companheira, a que acresce a agravação previsto na alínea a) do n.º 2 do referido preceito legal por tais factos terem sido praticados na residência comum do casal e em frente da filha do casal, à data menor de idade;

XXVIII. Para a subsunção ao crime de violência doméstica, tanto releva a reiteração como a intensidade, e, no caso em concreto, não temos um só episódio grave, mas vários perpetrados ao longo do tempo que revestem especial seriedade atenta a forma como os mesmos foram praticados e às lesões, físicas e morais, que deixaram na vítima;

XXIX. Em sede de apreciação dos vícios do artigo 410.º do Código de Processo Penal não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto;

XXX. Não assiste razão ao Recorrente, não merecendo a sentença recorrida qualquer reparo, não devendo o Recorrente ser absolvido do crime pelo qual foi condenado por o Tribunal recorrido não ter violado o disposto nos artigos 152.º e 143.º, ambos do Código Penal, bem como, não temos por verificados os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou do erro notório na apreciação da prova, previstos nas alíneas a) e c) do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal.

XXXI. Quanto à medida da pena, sendo o crime de violência doméstica em causa punível com pena de prisão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos não há lugar à operação de escolha da pena aplicável, cabendo determinar a medida concreta da pena, em função da culpa e das exigências de prevenção;

XXXII. A gravidade objetiva dos factos, espelhada na factualidade provada, é de relevo considerável, sendo as exigências de prevenção geral muito elevadas.

XXXIII. No que respeita às exigências de prevenção especial, importa considerar que o arguido/Recorrente não demonstrou arrependimento, tentando imputar as responsabilidades dos acontecimentos à vítima, e adotando um comportamento de vitimização;

XXXIV. Não é o número dos episódios de violência que está em causa, como parece fazer crer o Recorrente; alega que o que consta da factualidade dada como provada “é tão só” a existência de três discussões as quais não importaram, no entender daquele, gravidade substancial ao nível das consequências;

XXXV. Todavia, não é o reduzido número das discussões, mas o conteúdo das mesmas e os atos que foram praticados durante as mesmas pelo arguido/Recorrente na pessoa da vítima, até pelo facto de terem sido praticados na residência comum que foi do casal e na presença da filha.

XXXVI. A título de exemplo, o agarrar na vítima, empurrá-la contra os móveis da sala, apertar-lhe o pescoço com as duas mãos ao mesmo tempo que lhe dizia “vou buscar umas facas, mato-te e vais para o céu”, o ter destruídos os objetos no interior da habitação, e o de a ter injuriado amiudadas vezes, são circunstâncias que permitem imputar ao arguido/Recorrente o crime pelo qual vinha acusado e condenar o mesmo numa pena de prisão;

XXXVII. Por outro lado, pelo facto de os antecedentes criminais do arguido/Recorrente apenas estarem relacionados com a sua atividade laboral e a regulação da mesma em França, o Tribunal a quo entendeu considerar ainda ser possível a formulação de um juízo de prognose favorável, sendo suficiente a simples censura e ameaça de uma pena de prisão para afastar o arguido/Recorrente do cometimento de novos ilícitos criminais, suspendendo a execução da pena de prisão por igual período;

XXXVIII. Pelo que, não assiste razão ao Recorrente, não merecendo a sentença recorrida qualquer reparo no que respeita à escolha e medida da pena àquele aplicada;

XXXIX. No que concerne à absolvição da arguida AA do crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, cremos que andou bem o Tribunal a quo;

XL. Já que considerou a sentença recorrida que as expressões constantes dos factos dados como provados foram proferidas num contexto de conflitualidade entre o casal que, ao que se apurou, era a sua dinâmica familiar, o que foi, inclusivamente, confirmado pela filha do casal;

XLI. Tais expressões foram proferidas num contexto de dissociação familiar, em que a relação do casal era “pouco saudável”, nas palavras da filha, e em que existia um conflito permanente causado por ciúmes de parte a parte, não tendo sido possível lograr apurar quem iniciava o diálogo no âmbito das discussões;

XLII. Também não resultou provada a verificação do elemento subjetivo, no sentido de que, efetivamente, a arguida queria com as referidas expressões denegrir a imagem e o bom nome do Recorrente, não tendo sido possível formar convicção nesse sentido;

XLIII. Tais expressões, assim proferidas num contexto de discussão, não podem ter outro sentido que não a de manifestação de desagrado, não assumindo carácter injurioso.

XLIV. Neste sentido, e sem necessidades de outras considerações, não merece a sentença recorrida qualquer reparo, devendo manter-se a decisão de absolver a arguida AA de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal.

NESTES TERMOS,

- Deve a sentença recorrida proferida pelo Tribunal a quo ser revogada parcialmente e substituída por outra que elimine o arbitramento de quantia a título de reparação oficiosa e condene o arguido/Recorrente no pagamento à vítima do pedido de indemnização civil formulado por esta, no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) e que julgue verificada a exceção de caso julgado quanto aos factos constantes dos pontos 42., 43. e 44. Dos factos provados, devendo os mesmos serem excluídos de tal elenco;

No mais:

- Deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida na parte condenatória (quanto ao arguido/Recorrente BB) e absolutória (quanto à arguida AA), não havendo vício de erro de julgamento do facto ou erro na apreciação da prova, não merecendo reparo ou censura, nessa parte, assim se fazendo a costumada, JUSTIÇA!”

I.2.2 – A assistente/arguida/demandante respondeu ao recurso interposto apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:

“«Termos em que se contestam todas as conclusões formuladas pelo recorrente por não serem verdadeiras, devendo as Alegações do Recorrente serem dadas como improcedentes e não provadas, devendo a pena de prisão de dois anos e seis meses manter-se na globalidade, ou ser esta agravada pelos atos horrendos que foram praticados pelo Recorrente contra a vítima.

E assim fazem Vªs Exªs Senhores Doutores Juizes Desembargadores fazem a tão costumada JUSTIÇA”.


*

I.3 - Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.


***

Prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.

Cumpre, agora, apreciar e decidir:


***

II - Fundamentação

 Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante, designadamente, do STJ [Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 processo nº 18/05.7IDSTR.E1.S1 e 19/05/2010, processo nº 696/05.7TAVCD.S1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal [  Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95] e das nulidades previstas no art. 379º do mesmo Código de Processo Penal.

Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
® Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia relativamente a factos alegados na contestação;
® Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia com violação do princípio ne bis in idem;
® Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia ao cumular o arbitramento de indemnização à vítima com a condenação em indemnização pedida pela lesada no requerimento de indemnização cível que deduziu;
® Da nulidade da sentença por indevida valoração das declarações para memória futura prestadas por vítima que validamente se recusou a depor em audiência de julgamento;
® Do erro notório na apreciação da prova;
® Da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão;
® Da violação do princípio in dúbio pro reo;
® Do não preenchimento do tipo de violência doméstica pelo arguido;
® Do preenchimento do tipo de injúrias pela arguida;
® Do excesso da pena aplicada;
® Da repercussão da alteração da matéria de facto provada no quantitativo indemnizatório.

*

II.1 Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa recordar a fundamentação de facto da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:

“II.       Dos factos

A)        Factos Provados

Da decisão instrutória

1.         AA e BB iniciaram uma relação amorosa em data não concretamente apurada e contraíram matrimónio a ../../2000, tendo ambos fixado residência, em data que não foi possível determinar, na Rua ..., ..., ..., ....

2.         Fruto da relação entre ambos nasceram dois filhos, NN e CC, respectivamente a ../../2001 e ../../2007.

3.         Porém, AA e BB separaram-se e, no dia 16/01/2017, vieram a divorciar-se.

4.         Apesar do divórcio, AA e BB reataram a relação amorosa e voltaram a residir juntos, na morada acima descrita.

5.         No dia 24/12/2020, noite da Consoada de Natal, perto da hora do jantar, BB chegou embriagado à supra referida residência e não tomou a respectiva refeição com AA e com os seus filhos, tendo, ao invés, se dirigido à casa de banho e ali permanecendo até cerca das 22h00.

6.         Posteriormente, BB dirigiu-se à sala onde se encontrava AA e seus filhos e, assim que se apercebeu que os mesmos se encontravam a tomar a refeição, levantou os pratos de todos e colocou-os na cozinha e iniciou uma discussão com aquela, no decurso da qual vociferou a AA para a mesma sair de casa e aos seus filhos para, caso quisessem ficar com a mãe, se irem embora.

7.         Posteriormente, pelas 23h desse dia, AA e os filhos foram pernoitar para casa dos pais daquela, na Rua ..., ..., ..., ..., ....

8.         No dia 09/05/2021, pelas 12h40, BB chegou, embriagado, à residência acima descrita, na qual se encontravam AA e os seus dois filhos e iniciou uma discussão esta última, no decurso da qual o mesmo lhe disse que tinham de falar e que a mesma tinha amantes, sendo que desferiu um número não concretamente apurado de pontapés nas portas das divisórias da residência.

9.         Com receio da conduta de BB, AA refugiou-se no quarto do filho de ambos, NN, no qual este se encontrava, tendo aquele seguido no seu encalço e, acto contínuo, fechou a porta e trancou o trinco com a respectiva chave, fechando-se dentro de tal divisória com AA e NN.

10.       AA tentou fugir daquele local, mas sem conseguir, por a porta se encontrar trancada, sendo que BB pegou na respetiva chave e atirou-a para o exterior através da janela do quarto, que então se encontrava aberta, visando impedir qualquer um de sair do citado quarto.

11.       Entretanto, CC tentou abrir a referida porta, mas sem sucesso, ao que BB, assim que se apercebeu de tal facto, desferiu um número não concretamente apurado de pontapés na citada porta, fazendo com que aquela se sentisse amedrontada.

12.       Instantes depois, BB saiu para o exterior da residência pela janela do quarto onde se encontrava, após o que atirou a chave da porta que havia anteriormente arremessado para dentro do referido quarto, assim permitindo que AA e NN dali pudessem sair.

13.       Acto contínuo, e ainda no exterior na residência, BB dirigiu-se ao logradouro, no qual se encontravam estacionados três veículos automóveis, mais concretamente

a.         Um veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca e modelo BMW 320I, de matrícula ..-..-XQ;

b.         Um veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca e modelo BMW X53, de matrícula ..-..-XV;

c.          E um automóvel ligeiro de passageiros de marca e modelo SEAT IBIZA, de matrícula ..-..-LB, o qual era, à data, apenas utilizado por NN,

abriu os respectivos capôs e desligou os cabos que ligavam o motor à bateria, de forma a impedir que os mesmos iniciassem a marcha e que AA pudesse sair do local através dos mesmos, apenas não o tendo feito quanto ao último referido veículo, por o mesmo se encontrar trancado.

14.       De imediato, BB voltou a entrar na residência, tendo AA aproveitado a sua distração para sair ao exterior com os filhos de ambos, após o que estes se deslocaram até ao veículo da marca SEAT, sendo que NN entrou no mesmo pela porta do condutor, ligou o motor e iniciou a marcha, enquanto a sua mãe e irmã permaneciam apeadas ao lado de tal veículo.

15.       Apercebendo-se do funcionamento do veículo em questão, BB deslocou-se novamente ao logradouro e, de forma a impedir que qualquer pessoa dali saísse, correu em direcção ao veículo, abriu a porta do condutor e tentou tirar a chave da ignição, com o mesmo ainda em funcionamento, o que não logrou, por ter sido impedido por NN.

16.       Paralelamente, CC, que se encontrava amedrontada com o sucedido, saiu das proximidades dos seus pais, de forma que não foi possível apurar, tendo-se deslocado para uma zona de mato sita nas imediações e, a partir daí, contactou telefonicamente a GNR de ..., solicitando a deslocação de uma patrulha ao local, o que veio a suceder.

17.       Depois de a GNR ter chegado ao local, AA, NN e CC lograram dali sair, tripulando o veículo conduzido por NN.

18.       No dia 14/11/2022, sensivelmente pelas 09h, quando se encontravam na sua então residência, mais concretamente na cozinha, BB iniciou uma discussão com AA, no decurso da qual aquele disse a esta última que “queria conversar” e que a mesma “tinha amantes”, o que foi por esta negado.

19.       De imediato, BB colocou uma das suas mãos num dos bolsos do casaco que AA trajava e retirou-lhe o seu telemóvel, tencionando visualizar as comunicações ali contidas, após o que arremessou uma fruteira que se encontrava numa mesa na cozinha ao solo, partindo-a.

20.       AA tentou reaver o seu telemóvel, sem sucesso e BB agarrou-a pela parte superior dos braços, perto dos ombros e empurrou-a para uma cadeira que ali se encontrava.

21.       Apesar de AA tentar levantar-se da cadeira em número de vezes não concretamente apurado e de tentar afastar-se de BB, o mesmo, enquanto a acusava de ter amantes, agarrou-a com força, pela parte superior dos braços, ao ponto de rasgar a camisa que a mesma vestia e empurrou-a sucessivamente para a cadeira da qual a mesma se levantava e, posteriormente, sobre outras cadeiras, à medida que AA ia conseguindo movimentar-se, assim a obrigando a permanecer sentada contra a sua vontade.

22.       Entretanto, AA conseguiu efectivamente, levantar-se de uma das cadeiras onde se encontrava sentada e logrou deslocar-se até à sala, ao que BB seguiu ao seu encalço e empurrou-a contra um puf que ali se encontrava, o que provocou o desequilíbrio da ofendida e consequente queda no solo sobre tal objecto.

23.       Ato contínuo, BB colocou-se sobre AA, e fazendo uso da sua força, apertou-lhe o pescoço com as duas mãos, ao mesmo tempo que, com foros de seriedade, lhe disse “vou buscar umas facas, mato-te e vais para o céu”, tendo posteriormente colocado a sua mão sobre a boca desta, para a impedir de falar ou gritar.

24.       Não obstante ser manietada por BB, AA logrou soltar-se daquele e conseguiu levantar e deslocar-se até uma das janelas da sala, ao que aquele, novamente, seguiu-a e desferiu-lhe um empurrão, fazendo com que esta última viesse a cair sobre um sofá que ali se encontrava.

25.       De imediato, AA levantou-se de tal sofá na tentativa de continuar a afastar-se de BB, o qual a empurrou novamente, desta feita contra um novo sofá, de dimensões mais reduzidas que o anterior, fazendo com que a mesma ficasse sentada no mesmo.

26.       Nesse seguimento, BB aproximou-se do sofá onde AA estava sentada, levantou-o em peso e, recorrendo ao uso da força, virou-o ao contrário, fazendo com que esta última caísse no solo e o aludido sofá tombasse sobre o corpo desta.

27.       Assim que tal sucedeu, BB vociferou “dizes que andas sempre a limpar a casa, mas a casa debaixo do sofá está suja, o que tu fazes eu fazia em meia hora”.

28.       Durante tais factos, AA encontrava-se descalça e, enquanto tentava resistir à forma como era manietada por BB, logrou obter a chave do BMW X5 acima descrito, que se encontrava num dos bolsos da roupa que este último então vestia.

29.       Instantes depois, AA conseguiu sair debaixo do aludido sofá, levantou-se e afastou-se de BB, tendo logrado sair da sala e se deslocado para o exterior, mais concretamente ao logradouro, onde entrou no veículo acima descrito.

30.       Nesse momento, BB surgiu no local, dirigiu-se aos portões pelos quais tal veículo teria de passar para sair e fechou-os com as suas mãos e, de seguida, de viva voz e com foros de seriedade, dirigiu a AA as seguintes expressões: “Não estou para viver desta forma consigo e custa-me pouco tapar-te a boca arrastar-se pelos cabelos até à porta da cozinha”, após o que voltou a entrar na residência.

31.       Logo após, AA entrou na residência para se calçar, o que fez, deslocou-se novamente ao veículo acima descrito, iniciou a marcha e logrou sair da citada residência, cerca das 10h30.

32.       Sucede que, AA não conseguiu levar o seu telemóvel conseguido, pois BB ficou com o mesmo, por lho ter tirado, permanecendo na então residência e sob o controlo deste até cerca das 15h30 do dia supra descrito, quando aquela se deslocou novamente à referida residência, desta feita acompanhada de militares da GNR de ....

33.       Após, AA abandonou definitivamente a residência comum e passou a pernoitar, juntamente com a sua filha, na residência dos seus pais, acima descrita.

34.       Como consequência directa e necessária da conduta de BB supra descrita, AA, além de ter sofrido dores nas partes do corpo que infra se descrevem, e de ter hematomas e arranhões, designadamente, no pescoço, pernas e braços, apresentou:

a.         No membro superior esquerdo: duas equimoses da face anterior e lateral externa do terço médio do braço com 5 por 5 centímetros e 5 por 4 centímetros e outra equimose arroxeada da face posterior do braço, com 1 centímetro de diâmetro;

b.         No membro inferior esquerdo: equimose acastanhada da raiz da coxa com 2 centímetros de diâmetro e outra da face anterior do terço superior da perna com 2 por 3 centímetros de maiores dimensões.

35.       Acontece que, no mesmo dia 14/11/2022, pelas 19h30, BB deslocou-se à residência dos pais de AA, logrou abrir o portão de entrada, de forma não concretamente apurada e dirigiu-se à porta de entrada da residência, tendo desferido um número não concretamente apurado de pancadas na mesma, ao mesmo tempo que, de viva voz, apodava AA de “puta” e exigiu ver a sua filha, o que foi escutado por CC e fez com que a mesma se sentisse amedrontada.

36.       Nessa sequência, foi acionada uma patrulha da GNR de ..., que se deslocou à referida residência, após o que BB abandonou o local sem levar acabo os seus intentos.

37.       Mesmo após os factos descritos acima, BB enviou continuamente mensagens escritas (constantes de fls. 250 a 468 e que se dão por integralmente reproduzidas no presente despacho, por desnecessidade de transcição) do telemóvel por si utilizado, com o número ...42, para o número de telemóvel utilizado por AA, ...28, no decurso das quais o mesmo, para além do mais:

a.         Acusou AA de ter amantes, de o trair, de ser uma criança, viver romances da escola com 15 anos e de ter um cérebro de canalha, pior que  a sua filha, entre outras expressões referentes a esse tipo de imputações (designadamente, os dias 16/11/2022, pelas 05h33, 06h14, 06h20, 06h54, 07h10, 10h33, 10h35, 11h53, 12h, 15h02, 16h02, 18h07, 21h; no dia 17/11/2022, pelas 10h25, 10h26, 11h04, 22h02, 22h06, 22h48; no dia 18/11/2022, pelas 02h37, 02h49, 03h, 12h26, 12h37, 15h58; no dia 21/11/2022, pelas 22h45 e 22h49);

b.         Disse que AA era uma “sem vergonha porca” (no dia 18/11/2022, pelas 03h01);

c.          Que o pai de AA tem vergonha desta (no dia 16/11/2022, às 07h21);

d.         Que AA vinha sempre acompanhada para fazer a novela e de coitadinha (no dia 14/12/2022, às 05h32);

e.          Escreveu expressões que insinuavam que AA não foi agredida por si (no dia 16/11/2022, pelas 06h16, 06h17, 07h15; no dia 17/1172022, pelas22h14);

f.          Disse a AA que gostava da mesma e questionou-a, por diversas vezes, se gostava de si (no dia 21/11/2022, pelas 22h45, 22h50, 22h52, 22h55, 22h56).

38.       Na sequência de todo o supra descrito, e como consequência da conduta de BB, AA sentiu-se psicologicamente perturbada, humilhada e amedrontada, pois, além de temer, a todo o momento, aquele atentasse contra a sua integridade física ou mesmo contra a sua vida .

39.       Com todas as suas condutas supra descritas, BB, como representou, quis e logrou realizar, molestou o corpo e a saúde física e psíquica de AA, bem sabendo que a mesma se encontrava impossibilitada de se defender das suas investidas, designadamente por força da sua inferior compleição física.

40.       O arguido estava também ciente de que praticava os factos acima descritos na habitação comum com AA e sobre esta última, que era, à data, sua ex-mulher e companheira e a quem, nessas qualidades, devia respeito, cuidado e protecção, bem como os perpetrava na presença dos filhos de ambos, inclusivamente de CC que era, naquelas datas, ainda menor de idade, não se abstendo de a expor aos seus comportamentos, que a deixavam amedrontada e psicologicamente transtornada.

41.       Ao logo de todas as suas condutas, o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as mesmas eram proibidas e puníveis por lei penal.

42.       Em data que não foi possível apurar, mas no ano de 2016, entre as 15h e 16h, nas imediações do Continente de ..., BB disferiu um número que não foi possível apurar de chapadas com a mão aberta a AA.

43.       Em data não concretamente apurada, mas seguramente em julho de 2016, BB deslocava-se num veículo automóvel com AA e os dois filhos, tendo ido deixar estes dois últimos ao avô paterno e seguido com AA para a casa do casal.

44.       Já no interior da casa do casal, BB retirou o seu cinto e atingiu AA nas pernas, um número de vezes que não foi possível apurar, mas certamente mais do que uma.

Do Pedido de Indemnização Civil da Assistente

45.       A habitação referida em 1. situa-se em lugar ermo, rodeada de mato, com algumas casas a cerca de 40/50 metros de distância desta.

46.       Quando alcoólico e também em estado sóbrio, abria os braços e junto à casa de morada da família dizia para a assistente: “isto é tudo meu”, referindo-se à casa onde moravam assistente, arguido e filhos, assim como se referia ao logradouro da casa e a vários carros que têm, dizia isto, no sentido de humilhar a assistente.

47.       A AA conduziu um veículo de marca Smart.

Da Acusação Particular

48.       De forma reiterada, em datas que não foi possível apurar, mas com especial incidência a partir do ano de 2019 e até ao término da relação, em finais do ano de 2022, AA, num número de vezes que não foi possível apurar mas pelo menos uma vez, dirigindo-se a BB, quer pessoalmente, quer estivessem sozinhos ou na presença de terceiros, apelidou-o de “bêbado”, “porco”, “cabrão”, “touro”, “boi”, e “atrasado”.

49.       Mais disse AA a BB, pelo menos uma vez e em data que não foi possível apurar, que “se queres roncar para mim, roncas em casa”.

50.       As expressões referidas em 48. foram proferidas presencialmente por AA dirigindo-se a BB quando se encontravam sozinhos, quando se encontravam na presença dos seus filhos, sendo a filha menor de idade à data e quando estavam acompanhados de terceiros, designadamente da irmã do BB, EE e cunhado OO, quer na habitação comum, quer em locais públicos.

51.       AA dirigindo-se a BB, enviou diversas mensagens escritas através do contacto telefónico por si utilizado (...28) para o contacto telefónico utilizado por BB (...42) através de mensagens de texto e da plataforma “whatsapp”, constantes de fls. 250 a 468 e 590 a 684, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para os devidos e legais efeitos, e no decurso das quais a mesma:

a.         Acusou BB de ter amantes e de a trair, designadamente no dia 03/07(2021, às 11h57 (fls. 670 dos autos), no dia 30/08/2021, às 11h59 (fls. 675), no dia 23/10/2022, ás 20h42 /fls. 592), no dia 16/11/2022, às 6h15, 06h19, 06h22, 06h26, 06h55 e 10h06 (fls. 9,15, 18 e 90 do termo de juntada datado de 13/12/2022 e fls. 601 f- e 610 f) e no dia 21/11/2022, às 8h (fls. 186 do termo de juntada datado de 13/12/2022 e fls 616 f);

b.         Disse que BB era maluco, designadamente nos dias 02/11/2022, às 11h21 (fls. 597) e 16/11/2022, às 10h29 e 10h30 (fls. 99 e 100);

c.          Disse que BB era um bêbado, designadamente no dia 24/08/2022, às 15h43, 15h44, 15h46 e 16h25 (fls. 638, 639, 641 e 646);

d.         Disse que BB era um miserável, designadamente no dia 24/08/2020, às 15h45 e 15h47;

e.          Disse que BB era um porco, nos dias 30/12/2020, às 11h16 e 11h41 – fls 657 e 658), no dia 19/01/2021, às 17h14 (fls. 660), no dia 30/08/2021, às 11h59 (fls. 675) e no dia 28/10/2021, às 14h24;

f.          Disse que BB era um atrasado, designadamente no dia 01(11(2022, às 22h22 (fls. 679);

g.          Disse que BB merecia levar nos cornos como levou o membro da sua família, no dia 10/05/2021, às 8h28 (fls. 664).

52.       Ao agir da forma supra descrita, a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, representando e aceitando os resultados alcançados, sendo que, não obstante esta saber que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime, não se absteve de atuar da forma descrita.

Mais se provou,

53.       A arguida não averba qualquer condenação no seu Registo Criminal.

54.       O arguido averba no seu Certificado do Registo Criminal uma condenação em 8 de outubro de 2011, por trabalho irregular do dispositivo destinado ao controlo das condições de trabalho, bem como pela deterioração do mesmo.

55.       A arguida trabalha num lar, auferindo cerca de €740,00.

56.       Vive numa casa do pai, não pagando renda, com os dois filhos e o companheiro que é militar da GNR.

57.       Recebe, a título de pensão de alimentos, €190,00 para a sua filha e €170,00 para o seu filho.

58.       A arguida tem o 12º ano de escolaridade.

59.       O arguido é motorista de longo curso e aufere por mês cerca de €2.00,00, gastando cerca de €600,00 em alimentação quando se encontra a trabalhar.

60.       O arguido tem o 12º ano de escolaridade.

61.       O arguido vive em casa própria, pagando, a título de empréstimo, cerca de €1.000,00 mensais.

62.       Paga cerca de €400,00 para ajuda do filho maior.

63.       Paga, a título de medicação para os filhos cerca de €15,00 a €20,00 mensais.

64.       O arguido tem dois empréstimos para pagamento da casa de morada de família, pagando por mês cerca €177,00 e outro de €132,50.

B)         Factos não provados

1.         Aquando do divórcio as causas do mesmo eram as injúrias, ameaças e ofensas corporais de que a assistente era vítima, com murros, pontapés, empurrões e cinturadas no corpo.

2.         O arguido tem um carácter possessivo querendo controlar toda a vida da assistente, amedrontando-a e coagindo-a.

3.         Várias vezes quando chegava a casa com indícios de embriaguez com cheiro a álcool insuportável agredia a AA fisicamente na presença dos filhos menores, tendo inclusivamente o filho NN sido agredido pelo pai, enquanto defendia a mãe das agressões.

4.         No seguimento da medida de coação que foi imposta ao arguido, este tinha uma pulseira que, ao aproximar-se da vítima, fazia tocar um dispositivo que esta tinha e, sabendo disso, passava continuamente, tanto de dia, como de noite, junto do apartamento onde a AA vive com os filhos, obrigando-a a levantar-se várias vezes de noite para o desligar, perturbando o seu sono.

5.         O arguido desnudava a assistente e batia-lhe em casa para esta não fugir e poder massacrá-la a seu jeito.

6.         O arguido retirou e escondeu as viaturas à assistente na garagem da casa da irmã, ficando a assistente privada de viatura para fazer compras para os filhos e ir para o trabalho.

7.         O arguido sem autorização da AA, filmava-a, desnudava-a e exibia os filmes e fotografias nas redes sociais e aos amigos, num total desrespeito pela assistente, humilhando-a, demonstrando que este não tem respeito pela pessoa humana e muito menos de quem é a mãe dos seus filhos, nem repeito pelos familiares próximos da AA.

8.         Por diversas vezes, e enquanto AA proferia tais expressões e palavras ofensivas da honra e consideração de BB, AA agredia BB, cuspia-lhe na cara, atirava-lhe com o prato de comida, com peças de fruta ou outros objectos que estivessem à mão.

9.         A demandada, até à presente data, não se retratou.

10.       De forma reiterada, em datas que não foi possível apurar, mas com especial incidência a partir do ano de 2019 e até ao término da relação, em finais do ano de 2022, AA, dirigindo-se a BB, quer pessoalmente, quer estivessem sozinhos ou na presença de terceiros, apelidou-o de “escumalha”, “animal”, “mentiroso”, “cabrão”, “filho da puta”, “bruto”, “cornudo”, “estúpido”, “parvo”, “bruto”, “cabeçudo”, “urso” e “miserável”.

11.       A assistente sente-se e sente-se ofendida na sua honra e consideração.

12.       De forma reiterada, em datas que não se consegue precisar, mas com especial incidência a partir do início do ano de 2019, AA, dirigindo-se a terceiros, nomeadamente a colegas de trabalho, entre as quais KK e FF), e no seu local de trabalho, referindo-se a BB apelidava-o com as expressões referidas em 48.

13.       Em consequência das palavras e expressões injuriosas proferidas por AA, quer directamente a BB, quer a terceiros referindo-se a BB, bem como, nesses contextos, da imputação de factos a este que sabia ser falsos, com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração de BB, este sentiu-se humilhado, vexado, minimizado e profundamente ofendido na sua honra e consideração.

14.       A arguida bem sabia que, ao agir da forma supra descrita, dirigindo as palavras e expressões ofensivas à honra e consideração de BB supra referidas, quer directamente a este, quer a terceiros referindo-se a este, bem como, nesses contextos formulando sobre eles juízo ofensivo da sua honra e consideração, e imputando-lhe factos que sabia serem falso, estava a ofender a honra e consideração de BB, o que a arguida representou e almejou.

15.       Com todas as suas condutas supra descritas, BB, como representou, quis e logrou realizar, molestou a sua honra e consideração.

16.       Na sequência de todo o supra descrito, e como consequência da conduta de BB, AA sentiu-se ofendida na sua honra e consideração, com os insultos de que foi alvo e as imputações que lhe foram feitas por aquele.

17.       A assistente sente-se psicologicamente perturbada, humilhada, amedrontada pois além de ter medo que a todo o momento aquele atentasse contra a sua integridade física ou mesmo contra a sua vida.

18.       O comportamento do arguido causou à vítima uma depressão, deixando-a amedrontada e transtornada.

19.       Mais dizia AA a BB, pelo menos uma vez, que este “havia de morrer esmagado de acidente”, “vai para o caralho”, “vai para a puta que te pariu”.

20.       Em consequência directa, necessária e adequada das palavras e expressões injuriosas proferidas pela arguida AA, o demandante sentiu-se vexado, humilhado e minimizado, bem como profundamente ofendido na sua honra e consideração.

21.       Como consequência directa, necessária e adequada, sentiu-se o demandante triste, magoado e abalado com todo o sucedido.


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Não foi considerada qualquer outra matéria por se considerar de direito, conclusões ou considerações ou sem qualquer interesse para a causa.

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C)        Motivação de facto

A convicção do Tribunal estribou-se na análise crítica de todos os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, com o teor de todos os documentos juntos aos autos, sempre coadjuvada pelas regras da normalidade do acontecer e globalmente considerada e criticamente analisada à luz de critérios de experiência comum.

Na presente situação, cabe recordar as especiais características do crime de violência doméstica, as quais terão necessariamente que ser tidas em conta pelo julgador no processo de apreciação da prova.

Com efeito, a violência doméstica é um fenómeno que ocorre, na grande maioria das vezes, no interior da residência comum ou da vítima, o que suscita particulares dificuldades ao nível dos meios de prova, em virtude de tais factos não serem presenciados por terceiros, que sobre eles poderiam depor.

Assim, assumem especial relevância neste tipo de processos as declarações da vítima e do arguido, que não raras vezes são os únicos elementos probatórios que se encontram ao dispor do Tribunal. Nessa apreciação, haverá que analisar a coerência, verosimilhança e consistência de tais depoimentos, conjugando-os entre si e com outros meios de prova que eventualmente existam nos autos, tendo sempre presente a situação de especial fragilidade e vulnerabilidade em que habitualmente se encontra a vítima.

Tal é particularmente importante nas situações em que esta ainda evidencia uma dependência económica ou emocional do arguido – que, naturalmente, compromete as suas declarações –, mas também naquelas outras em que, por força de factos especialmente graves ou prolongados no tempo, se encontra perturbada e afetada do ponto de vista psíquico e emocional.

Deste modo, caberá ao julgador a tarefa de destrinçar aquilo que efetivamente constitui a realidade dos factos, tantas vezes desvalorizada pela própria vítima em consequência da exposição prolongada a um quadro de humilhação e maus tratos.

Descendo ao caso destes autos, foram decisivas para a formação da convicção do Tribunal as declarações da vítima, bem como da filha do ex-casal prestadas em sede de declarações para memória futura – juntas aos autos a fls. 954 e ss.

Nas suas declarações, o arguido negou na globalidade a prática de quaisquer factos, chegando mesmo a referir que este e a vítima não discutiam assumido, porém, uma postura de vitimização e total desresponsabilização, procurando justificar a sua conduta.

Sempre que perguntado sobre as situações descritas na factualidade constante da acusação, o arguido conseguiu circunstanciar no espaço e no tempo, bem como dar uma justificação para o sucedido, sempre dizendo, porém, serem mentira todos esses os factos.

Do comportamento do arguido ao longo de todo o julgamento conclui-se que este conseguiu identificar todas as situações sobre as quais era questionado, mas concluindo sempre por dizer que era tudo mentira, que nunca discutiam e que a vítima é que discutia com ele.

Deste modo, o seu discurso foi pautado por uma tentativa de denegrir a imagem da vítima.

O arguido BB referiu que a partir de 2019 que, sempre que chegavam a casa discutiam, mas que a razão não era o facto de estar alcoolizado uma vez que apenas bebe social e raramente.

De uma forma generalizada, o arguido negou, como supra referido, a prática dos factos, tentando fazer o Tribunal crer que este sim é a vítima.

De salientar, em particular, a justificação trazida pelo arguido em relação aos factos que ocorreram em 09/05/2021, em que o arguido se trancou a ele, à vítima e ao filho NN no quarto deste último, tendo atirado as chaves desse compartimento pela janela, caindo estas na rua, impedindo a vítima e NN dali saírem, tendo posteriormente saltado pela janela e, do lado de fora da habitação, pegou nas chaves e enviou-as pelo ar, passando pela janela, para o interior, permitindo, assim, que a vítima e o filho de ambos, abrissem a porta trancada por aquele.

Em face do confronto do arguido com esta situação, este referiu que te o hábito de sair pela janela, continuando a justificar que a vítima se encontrava parada à porta e não o deixava passar.

Ora, atenta a patente diferença de fisionomia entre arguido e vítima, é manifesto que, caso este quisesse passar, que o conseguiria fazer sem ter de forçar a vítima ou de usar de grande força, já o contrário não se verificaria.

Ora, a verdade é que este episódio foi referenciado e descrito pela filha de ambos, CC, em sede de declarações para memória futura, transcritas e juntas aos autos a fls. 954 e seguintes, tendo esta logrado circunstar temporal e espacialmente o episódio e descrito a situação com precisão, desinteresse e de forma consentânea à da vítima.

No caso de o arguido ter efectivamente o hábito de saltar pela janela, segundo as regras da experiência comum, seria de prever que pelo menos algum dos outros habitantes da casa referisse essa situação especialmente a sua filha que depôs com sinceridade e não demonstrando qualquer mágoa ou rancor com o pai, todavia, assim não aconteceu.

De forma generalizada, como se referiu, o arguido disse que nunca agrediu AA, mas que esta sim o arranhava, tendo se refugiado, no que concerne às marcas corporais apresentadas pela vítima no facto desta ter uma condição no sangue que a torna mais susceptível de criar hematomas.

Mais referiu que não tirou os carros à vítima, mas que guardou o jipe na garagem da irmã e do cunhado uma vez que este tinha um vidro estragado e por forma a este não ficar na rua.

Referiu que a vítima o apelidou de “bêbado”, “porco”, “cabrão”, “touro”, “boi” e “atrasado” e que o fazia à frente de fosse quem fosse, por chamadas telefónicas, mensagens de texto e para outras pessoas.

AA, vítima nos presentes autos, apresentou-se com uma postura absolutamente contrária àquela referida pelo arguido, não se afigurando que a movesse qualquer especial inimizade ou intuito persecutório quanto a este. Assim, o seu depoimento afigurou-se credível e genuíno, tendo sido essencial para a formação da convicção do Tribunal, porquanto relatou com clareza e precisão os factos que se vieram a dar como provados.

Assim, descreveu com exatidão que o arguido é consumidor frequente de bebidas alcoólicas e que sempre que o faz, descontrola-se e começa a “implicar” e a tratar mal a vítima, mas que aí ela se calava uma vez que tinha medo, referindo que aquele chegada quase sempre alcoolizado a casa.

Referenciou que lhe chamava de “bêbado” e que lhe respondia o que ele lhe chamava e que tal acontecia na presença dos filhos, mas não na de terceiros.

Mais referiu que, em data eu não logrou concretizar, que acusou o arguido de ter amantes, uma vez que acreditava que isso era verdade, tendo se mostrado convicta de que havia descoberto uma traição e que o havia confrontado com a mesma.

Mais confirmou que tal acusação ocorria de forma mútua entre ambos, tendo afirmado que em 2016 se divorciaram porque esta teve um relacionamento extraconjugal, mas que após a reconciliação, nunca mais teve nenhuma.

Confirmou os números de telemóvel constantes da acusação pública como sendo os correspondentes ao seu e do arguido.

Confessou ainda que se sentiu envergonhada e humilhada, bem como o facto do arguido abrir os braços e, olhando para a habitação de ambos, dizia “isto é tudo meu”, dando a entender que este é que ganhava bem e que a vítima tinha um parco rendimento.

De salientar que a vítima já havia prestado declarações em sede de declarações para memória futura, encontrando-se estas transcritas e juntas aos autos a fls. 205-206 e 965 a 981, tendo aí descrito de forma escorreita e desinteressada os vários episódios dados como provados, designadamente os ocorridos a 24/12/2020, 09/05/2021 e 14/11/2022, tendo logrado circunstanciar temporal e espacialmente os factos ocorridos em cada um dos episódios.

Tais declarações foram consentâneas com as prestadas em sede de audiência de julgado, mesmo quando contra instada e de uma forma desinteressada pelo que o Tribunal as reputou de sinceras e credíveis.

Descreveu ainda o episódio em que a vítima e os filhos estavam a ir levar o arguido ao camião, por forma a este ir de viagem de trabalho, quando aquele levou os jovens ao avô paterno e dirigiu-se para casa com a vítima, onde este lhe bateu. Tal episódio é ainda por esta descrito em sede de declarações para memória futura, tanto pela vítima, como pela filha CC que descreve a situação inicial de ir levar o pai, ir ter com o avô e depois ver marcas no corpo da mãe, referindo que a viu “magoada”.

A testemunha NN, filho do ex-casal, recusou-se validamente a depor.

A testemunha FF, colega de trabalho à data, da vítima, referiu que conhece o ex-casal, mas que nunca frequentou a casa destes, apenas sabendo o que a AA lhe contava.

Referiu que a vítima contava às colegas de trabalho que, para o arguido não a chatear, levava medicação do lar para este dormir.

Mais referiu que AA comentava que tinha amantes, dizendo o nome destes de forma alegre, isto para a testemunha e para outras colegas de trabalho cujo nome não logrou concretizar, nem circunstancializou tal facto no tempo.

Mais confirmou que AA apelidou BB de “boi” e “corno”, não logrando circunstancializar no tempo tais expressões.

A testemunha LL, amiga da vítima, referiu que costumava frequentar a casa do casal e confirmou que a relação destes era conflituosa.

Descreveu que a vítima costumava chamá-la para a ajudar a acalmar o arguido uma vez que este costumava chegar a casa embriagado.

Descreveu ainda uma situação que situou em agosto de 2022, em que tal aconteceu e que, a vítima estava “nervosa como sempre” e o BB estava bêbado e a implicar com a vítima sendo que esta não respondia, ficava calada.

Mais referenciou uma situação em que a vítima foi ter consigo ao lar a pedir ajuda uma vez que o arguido lhe havia batido e tirado o telemóvel, mais circunstancializando que esta se encontrava com a camisa rasgada e que esta disse que o arguido lhe havia colocado as mãos no pescoço e que esta tinha medo que ele a matasse.

Confirmou que nesse dia a testemunha chamou a GNR que depois acompanhou a vítima.

Referiu que nunca havia visto as fotografias de fls. 76 a 80 e que a vítima nunca lhe falou mal do arguido.

A testemunha II, militar da GNR, confirmou que vive em união de facto com a vítima há cerca de dois anos, tendo iniciado a sua relação em dezembro de 2022.

Confirmou ainda que se deslocou a casa do casal uma vez que havia recebido uma comunicação para ir ao Lar e que depois acompanharam a vítima para apresentar queixa, sendo que nessa altura esta apresentava escoriações pequenas na testa e pescoço e que se encontrava com a camisa rasgada.

Descreveu que após a apresentação da queixa se deslocaram à habitação do ex casal para que a vítima fosse recolher bens de primeira necessidade, encontrando-se o arguido no exterior da habitação que posteriormente se ausentou do local para ir buscar a filha à escola.

Mais confirmou que entraram pela residência pela cozinha e que esta se encontrava “toda partida”, concretizando que as cadeiras se encontravam viradas ao contrário, havia vidros partidos e que a sala também se encontrava remexida.

Descreveu que nesse entretanto o arguido chegou com a filha, tendo ainda descrito que nesse mesmo dia, mas perto das 20h, foi a GNR chamada a casa dos pais da vítima.

CC, filha do ex-casal, recusou-se validamente a depor, mas prestou declarações para memória futura que se encontram transcritas nos autos a fls. 954 e ss.

Aí, CC referiu-se à relação dos pais dizendo que nunca houve um ambiente saudável e que estes andavam sempre a discutir, com berros, maioritariamente sendo o tema os amantes de cada um.

Mais referiu que o arguido apelidava a mãe de “puta” e “prostituta” e que a mãe retribuía e o chamava de “bêbado” e “porco”.

Salientou que quando estes discutiam que ambos partiam tudo.

Descreveu ainda com detalhe o episódio de 2021, que situou como “quase verão” onde descreveu que estava em casa, com o irmão e os pais e que começou a ouvir uma discussão e foi ver o que se passava e verificou que o pai se havia trancado dentro do quarto do irmão, com este e a mãe.

Referiu que tentou arrombar a porta e que, como não conseguiu, a assistente gritou que as chaves do quarto estavam na rua.

Referenciou que nesta altura fugiu para o mato que se encontra à volta de sua casa e chamou a GNR, tendo depois voltado para casa.

Descreveu que quando se estava a deslocar para a rua para apanhar as chaves, que o pai saltou pela janela e que a testemunha trancou a porta da rua para que este não pudesse entrar por ali.

Afirmou que, para que a testemunha, o irmão e a assistente não se ausentassem de casa, o arguido arrancou os cabos das baterias dos carros que se encontravam na rua, mas que, entretanto, a testemunha abriu a porta da rua ao pai.

Salientou que a testemunha, a assistente e o irmão foram tentar buscar o carro deste último, mas que o arguido começou a agarrar a porta do carro para que este não fechasse a porta.

Descreveu ainda que o arguido continuou a tentar que estes não saíssem de casa, tendo tentado fechar o portão no carro do irmão onde estes se encontravam.

A filha do ex-casal descreveu ainda o episódio, em 2016, quando se encontravam no Continente em ..., que o arguido bateu “às chapadas” à vítima, tendo ainda puxado o cabelo.

Descreveu ainda que no dia 14 de novembro de 2022 o pai a foi buscar à escola, levou para casa e estava lá a GNR, tendo referenciado que viu a fruteira que costumava estar em cima da mesa, toda partida, fruta pelo chão, os sofás e cadeiras virados ao contrário.

Mais confirmou que nesse dia a mãe tinha ferimentos no pescoço e braço.

Narrou ainda o ocorrido na consoada de 2020, tendo confirmado que o pai tinha chegado a casa bêbado, que se meteu na banheira e depois começou a discutir com os filhos e vítima e os expulsou de casa.

A testemunha DD, cunhado do arguido, referiu que nunca viu o BB embriagado, mas que já o viu a beber à refeição e que presenciou a AA a chamar ao BB de “parvo”, “estúpido” e “burro”, uma vez em casa dos sogros, referindo que não se havia apercebido de nada que o arguido tivesse feito que o justificasse.

Descreveu a vítima como tendo variações de humor, depressiva e que esta tomava comprimidos por causa do sangue para tornar o sangue mais fino e que por isso ficava com mais marcas.

Descreveu o arguido como calmo e que até se admirava como é que ele conseguia permanecer calmo quando a vítima o chamava de nomes, sendo que esta não mostrava ter medo do arguido.

Contou ainda uma situação em que a vítima ligou à esposa, irmã do arguido, a pedir ajuda, tendo este chegado a ir ajudar, mas que se foi embora sem perceber a razão da discussão.

Confirmou que sabe que a AA já traiu o arguido e que o jipe destes ficou guardado na sua garagem porque não fechava.

A testemunha EE, irmã do arguido, referiu que frequentava a casa do ex-casal, que a vítima tinha alterações de humor e que dizia ao arguido “és um merdas”, “não vales nada”, “és um bêbado”, “ninguém te pega” e “porco”, não tendo logrado circunstancializar espacial ou temporalmente tais expressões.

Confirmou inda que nunca viu o arguido bêbado, nem alterado em virtude da bebida.

Descreveu que AA chamava nomes ao BB e que este se calava, que o manipulava e que tinha poder sobre este.

Informou ainda que chegou a contar ao irmão das relações extra conjugais da vítima de que teve conhecimento, enumerando-as.

De referir que EE e DD demonstraram alguma parcialidade, bem como um discurso algo concertado uma vez que principiaram o seu depoimento por dizer que nunca viram o arguido bêbado.

Ora, a testemunha EE em concreto prestou um depoimento transparecendo algum repúdio pela assistente, querendo dar a entender que o arguido era um marido exemplar e que a assistente é que causava todos os problemas, assim como o arguido tentou fazer.

Esta testemunha alegou ainda ter sido superior hierárquica da assistente, recorrendo a essa posição para informar o conteúdo dos relatórios médicos da assistente, numa clara atitude de vingança.

A testemunha KK, colega de trabalho da vítima referiu que esta dizia bem do arguido, que esta contou que o havia traído duas vezes e que este a havia perdoado.

Já a testemunha PP, referiu que chegou a ver a vítima com nódoas negras e que esta havia justificado com o seu problema no sangue.

Contou que muitas vezes estavam a tomar as refeições no Lar e que a vítima contava que o arguido era mau com ela, que berrava com ela, mas não dizia mal.

A testemunha HH referenciou que é a ex-mulher de II, com quem a vítima tem agora uma relação, tendo referido que se divorciaram porque “o II andava a tomar café com ela em novembro de 2022” (referindo-se à vítima).

Por fim a testemunha GG, motorista de longo curso e colega de trabalho do arguido, referiu que combinam encontrar-se para tomar as refeições quando fazem viagens e que nunca viu o arguido a falar mal ou maltratar a AA, mas que já ouviu a AA a chamar de “carneiro” e “filho da puta” ao arguido por telefone, tendo descrito que este ficava triste, não logrando concretizar temporalmente, nem em número de vezes.

Nunca viu o arguido embriagado.

Reputou-o como um bom rapaz, não sendo conflituoso.

Fundou ainda o Tribunal no relatório de perícia de avaliação do dano corporal junto aos autos a fls. 473 e 474, bem como nos esclarecimentos da perita que o elaborou prestados em sede de audiência de julgamento.

Mais teve o Tribunal em consideração, para fundar a sua convicção, na prova documental junta aos autos, designadamente:

- os assentos de nascimento de AA, BB, NN e CC – fls. 29-30, 46-48, 31-32 e 33;

- assento de casamento entre AA e BB – fls. 49-50;

- Auto de notícia de fls. 4 a 9 e respectivos aditamentos de fls. 230 a 232 e 89-91 do apenso B;

- cota de fls 346;

- auto de apreensão de fls. 44-45 do apenso B;

- Fotogramas de fls. 220 a 227 e 30 a 43 (este último do apenso B);

- Auto de interrogatório do arguido – fls. 529 a 551;

- CDs de fls. 239-240, 564-568, 1017, 1018, 556;

- prints das mensagens escritas e transcrição das mensagens de fls. 250 a 468 e 685 a 690;

- prints de fls. 9 a 11 do apenso A;

- prints de pesquisa por matrícula de fls. 475-477 e 479-480.

Os factos 1 a 4 e 47 foram confirmados quer pelo arguido, como pela vítima.

Da conjugação de todos estes depoimentos, e tendo presente a particular importância das declarações da vítima no âmbito do crime aqui em análise, o Tribunal não teve dúvidas que o arguido praticou os factos descritos na factualidade provada, designadamente os factos 5 a 34, 35 a 37, 42 a 44 e 46.

Acrescente-se, ainda, que a sua postura em audiência para isso também contribuiu, uma vez que, ao imputar a responsabilidade dos seus comportamentos à vítima, vitimizando-se e procurando justificar a sua conduta, numa postura de superioridade para com esta, tornou evidente o pouco respeito que lhe vota.

A demonstração dos factos de índole subjectiva – factos 39 a 41 e 52 -, resultou essencialmente da conjugação das regras da experiência com a demonstração de outros factos exteriores susceptíveis de os revelar, uma vez que o comportamento praticado pelo arguido não podia ter outra intenção senão aquela que ali se descreve.

O facto 38 foi dado como provado atenta a conjugação das declarações da vítima, tanto em sede de audiência de julgamento, como em sede de declarações para memória futura, com as prestadas pela filha do ex casal para memória futura.

Quanto aos antecedentes criminais – factos 53 e 54 - o Tribunal fundou a sua convicção no certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 1533 a 1534 e 1535v.

Os factos 48 a 51 foram dados como provados atenta a conjugação das declarações do arguido, vítima e da filha do ex-casal, bem como atendendo ainda à transcrição das mensagens escritas juntas aos autos.

A filha descreveu a relação dos pais como “pouco saudável”, referindo que ambos se apelidavam mutuamente de nomes injuriosos.

Relativamente à situação pessoal, familiar e económica dos arguidos, fundou o Tribunal a sua convicção no teor nas declarações dos próprios que, nessa parte, mereceram credibilidade. 


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No que diz respeito aos factos não provados 1 a 21, estes assim se consideraram quer por ausência ou insuficiência de prova.

Vejamos, os factos 1 a 5, 7, 9, 12 e 19, foram dados como não provados por não ter sido produzida prova no seu sentido.

O facto 6 foi dado como não provado uma vez que a justificação que o arguido apresentou para ter guardado o jipe do casal na garagem da irmã foi plausível – este tinha uma janela estragada e precisava de estar guardado numa garagem -, tendo tal justificação sido corroborada pela irmã e pelo cunhado que, nessa parte pareceram sinceros.

Por outro lado, da prova produzida em audiência de julgamento, não ressaltou que o arguido se tivesse obstado a que a assistente ficasse com quais quer bens que fossem.

Por outro lado, em relação às mensagens que constam dos autos onde se verifica a assistente a pedir um carro ao arguido, verifica-se ainda que a sua resposta nos parece sincera – o carro em questão estaria no mecânico – sendo que também ao longo de uma troca de mensagens se verifica o arguido a oferecer à assistente o alegado carro que estaria no mecânico, pelo que, face ao exposto, não foi produzida prova suficiente que fizesse crer ao Tribunal que este o arguido quisesse que a assistente ficasse sem acesso aos automóveis do casal.

Quanto ao facto 8, negado pela assistente, este foi referido pela irmã do arguido e por este, todavia, não conseguiram concretizar quando, nem onde este facto terá acontecido.

Veja-se que tal facto não foi referido por mais nenhuma testemunha, designadamente pela filha do casal que prestou declarações em sede de declarações para memória futura e que terá assistido à maioria da vivência e dinâmica dos arguidos como casal e família alargada.

As expressões constantes do facto 10 foram apenas referidas pelo arguido e pela sua irmã, tendo-se esta última apresentado em audiência de forma altiva, querendo demonstrar superioridade sobre a assistente.

De referir que esta testemunha prestou depoimento na mesma linha do arguido, ou seja, por forma a descredibilizar a vítima, alegando que todas as discussões que existiam eram por esta iniciadas e por sua culpa, reputando o arguido como um bom marido que “chega do trabalho e ainda tem de tratar da roupa e fazer o jantar”.

O mesmo se diga do cunhado do arguido.

Ora, como supra referido, arguido e irmã referem que a vítima proferia aquelas expressões contra o arguido em frente de toda a gente da família, nisto se incluindo os filhos.

Todavia, a verdade é que a filha do casal apenas referiu que ouviu a mãe chamar ao pai “bêbado”.

Assim, conjugando todo o supra exposto, não tendo o depoimento da irmã e cunhado do arguido sido credível, considerou-se como não provado o facto 10.

Os factos 11, 13 a 18 e 20 e 21, foram dados como não provados uma vez que estes se referem à ofensa da honra tanto do arguido para com a assistente, como da arguida para com o assistente.

Vejamos.

Foi unânime o facto de todas as testemunhas reputarem a dinâmica do casal como conflituosa, bem como foi aceite pelos arguidos que estes discutiam e se reputavam mutuamente com expressões injuriosas.

Da factualidade provada e que resultou da prova produzida em sede de audiência de julgamento, ressaltou que esta era a dinâmica de relacionamento entre os arguidos, isto é, o facto destes proferirem expressões injuriosas era tão natural, frequente e usual que o Tribunal ficou em crer que o seu objectivo não era atingir a honra da outra parte, mas sim que era a forma destes interagirem.

E não se diga que segundo as regras da experiência comum, ninguém tem uma forma de interagir injuriosa porque bem sabemos que não é assim.

Em cada relacionamento existe uma dinâmica e, no caso dos autos ficou provado que era uma dinâmica disfuncional e, nas palavras de CC, filha do casal, “pouco saudável”.

O Tribunal ficou convencido que os arguidos já não nutriam qualquer respeito um pelo outro, sendo a linguagem injuriosa a sua linguagem um para com o outro.

De salientar ainda que as colegas de trabalho da arguida, ouvidas nos presentes autos como testemunhas, não lograram confirmar que esta apelidava o arguido de quaisquer expressões injuriosas, muito menos, face ao referido, concretizando-as no tempo.


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Do Direito

III.       Enquadramento jurídico-penal

Uma vez fixados os factos, cumpre agora proceder à sua subsunção jurídica e aplicar o Direito.

A arguido vem acusada da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal.

*

Do crime de violência doméstica

Estabelece o artigo 152º, nº 1, alínea a), do Código Penal, sob a epígrafe “violência doméstica”:

“1- Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a)         Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

(…)

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”.

Por sua vez, preceitua o seu nº 2, alínea a), que,

“2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:

a)         Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;

(…)

é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”.

Já os números 4 a 6 do mesmo artigo dispõem que:

“4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.”.

O bem jurídico protegido pela incriminação reside na dignidade da pessoa humana, incluindo-se todos os comportamentos que lesam essa dignidade.

Assim ensina Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 332., dizendo que: “o bem jurídico protegido é a saúde – bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos”.

Explicando, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, pág. 464, que, os bens jurídicos protegidos pela incriminação são: “a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra.” Acrescentando que este crime “é um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima.”, na medida em que pressupõe a existência de uma determinada relação entre o agente e a vítima, motivo pelo qual é também denominado como sendo um crime de relação, estando «em causa a protecção da dignidade e da integridade da pessoa enquanto membro de uma relação conjugal, e enquanto participante de uma realidade familiar ou “análoga”» como refere Miguez Garcia, in O Direito Penal Passo a Passo, Vol. I, Almedina Editora, 2011, pág. 204 e 205.

O tipo objectivo do ilícito em análise «inclui as condutas de “violência” física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal», sendo que as condutas previstas e punidas pela presente incriminação podem revestir várias espécies, nomeadamente: «os “maus-tratos físicos”, que correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os “maus tratos psíquicos” aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas.» (Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, pág. 465).

De acordo com o disposto no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.02.2004, Proc. 2857/03-3, disponível em www.dgsi.pt, maus tratos físicos são definidos como os “actos que se traduzem em qualquer forma de violência física, designadamente ofensas corporais e considera maus tratos psíquicos os actos que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade, como as injúrias, humilhações, ameaças e outros.”

E, de acordo com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.02.2008, Proc. 1702/2008-3, disponível em www.dgsi.pt, os maus-tratos psíquicos “compreendem, a par das estratégias e condutas de controlo, o abuso verbal e emocional que perturbe a “normal convivência e as condições em que possa ter lugar o pleno desenvolvimento da personalidade dos membros do agregado familiar”.

Estas condutas identificadas que integram o tipo objectivo do crime em análise são susceptíveis de, isoladamente consideradas, consubstanciarem outros crimes, nomeadamente, o crime de ofensa à integridade física simples, injúria, difamação, ameaça, entre outros.

No entanto, entre os crimes acabados de referir e o crime de violência doméstica existe uma relação de especialidade pelo que o fundamento que leva a que o crime em análise nos presentes autos seja punido de forma mais agravada é, exactamente, a relação que liga o agente à vítima que cria entre os mesmos uma particular obrigação de não infligir maus tratos à pessoa com quem mantém uma relação amorosa, seja cônjuge ou não, sendo as referidas condutas que integram o tipo objectivo do crime valoradas globalmente por forma a aferir-se da violação do bem jurídico do crime.

Neste seguimento, entende-se que o crime de violência doméstica estará verificado quando ocorra verdadeiramente um dano do bem jurídico protegido pela incriminação da norma, sendo certo que, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.09.2014, “Não exigindo o tipo legal uma reiteração de acções, um único acto ofensivo só consubstanciará «maus tratos» se se revelar de tal modo intenso que ao nível do desvalor (quer da acção quer do resultado) seja apto a lesar em grau elevado o bem jurídico pondo em causa a dignidade da pessoa humana.”.

Relativamente ao tipo subjectivo de ilícito, o crime de violência doméstica pressupõe que o agente actue com dolo (em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal), pelo que o agente terá de ter o conhecimento correcto da factualidade típica, sob pena de não se preencher o elemento intelectual do dolo.

Revertendo aos presentes autos resultou provado AA e BB iniciaram uma relação amorosa em data não concretamente apurada e contraíram matrimónio a ../../2000, tendo ambos fixado residência, em data que não foi possível determinar, na Rua ..., ..., ..., ....

Fruto da relação entre ambos nasceram dois filhos, NN e CC, respectivamente a ../../2001 e ../../2007.

Porém, AA e BB separaram-se e, no dia 16/01/2017, vieram a divorciar-se.

Apesar do divórcio, AA e BB reataram a relação amorosa e voltaram a residir juntos, na morada acima descrita.

Tendo ainda resultado provado que no dia 24/12/2020, noite da Consoada de Natal, perto da hora do jantar, BB chegou embriagado à supra referida residência e não tomou a respectiva refeição com AA e com os seus filhos, tendo, ao invés, se dirigido à casa de banho e ali permanecendo até cerca das 22h00.

Posteriormente, BB dirigiu-se à sala onde se encontrava AA e seus filhos e, assim que se apercebeu que os mesmos se encontravam a tomar a refeição, levantou os pratos de todos e colocou-os na cozinha e iniciou uma discussão com aquela, no decurso da qual vociferou a AA para a mesma sair de casa e aos seus filhos para, caso quisessem ficar com a mãe, se irem embora.

Posteriormente, pelas 23h desse dia, AA e os filhos foram pernoitar para casa dos pais daquela, na Rua ..., ..., ..., ..., ....

No dia 09/05/2021, pelas 12h40, BB chegou, embriagado, à residência acima descrita, na qual se encontravam AA e os seus dois filhos e iniciou uma discussão esta última, no decurso da qual o mesmo lhe disse que tinham de falar e que a mesma tinha amantes, sendo que desferiu um número não concretamente apurado de pontapés nas portas das divisórias da residência.

Com receio da conduta de BB, AA refugiou-se no quarto do filho de ambos, NN, no qual este se encontrava, tendo aquele seguido no seu encalço e, acto contínuo, fechou a porta e trancou o trinco com a respectiva chave, fechando-se dentro de tal divisória com AA e NN.

AA tentou fugir daquele local, mas sem conseguir, por a porta se encontrar trancada, sendo que BB pegou na respetiva chave e atirou-a para o exterior através da janela do quarto, que então se encontrava aberta, visando impedir qualquer um de sair do citado quarto.

Entretanto, CC tentou abrir a referida porta, mas sem sucesso, ao que BB, assim que se apercebeu de tal facto, desferiu um número não concretamente apurado de pontapés na citada porta, fazendo com que aquela se sentisse amedrontada.

Instantes depois, BB saiu para o exterior da residência pela janela do quarto onde se encontrava, após o que atirou a chave da porta que havia anteriormente arremessado para dentro do referido quarto, assim permitindo que AA e NN dali pudessem sair.

Acto contínuo, e ainda no exterior na residência, BB dirigiu-se ao logradouro, no qual se encontravam estacionados três veículos automóveis, mais concretamente

a.         Um veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca e modelo BMW 320I, de matrícula ..-..-XQ;

b.         Um veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca e modelo BMW X53, de matrícula ..-..-XV;

c.          E um automóvel ligeiro de passageiros de marca e modelo SEAT IBIZA, de matrícula ..-..-LB, (com matrícula que não foi possível apurar), o qual era, à data, apenas utilizado por NN,

abriu os respectivos capôs e desligou os cabos que ligavam o motor à bateria, de forma a impedir que os mesmos iniciassem a marcha e que AA pudesse sair do local através dos mesmos, apenas não o tendo feito quanto ao último referido veículo, por o mesmo se encontrar trancado.

De imediato, BB voltou a entrar na residência, tendo AA aproveitado a sua distração para sair ao exterior com os filhos de ambos, após o que estes se deslocaram até ao veículo da marca SEAT, sendo que NN entrou no mesmo pela porta do condutor, ligou o motor e iniciou a marcha, enquanto a sua mãe e irmã permaneciam apeadas ao lado de tal veículo.

Apercebendo-se do funcionamento do veículo em questão, BB deslocou-se novamente ao logradouro e, de forma a impedir que qualquer pessoa dali saísse, correu em direcção ao veículo, abriu a porta do condutor e tentou tirar a chave da ignição, com o mesmo ainda em funcionamento, o que não logrou, por ter sido impedido por NN.

Paralelamente, CC, que se encontrava amedrontada com o sucedido, saiu das proximidades dos seus pais, de forma que não foi possível apurar, tendo-se deslocado para uma zona de mato sita nas imediações e, a partir daí, contactou telefonicamente a GNR de ..., solicitando a deslocação de uma patrulha ao local, o que veio a suceder.

Depois de a GNR ter chegado ao local, AA, NN e CC lograram dali sair, tripulando o veículo conduzido por NN.

No dia 14/11/2022, sensivelmente pelas 09h, quando se encontravam na sua então residência, mais concretamente na cozinha, BB iniciou uma discussão com AA, no decurso da qual aquele disse a esta última que “queria conversar” e que a mesma “tinha amantes”, o que foi por esta negado.

De imediato, BB colocou uma das suas mãos num dos bolsos do casaco que AA trajava e retirou-lhe o seu telemóvel, tencionando visualizar as comunicações ali contidas, após o que arremessou uma fruteira que se encontrava numa mesa na cozinha ao solo, partindo-a.

AA tentou reaver o seu telemóvel, sem sucesso e BB agarrou-a pela parte superior dos braços, perto dos ombros e empurrou-a para uma cadeira que ali se encontrava.

Apesar de AA tentar levantar-se da cadeira em número de vezes não concretamente apurado e de tentar afastar-se de BB, o mesmo, enquanto a acusava de ter amantes, agarrou-a com força, pela parte superior dos braços, ao ponto de rasgar a camisa que a mesma vestia e empurrou-a sucessivamente para a cadeira da qual a mesma se levantava e, posteriormente, sobre outras cadeiras, à medida que AA ia conseguindo movimentar-se, assim a obrigando a permanecer sentada contra a sua vontade.

Entretanto, AA conseguiu efectivamente, levantar-se de uma das cadeiras onde se encontrava sentada e logrou deslocar-se até à sala, ao que BB seguiu ao seu encalço e empurrou-a contra um puf que ali se encontrava, o que provocou o desequilíbrio da ofendida e consequente queda no solo sobre tal objecto.

Ato contínuo, BB colocou-se sobre AA, e fazendo uso da sua força, apertou-lhe o pescoço com as duas mãos, ao mesmo tempo que, com foros de seriedade, lhe disse “vou buscar umas facas, mato-te e vais para o céu”, tendo posteriormente colocado a sua mão sobre a boca desta, para a impedir de falar ou gritar.

Não obstante ser manietada por BB, AA logrou soltar-se daquele e conseguiu levantar e deslocar-se até uma das janelas da sala, ao que aquele, novamente, seguiu-a e desferiu-lhe um empurrão, fazendo com que esta última viesse a cair sobre um sofá que ali se encontrava.

De imediato, AA levantou-se de tal sofá na tentativa de continuar a afastar-se de BB, o qual a empurrou novamente, desta feita contra um novo sofá, de dimensões mais reduzidas que o anterior, fazendo com que a mesma ficasse sentada no mesmo.

Nesse seguimento, BB aproximou-se do sofá onde AA estava sentada, levantou-o em peso e, recorrendo ao uso da força, virou-o ao contrário, fazendo com que esta última caísse no solo e o aludido sofá tombasse sobre o corpo desta.

Assim que tal sucedeu, BB vociferou “dizes que andas sempre a limpar a casa, mas a casa debaixo do sofá está suja, o que tu fazes eu fazia em meia hora”.

Durante tais factos, AA encontrava-se descalça e, enquanto tentava resistir à forma como era manietada por BB, logrou obter a chave do BMW X5 acima descrito, que se encontrava num dos bolsos da roupa que este último então vestia.

Instantes depois, AA conseguiu sair debaixo do aludido sofá, levantou-se e afastou-se de BB, tendo logrado sair da sala e se deslocado para o exterior, mais concretamente ao logradouro, onde entrou no veículo acima descrito.

Nesse momento, BB surgiu no local, dirigiu-se aos portões pelos quais tal veículo teria de passar para sair e fechou-os com as suas mãos e, de seguida, de viva voz e com foros de seriedade, dirigiu a AA as seguintes expressões: “Não estou para viver desta forma consigo e custa-me pouco tapar-te a boca arrastar-se pelos cabelos até à porta da cozinha”, após o que voltou a entrar na residência.

Logo após, AA entrou na residência para se calçar, o que fez, deslocou-se novamente ao veículo acima descrito, iniciou a marcha e logrou sair da citada residência, cerca das 10h30.

Sucede que, AA não conseguiu levar o seu telemóvel conseguido, pois BB ficou com o mesmo, por lho ter tirado, permanecendo na então residência e sob o controlo deste até cerca das 15h30 do dia supra descrito, quando aquela se deslocou novamente à referida residência, desta feita acompanhada de militares da GNR de ....

Após, AA abandonou definitivamente a residência comum e passou a pernoitar, juntamente com a sua filha, na residência dos seus pais, acima descrita.

Como consequência directa e necessária da conduta de BB supra descrita, AA, além de ter sofrido dores nas partes do corpo que infra se descrevem, e de ter hematomas e arranhões, designadamente, no pescoço, pernas e braços, apresentou:

a.         No membro superior esquerdo: duas equimoses da face anterior e lateral externa do terço médio do braço com 5 por 5 centímetros e 5 por 4 centímetros e outra equimose arroxeada da face posterior do braço, com 1 centímetro de diâmetro;

b.         No membro inferior esquerdo: equimose acastanhada da raiz da coxa com 2 centímetros de diâmetro e outra da face anterior do terço superior da perna com 2 por 3 centímetros de maiores dimensões.

Acontece que, no mesmo dia 14/11/2022, pelas 19h30, BB deslocou-se à residência dos pais de AA, logrou abrir o portão de entrada, de forma não concretamente apurada e dirigiu-se à porta de entrada da residência, tendo desferido um número não concretamente apurado de pancadas na mesma, ao mesmo tempo que, de viva voz, apodava AA de “puta” e exigiu ver a sua filha, o que foi escutado por CC e fez com que a mesma se sentisse amedrontada.

Nessa sequência, foi acionada uma patrulha da GNR de ..., que se deslocou à referida residência, após o que BB abandonou o local sem levar acabo os seus intentos.

Mesmo após os factos descritos acima, BB enviou continuamente mensagens escritas (constantes de fls. 250 a 468 e que se dão por integralmente reproduzidas no presente despacho, por desnecessidade de transcição) do telemóvel por si utilizado, com o número ...42, para o número de telemóvel utilizado por AA, ...28, no decurso das quais o mesmo, para além do mais:

c.          Que o pai de AA tem vergonha desta (no dia 16/11/2022, às 07h21);

d.         Que AA vinha sempre acompanhada para fazer a novela e de coitadinha (no dia 14/12/2022, às 05h32);

e.          Escreveu expressões que insinuavam que AA não foi agredida por si (no dia 16/11/2022, pelas 06h16, 06h17, 07h15; no dia 17/1172022, pelas22h14);

f.          Disse a AA que gostava da mesma e questionou-a, por diversas vezes, se gostava de si (no dia 21/11/2022, pelas 22h45, 22h50, 22h52, 22h55, 22h56).

Na sequência de todo o supra descrito, e como consequência da conduta de BB, AA sentiu-se psicologicamente perturbada, humilhada e amedrontada, pois, além de ter, a todo o momento, aquele atentasse contra a sua integridade física ou mesmo contra a sua vida.

Com todas as suas condutas supra descritas, BB, como representou, quis e logrou realizar, molestou o corpo e a saúde física e psíquica de AA, bem sabendo que a mesma se encontrava impossibilitada de se defender das suas investidas, designadamente por força da sua inferior compleição física.

O arguido estava também ciente de que praticava os factos acima descritos na habitação comum com AA e sobre esta última, que era, à data, sua ex-mulher e companheira e a quem, nessas qualidades, devia respeito, cuidado e protecção, bem como os perpetrava na presença dos filhos de ambos, inclusivamente de CC que era, naquelas datas, ainda menor de idade, não se abstendo de a expor aos seus comportamentos, que a deixavam amedrontada e psicologicamente transtornada.

Ao logo de todas as suas condutas, o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as mesmas eram proibidas e puníveis por lei penal.

Em data que não foi possível apurar, mas no ano de 2016, entre as 15h e 16h, nas imediações do Continente de ..., BB disferiu um número que não foi possível apurar de chapadas com a mão aberta a AA.

Em data não concretamente apurada, mas seguramente em julho de 2016, BB deslocava-se num veículo automóvel com AA e os dois filhos, tendo ido deixar estes dois últimos ao avô paterno e seguido com AA para a casa do casal.

Já no interior da casa do casal, BB retirou o seu cinto e atingiu AA nas pernas, um número de vezes que não foi possível apurar, mas certamente mais do que uma.

No caso dos autos e face a toda a matéria de fato dada como provada que se dá por reproduzida é evidente que as condutas do arguido demonstram, claramente, que este, motivado pelos ciúmes que sentia, pretendeu e conseguiu o propósito de subjugar a ofendida, submetendo-a a um tratamento desprezível e desumano, que lhe causou dor, o que, em si mesmos e sem qualquer dúvida afectaram a sua dignidade pessoal, nos termos e para os efeitos da aplicação do artigo 152.º, n.º 1 do C.P.

Entende, pois, o Tribunal que o arguido atingiu, com este comportamento, intoleravelmente, o núcleo essencial do bem jurídico protegido pela incriminação e, por isso, não nos restam dúvidas de que o arguido, com a sua conduta, cometeu um crime de violência doméstica pelo qual vinha acusado, pelo que terá de ser condenado, crime punido pelo nº1, alínea a) e 2, alínea a), do mesmo artigo pois que os factos foram praticados na residência comum do casal e em frente da filha do casal, à data menor de idade.

*

DO CRIME DE INJÚRIA

A arguida vem acusada da prática em autoria material e na forma consumada de um crime de injúria.

Ora, determina o n.º 1, do artigo 181º, do Código Penal que “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.”

Com esta norma visou o legislador tutelar o bem jurídico honra, que tem sido entendido como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo radicado na sua dignidade, quer a sua própria reputação ou consideração exterior (neste sentido, JOSÉ FARIA COSTA, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 607).

Assim, protege-se não só a própria dignidade pessoal mas também o sentimento daquilo que "os outros pensam e vêm em si, independentemente de corresponder à verdade, dando, assim, cumprimento ao estipulado na nossa Lei Fundamental que tutela autonomamente a inviolabilidade da integridade moral das pessoas e a sua consideração social, mediante o reconhecimento a todos do direito ao bom nome e reputação” (ANTÓNIO J. F. DE OLIVEIRA MENDES, in O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, pág. 20 e ss.).

Como referem SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, a honra pode ser entendida como «a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter...» (Código Penal Anotado, 3.ª Edição, pág. 469), enquanto que a consideração é o «património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros» (Código Penal Anotado, 3.ª Edição, pág. 469).

De todo o modo, releve-se que o conceito de honra tem sido definido e valorado de modos diferentes consoante a concepção (fáctica ou normativa) que dela se tenha.

Assim, e de acordo com a concepção fáctica de honra, esta consiste no juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma, corrigido pelo critério do sentimento médio de honra tido pela comunidade em que se insere, ou na avaliação que os outros fazem sobre ela e que, de acordo com este sentido objectivo, equivale à consideração, ao bom nome, à reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente.

Por outro lado, a concepção normativa de honra caracteriza-a como um aspecto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence pelo simples facto de ser pessoa e ter direito à sua dignidade, aliado também ao valor social de que a pessoa goza no contexto das relações sociais em que se insere.

Na realidade, e na medida em que ambas as concepções apresentam dificuldades e fragilidades, que nos dispensamos aqui de enunciar, a doutrina que veio a consagrar-se dominante parte da concepção normativa de honra mas tempera-a com a sua vertente fáctica, definindo a honra como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua própria reputação ou consideração exterior (neste sentido, JOSÉ FARIA COSTA, ob. sit.).

Quanto aos elementos objectivos do tipo, podemos com segurança afirmar que os mesmos se vertem na ofensa propriamente dita, ou seja na imputação de factos ofensivos da honra ou da consideração, sendo certo que tal imputação tem de ser feita directamente à pessoa visada.

Bem assim, as palavras utilizadas têm necessariamente de ser tidas como obscenas e ofensivas no contexto social em que o lesado se insere.

Além disso, hão-de ser expressões cujo uso não seja quotidiano e tido como normal e aceitável nesse mesmo meio, e nas relações entre o ofensor e o ofendido.

Refira-se ainda que esta imputação de factos praticados pelo visado pode mesmo ser feita sob a forma de suspeita, o que permite alargar consideravelmente o âmbito de aplicação da norma, abraçando também as situações aliás mais perversas da imputação de factos que estejam cobertos pelo manto da suspeita, aliás as formas mais destruidoras da honra e consideração das pessoas.

Finalmente, o elemento subjectivo deste crime restringe-se ao dolo, podendo definir-se como a intenção e vontade de proferir as palavras ou imputar os factos ofensivos da honra da pessoa visada, bem sabendo que o são e querendo com isso afectá-la, enfim, na sua dignidade pessoal e social, consciente de que a lei proíbe e pune tal comportamento.

Assim, e como é sabido, o crime de injúria é um crime contra as pessoas em que basta, para a sua execução no plano subjectivo, o dolo genérico (mesmo eventual), desde que os factos imputados ou as palavras sejam objectiva e subjectivamente ofensivas da honra, dignidade ou consideração de uma pessoa jurídica; no plano objectivo, para além do facto de a violação da honra ser perpetrada de maneira directa, ou seja, perante a vítima, ele realizar-se-á mediante a imputação de facto ou mediante a formulação de um juízo ofensivo da honra de outrem. (cfr. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, "As Consequências Jurídicas do Crime", Vol. I, pág. 218).

Sendo a vida em sociedade pautada por situações de conflito potencial, mais estando a intervenção penal subordinada ao princípio da subsidiariedade, é entendimento dominante que apenas assumem relevância penal os juízos ou valorações que ultrapassem o âmbito da critica objetiva, isto é, aqueles que atingem a honra e consideração pessoal do visado, por não se encontrarem relacionados com uma qualquer conduta ou obra, antes tendo como propósito humilhá-lo e rebaixá-lo. 

Neste sentido, entre outros, lê-se no Ac. do TRP, de 20-06-2012 , o seguinte: ““I - A liberdade de expressão tem longínquas raízes históricas, surpreendendo-se na Constituição dos EUA, o primeiro texto legal a referir-se claramente a tal liberdade. II - São cada vez mais frequentes os conflitos entre o direito à honra, bom nome e reputação, por um lado, e o direito de expressão do pensamento, por outro. III - Numa sociedade democrática, a liberdade de expressão reveste a natureza de verdadeira garantia institucional, impondo por vezes, um recuo da tutela jurídico-penal da honra. Recuo, que tem que ser justificado por um correcto exercício da liberdade de expressão, aferido pelo interesse geral. IV - Sendo inevitável o conflito entre a liberdade de expressão, na mais ampla acepção do termo e o direito à honra e consideração, a solução do caso concreto, há-de ser encontrada através da “convivência democrática” desses mesmos direitos: i. é., consoante as situações, assim haverá uma compressão maior ou menor de um ou outro. V - Costa Andrade defende que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto, esclarecendo, no entanto, que se deve excluir a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar. […]”.

Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem perfilhado, em inúmeros arestos, uma visão mais ampla do que deve ser entendido como ofensivo da honra, acentuando a importância que a liberdade de expressão assume num Estado de Direito Democrático, com particular incidência em contextos de atuação política ou informação pública.

Contudo, e como se escreveu no Ac. do TRP, de 22-02-2023 , “I – Porque há que conciliar a tutela do direito à honra atingido (…) e a liberdade de expressão e crítica, há que distinguir entre a crítica da atuação de uma pessoa e a crítica que atinge a própria pessoa na sua dignidade, entre um juízo sobre essa atuação (que poderá até ser injusto, exagerado, formulado em termos agressivos, ou indelicados e descorteses) e um juízo sobre a pessoa”, sendo que a jurisprudência do TEDH não anula tal distinção, como se inexistisse direito à honra, nomeadamente entre particulares.

No que diz respeito ao elemento subjetivo, trata-se de um crime doloso, que pode assumir qualquer uma das modalidades previstas no art.º 14.º do CP.

Revertendo ao caso concreto e tendo em conta a factualidade dada como provada, designadamente que, de forma reiterada, em datas que não foi possível apurar, mas com especial incidência a partir do ano de 2019 e até ao término da relação, em finais do ano de 2022, AA, num número de vezes que não foi possível apurar mas pelo menos uma vez, dirigindo-se a BB, quer pessoalmente, quer estivessem sozinhos ou na presença de terceiros, apelidou-o de “bêbado”, “porco”, “cabrão”, “touro”, “boi” e “atrasado”.

Mais disse AA a BB, pelo menos uma vez e em data que não foi possível apurar, que “se queres roncar para mim, roncas em casa”.

As expressões referidas em 48. foram proferidas presencialmente por AA dirigindo-se a BB quando se encontravam sozinhos, quando se encontravam na presença dos seus filhos, sendo a filha menor de idade à data e quando estavam acompanhados de terceiros, designadamente da irmã do BB EE e cunhado OO, quer na habitação comum, quer em locais públicos.

AA dirigindo-se a BB, enviou diversas mensagens escritas através do contacto telefónico por si utilizado (...28) para o contacto telefónico utilizado por BB (...42) através de mensagens de texto e da plataforma “whatsapp”, constantes de fls. 250 a 468 e 590 a 684, que aqui se dão por integralmente reproduzidas para os devidos e legais efeitos, e no decurso das quais a mesma:

a.         Acusou BB de ter amantes e de a trair, designadamente no dia 03/07(2021, às 11h57 (fls. 670 dos autos), no dia 30/08/2021, às 11h59 (fls. 675), no dia 23/10/2022, ás 20h42 /fls. 592), no dia 16/11/2022, às 6h15, 06h19, 06h22, 06h26, 06h55 e 10h06 (fls. 9,15, 18 e 90 do termo de juntada datado de 13/12/2022 e fls. 601 f- e 610 f) e no dia 21/11/2022, às 8h (fls. 186 do termo de juntada datado de 13/12/2022 e fls 616 f);

b.         Disse que BB era maluco, designadamente nos dias 02/11/2022, às 11h21 (fls. 597) e 16/11/2022, às 10h29 e 10h30 (fls. 99 e 100);

c.          Disse que BB era um bêbado, designadamente no dia 24/08/2022, às 15h43, 15h44, 15h46 e 16h25 (fls. 638, 639, 641 e 646);

d.         Disse que BB era um miserável, designadamente no dia 24/08/2020, às 15h45 e 15h47;

e.          Disse que BB era um porco, nos dias 30/12/2020, às 11h16 e 11h41 – fls 657 e 658), no dia 19/01/2021, às 17h14 (fls. 660), no dia 30/08/2021, às 11h59 (fls. 675) e no dia 28/10/2021, às 14h24;

f.          Disse que BB era um atrasado, designadamente no dia 01(11(2022, às 22h22 (fls. 679);

g.          Disse que BB merecia levar nos cornos como levou o membro da sua família, no dia 10/05/2021, às 8h28 (fls. 664).

Ao agir da forma supra descrita, a arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, representando e aceitando os resultados alcançados, sendo que, não obstante esta saber que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime, não se absteve de atuar da forma descrita.

Há ainda que atender que foi ainda dado como provado que, BB enviou continuamente mensagens escritas (constantes de fls. 250 a 468 e que se dão por integralmente reproduzidas no presente despacho, por desnecessidade de transcição) do telemóvel por si utilizado, com o número ...42, para o número de telemóvel utilizado por AA, ...28, no decurso das quais o mesmo, para além do mais:

a.         Acusou AA de ter amantes, de o trair, de ser uma criança, viver romances da escola com 15 anos e de ter um cérebro de canalha, pior que  a sua filha, entre outras expressões referentes a esse tipo de imputações (designadamente, os dias 16/11/2022, pelas 05h33, 06h14, 06h20, 06h54, 07h10, 10h33, 10h35, 11h53, 12h, 15h02, 16h02, 18h07, 21h; no dia 17/11/2022, pelas 10h25, 10h26, 11h04, 22h02, 22h06, 22h48; no dia 18/11/2022, pelas 02h37, 02h49, 03h, 12h26, 12h37, 15h58; no dia 21/11/2022, pelas 22h45 e 22h49);

b.         Disse que AA era uma “sem vergonha porca” (no dia 18/11/2022, pelas 03h01).

Na situação sub judice, temos que tais expressões foram proferidas num contexto de conflitualidade entre o casal que, ao que se apurou era a sua dinâmica familiar, o que, de foi asseverado até pela filha do casal.

Ora, tais expressões, tanto por parte da arguida, como do arguido, podem eventualmente ser compreendidas enquanto manifestação do seu desagrado pela conduta assumida pela outra parte quando proferidas no seio familiar.

Aliás, o clima vivido por esta família, que a testemunha CC apelidou de “pouco saudável”, era de conflito permanente causado por ciúmes de parte a parte.

Assim, o Tribunal ficou com a convicção de que as expressões supra referidas o foram de parte a parte, num clima de conflitualidade permanente e, não conseguindo o Tribunal apurar quem iniciou, sendo que, segundo as regras da experiência comum, tal seria extremamente improvável uma vez que toda a relação assim foi pautada, reputa-se que os factos acima descritos são a descrição da dinâmica familiar dos arguidos, que estes aceitaram e para a qual ambos contribuíam.

Atente-se ainda à falta de elemento subjectivo, uma vez que o Tribunal acredita que o objectivo dos arguidos não era atingir a honra e dignidade da outra parte uma vez que esta interacção entre ambos já estava integrada e entranhada na sua relação.

Face a todo o exposto, inexistindo elemento subjectivo para integrar o crime da qual a arguida vinha acusada, e considerando que os factos supra descritos, atenta o seu contexto, não atingem a dignidade penal suficiente para integrar o crime pelo qual a arguida vinha acusada, e tendo em conta que inexistem factos de ser subsumíveis ao elemento subjectivo, pelo que terá de ser absolvida.

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DO CRIME DE DIFAMAÇÃO

A arguida vem também acusada pela prática, em autoria material de um crime de difamação previsto e punido pelos arts. 180.º, n.º 1 do Código Penal.

Dispõe o referido preceito que “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias”.

Com esta incriminação pretendeu o legislador tutelar a honra do indivíduo, vendo a doutrina dominante tal honra como um bem jurídico complexo, o qual inclui, por um lado, “o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, e, por outro, a sua própria reputação ou consideração exterior” (neste sentido, JOSÉ DE FARIA COSTA, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I – Artigos 131.º a 201.º, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 602 a 607).

A difamação traduz a actuação de quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo.

Difamar é assim desacreditar publicamente; é atribuir a alguém um facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social e, por consequência, sejam ofensivos da reputação do visado.

Assim, doutrinariamente pode definir-se difamação como a atribuição indirecta a outrem de factos ou juízos, ainda que não criminosos, que encerrem em si reprovação ético social, isto é, que sejam ofensivos da reputação do visado.

Na linguagem da lei a difamação compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém.

Honra é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter; é a dignidade subjectiva, entendida como o elenco de valores éticos que cada pessoa possui; consideração é o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros; é a dignidade objectiva, a forma como a sociedade vê cada cidadão.

 Por isso afirmava Schoppenhauer que a honra, “objectivamente, é a opinião dos outros sobre o nosso mérito; subjectivamente o nosso receio diante dessa opinião”.

A difamação distingue-se da injúria por pressupor uma relação triangular, em que a ofensa é levada a cabo através da intervenção de uma terceira pessoa, ou seja, dirigida e veiculada por terceiro (ou terceiros), e não directamente perante a própria vítima.

Na definição do bem jurídico protegido com a incriminação da difamação deve-se, em nosso entender, partir de uma concepção normativa da honra, entendida enquanto bem que respeita a todo o homem pela sua qualidade de pessoa, e que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade (a honra inerente à pessoa enquanto portadora de valores morais e espirituais), quer a própria reputação ou consideração exterior.

A doutrina dominante perfilha ainda do entendimento de que a compreensão da honra, enquanto bem jurídico socialmente vinculado, tem uma óbvia variabilidade, “em função das representações colectivas dominantes e historicamente contingentes”.

O crime de difamação é um crime necessariamente doloso (artigo 13º do Código Penal), pressupondo o conhecimento dos elementos objectivos do tipo (elemento intelectual do dolo), a vontade de realização do facto (elemento volitivo) e a consciência da ilicitude da conduta (elemento emocional do dolo).

O dolo pode aqui revestir qualquer das suas modalidades, incluindo o dolo eventual (artigo 14º do Código Penal).

Em resumo, em termos de tipo objectivo de ilícito podemos sistematicamente afirmar que este se estrutura em dois grandes segmentos:

- Por um lado a ofensa propriamente dita;

- Por outro o segmento de sinuosidade que exige que a conduta não se face directamente ao ofendido, mas antes seja dirigido a terceiros.

Entenda-se que para se considerarem verificados os pressupostos do tipo legal em análise não é necessário que o ofendido tenha sofrido, de facto, uma diminuição na sua honra, ou na consideração social; basta que haja o perigo de que as ofensas que constituem aquelas infracções possam atingir esses dois valores.

Efectivamente a lei não exige que eles sejam realmente prejudicados, isto é, que os ofendidos, de facto, sejam computados socialmente como pessoas com menor dignidade do que a que tinham antes da ofensa, ou com menor consideração do que aquela que lhes era atribuída antes do ultraje em questão.

Relevante será a contextualização dos factos, ou seja, a atenção à característica da relatividade, o que quer dizer que o carácter injurioso de determinada palavra ou acto é fortemente tributário do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorrem e do modo como ocorrem (LEAL HENRIQUES E SIMAS SANTOS, O Código Penal de 1982, volume 2, pág. 203, 1986).

Por fim, e no que toca ao elemento subjectivo, podemos afirmar que o crime de difamação é um crime doloso, o que quer significar que só estão arredadas do seu âmbito subjectivo as condutas negligentes, sendo por isso suficiente a imputação baseada tão só em dolo eventual.

Ora, face a todo o exposto e à factualidade dada como provada nos autos, somos de concluir que a arguida não cometeu o crime de difamação que lhe é imputado, pelo que tem de ser absolvida.

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Da escolha e determinação da medida da pena

    O crime de violência doméstica em causa, é punível com pena de prisão de dois a cinco anos – artigo 152.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal.

Sendo o crime punível, apenas, com pena de prisão, não há lugar à operação de escolha da pena aplicável, cabendo determinar, desde já, a medida concreta da pena, em função da culpa e das exigências de prevenção.

As finalidades da punição encontram-se consagradas no artigo 40º, n.º 1 do Código Penal, reconduzindo-se à protecção de bens jurídicos, no âmbito da prevenção geral positiva, e à reintegração do agente na sociedade, no âmbito da prevenção especial positiva.

Da conjugação deste preceito com o disposto no artigo 71.º, do mesmo Código, resulta que a pena terá como limite máximo intransponível a medida da culpa do agente, e que até esse limite máximo será estabelecida uma moldura de prevenção geral de integração, em que o limite superior será o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e o limite inferior será dado pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.

Será dentro desta submoldura - estabelecida a partir da moldura penal abstracta, mas com consideração das particularidades do caso concreto - que se irá determinar o quantum da pena, de acordo com as necessidades de prevenção especial - Neste sentido v. Acórdão do STJ, de 12.03.2009, P. 08P2191, disponível em www.dgsi.pt..

No caso, no que concerne às exigências de prevenção geral, verifica-se que todos os dias a sociedade é confrontada com a prática de factos desta natureza, que são cada vez mais divulgados e que merecem forte censura e intolerância social.

Com efeito, «quando se fala em prevenção geral neste domínio, somos facilmente remetidos para as considerações de que este delito pretende obviar a uma das formas mais graves de violência, em que alguém é subjugado a uma vida de humilhações, forçado a aceitar as opiniões e as ofensas de outrem que se mostra fisicamente mais forte, num ciclo cada vez mais frequente, em termos estatísticos, e numa prática que deverá ser decisivamente afastada dos hábitos da nossa comunidade, num reforço da consciência jurídica comunitária, na qual o valor da igualdade entre cônjuges já se impõe há décadas, em termos de direito escrito. Também são elevadas as necessidades de prevenção geral no que tange ao sentimento comunitário de insegurança, face à constante violação da norma.» - 9 Paulo Guerra, in Violência Doméstica, implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, Manual Pluridisciplina, CEJ, Abril 2016, p. 241, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/destaques_publicacoes.php.

Acresce que a gravidade objectiva dos factos, espelhada na factualidade provada, é já de relevo considerável.

Nesta medida, as exigências de prevenção geral são muito elevadas.

No que respeita às exigências de prevenção especial, importa considerar que o arguido não demonstrou arrependimento, tentando imputar responsabilidades dos acontecimentos à vítima.

Por outro lado, apesar de ter antecedentes criminais, estes estão relacionados com a sua actividade laboral e a regulação da mesma em França.

Tais circunstâncias, tendo em conta o modo como praticou os factos, bem como o clima de violência permanente, bem como as agressões perpetradas por aquele na vítima e ainda o hiato temporal de anos em que decorreram, levam-nos a considerar que as exigências de prevenção especial são elevadas.

Há, ainda, que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime em referência, depuserem a favor ou contra o agente - artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.

No caso, cumpre considerar:

▪ o dolo, que é directo e, como tal, intenso;

▪ o grau de ilicitude e o modo de execução do crime: que dentro da gravidade objectiva do tipo legal de crime em que nos movemos, é elevada, envolvendo agressões praticadas no domicílio comum.

Tudo visto e ponderado, julgamos adequado e proporcional condenar o arguido na pena de 2 anos e 6 meses de prisão.

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Da suspensão da pena de prisão:

Nos termos do disposto no artigo 50.º do Código Penal:

«O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.».

A suspensão da execução da pena de prisão assume um carácter pedagógico e reeducativo, sendo que, na respectiva decisão, já não são atendíveis considerações de culpa, mas exclusivamente de prevenção, atentando-se, assim, na personalidade do agente, nas suas condições de vida, na sua conduta anterior e posterior ao crime, bem como nas circunstâncias deste.

Para suspender a execução da pena de prisão é necessário que se possa formular um juízo de prognose social favorável ao arguido, isto é, que se possa concluir que a respectiva condenação constituirá uma séria advertência e um forte alerta para que não volte a delinquir, e de que, em liberdade, o agente irá aderir, sem quaisquer reservas, a um processo de socialização – neste sentido, ver acórdão Supremo Tribunal de Justiça datado de 19.11.2008, processo n.º 08P3281, disponível em www.dgsi.pt.

Note-se que este juízo de prognose se reporta ao momento da decisão, e já não ao da prática dos factos.

No caso em apreço, como vimos, o arguido apenas possui antecedentes criminais quanto à regulação da sua actividade laboral em França.

O arguido não demonstrou arrependimento.

Tudo ponderado, considera-se que ainda se mostra possível formular o supra mencionado juízo de prognose social favorável ao arguido.

Neste contexto, afigura-se-nos que a simples censura do facto e a ameaça da prisão serão suficientes para tutelar o bem jurídico violado e impedir que o arguido volte a praticar crimes da mesma natureza, pelo que se suspenderá a execução da pena de 2 anos e 6 meses de prisão pelo mesmo período de tempo – artigo 50.º, n.º 1 e 5, do Código Penal.

Nos termos do disposto no artigo 50.º, n.º 2, do Código Penal, “o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do disposto nos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”.

Nos termos do disposto no artigo 34.º-B, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro:

«A suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.».

No caso em apreço, atendendo à sobejamente conhecida dificuldade de combater a problemática da violência doméstica e à circunstância de esta exigir uma mudança de postura de vida e de mentalidade por parte dos agressores, entendemos que a efectiva reintegração do arguido na sociedade e a protecção da vítima contra a prática de novos factos carece da subordinação da suspensão da execução da pena condicionada ao cumprimento de determinadas regras de conduta para alcançar esse objectivo, em benefício tanto do arguido como da vítima, designadamente:

a)         a proibição de contactos com a vítima, por qualquer meio (incluindo contactos telefónicos, por telemóvel e através da internet), e de se deslocar à residência da mesma;

b)         a frequência de entrevistas/sessões com o técnico de reinserção social, orientadas no sentido de o arguido interiorizar o desvalor da sua conduta, com vista a evitar a prática de novos factos, em moldes a definir pela Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais;

b)         a colaboração com os técnicos de reinserção social na execução do plano que vier a ser elaborado, prestando todas as informações solicitadas, respondendo às convocatórias e recebendo as visitas que aqueles entendam necessárias e pertinentes; e

c)          pagamento da indemnização que venha a ser arbitrada à vítima a comprovar nos autos nos primeiros seis meses da suspensão.

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Penas acessórias:

Nos termos do disposto no artigo 152.º, n.º 4 a 6, do Código Penal, em caso de condenação pela prática de crime de violência doméstica, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, bem como a de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica ou inibição do exercício das responsabilidades parentais.

A aplicação destas penas não é automática, dependendo, ao invés, de um juízo que, em face da factualidade provada e das circunstâncias do caso concreto, evidencie que as mesmas se mostram necessárias e adequadas às finalidades da punição – artigo 65.º, n.º 1, do Código Penal.

No caso em apreço, a pena acessória de proibição de uso e porte de armas (que, apesar de não constar na acusação, sempre poderia ser aplicada, com recurso à alteração da qualificação jurídica, se necessário), afigura-se desnecessária, visto que não se apurou que o arguido seja titular de qualquer arma ou qualquer relação entre a prática dos factos e a utilização de armas.

No que concerne à pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica e de proibição de contacto com a vítima – com afastamento da residência ou do local de trabalho -, tal situação encontra-se já abrangida por condições semelhantes impostas ao arguido no âmbito da suspensão da execução da pena de prisão, motivo pelo qual se torna desnecessária a sua aplicação.

Quanto à inibição do exercício das responsabilidades parentais, uma vez que da factualidade provada não ressalta qualquer agressividade ou facto cometido para com os filhos do ex-casal, entende-se não ser de aplicar qualquer pena acessória de tal natureza, atenta a sua eventual desproporcionalidade e desaquação.

Nesta medida, inexistem factos concretos que justifiquem a necessidade de impor ao arguido as penas acessórias mencionadas, motivo pelo qual as mesmas não serão aplicadas.

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Da reparação da vítima:

O artigo 21.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, dispõe que:

“1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.

2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.”.

A indemnização em causa apenas não é concedida quando a vítima a tal expressamente se oponha.

Ora, não tendo tal oposição expressa ocorrido, deverá ser fixada uma indemnização à vítima que, atenta a gravidade dos factos dados como provados, bem como as condições económicas do arguido, se fixa em €1.000,00 (mil euros) comprovando tal pagamento nos autos nos primeiros 6 (seis) meses da suspensão.

Do pedido de indemnização civil

De acordo com o disposto no art.º 71.º do CPP, “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.

No caso destes autos, a assistente deduziu pedido de indemnização civil, peticionando a condenação dos arguidos no pagamento do valor total de €20.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora legais contados desde a notificação até efetivo e integral pagamento.

De acordo com o art.º 483.º, n.º 1 do Código Civil (CC), quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos causados.

Este normativo apresenta os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, também denominada aquiliana, a qual assume, no nosso ordenamento jurídico, uma função essencialmente ressarcitória, de reposição do status quo ante.

São pressupostos da responsabilidade aquiliana a existência cumulativa de: i) um facto voluntário, ii) que esse facto seja ilícito, iii) existência de danos, iv) nexo de causalidade entre o facto e o dano e v) culpa.

Para além disto, nos termos do disposto no art.º 484.º do CC, “Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou coletiva, responde pelos danos causados”.

Já o art.º 496.º, n.º 1 do CC, por sua vez, dispõe que “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, acrescentando o n.º 4 que esse montante é fixado pelo tribunal, com recurso à equidade e tendo em conta as circunstâncias previstas no art.º 494.º do CC.

Os danos não patrimoniais, ao contrário do que sucede com os danos patrimoniais, não visam a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento lesivo, tendo antes como objetivo compensar o lesado pelos danos físicos e morais por este sofridos, os quais se podem traduzir, designadamente, em angústia, tristeza, dores físicas, ansiedade, privação de sono, entre outros.

Tais danos, embora sejam infungíveis e não possam ser reintegrados por equivalente, poderão ser objeto de uma compensação monetária, assim aliviando ou mitigando os sofrimentos que o facto lesivo originou.

Por sua vez, as circunstâncias a que manda atender o n.º 4 do art.º 496.º do CC são o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado e, bem assim, as demais circunstâncias do caso.

Haverá ainda que atentar à gravidade do dano, apreciação esta que deve ser analisada de modo objetivo e tendo como referência a sensibilidade média humana.

Por fim, cumpre referir que a obrigação de indemnização só existe relativamente aos danos que o lesado, provavelmente, não teria sofrido se não fosse a lesão, o que decorre da doutrina da causalidade adequada, na sua vertente negativa, consagrada no art.º 563.º do CC. Desse modo, um facto é causa de um dano quando é um de entre várias condições sem as quais aquele se não teria produzido.

No caso em apreço, e relativamente ao demandado BB, resultou provado que a demandante, em consequência da conduta daquele, além de ter sofrido dores nas partes do corpo que infra se descrevem, e de ter hematomas e arranhões, designadamente, no pescoço, pernas e braços, apresentou:

a.         No membro superior esquerdo: duas equimoses da face anterior e lateral externa do terço médio do braço com 5 por 5 centímetros e 5 por 4 centímetros e outra equimose arroxeada da face posterior do braço, com 1 centímetro de diâmetro;

b.         No membro inferior esquerdo: equimose acastanhada da raiz da coxa com 2 centímetros de diâmetro e outra da face anterior do terço superior da perna com 2 por 3 centímetros de maiores dimensões.

Em face do que se deixou exposto, dúvidas não existem quanto ao preenchimento, in casu, dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos prevista nos art.ºs 483.º, n.º 1, 484.º e 496.º do CC.

Com efeito, os danos a que acima nos referimos assumem suficiente gravidade para merecer a tutela do Direito, tendo provindo de factos ilícitos e culposos, voluntariamente praticados pelo demandado, cuja conduta violou direitos subjetivos da demandante.

Por outro lado, mostra-se verificado o competente nexo de causalidade entre as condutas assumidas pelo demandado e os danos criados na esfera jurídica do demandante.

Consequentemente, forçoso será concluir que o demandado se encontra obrigado a indemnizar o demandante pelos danos que lhe causou.

Tais danos, por sua vez, são insuscetíveis de avaliação pecuniária, razão pela qual a obrigação de indemnizar terá de assumir uma natureza compensatória, a arbitrar segundo juízos de equidade e à luz dos critérios previstos no art.º 494.º, n.º 4 do CC.

No caso, importa atender às condições sócio-económicas do demandado e ainda considerar a extensão dos danos provocados ao demandante, que assumem uma dupla vertente (física), o grau de ilicitude das condutas do demandado e a sua culpa, que se reputam como elevados.

De igual modo, haverá que atender aos valores que vêm sendo decididos pela jurisprudência a título de indemnização em situações similares, tendo presente que “A indemnização por danos não patrimoniais, para responder, actualizadamente, ao comando do artº 496 do CC e constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, não meramente simbólica ou miserabilista.”

 Em face do exposto, considera-se ajustado e proporcional arbitrar, a título de reparação pelos prejuízos sofridos, a quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) a favor da demandante AA, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 483.º, n.º 1, 484.º  e 496.º, todos do CC.

No que concerne aos juros peticionados, tendo o montante da indemnização sido fixado na presente sentença, são devidos juros de mora desde a data da condenação, conforme decido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2002, de 09-05-2002, publicado no Diário da República – I Série-A, de 27 de junho de 2002.


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Deduziu ainda o assistente pedido de indemnização civil, peticionando a condenação da arguida no pagamento do valor total de €2.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora legais contados desde a notificação até efetivo e integral pagamento.

Atenta a factualidade dada como provada, verifica-se não estarem preenchidos os elementos da responsabilidade civil extracontratual, nomeadamente a prática de um facto ilícito.

Face ao exposto, decide-se julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante BB e, em consequência, absolver a demandada AA, do pedido de indemnização civil».


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III - Apreciação do recurso
III.1 – Da nulidade por omissão de pronuncia relativamente a factos alegados na contestação.

            Entende o recorrente ocorrer a mencionada nulidade por o Tribunal a quo não se ter pronunciado nem dado como provado ou não provado que a arguida AA tomava varfine (medicamento anticoagulante), o que determina que a mesma «fique muito facilmente com lesões visíveis, sem que seja preciso muita força ou grande impacto, e que as lesões demorem mais tempo a sarar, em relação a uma pessoa que não tome tal medicamento», requerendo o aditamento de tais factos à matéria de facto provada.

            Analisada a contestação apresentada pelo arguido verificamos que tal matéria foi alegada pela defesa para suportar a conclusão de que o episódio do dia 14.11.2022 não ocorreu da forma imputada e relatada pela ofendida, pois se assim o fosse, as lesões apresentadas por esta quando sujeita a exame pericial[1] seriam “outras e mais gravosas”.

            Ainda em sede de contestação, foi requerida a tomada de esclarecimentos à Ex.ma Senhora Perita, subscritora do relatório de perícia médico-legal, o que veio a ser deferido tendo estes vindo a ser prestados em audiência de julgamento.

            Todavia, analisada a sentença recorrida verificamos que:

            - A factualidade alegada na contestação respeitante às condições de saúde da vítima e à toma de medicamentos e ao seu eventual papel no exacerbamento das lesões apresentadas não consta nem dos factos provados, nem dos não provados;

            - Em sede de motivação, a propósito, apenas se escreveu que “Fundou ainda o Tribunal no relatório de perícia de avaliação do dano corporal junto aos autos a fls. 473 e 474, bem como nos esclarecimentos da perita que o elaborou prestados em sede de audiência de julgamento”.

            Ora, nos termos do art.º 374.º n.º 2 do CPP, o dever de fundamentação da sentença exige a enunciação «como provados ou não provados, de todos os factos relevantes para a imputação penal, a determinação da sanção e a responsabilidade civil, constantes da acusação ou da pronúncia e do pedido de indemnização cível e das respetivas contestações»[2] .

            Como se vê, tal dever de enunciação abrange os factos relevantes para a decisão alegados na contestação, sejam eles provados ou não provados, «importando saber se o tribunal recorrido apreciou ou não toda a matéria relevante da contestação»[3] .

            O que bem se compreende, sabido que este articulado constitui um dos meios nucleares da defesa (ainda que não o único) através do qual o arguido exerce os seus direitos de defesa, na fase de julgamento, perante a acusação que lhe tenha sido movida ou face aos factos pelos quais tenha sido pronunciado.

            É sobretudo nessa peça processual que o arguido tem ensejo de tomar posição sobre a factualidade contra si articulada, impugnando-a e alegando outra matéria que possa ter como efeito afastar ou minorar a sua responsabilidade criminal.

            Importa dizer com palavras claras: frequentemente não resultam provados os factos da acusação porque resultaram provados os factos da contestação que punham em causa a tese da acusação.

            Ou de outro modo. Não raras vezes, porque se indagaram, porque se produziu prova dos factos da contestação, porque se teve, como se deve, em igual conta a argumentação da defesa, é que determinados factos da acusação se não provam[4] .

            E como assim é, para além dos factos essenciais, também os factos circunstanciais ou instrumentais, alegados na contestação, mas que sejam relevantes para a prova, ou para que não se provem, os factos probandos descritos na acusação, devem ser objeto de pronúncia por parte do tribunal.

            Na verdade, é também através da prova de factos materiais e objetivos (factos indiciários) que não fazendo parte dos concretos factos integradores do tipo de ilícito que o Tribunal, por inferência, no respeito das regras da lógica e da experiência comum, dará ou não como provados os factos integradores do tipo.

            Deste modo, o Tribunal de julgamento está, em princípio, vinculado a emitir juízo de prova sobre os factos alegados pelo arguido na contestação, a menos que sejam irrelevantes para a decisão a proferir.

            E, pese embora o dever de fundamentação seja compatível com a enumeração concisa dos factos não provados, e com menor minúcia na indicação dos factos não provados do que relativamente aos factos provados, não pode deixar de ser feito «em termos de se adquirir a certeza de que os factos alegados foram objeto de decisão», «deixando o tribunal bem claro que foram por ele apreciados todos os factos alegados com interesse para a decisão»[5] .

            No caso vertente, compulsada a contestação podemos constatar que a estratégia da defesa passou pela alegação da falta de plausibilidade da descrição do episódio do dia 14.11.2022, alegando que não teria ocorrido na forma imputada e relatada pela vítima, já que, dadas as suas condições de saúde e o medicamento anticoagulante (varfine) que tomava, as lesões que a ofendida apresentava quando sujeita a exame pericial[6]  teriam de ser “outras e mais gravosas”.

            Ou seja, a contestação não se limitou a infirmar a factualidade imputada, nem a descrever uma realidade alternativa sem relevância penal, nem a apresentar factos inócuos, antes foi alegada matéria que, no entender da defesa, é suscetível não só de contrariar os termos em que o episódio vem descrito como ainda de abalar a credibilidade do relato da ofendida.

            E, como vimos, foi mesmo requerida e admitida a tomada de esclarecimentos à senhora perita subscritora do relatório médico-legal, que os veio a prestar em audiência de julgamento.

            Todavia, o Tribunal recorrido, desconsiderando a estratégia da defesa limitou-se a fazer constar da motivação da decisão de facto que fundou a sua convicção «no relatório de perícia de avaliação do dano corporal junto aos autos a fls. 473 e 474, bem como nos esclarecimentos da perita que o elaborou prestados em sede de audiência de julgamento». Porém, tal não basta para que se mostre cumprido o dever de fundamentação.

            Os factos alegados na contestação deveriam ter sido levados em conta na enumeração dos factos provados ou não provados, pois, naturalmente, foram entendidos pelo apresentante como sendo relevantes para a sua defesa e para a decisão da causa.

            Portanto, pelo que acabou de se expor, afigura-se que o Tribunal a quo ficou aquém da indagação factual necessária para a decisão.

            As circunstâncias invocadas poderão (ou não) assumir relevo para a decisão respeitante à factualidade imputada, para formar a convicção, sustentá-la (ou infirmá-la) e, se for caso disso, até para a fixação da medida da pena e do quantum indemnizatório.

            Não vislumbramos é razões válidas para que, desconsiderando a estratégia da defesa, o tribunal a quo não tome posição clara sobre todos os factos levados à sua apreciação, ignorando-os.

            Por essa razão, existe omissão da pronúncia na sentença recorrida, uma vez que se mostra, nos termos sobreditos, a omissão de tais factos no elenco dos factos provados ou não provados, pelo que, nessa medida, a sentença mostra-se ferida da arguida nulidade (art.º 379.º nº 1, alínea c) do CPP).

            E, não só a fixação da matéria de facto é lacunosa, como o exame crítico das provas não é absolutamente revelador do raciocínio que ao Tribunal a quo incumbia fazer, o que torna a sentença nula, por violação do disposto no artigo 374 n.º 2 ex vi artigo 379.º n.º 1 alíneas a) e c) do CPP, impondo-se que seja proferida outra sentença que supra as omissões apontadas, se necessário com reabertura da audiência e produção da prova suplementar.

            Consequentemente, com vista ao suprimento da nulidade verificada, importa que a Ex.ma Senhora Juíza profira nova sentença, em que se pronuncie sobre as seguintes questões:

            a) Emissão de juízo probatório sobre a matéria de facto alegada na contestação que respeitam às condições de saúde da ofendida e ao medicamento varfine (anticoagulante) por esta tomado;

            b) Adequação (ou não) das lesões apresentadas pela ofendida quando sujeita a exame pericial, com o evento ocorrido no dia 14.11.2022, face às condições de saúde da ofendida e (porventura, se assim resultar provado) ao medicamento, por esta tomado;

            b) Ajuizamento das questões jurídicas suscitadas em conexão com essa alegação factual;

            c) Caso o entenda com interesse para a decisão, o Tribunal poderá determinar, ao abrigo do disposto no art.º 340.º do CPP, a produção dos meios de prova necessários à averiguação dos factos sobre os quais lhe incumbe pronunciar-se, reabrindo, para o efeito, a audiência de julgamento.


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III.3 – Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia por violação do princípio  ne bis in idem

            Alega o arguido recorrente que os factos provados sob os pontos 42, 43 e 44 foram objeto de investigação no processo de inquérito n.º 127/16...., o qual foi arquivado por despacho datado de 11.07.2017, na sequência da homologação da desistência de queixa por parte da alegada ofendida AA, com a consequente extinção do procedimento criminal.

            No entender do recorrente, uma vez que tal despacho de não foi impugnado, não pode «vir o Tribunal “ressuscitar” os factos que foram objeto de arquivamento», «anulando toda e qualquer certeza e segurança no ordenamento jurídico, e violando de forma flagrante o caso julgado e a garantia constituição ne bis in idem, ínsito no art. 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa».

            Conclui o recorrente que «ao ter dado como provados os factos vertidos em 42., 43. e 44., o Tribunal a quo violou, além do mais, o n.º 5 do art. 29.º da CRP, o art. 143.º, n.º 1 e 181.º, n.º 1, 116.º, n.º 1 e n.º 2, e 152.º, todos do C.P., e arts. 48.º, 49.º e 51.º e 277.º, todos do C.P.P.» inquinando de nulidade a sentença recorrida «nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do C.P.P», pelo que «deverão tais factos ser eliminados da douta sentença».

            Vejamos.

            Como é sabido, o princípio ne bis in idem encerra um direito fundamental de defesa dos cidadãos contra o ius puniendi do Estado, encontrando entre nós consagração expressa no art.º 29.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), segundo o qual «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime».

            O referido princípio tem como fundamento a proteção da liberdade individual e, simultaneamente, a manutenção da paz social, visando proibir que os mesmos factos sejam objeto de apreciação jurídico-processual de forma repetida.

            O que se proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objeto do processo possa fundar um segundo processo penal.

            Entende-se por crime não um certo tipo legal mas, outrossim, um comportamento espácio-temporalmente concretizado, um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo.

            Quer dizer, o que verdadeiramente interessa é o facto e não a sua subsunção jurídica[7] .

            Esta garantia constitucional proíbe a dupla perseguição penal do indivíduo.

            Assim, ultrapassa as sentenças transitadas para abranger qualquer outro ato processual que signifique uma definitiva assunção valorativa por parte do Estado sobre determinado facto penal, incluindo, portanto, a decisão de não pronúncia pelo Juiz de Instrução Criminal e o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público.

            No que concerne aos despachos de arquivamento, nos termos do art.º 277.º do CPP, poderá o inquérito ser arquivado por prova de não verificação do crime, de o arguido não o ter praticado ou ser o procedimento legalmente inadmissível (nº 1) ou ainda, por falta de prova (nº 2).

É sabido que quanto aos despachos do Ministério Público não se deve falar em caso julgado ou decisão transitada em julgado.

            No entanto, a decisão final do inquérito, salvo nos casos do art.º 277 n.º 2 do CPP  é uma decisão definitiva e, como tal, com força análoga ao caso julgado, pelo que não pode ser deduzida acusação sobre factos que já tenham sido objeto de despacho de arquivamento, nos termos do n.º 1 do art.º 277.º do CPP, sob pena de violação da “força de caso decidido”.

            Já o despacho de arquivamento por falta de prova, nos termos do art.º 277 n.º 2 do CPP, na medida em que não contém um juízo perentório quanto aos factos, admite a reabertura do inquérito, nos termos do art.º 279.º do CPP, «se surgirem novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo Ministério Público no despacho de arquivamento».

            Naturalmente que a reabertura do inquérito inevitavelmente contende com os princípios da segurança jurídica e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

            E nesta matéria, revertendo às considerações acima vertidas, «teremos de concluir que só poderão fundamentar a decisão de reabrir o inquérito, os elementos de prova que, sendo desconhecidos no Ministério Público à data do arquivamento, também não poderiam por este ter sido conhecidos nesse momento. E de igual modo no caso de uma testemunha ou vítima, vier a contradizer o seu depoimento, não pode o arguido ser prejudicado pelo facto de essa testemunha ou vítima na altura não ter proferido o seu depoimento. (…) Caso contrário (…) seria deixar nas mãos do ofendido o impulso processual para futuras acções penais, obrigando o arguido a defender-se de várias investigações e acusações, apresentando sucessivas queixas eventualmente em vários locais dando origem a diferentes inquéritos pelos mesmos factos»[8]  .

            Dito isto.

            Compulsados os autos verificamos (sob a referência 91863457) que os factos julgados provados sob os pontos 42, 43 e 44  já tinham sido objeto do processo de inquérito n.º 127/16...., tendo o Ministério Público proferido despacho de encerramento do inquérito:

            a) por considerar que não foi suficientemente demonstrada a prática pelo arguido do tipo de crime de violência doméstica, p.p. pelo art.º 152.º n.º 1 al. a) do Código Penal, sendo de prever que a ser deduzida acusação, o mesmo viesse a ser absolvido em julgamento, pelo que determinou o arquivamento do inquérito nos termos do art.º 277.º n.º2, do CPP; e

            b) por entender que os crimes relativamente aos quais foram recolhidos indícios suficientes revestem natureza semipública e particular, de acordo com as disposições conjugadas dos art.ºs 143.º e 181.º do Código Penal, respetivamente e art.ºs 48.º, 49.º n.º 1 e 50.º n.º 1 do CPP, pelo que admitem desistência de queixa da ofendida, à qual o arguido não se opôs, sendo a mesma homologada e determinado o arquivamento do inquérito nos termos do artigo 277.º n.º1 do CPP.

            Como se vê, da última parte do despacho de arquivamento decorre que os factos indiciados, e que são, afinal aqueles que resultaram provados na sentença recorrida sob os pontos 42, 43 e 44  integram  prática de crime de ofensa à integridade física.

            E, por isso, foram objeto de homologação da desistência de queixa.

            Coerentemente, nos autos de inquérito 57/21.... (que deram origem ao processo comum singular no qual foi proferida a sentença recorrida), que, por sua vez, já haviam sido arquivados nos termos do art.º277.º n.º 2 do CPP, o MP proferiu despacho de reabertura do inquérito, nos termos do art.º 279.º do CPP, mas fazendo constar expressamente que tal operação «não será feita relativamente ao proc. n.º 127/16...., porquanto o mesmo foi arquivado nos termos do art. 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, designadamente por motivos de desistência de queixa».

            E como assim sucedeu, não pode deixar de considerar-se que tais factos e a sua valoração jurídica foram definitivamente apreciados e decididos no inquérito n.º 127/16...., sob pena de serem fatalmente comprometidas a segurança e certeza jurídicas.

            Por certo que a decisão de arquivamento do inquérito ao abrigo do estatuído no artigo 277.º, do Código de Processo Penal, pode não ter efeitos preclusivos[9], nem tem, seguramente, natureza jurisdicional e, por conseguinte, não comporta a noção de «trânsito em julgado».

            No entanto, homologada a desistência de queixa apresentada pela ofendida, por factos que foram qualificados pelo Ministério Público como integrantes de um crime de ofensa à integridade física, com o consequente arquivamento dos autos, sob pena de insuportável violação da paz jurídica e da segurança do cidadão, a factualidade objeto de tal despacho não pode ser, de novo e uma vez mais valorada, agora, para efeito de poder ser o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica.

Naturalmente que os demais factos - que exorbitam o objeto do processo nº 127/16.... - podem e devem ser objeto de tratamento autónomo, como o foram.

Termos em que se julga que a sentença recorrida enferma de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do art.º 379.º n.º 1 al. c) do CPP, com violação do princípio ne bis in idem, no que respeita aos factos descritos sob os pontos os pontos 42, 43 e 44  que, em consequência, são eliminados.


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III.4 – Da nulidade da sentença por valoração das declarações para memória futura da vítima que se recusou a depor em audiência de julgamento.

Entende o recorrente que tendo a testemunha CC em audiência de julgamento dito que não pretendia prestar declarações quando inquirida para efeitos do disposto no art. 134º nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, ao Tribunal a quo estava vedada a apreciação das declarações para memória futura prestadas previamente por esta testemunha, pelo que, ao ter apreciado e considerado na Sentença proferida as declarações para memória futura da testemunha CC, ocorre nulidade de sentença, nos termos do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 379.º do C.P.P..

Analisando a sentença verificamos que efetivamente o Tribunal a quo considerou, para efeitos de fundamentação da matéria de facto, as declarações para memória futura prestadas pela filha menor do arguido, CC, que terá presenciado parte dos factos consubstanciadores da violência doméstica perpetrados pelo progenitor sobre a sua mãe.

Vistos os autos verificamos também que a vítima CC foi arrolada na contestação apresentada pelo arguido e notificada para comparecer em audiência de julgamento onde exerceu a faculdade de não prestar depoimento, nos termos do n.º 1 al. b) do art.º 134.º do CPP.

Como alega o recorrente «inexistiu qualquer oposição – por parte da Assistente/alegada vítima, do Ministério Público ou do Tribunal - à prestação de declarações por parte da testemunha CC, nomeadamente em virtude de já ter prestado declarações para memória futura, nem tão-pouco foi alegado ou conjeturado que a sua prestação em sede de audiência de discussão e julgamento pusesse em causa a sua saúde física ou psíquica, nem tão-pouco foi arguida qualquer irregularidade ou ilegalidade relativamente à notificação para prestar depoimento e à sua presença na qualidade de testemunha em sede audiência de discussão e julgamento, antes foi admitida sem qualquer oposição».

Como se sabe, o princípio da legalidade da prova perfilhado pelo art.º 125.º do CPP considera «admissíveis as provas que não forem proibidas por lei».

Vigora, por outro lado, o princípio da livre apreciação da prova, em conformidade com disposto no art.º 127.º do CPP, nos termos do qual: «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».

Mas se o Código de Processo Penal não enumera taxativamente as provas proibidas, aponta limites à produção de provas e à sua valoração.

Assim, e no que respeita à proibição de valoração de provas, resulta do art.º 355.º do CPP que não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, ressalvando-se apenas as provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas.

Importa, todavia, salientar que QQ assume a qualidade de vítima, nos termos da subalínea iii) da alínea a) do n.º 1 do artigo 67.°-A do CPP e da alínea a) do art.º 2.º da Lei 112/2009 (que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas), tratando-se, ademais de vítima especialmente vulnerável, por força do nº 3 do mesmo art. 67º A do Código de Processo Penal, por referência ao art. 1º, al. j) do mesmo diploma legal[10].  

Ora, a tomada de declarações para memória futura da vítima em situações de violência doméstica é a regra (art.º 33.° n.°1 da Lei 112/2009, de 16 de setembro).

Pretende-se, desta forma, evitar a repetição de audição da vítima, protegê-la do perigo de revitimização e acautelar a genuinidade do seu depoimento em tempo útil, evitando, assim, que a mesmo possa olvidar-se dos factos, na sua plenitude, pese embora a natureza urgente dos autos.

Já a (nova) prestação de declarações em audiência das vítimas de violência doméstica e vítimas especialmente vulneráveis é excecional, como resulta dos artigos 33.º n.º 7, da Lei 112/2009 e 17.º n.º 2, e 24.º n.º 6, da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, que aprovou o Estatuto da Vítima, devendo ocorrer apenas se «for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar».

No entanto, a prestação de declarações em audiência de julgamento pelas vítimas de violência doméstica e vítimas especialmente vulneráveis fora dos casos legalmente previstos, não se encontra expressamente cominada como nulidade.

Assim, o incumprimento do disposto nos artigos 33.º n.º 7, da Lei 112/2009 e 17.º n.º 2, e 24.º n.º 6, da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, nos termos conjugados dos art.ºs 118.º n.º 1 e 123.º, ambos do Código de Processo Penal, configura irregularidade, a arguir, em conformidade com o n.º 1 desta última disposição legal,  pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.

Ora, na situação que se aprecia, a testemunha havia sido indicada pelo arguido na sua contestação, e o Tribunal não se pronunciou, como devia, sobre a inquirição da vítima QQ e muito concretamente se esta era (ou não) indispensável à descoberta da verdade e se não punha (ou se punha) em causa a sua saúde física ou psíquica (artigos 33.º n.º 7, da Lei 112/2009 e 17.º n.º 2 e 24.º n.º 6 da Lei n.º 130/2015).

Alega o recorrente que nem os arguidos-assistentes nem o Ministério Público arguiram vício da diligência efetuada, e a testemunha presente em audiência de julgamento usou da faculdade de se recusar a depor.

Mesmo considerando que a irregularidade decorrente de o Tribunal não se ter pronunciado sobre a verificação das condições em que excecionalmente nos termos previstos nos arts. 33º nº 7 da Lei nº 112/2009 e 24º, nº 6 da Lei nº 130/2015 de 04.09, não tendo sido invocada estará sanada nos termos do disposto no art. 123º, nº 1 do Código de Processo Penal, não cremos que essa tomada de posição da testemunha tenha efeitos retroativos, invalidando a prova já antes adquirida em declarações para memória futura.

Na verdade, as declarações para memória futura, prestadas nos termos dos artigos 33.º n.º 7, da Lei 112/2009 e 17.º n.º 2, e 24.º n.º 6, da Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro podem ser valoradas, independentemente de serem ou não lidas em audiência de julgamento.

A propósito das declarações para memória futura prestadas no âmbito do art. 271º do Código de Processo Penal, o  Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2017 [ publicado no DR: nº 224/2017 série I de 21.11.2017] fixou a seguinte jurisprudência:

«As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n. º 2, alínea a), do mesmo Código».

Ali se escrevendo, sob o ponto 2.9.1. al. C): “(…)Consideramos que a tomada de declarações para memória futura, nos termos dos artigos 271.º e 294.º, ambos do CPP, configura-se como uma antecipação parcial da audiência, sabendo os intervenientes processuais de que aquele meio de prova poderá ser utilizado pelo Tribunal para formar a sua convicção, não se revela obrigatória a leitura, em audiência de julgamento, dessas declarações.

Não o impõem os termos conjugados do artigo 355.º, n.os 1 e 2 e do artigo 356.º, n.º 2, alínea a), do CPP, nem os princípios que enformam o processo penal português, sendo que o entendimento que se perfilha não ofende qualquer norma ou princípio constitucional.(…)». (sublinhado nosso).

Sabemos que a questão que ora se coloca não vem obtendo resposta uniforme na jurisprudência dos tribunais superiores sendo exemplo da posição vertida pelo recorrente os acórdãos citados pelo mesmo na sua peça recursiva e muito concretamente o Acórdão deste TRC de 09.11.2021, proferido no processo nº 712/21.5CAMD.C1 e o Acórdão do TRL de 15.09.2021 proferido no processo nº 20/21.1 SXLSB.l1-3, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

No sentido de que sequer a recusa é válida, não se verificando os pressupostos do art. 24º da lei 130/2015 de 04.09, o Acórdão do TRL de 08.02.2023 [processo 617/20.7GBMTJ.L1-3, disponível in www.dgsi.pt].

E no sentido de que a recusa, nestas condições não pode ter efeitos retroativos, isto é tornar inválida a prova já previamente adquirida o Acórdão do TRL de 20.04.2022, proferido no processo nº 37/21.6SXLSB.L1-3 e o Acórdão do TRP de 14.12.2022, proferido no processo nº 82/21.1GBOAZ.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

Assim, no Acórdão do TRL de 20.04.2022  que seguiremos de perto escreve-se: “A tomada de declarações para memória futura nos termos do artº 271.º, não prejudica a prestação de depoimento em audiência, sendo possível e não coloque em causa a saúde física ou psíquica do depoente. 

O art.º 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, regula a prestação de declarações para memória futura, de forma autónoma do art.º 271.º, é expresso na preferência por estas declarações e pela excecionalidade do depoimento em audiência, apenas podendo ter lugar o depoimento em audiência se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.

O art.º 271.º não exige qualquer avaliação da essencialidade da prestação do depoimento em audiência. É claro na opção por este.

O art.º 356.º, não se refere às declarações para memória futura a que se refere e regula o art.º 24.º do Estatuto da Vítima.

Por força do disposto no art.º 24.º do Estatuto da Vítima, aplicável às vítimas de violência doméstica atento o disposto no seu art.º 2.º, estas têm o direito de prestar declarações para memória futura, com observância do ali preceituado, e não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar (pressupostos cumulativos).

As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.

Uma vez explicitada a prerrogativa nesta norma prevista, e exercido o direito de recusa a depor ou ao contrário a ele renunciar prestando depoimento, não pode mais tarde a testemunha que tem a qualidade de vítima, querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroativos, pois ele já foi exercido.

Já produziu efeitos probatórios: as declarações uma vez prestadas constituem prova a valorar; são prova já constituída não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo juiz, por vontade da vítima.

As regras materiais e processuais sobre a validade ou aquisição da prova não podem nem estão dependentes da vontade dos particulares, sob pena de a justiça, um dos pilares do Estado de Direito Democrático, ser afinal, nada mais nada menos, que dependente da vontade e dos caprichos dos particulares, que poderiam colocar em marcha todo o aparelho judiciário para como qual castelo de cartas cair pela base sem qualquer efeito, pese embora todos os elementos constantes dos autos permitissem fazer justiça (seja ela condenatória ou absolutória).

O art.º 356.º do CPP não contém qualquer referência ao art.º 24.º do Estatuto da Vítima, legislação especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6.”

Temos por certo que “Os parentes e afins do arguido têm o direito a ser advertidos do direito à recusa. A omissão da advertência é uma nulidade. Esta nulidade consubstancia uma verdadeira proibição de prova resultante na intromissão na vida privada (…). A violação desta proibição tem o efeito da nulidade das provas obtidas, salvo o consentimento do titular do direito, isto é, a testemunha, que prestou depoimento (artigo 126º nº 3 do CPP )»[11].

E, na verdade, sendo as declarações para memória futura uma  antecipação da audiência[12] impõe-se a observância de todas as regras a estas atinentes, incluindo naturalmente a advertência, prevista no art. 134º, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal - que como resulta do auto relativo à tomada de declarações para memória futura foi cumprido (cf. auto de 13.12.2023 - refª citius 91975756).

Concluímos, então, que tendo sido a testemunha advertida nesse momento,  não pode mais tarde invalidar essa mesma prova afirmando, quando chamada a julgamento na qualidade de testemunha arrolada pela defesa, que não pretende prestar declarações. Essa sua manifestação de vontade poderá impedir a prova de alguns factos a que eventualmente poderia responder, no âmbito da matéria da contestação, mas não terá a virtualidade de destruir a prova que foi validamente produzida e adquirida em antecipação do julgamento, com o cumprimento de todas as formalidades previstas e designadamente com o cumprimento da advertência constante do art. 134º do Código de Processo Penal.

Socorrendo-nos mais uma vez do suprarreferido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, concluímos como ali se fez: “Ou seja, a tomada de declarações para memória futura nos termos deste último normativo, 271.º, não prejudica a prestação de depoimento em audiência, sendo possível e não coloque em causa a saúde física ou psíquica do depoente. Significa que a prestação de declarações para memória futura só afastam o depoimento em audiência se o depoente o não puder fazer ou tal importe risco para a sua saúde.

Ao contrário o art.º 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, que regula a prestação de declarações para memória futura, de forma autónoma do art.º 271.º, é expresso na preferência por estas declarações e pela excecionalidade do depoimento em audiência, apenas podendo ter lugar o depoimento em audiência se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.

Note-se que o art.º 271.º não exige qualquer avaliação da essencialidade da prestação do depoimento em audiência. É claro na opção por este.

Acresce que se bem se analisar o art.º 356.º, o mesmo não se refere às declarações para memória futura a que se refere e regula o art.º 24.º do Estatuto da Vítima.

Resumindo, podemos considerar assente:

Por força do disposto no art.º 24.º do Estatuto da Vítima, aplicável às vítimas de violência doméstica atento o disposto no seu art.º 2.º, estas têm o direito de prestar declarações para memória futura, com observância do ali preceituado, e não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar (pressupostos cumulativos).

2 – As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.

Sendo audiência antecipada, como é, aberta especialmente com observância de todas as regras que regulam a audiência de julgamento adequadas a este instituto particular, deve ser observado o disposto no art.º 134.º do CPP quando a vítima tenha com o agente alguma relação de entre as aí previstas.

Estas conclusões impõem, quanto a nós, a seguinte conclusão: uma vez explicitada a prerrogativa nesta norma prevista, e exercido o direito de recusa a depor ou ao contrário a ele renunciar prestando depoimento, não pode mais tarde a testemunha que tem a qualidade de vítima, querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroativos, pois ele já foi exercido. Já produziu efeitos probatórios: as declarações uma vez prestadas constituem prova a valorar; são prova já constituída não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo juiz, por vontade da vítima.

Note-se que nem tão pouco ao arguido é permitido excluir da valoração do tribunal as declarações que haja prestado com observância do disposto no art.º 141.º do CPP. Mesmo que em audiência exerça o seu direito ao silêncio ou preste declarações em sentido contrário ao anteriormente declarado, não inviabiliza nem retira a possibilidade e o dever de o julgador as apreciar, de forma conjugada com a restante prova e as valorar de harmonia com as regras da experiência e da lógica. Ora, nenhuma razão existe para que às testemunhas, que ainda por cima são vítimas, possam transformar uma prova legalmente obtida, previamente através do instituto das declarações para memória futura, em prova proibida como defende alguma jurisprudência.

As regras materiais e processuais sobre a validade ou aquisição da prova não podem nem estão dependentes da vontade dos particulares, sob pena de a justiça, um dos pilares do Estado de Direito Democrático, ser afinal, nada mais nada menos, que dependente da vontade e dos caprichos dos particulares, que poderiam colocar em marcha todo o aparelho judiciário para como qual castelo de cartas cair pela base sem qualquer efeito, pese embora todos os elementos constantes dos autos permitissem fazer justiça (seja ela condenatória ou absolutória).

Acresce que, a tese segundo a qual a vítima que tendo prestado declarações para memória futura, opte por não prestar depoimento quando chamada a audiência transformando as anteriores em prova proibida contraria a natureza pública do crime em causa, permitindo-se o mesmo efeito que uma desistência, com mais força até pois redunda as mais das vezes em decisão absolutória com efeitos de caso julgado, contrariando-se lei expressa, o espírito do legislador e os bens jurídicos que se pretendem proteger. Por outro lado, esta tese transmite uma maior vulnerabilidade às vítimas de violência doméstica perante os agentes de crimes que não hesitarão em iniciar mais um ciclo com a típica sedução para as impedir de manter a coragem de chamadas que continuam a ser para prestar depoimento em audiência, contra o seu direito a prestar declarações para memória futura e não serem mais inquiridas sobre os mesmos factos, atentos os efeitos de vitimização secundária daí decorrentes, contar os factos de que foram alvo.

Finalmente e acima de tudo, o art.º 356.º do CPP não contém qualquer referência ao art.º 24.º do Estatuto da Vítima, legislação especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6.”

Deste modo, tendo sido a testemunha CC advertida aquando da prestação das declarações para memória futura da possibilidade de se recusar a depor e tendo exercido o direito de prestar depoimento, e não tendo a sua recusa a depor quando chamada em julgamento efeitos retroativos, nada impede o tribunal de analisar as referidas declarações para memória futura em conjugação com a restante prova produzida, como o fez o Tribunal a quo.

Improcede nesta parte o recurso interposto pelo arguido.


***

III.5 - Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia ao cumular o arbitramento de indemnização à vítima com a condenação em indemnização pedida pela lesada no requerimento de indemnização cível que deduziu

Entende o recorrente que a indemnização arbitrada prevista no artigo 21.º, nºs 1 e 2, da Lei n.º 112/2009 é subsidiária da requerida pelo lesado, nos termos do art.º 129.º do Código Penal, pelo que o Tribunal recorrido, ao fixar cumulativamente as duas indemnizações, inquinou a sentença de nulidade por excesso de pronúncia.

Dispõe o art.  82º A do Código de Processo Penal que:

1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.

2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em ação que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.”

          Por seu turno, estabelece o artigo 21º nºs 1 e 2 da Lei nº112/2009 de 16 de setembro, com a redação dada pela Lei nº57/2021 de 16 de agosto:

 “1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.

2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.”

Como se refere expressivamente no acórdão deste TRC de 27.09.2023 [processo nº 18/23.5GCGRD.C1, disponível in www.dgsi.pt] referindo-se aos arts. 82º A do Código de Processo Penal e 21º da lei 112/2009 de 04.09: “O primeiro dos preceitos transcritos estabelece, em certos casos e reunidos determinados pressupostos, a atribuição oficiosa à vítima dos factos ilícitos em que se fundamenta a condenação criminal, de uma reparação pelos prejuízos sofridos, sem prejuízo, naturalmente, do disposto no artigo 129º do Código Penal e nos artigos 71º a 82º do Código de Processo Penal, relativos à dedução em Processo Penal, de pedido de indemnização por quem tem legitimidade (artigo 74º do mesmo código).

No caso de se estar perante uma condenação por crime de violência doméstica, por força do segundo dos preceitos acima transcritos, tal arbitramento de uma compensação à respetiva vítima, é obrigatório e decorre da condenação criminal, não dependendo da verificação dos pressupostos estabelecidos no transcrito artigo 82º-A, mantendo, contudo, o seu caráter de instituto subsidiário do pedido de indemnização civil formulado pelo lesado, conforme decorre do nº1 do preceito, não se admitindo o arbitramento cumulativo de quantias fixadas no âmbito de um e outro instituto, como decorre do nº3 (“A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em ação que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.”).

Em anotação ao artigo 82º-A do Código de Processo Penal, escreve Tiago Caiado Milheiro [Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina dezembro de 2019, páginas 879 a 888]:“O pedido cível em processo penal ou não penal mantém-se autónomo e em nada é afetado por este instituto. Tem um caráter subsidiário (como resulta claramente da afirmação literal pela negativa “Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º”). Significa que, se tiver sido deduzido o pedido cível em processo criminal ou em processo não penal (de qualquer índole: cível, laboral, comercial, administrativo, família e menores, etc.) ou já existir decisão que tenha fixado a indemnização (entendendo-se toda aquela que seja vinculativa), não poderá haver lugar a arbitramento oficioso. Se porventura, existiu um pedido, mas não uma decisão de fundo (v.g. absolvição da instância por questões formais) mantém-se a possibilidade de reparação oficiosa. Só o veredito que tenha analisado os pressupostos materiais para a concessão de uma indemnização impede a reparação oficiosa. (…) O procedimento é oficiosamente iniciado e decidido pelo Tribunal. Isso não impede que possa ser solicitado (aliás é um dever do MP “pedir” quando seja aplicado o processo sumaríssimo cf. Art. 394º nº2 alínea b), mesmo que a vítima tenha deixado decorrer os prazos para dedução do pedido cível.

(…)

Assim, só será arbitrada uma indemnização oficiosa se a vítima de violência doméstica ou especialmente vulnerável não tenha deduzido pedido cível, o agressor tiver sido condenado e se provar a existência de danos.”

Analisando os autos verificamos que o Mº Público aquando da dedução e acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, promoveu, que à vítima fosse atribuída uma indemnização  nos termos da conjugação dos arts. 67º, n.º 3 e 1º, al. j), 82º-A, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, 16º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015, de 04/09 e 21º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16/09 (cf. requerimento em anexo à acusação publica deduzida nos autos a 26.09.2023 – refª Citius 93644243).

Todavia, posteriormente,  a vítima do crime veio a constituir-se assistente e a deduzir pedido de indemnização civil. Peticionando a condenação do arguido no pagamento da indemnização no montante de 20.000,00€ por danos não patrimoniais decorrentes da prática do crime  (cf. pedido de indemnização civil formulado  a 06.10.2023 refª Citius 6157994).

Tal pedido foi apreciado pelo Tribunal em sede de sentença.

Ora, dado o caráter subsidiário da reparação oficiosa da vítima por via do artigo 82º-A do Código de Processo Penal, concluímos que tendo sido deduzido pela demandante pedido de indemnização civil, a reparação dos danos eventualmente causados pela conduta do arguido será apreciada e decidida no âmbito do pedido formulado, cessando a aplicação do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, cuja apreciação que se torna supervenientemente impossível de conhecer nos termos do disposto no art. 277º, al. e) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 4º do Código de Processo Penal.

Deste modo, verificando-se a ocorrência desta exceção dilatória,  não poderia o Tribunal a quo ter conhecido do pedido de arbitramento de reparação formulado pelo Mº Público, ocorrendo, assim, efetivamente excesso de pronúncia que determina a nulidade da sentença proferida nessa parte, nos termos do disposto no art. 391º, nº 1 al. c) do Código de Processo Penal.

Essa nulidade, pode ser suprida por este Tribunal da Relação, nos termos do disposto no art. 379º, nº 2 do Código de Processo Penal, e assim, declara-se suprimida a parte em que na sentença recorrida o Tribunal a quo conheceu do pedido de arbitramento de reparação oficiosa nos termos do disposto no art. 82º A, do Código de Processo Penal, 21º da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro.

            Aqui chegados entendemos que as nulidades da sentença que julgámos verificadas prejudicam o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso.


***

VIII- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam as Juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido e consequentemente:

- Julgar não verificada a arguida nulidade por valoração das declarações para memória futura da testemunha RR.

- Declarar a nulidade da sentença:

- Por omissão de pronúncia relativamente aos indicados factos alegados na contestação (ponto III.1) e por falta de exame crítico da prova;

- Por excesso de pronúncia com violação do princípio ne bis in idem, e em consequência eliminando a factualidade dos pontos 42, 43, e 44 dos factos provados;

- Por excesso de pronúncia relativamente ao pedido de arbitramento de reparação oficiosa nos termos do disposto no art. 82º A, do Código de Processo Penal, e art. 21º da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro formulado pelo Mº Público, declarando-se suprimida a parte em que o Tribunal a quo ali conheceu daquele pedido.

- Determinando a prolação pelo Tribunal recorrido de nova sentença que:

- Se pronuncie relativamente aos indicados factos alegados na contestação e efetue o necessário exame crítico da prova; tenha em consideração a eliminação dos pontos da factualidade provada nesta sede de recurso efetuada; e, analisando a restante prova, mantenha ou modifique em conformidade a matéria de facto; determinando, se o entender, ao abrigo do disposto no art.º 340.º do CPP, a produção dos meios de prova necessários à averiguação dos factos sobre os quais lhe incumbe pronunciar-se, reabrindo, para o efeito, a audiência de julgamento.

- Extraia as consequências ao nível da matéria de direito que tiver por pertinentes em resultado das alterações efetuadas.

Custas pela assistente, fixando a taxa de justiça no mínimo (art.ºs 515.º n.º 1 al. b) do CPP e tabela III anexa ao RCP).

Texto elaborado e revisto pela 1ª signatária


Coimbra, 05.02.2025


Sandra Ferreira (relatora por vencimento)

Alcina da Costa Ribeiro (Juíza Desembargadora 2.ª adjunta)

Alexandra Guiné (Juíza Desembargadora 1ª relatora vencida)


Voto de vencido:

Voto vencido apenas no segmento relativo à questão da valoração das declarações para memória futura prestadas pela vítima QQ pelos motivos que passo a referir.

Entendo, que a eventual irregularidade decorrente de o Tribunal não se ter pronunciado sobre se a inquirição da vítima QQ era (ou não) indispensável à descoberta da verdade e se não punha (ou se punha) em causa a sua saúde física ou psíquica (artigos 33.º n.º 7, da Lei 112/2009 e 17.º n.º 2 e 24.º n.º 6 da Lei n.º 130/2015), a existir, deverá considerar-se sanada, nos termos do n.º 1 do art.º 123.º do CPP.

Assim, considero que QQ recusou-se validamente a depor, em conformidade com o disposto no art.º 134.º do CPP.

Ora, dispõe o art.º 355.º do CPP que:

«1. Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência

2. Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes».

E, determina o artigo 356.º n.º 6 do CPP que «é proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.”.

No Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos - Volume I, 5.ª edição atualizada, UCP Editora, pág. 550 escreve Paulo Pinto Albuquerque, em anotação ao artigo 134.º do CPP:

«O direito de recusa de depor não pode, ainda, ser subvertido pela leitura em audiência de julgamento das declarações para memória futura prestadas anteriormente pela testemunha que se recusa a depor em audiência de julgamento». 

Tal como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 09.11.2022, no processo 712/21.5PCAMD.C1 (rel. Des. José Eduardo Martins):

«comparecendo a vítima em audiência de julgamento, se disser que se recusa a depor quanto a certos factos, invocando apenas a sua ligação familiar, está a expressar uma vontade que nos transporta para a colisão que existe entre o interesse público de uma eficaz investigação penal e o interesse da testemunha de não ser constrangida a prestar declarações num processo dirigido contra um seu familiar, ainda que estejamos perante um crime que não admite desistência».

O que a regra do n.º 1 do artigo 134.º protege, em última linha, «é a confiança e a espontaneidade inerentes à relação familiar, prevenindo (enquanto desenho do sistema jurídico relativo a esse ambiente privilegiado no qual as relações e as trocas de informação se devem desenvolver sem receio de aproveitamento por terceiros ou pelo Estado) e evitando (quando, perante um concreto processo, o risco passa de potencial a actual) que sejam perturbadas pela possibilidade de o conhecimento de factos que essa relação facilita ou privilegia vir a ser aproveitado contra um dos membros. E visa também – aliás, é essa a sua justificação de primeira linha – poupar a testemunha ao angustioso conflito entre responder com verdade e com isso contribuir para a condenação do arguido, ou faltar à verdade e, além de violentar a sua consciência, poder incorrer nas sanções correspondentes. Trata-se de uma forma de protecção dos escrúpulos de consciência e das vinculações sócio-afectivas respeitantes à vida familiar que encontra apoio no n.º 1 do artigo 67.º da Constituição e que outorga ao indivíduo uma faculdade que se compreende no direito (geral) ao desenvolvimento da personalidade, também consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, enquanto materialização do postulado básico da dignidade da pessoa humana» (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 154/09 de 25-3-2009).

O privilégio familiar constitui uma derrogação ao dever de declarar.

Nessa medida, o reconhecimento do direito de recusa em depor representa uma forte limitação à obtenção da prova e à administração da justiça.

Mas esta limitação é compreensível e justificada.

Tal como salientado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 09.11.2022, no processo 712/21.5PCAMD.C1 (relatado pelo ex.mo Juiz Desembargador José Eduardo Martins):

«A nosso ver, a partir do momento em que a vítima surge em audiência de julgamento e tem a possibilidade de se recusar a depor, tal só pode significar que lhe está a ser dada a possibilidade de colocar em causa o que antes disse, acautelando, até, a possibilidade de ter existido uma eventual denúncia caluniosa, podendo, assim, ainda em tempo se retratar.

(…)

Se o legislador tivesse a intenção de afastar a possibilidade da testemunha/vítima de violência doméstica se recusar a depor, caso fosse chamada à audiência de julgamento, após prestar declarações para memória futura, tê-lo-ia feito nos diplomas legais a que se refere o recorrente, o que, manifestamente, não fez.

E não fez porque, em qualquer audiência de julgamento, mesmo que estejamos perante crimes públicos, o legislador entende que a testemunha só presta depoimento se, ela mesmo, no caso concreto, considerar o interesse da administração da justiça superior à salvaguarda das suas relações familiares (…)

Concedemos que esta orientação acaba por colocar em causa uma prova pré-constituída na qual a acusação assenta grande parte daquilo que a sustenta, mas o privilégio familiar, se existe na lei, é para ser aplicado sempre, independentemente do crime em causa e até ao encerramento da audiência de julgamento».

Tal foi a opção do legislador, que não retirou a estas testemunhas/ofendidas, o poder de impedir, através do recurso ao silêncio em audiência de julgamento (não prestando declarações sobre os factos que integram o objeto do processo), que declarações suas prestadas anteriormente perante o Juiz em sede de inquérito ou instrução, incluindo aquelas que o foram a título de declarações para memória futura, possam ser lidas, ou valoradas pelo Juiz de julgamento.

Pois tal como se lê no Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 15.09.2021, no processo n.º 20/21.1SXLSB.L1-3 (relatado pela Exma. Juíza Desembargadora Adelina Barradas de Oliveira):

«A decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou propiciar que a vítima exerça o direito de se recusar a depor porque a vítima tem (como o arguido), esse direito a qualquer momento em que tenha de depor ou queira depor, ainda que, sendo apenas ofendida, seja ouvida como testemunha. 

É o que resulta do disposto no n.º 6 do artigo 356.º do CPP e do artº 134º nº 1 a) e b) CPP.

O artº 356º não inibe a leitura/valoração das declarações para memória futura, mas também não pode inibir o direito a recusar-se a depor acrescendo que a lei é rigorosa quando diz que é proibida, em qualquer caso, a leitura de depoimento nessas circunstâncias.

Poderia argumentar-se que o que o legislador pretendeu foi proibir a leitura nos casos de recusa a depor, mas não a apreciação das declarações prestadas para memória futura.

Mas, o que temos perante nós, já que entendemos que nem têm de ser lidas as declarações, é que havendo proibição expressa de leitura das declarações de quem se recusa a depor, o legislador está a impedir que essa prova seja valorada» (sublinhado nosso).

Dito isto, a meu ver, como a ofendida se recusou legitimamente em audiência de julgamento a prestar declarações sobre o objeto do processo, não podiam ser valoradas as declarações para memória futura que havia prestado.

Ou seja, entendo que violando o disposto nos art.ºs 355.º e 356.º, ambos do CPP, o Tribunal recorrido valorou prova que a lei não consente.

No Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos - Volume I, 5.ª edição atualizada, UCP Editora, pág. 549 escreve Paulo Pinto Albuquerque, em anotação ao artigo 134.º do CPP:

«Os parentes e afins do arguido têm o direito a ser advertidos do direito à recusa. A omissão da advertência é uma nulidade. Esta nulidade consubstancia uma verdadeira proibição de prova resultante na intromissão na vida privada (…). A violação desta proibição tem o efeito da nulidade das provas obtidas, salvo o consentimento do titular do direito, isto é, a testemunha, que prestou depoimento (artigo 126º nº 3 do CPP )».

Lê-se no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 03.06.2008, no processo 1991/07-1 (relatado pelo Exmo. Juiz Desembargador António João Latas):

« (…)

2. Apesar de o art. 134º nº2 do CPP se referir expressamente a nulidade, tal não significa, sem mais, que o mesmo se reporta ao regime das nulidades de que trata o art. 118º nº1 e 119º a 123º, do CPP, pois constituindo o art. 134º do CPP norma relativa à produção de prova, coloca-se a questão de saber se não deve antes ser-lhe aplicável o regime das proibições de prova, na medida em que tal regime detém autonomia face ao regime geral das nulidades.

3. No sentido da autonomia das proibições é decisivo no nosso processo penal o teor do art. 118º nº 3 do CPP, que expressamente ressalva do regime das nulidades “qua tale” as normas do CPP relativas a proibições de prova, donde decorre que o legislador processual penal não pretendeu reconduzir as proibições de prova ao regime geral das nulidades, reconhecendo-lhe autonomia de forma expressa.

4. Entre nós a consagração das proibições de prova radica em primeira linha na eleição, por parte do legislador, de um conjunto de bens jurídico-penais que, em absoluto (proibições absolutas), ou em termos relativos (proibições relativas), não podem ser lesados pela prossecução das finalidades próprias do processo penal, máxime, a procura da verdade material. No entanto, para além da tutela dos bens jurídico-penais directamente abrangidos pelo art. 32º nº8 da CRP, as proibições de prova podem tutelar outros bens jurídico-penais a que o legislador atribua especial relevância, ainda que radicados em pessoa diferente do arguido, e mesmo princípios fundamentais do processo penal.

5. De iure condito é reconhecido à testemunha o direito, estabelecido de forma abstracta e potestativa, de recusar-se a depor contra o cônjuge ou afim até ao 2º grau, em nome de:

Um direito próprio a evitar o conflito pessoal que resultaria para a testemunha de poder contribuir para a condenação de um seu familiar (ou cônjuge) ao cumprir o dever legal de falar com verdade;

Salvaguarda das relações de confiança e solidariedade no seio da instituição familiar.

(…)

8. - Na falta de consagração de um regime das proibições de prova que regulasse, com autonomia, as diversas questões suscitadas por esta forma de invalidade, entendemos com Costa Andrade e Germano Marques da Silva, que há uma imbricação estreita entre os efeitos das proibições de prova e as nulidades insanáveis, máxime no que respeita à aplicação da regra geral contida no art.º 122º do CPP».

No caso, não se trata de valoração de testemunho não obstante a falta de advertência prevista no art.º 134.º do CPP, mas de valoração de declaração para memória futura prestada por testemunha que em audiência de julgamento se recusou a depor.

No entanto, a meu ver, a solução seria idêntica.

Ou seja, a proibição da valoração da prova teria como consequência, quando a prova é indevidamente utilizada, a invalidade do ato em que se verifica, bem como os que dele dependerem e aquela puder afetar (artigo 122.º n.º 1 do CPP).

Considero que existindo valoração da prova que não foi produzida ou examinada em audiência, ocorre violação do disposto no artigo 355.° n.° 1, do CPP, integrando a mesma prova proibida, sendo a consequência processual inerente a da exclusão dessa prova do conjunto das que foram valoradas na fundamentação da matéria de facto levada a cabo na decisão recorrida.

A meu ver, esta situação distingue-se da hipótese do reenvio, que se dirige aos casos em que não é possível julgar a causa por existência de um dos vícios do artigo 410.º do CPP.

Entendo que, na hipótese de ser declarada a proibição de prova, não está em causa o vício que afeta a matéria de facto, a necessitar de um adequado esclarecimento, mas sim o expurgar do vício da nulidade que afeta a mesma decisão, o que tem, em princípio, por consequência, a emissão de uma nova sentença pelo Tribunal recorrido, mas expurgada do vício apontado – Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa dado de 20.03.2018, processo 124/16.2PELSB, relatado pelo ex.mo senhor Juiz Desembargador Artur Vargues.

No seguimento do exposto, no meu entendimento seria de declarar a nulidade da sentença recorrida por valoração de prova proibida, impondo-se a prolação pelo Tribunal recorrido de nova sentença que, expurgando-a do vício da nulidade que a afeta, excluísse como meio de prova a valorar na sua fundamentação de facto tais declarações e que, analisando a restante prova, mantivesse ou modificasse, em conformidade, a matéria de facto e a respetiva matéria de direito.


[1] «hematomas e arranhões, designadamente no pescoço, pernas e braços, e apresentou no membro superior esquerdo duas equimoses de face anterior e lateral externa do terço médio do braço com 5 por 5 centímetros e 5 por 4 centímetros e outra equimose arroxeada da face posterior do braço, com 1 centímetro de diâmetro; e, no membro inferior esquerdo, uma equimose acastanhada da raiz da coxa com 2 centímetros de diâmetro e outra da face anterior do terço superior da perna com 2 por 3 centímetros de maiores dimensões», que terão «determinado 5 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional, e não resultaram quaisquer consequências permanentes»
[2]  Cf. Paulo Pinto de Albuquerque no Comentário do Processo Penal, à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, vol. II, 5.ª edição atualizada, pág. 469, p. 8
[3] Paulo Pinto de Albuquerque, na obra citada,  pág. 469, p. 8
[4] Cf. em sentido aproximado, Sérgio Poças, «DA SENTENÇA PENAL — FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO», em https://julgar.pt/wp-content/uploads/2016/05/02-S%C3%A9rgio-Po%C3%A7as-fundamenta%C3%A7%C3%A3o-senten%C3%A7a-penal.pdf (consultado a 24.05.2024) e JULGAR - N.º 3 - 2007
[5] Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada,  pág. 471, p. 10
[6] «hematomas e arranhões, designadamente no pescoço, pernas e braços,», «no membro superior esquerdo duas equimoses de face anterior e lateral externa do terço médio do braço com 5 por 5 centímetros e 5 por 4 centímetros e outra equimose arroxeada da face posterior do braço, com 1 centímetro de diâmetro; e, no membro inferior esquerdo, uma equimose acastanhada da raiz da coxa com 2 centímetros de diâmetro e outra da face anterior do terço superior da perna com 2 por 3 centímetros de maiores dimensões», que terão «determinado 5 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional, e não resultaram quaisquer consequências permanentes».
[7]   Cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto processo 130/10.0GAMTR.P1, datado de 10.07.2013 (Alves Duarte) e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra processo 120/20.1GCCLD.C1, datado de 22.03.23 (Maria José Guerra).

[8] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 07.03.2018, processo 38/16.6PBFUN.L1-3 (Vasco Freitas), no mesmo sentido, v.g.  Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 08.11.2023, processo 417/21.7PVNG.P1 (Maria Luísa Arantes)
[9] Cfr. artigo 279.º do CPP
[10] Por despacho de 06.12.2022 – sob a referência 91922126 - foi atribuído, ao abrigo do art.º 14.º n.º 1 da Lei n.º 112/2009, o estatuto de vítima a QQ.

[11] Cfr. citado autor, in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 375)
[12] Neste sentido se pronunciou o acima referido Acórdão de Fixação de jurisprudência nº 8/2017.