Compete aos tribunais administrativos e fiscais conhecer de acção intentada por empresa a quem o Município adjudicou a concessão da exploração e gestão de zonas de estacionamento de duração limitada, para haver de particular utilizador daquelas a importância de tarifas devidas pela falta de pagamento da taxa correspondente à utilização da zona de estacionamento.
(Da responsabilidade da Relatora)
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Matosinhos - Juiz 1
Relatora: Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: Isoleta Almeida Costa
2º Adjunto: Francisca Micaela da Mota Vieira
I.
A..., SA, nos autos melhor id., apresentou junto do BNI requerimento de injunção contra AA, nos autos igualmente melhor id., concluindo pedindo o pagamento da quantia de € 8.280,46, respeitante a Capital: € 7.882,85 Juros de mora: € 244,61 e Taxa de Justiça paga: € 153,00.
Alegou para o efeito e em síntese a celebração de contrato com consumidor, de fornecimento de bens ou serviços, referente ao período compreendido entre 18-08-2021 a 24-05-2024. Mais alega que: “a Requerente é uma sociedade que se dedica, além do mais, à exploração e prestação de serviços na área do parqueamento automóvel; no âmbito da referida exploração, a Requerente adquiriu e colocou, em vários locais da cidade de MATOSINHOS, máquinas para pagamento de estacionamento automóvel, com a indicação dos preços e condições de utilização dos mesmos; a Requerida é proprietária do veículo automóvel com a matrícula ..-PZ-..; enquanto utilizadora do referido veículo, a Requerida estacionou o referido veículo, nos vários parques de estacionamento que a Requerente explora na cidade de MATOSINHOS, sem se dignar a proceder ao pagamento do tempo de utilização, conforme regras devidamente publicitadas no local, o que sucedeu nos lugares melhor discriminados na petição. Bem assim que o valor de cada aviso pela falta de pagamento pelo estacionamento devido nas vias públicas supra indicadas, é de € 6,60 e € 7,15 a partir de 03/10/2023, podendo terem sido emitidos dois avisos diários, caso a duração do estacionamento seja superior a 4 horas, a que acrescem € 15,00 de penalização por falta de pagamento dentro do prazo estabelecido de 15 dias indicados nos respetivos avisos. Donde, o total do valor em dívida ascende a € 7.882,85, que a Requerida, apesar das inúmeras insistências da Requerente, se vem recusando a pagar até hoje.
Indicou como Tribunal competente em caso de distribuição: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Unidade Central de Matosinhos.
A requerida deduziu oposição, vindo os autos à distribuição, sendo os autos tramitados como acção especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias.
Foi então proferido despacho, determinando a notificação à A. para “esclarecer o título (acordo, contrato) no qual assenta a sua legitimidade substantiva para peticionar as quantias em causa, mais devendo juntar aos autos o respectivo título.”.
Veio a A. juntar o título de concessão, desde logo alegando que: “(…) contra o vertido no referido contrato, a A. não exerce a atividade de manutenção e fiscalização dos parqueamentos, estando tal atividade reservada à autarquia e demais autoridades administrativas; ao contrário do referido no nome do contrato de concessão e respetiva epígrafe, a A... SA., não efetua atos de fiscalização, nem comina coimas ou multas por incumprimento, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade. (…) Donde, os montantes cobrados pela A... SA., não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos, limitando-se a cobrar uma contraprestação pela utilização dos parques de estacionamento automóvel na cidade de Matosinhos, devidamente delimitados e assinalados.”
Juntou documento denominado “Contrato de concessão Gestão, exploração, manutenção e fiscalização dos lugares de estacionamento pago na via pública e de dois parques públicos de estacionamento para viaturas”, outorgado com o Município de Matosinhos, representado pelo presidente da Câmara, “em execução da deliberação da Câmara Municipal”.
Foi, então, julgada verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal e declarado o tribunal comum incompetente em razão da matéria para apreciar o mérito da acção, sendo competente o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
É dessa decisão que foi interposto o presente recurso, pela Autora, que formula as seguintes conclusões:
a) Vem o presente recurso apresentado contra o Douto Despacho A Quo, que decidiu julgar a incompetência material do Juízo Local Cível de Matosinhos, para cobrança dos créditos da Autora e A. A... SA.
b) No âmbito da sua atividade, a A. celebrou um contrato de concessão com a Câmara Municipal de Matosinhos, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina.
c) No seguimento deste contrato de concessão, a A... adquiriu e instalou em vários locais da cidade de Matosinhos, onerosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático.
d) Enquanto utilizadora do veículo automóvel ..-PZ-.., a Ré estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a A. explora comercialmente na cidade de Matosinhos, sem, contudo, proceder ao pagamento dos tempos de utilização, num total em dívida de € 7882,85 que a Ré recusa pagar.
e) Para cobrança deste valor, a Recorrente viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal.
f) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não de um encargo ou contrapartida com natureza fiscal ou tributária.
g) As ações intentadas pela A. contra os proprietários de veículos automóveis inadimplentes, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de ius imperii, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada.
h) A recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, e sim com poderes de entidade privada, pelo que, e contrariamente ao entendimento do Tribunal “a quo”, o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de direito privado, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade contratual por incumprimento do contrato.
i) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto - em virtude de não nascer de negócio jurídico - assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações.
j) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre o concessionário e o utente resulta de um comportamento típico de confiança.
k) Comportamento de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição.
l) Proposta tácita temporária da A., que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela A., concorda com os termos de utilização propostos pela A., amplamente publicitados no local.
m) Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, a existência de uma relação jurídica administrativa.
n) Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que «por via de regra confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração».
o) O conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos, seja numa aceção subjetiva, objetiva, ou funcional, sendo certo que nenhuma das acessões permite englobar a presente situação.
p) Caso contrário, teríamos de entender como públicas quaisquer relações jurídicas, já que todo o interesse de regulação, é em si mesmo um interesse público e nessa medida, tudo seria público, até à mais ténue e simples regulamentação de relações entre particulares, desde que geradoras de direitos e obrigações suscetíveis de ser impostos coativamente
q) A A... SA., não efetua atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade.
r) Nos termos do disposto no artigo 2º do DL 146/2014 de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas.
s) Os montantes cobrados pela A... SA., não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos.
t) Verificada a violação da obrigação contratual de pagamento do tempo de imobilização dos seus veículos, nos parqueamentos explorados pela A... SA., são os automobilistas posteriormente notificados para procederem ao pagamento omitido, sendo então cobrado o tempo máximo de utilização, por falta de referência concreta ao tempo efetivo de utilização.
u) Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária.
v) A A..., ao contrário o que vem referido na douta sentença, nunca atuou em substituição da autarquia, munida de poderes concessionados
w) Fundamental é que a Recorrente carece, em absoluto, de poderes de autoridade, fiscalização ou ordenação efetiva, apenas podendo registar os incumprimentos de pagamento e tentar recuperar judicialmente, sem acesso direto a um título executivo, os valores que tiverem sido sonegados, em violação da relação contratual de confiança, pelos utentes.
x) Por tudo o que se alegou, mal andou o Tribunal “a quo” ao declarar-se incompetente em razão da matéria, pois, o Tribunal recorrido é o competente, motivo pelo qual foram violados, entre outros, os artigos 96º, al. a), 278º, Nr.1 al. a), 577º al. a) e 578º do CPC, quer o artigo 4º nr.1, al. e) do ETAF, quer ainda o artigo 40º da Lei 62/2013 de 26 de agosto.
Conclui pedindo a substituição da sentença recorrida por outra, que julgando competente o Juízo Local Cível de Matosinhos, ordene o prosseguimento dos autos.
Decidiu-se sumariamente pelo não provimento do recurso, vindo já a Recorrente suscitar a apreciação deste pela Conferência.
No requerimento aduziu, em síntese, para além de se remeter aos termos das alegações de recurso oportunamente apresentadas:
- a Recorrente limita-se a cobrar a contraprestação da utilização dos parques
de estacionamento automóvel, sendo que, verificada a violação da obrigação contratual de pagamento do tempo de imobilização dos seus veículos, nos parqueamentos explorados pela A... SA., são os automobilistas posteriormente notificados para procederem ao pagamento omitido, sendo então cobrado o tempo máximo de utilização, por falta de referência concreta ao tempo efetivo de utilização;
- A consideração da incompetência material dos tribunais comuns retira o domínio do processo e impossibilita a A. de receber os seus créditos contratuais, para cuja perceção, efetuou avultados investimentos;
- Sempre não alcança a que Poderes de Autoridade se refere a decisão, posto que não os possui, nem os recebeu da Autarquia. O único direito cedido, foi o direito de exploração comercial dos correspondentes espaços de estacionamento;
- Bem assim a contrapartida da Recorrente não tem natureza tributária por estar em causa o pagamento de um serviço prestado, mas sim a natureza de um preço;
- Não estando em causa a natureza pública do contrato celebrado entre a Câmara Municipal e a A... SA., não pode, no entanto, este primeiro contrato contagiar, nem ser equiparado, aos posteriores contratos tacitamente celebrados entre a A... e os utentes, pois tais contratos têm natureza privada;
- Reitera-se que a Recorrente, no âmbito da atividade comercial contratada não exerce qualquer atividade de fiscalização dos parqueamentos, mantendo-se tal atividade reservada à autarquia e demais autoridades administrativas, não se aceitando a conclusão do Venerando Relator, de que não releva que a Recorrente, enquanto cessionária da exploração comercial dos parques, não exerça as atividades de fiscalização ou autuação, sendo que esta circunstância, no limite, deveria ter sido objeto de discussão e julgamento, antes de, automaticamente, ser julgada a incompetência absoluta do tribunal.
Sempre a jurisprudência convocada é anterior à entrada em vigor da L 114/2019 de 12 de setembro.
Cumpre decidir, colhidos os vistos.
II.
Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), é uma única a questão a tratar,
A questão a avaliar nesta acção é de natureza essencialmente jurídica, relevando, em termos fácticos, o próprio conteúdo do primeiro articulado e os contornos do pedido e da causa de pedir aí desenhados.
Ora, impõe-se desde logo avançar que intende a A. cobrar à Ré um valor máximo diário pelos períodos de utilização de estacionamento não pago, em razão da exploração de parques/lugares de estacionamento ao abrigo de um contrato de concessão celebrado com a Câmara de Matosinhos, sendo esta quem define as regras dessa exploração.
É que a exploração e concomitante cobrança pela A., respeitando a domínio público, é feita ao abrigo do disposto no contrato de concessão celebrado com a edilidade, sendo que bem assim as tarifas cobradas aos utentes são definidas por via do Regulamento Municipal das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos publicado em DR de 8 de março de 2016 – II Série (com sucessivas alterações).
A questão a decidir foi já analisada com acerto, adequação técnica e coincidência de solução, pelo tribunal da Relação de Lisboa, nos Acórdãos de 20.10.2009 (6149/08.4YIPRT.L1-7) e 22.04.2010 (1950/09.4TBPDL.L1-2), ambos em http://www.dgsi.pt.
Aqui se convoca, desde logo, o excerto daquele primeiro citado: «o contrato de concessão celebrado entre o Município (...) e a recorrente é um contrato de direito público, nos termos do qual o Município (...), munido de jus imperii, adjudicou àquela, a concessão, exploração, gestão e manutenção de quarenta e dois parquímetros na cidade (…). Sobre esta matéria, compete à Câmara deliberar no âmbito da organização e funcionamento dos seus serviços e no da gestão corrente, nos termos do art. 64.º n.º 1 alínea u) e n.º 6.º alínea a) da Lei n.º 169/99 de 18 de Setembro (Lei das Autarquias Locais), alterada pela Lei n.º 5-A/2002 de 11 de Janeiro.
Considerando a causa de pedir nesta acção, o que está indubitavelmente em causa envolve a relação jurídica existente entre o Município (…) e a recorrente, na medida em que tem, na sua génese, a cobrança de uma taxa sancionatória diária pelo estacionamento não pago pelo recorrido. A este direito de cobrança arroga-se a recorrente, no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos pela concessão celebrada.
Se bem que se possa alegar que a relação estabelecida entre a recorrente e um particular difere e dispõe de uma natureza diferente daquela existente entre a recorrente e a edilidade (…), a verdade é que os actos praticados pela recorrente não revestem a natureza de actos privados susceptíveis de serem desenvolvidos por um qualquer particular, mas, ao invés, revestem-se de natureza pública, na medida em que são praticados no exercício de um poder público, isto é, na realização de funções públicas no domínio de actos de gestão pública.
Com efeito, o contrato de concessão outorgado entre a recorrente e o Município (…), rege-se pelo conteúdo das suas disposições e pelas disposições constantes do Regulamento de Estacionamento de Duração Limitada daquele Município, no qual se encontram previstos, designadamente, as taxas devidas pelo estacionamento, a possibilidade daquele Município, nos termos da lei geral, concessionar o estacionamento de duração limitada a empresa pública ou privada, bem como a fiscalização do regime previsto no aludido Regulamento e ainda as situações que configuram ilícitos de mera ordenação social e respectivas sanções.
Por outro lado, e tendo em conta que no âmbito do contrato de concessão celebrado, a ora recorrente se vinculou expressamente ao cumprimento do aludido Regulamento de Estacionamento, recai sobre esta o ónus de conformar a sua actuação com o disposto naquele diploma e agir no âmbito dos poderes que o mesmo lhe confere, nomeadamente na sua relação com os terceiros particulares que usufruem do estacionamento concessionado e como tal passam a estar sujeitos às suas respectivas regras e condições.
Confrontem-se já, nos termos do DL citado, do qual faz eco o Regulamento Municipal respectivo, acessível na página da internet do Município, os meios coercivos e as interdições, como claras manifestações do poder do Estado, estabelecidos no quadro do ordenamento/regime do estacionamento de duração limitada, em cujo contexto a Apelante intervém e de cujo quadro nunca enjeitou aproveitar-se, como se vê, claramente, por exemplo do valor reclamado.
Tem-se assim por simplificadora e enviesada a tentativa de estreitar e converter a relações tão só de direito privado a complexa relação constituída através da concessão.
Sempre a «concessão» remete a dois domínios de intervenção: o externo, do concessionário e o interno e essencial, do concedente, já que se reconduz a uma autorização ou permissão de uma actividade “em vez de outrem”. Num tal contexto, o concessionário permanece obrigado pelos contornos e conteúdos do que lhe é atribuído. E, de entre estes, vários ultrapassam as meras intervenções privadas, reconduzindo-se: a interdições, ao exercício próprio de actividade sancionatória e à regulação unilateral e não negociada, antes exercida em nome da legitimidade democrática e de um poder de soberania de natureza executiva.
Mais incontestável se patenteia o desequilíbrio, a natureza realmente não contratual da relação com o utente, na tese doutrinal da recorrente, que convoca uma actuação de facto geradora de uma relação que tem pouco de contratual e mais de mero enquadramento da realidade ou do evento consumado, que denomina de «relação contratual de facto». Nessa medida, o utente nem estabelece um contrato comum, sendo que antes usa o espaço de estacionamento com determinados efeitos jurídicos inerentes pré-estabelecidos em Regulamento Municipal, para mais quando a entidade cobra antes que um preço uma taxa, já que tem por detrás de si um conjunto de mecanismos e regras impositivas emanadas de um órgão da administração local e não um qualquer processo de formação da vontade negocial.
Conclui-se, pois, que o objecto da presente acção se origina no quadro de uma relação jurídica materialmente administrativa, sem que a atribuição de faculdades de intervenção a empresa privada convole a relação para o domínio jus privatístico, já que o regime que regula os contornos da actividade cedida se submetem, manifestamente, a um estatuto substantivo de direito público.
Estamos perante uma relação entre a A. e R., no âmbito de uma concessão celebrada com a município de Matosinhos. Aquela por força da dita concessão cobra os utentes um determinado valor pela ocupação da via pública – estacionamento. Quem define as regras de tal exploração é o município e não a A.. As diversas tarifas são definidas por regulamento municipal que é obrigatoriamente publicado em Diário da República.
A responsabilidade para definir o estacionamento de veículos nas vias públicas e demais lugares públicos é de natureza pública, constituindo atribuição das Câmaras (cfr. artigo 33.º, nº 1, alínea rr) da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro) podendo, em contrapartida, exigir dos utentes o pagamento de uma taxa previamente determinada.
Em face do exposto, a actividade que a A. leva a cabo, exploração dos espaços de estacionamento nas vias públicas e demais espaços públicos prossegue fins de interesse público, estando, por conseguinte, munida dos necessários poderes públicos de autoridade.
Em conclusão, estamos perante uma relação, entre a A. e R., que tem natureza administrativa.
Tendo por assente, estes considerandos, nada mais resta do que afirmar que os tribunais comuns são incompetentes em razão da matéria para conhecer da causa.
De harmonia com o disposto no artigo 212.º, N.º 3 da Constituição da República Portuguesa compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Trata-se de matéria que cai na previsão da alínea o) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF, cabendo, por isso, na esfera de competência dos tribunais administrativos e fiscais.
Reconhece-se o lapso na decisão sumária da redacção do ETAF a atender, sendo certo que em nada altera o fundo ou mérito da apreciação da questão da competência, nem os respectivos fundamentos ou a pertinência da jurisprudência anterior à redacção a considerar, porquanto mantendo-se o juízo de enquadramento da relação material litigada como pertinente ao quadro da jurisdição administrativa.
Como, de resto, o comprova a jurisprudência no mesmíssimo sentido após a convocada redacção do ETAF. Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.01.2025, Processo 69243/24.8YIPRT.P1, acessível em https://jurisprudencia.pt/acordao/231143/; Acórdão Tribunal da Relação de Évora 42536/24.7YIPRT.E1, de 16.12.2024, relatado pela Des MARIA JOÃO SOUSA E FARO, acessível na base de dados da dgsi; Tribunal da Relação de Évora de 30.01.2025, Processo 42537/24.5YIPRT.E1, https://jurisprudencia.pt/acordao/231023/.
Neste mesmo sentido decidiu já o Tribunal de Conflitos, por Acórdão de 25-11-2010, na base de dados da dgsi, com o seguinte Sumário: I -A competência material do tribunal afere-se pela relação jurídica controvertida, tal como é configurada na petição inicial. II - Nos termos do artigo 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, os tribunais administrativos são os competentes para o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. III - Por relações jurídicas administrativas devem entender-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de interesse público legalmente definido. IV - Assim, compete à jurisdição administrativa conhecer de uma acção especial para cumprimento de obrigações emergentes de contrato, na qual a autora, concessionária da exploração e manutenção de parques de estacionamento em espaços públicos, em conformidade com determinado regulamento municipal, pede a condenação da ré no pagamento de quantias, devidas pela utilização desses parques.
Aqui nos remetemos, data venia, àquela decisão: «Conforme ensina o Prof. Manuel de Andrade, a competência do tribunal "afere-se pelo quid disputatum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum" (in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91).
Por sua vez, o Tribunal dos Conflitos e a Secção de Contencioso Administrativo do STA têm reiteradamente afirmado que a competência em razão da matéria se afere em função dos termos em que a acção é proposta - cfr, a título de exemplo, os acórdãos do T. Conflitos de 91.01.31 (AD 361) e de 2007.05.17 (proc. n° 5107), e, os acórdãos do STA de 93.05.13 (proc. n° 31478), de 96.05.28 (proc. nº 39911), de 99.03.03 (proc. n° 40222), de 99.03.23 (proc. n° 43973), de 99.10.13 (proc. n° 44068) e de 2000.09.26 (proc. n° 46024).
Neste caso, atentos os termos em que a acção é instaurada, julgamos ser de concluir que a competência para dela conhecer pertence aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente aos tribunais tributários.
A Autora, B…, SA, na qualidade de concessionária, por força de vários contratos de concessão celebrados com a Câmara Municipal de Ponta Delgada para fornecimento, instalação e exploração de parquímetros colectivos, em zonas de estacionamento de duração limitada, na cidade de Ponta Delgada, pretende, através da acção, que a Ré, C… Lda, seja condenada a: Pagar-lhe a importância de 421,72 euros, acrescida de juros legais, correspondente aos montantes devidos pelo estacionamento de uma viatura da Ré em zona reservada para esse efeito, abrangida pela concessão.
Funda este pedido no facto de a Ré não ter procedido, em várias datas, que indica, ao pagamento do tempo de utilização do lugar de estacionamento.
Atentos os termos da própria petição e os documentos juntos com a mesma, estamos perante a utilização, assegurada pela Câmara, de um bem do domínio público (os lugares de estacionamento), mediante o pagamento de certa prestação. A prestação patrimonial correspondente ao uso de um bem como este constitui uma taxa, em conformidade com o disposto nos art°s 30, nº 2 e 4°, n° 2, da Lei Geral Tributária aprovada pelo DL n° 398/98, de 17.12. Essa taxa encontra-se prevista na alínea g) do art° 19º da Lei n° 42/98, de 06.08 (Lei da Finanças Locais), e, no que toca a situação concreta em análise, este expressamente contemplada nos artºs 24° e 25° do Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada[1] de Ponta Delgada, publicado no DR II série, de 2004.06.01, n° 128, apêndice 71/2004 (cfr. fls. 34 a 39 dos autos).
Neste caso, não lhe e retirada essa natureza pelo facto de ser uma entidade privada - a Autora - que procede a respectiva cobrança. Tal cobrança só ocorre por força da referida concessão de fornecimento, instalação e exploração de vários parquímetros na cidade de Ponta Delgada, sendo que a Câmara não deixa de recolher a receita nos seus cofres, ainda que parte (cfr. fls. 25 e 26 dos autos).
A questão que aqui este em causa tem, assim, natureza fiscal, na medida em que, segundo uma tese ampliativa, a mais seguida na jurisprudência (em oposição a uma tese restritiva), para decidir o litigio há que fazer a interpretação e aplicação de normas de direito fiscal sobre matéria respeitante ao exercício da função tributária da Administração Pública Cfr., a este propósito, Cons. Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, 2006, I volume, p. 220 e 221, onde são citados vários arestos da Secção de CA deste STA nesse sentido. E há, então, que acrescentar que, subjacente ao litígio, há uma relação jurídica tributária, entre a Câmara e a Ré (muito embora aquela não intervenha na acção), atenta a definição contida no art° 1°, n° 2, da Lei Geral Tributária, nos termos da qual consideram-se relações juridico-tributárias as estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas.
Os Tribunais competentes para conhecer da acção, são, assim, em nosso entender, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente, os tribunais tributários, face ao disposto no art° 1°, n° 1, do ETAF. (…)
A competência dos tribunais comuns tem natureza residual, no sentido em que, nos termos constitucionais e legais Cfr. Artigo 211º («1. Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais»), da Constituição da República Portuguesa, e art. 66 («São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outras ordem jurisdicional»), do Código de Processo Civil. Em termos idênticos a este último preceito dispõe o art. 18, nº 1, da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais., se estende a todas as áreas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais (G. Canotilho/V. Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. rev., 812). Aos tribunais administrativos, por sua vez, cabe, segundo o preceito constitucional e legal, apreciar os processos «que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas» Cfr. Artigo 212º («… 3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais»), da Constituição da República Portuguesa; e artigo 1º («1. Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais»), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
E, na falta de clarificação legislativa sobre o conceito de relação jurídica administrativa, deverá esta ser entendida no sentido tradicional de relação jurídica de direito administrativo, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.
Assim, temos que os tribunais administrativos serão competentes para dirimir os litígios surgidos no âmbito das relações jurídicas públicas, devendo como tal considerar-se «aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» [J.C.Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., 57/58].
E importa notar, ainda, que, para efeito da determinação da competência material do tribunal, deve atender-se à relação jurídica, tal como é configurada pelo Autor, na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respectivos fundamentos (causa de pedir) Neste sentido, veja-se, p. ex. o acórdão deste Tribunal dos Conflitos, de 9.6.10 (Pº 05/10), e a demais jurisprudência e a doutrina, nele citadas.»
A relação jurídica controvertida tal como a configurou a Apelante em termos de pedido, causa de pedir e natureza dos sujeitos processuais assenta numa relação jurídica administrativa/fiscal passível de enquadramento na alínea o) do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF, que se debruça sobre a competência material dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
No caso sujeito, em causa a concessão pelo Município de Matosinhos à A., para exploração, gestão e manutenção de parques de estacionamento naquela cidade, nos termos previstos no Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada já citado…
Ora, por via da concessão, ficou a A. obrigada, perante a concedente, a assegurar o funcionamento dos referidos parques de estacionamento em conformidade com o referido Regulamento, cabendo-lhe, em consequência, exigir o pagamento das “taxas”, nele previstas (cfr. artigo 4º do Regulamento) e fiscalizar essa utilização pelos interessados, como naquele igualmente se prevê (16º, última parte do regulamento), sendo certo que vem reclamado o valor integrante da taxa sancionatória prevista no artigo 19º do mesmo Regulamento.
Assim, é de concluir que, por via da concessão, a A. recorrente foi investida de um poder público, para a realização de um interesse público, legalmente definido como sendo o de solucionar o estacionamento no perímetro urbano da cidade de Matosinhos. E, desde logo, o mero poder de cobrança, irrelevando que não exerça parte dos actos contratualizados e atinentes a actividades de fiscalização ou autuação.
Quando o serviço público é atribuído a uma entidade privada do sector privado, estabelece-se uma relação de colaboração entre a Administração Pública (titular do serviço) e o gestor do serviço, dado que por meio da concessão dá-se uma delegação de serviços públicos comerciais e industriais a empresas privadas que executam o serviço em seu próprio nome e por sua conta e risco, mas submetendo-se à fiscalização e ao controlo por parte da Administração Pública. Assim, uma empresa concessionária da exploração e gestão dos serviços públicos municipais atua em substituição deste, pelo que se trata de uma entidade particular no exercício de um poder público e atuando com vista à realização de um interesse público, sendo o contrato de concessão um contrato administrativo[2].
Pelo exposto, pese embora a requerente seja uma entidade privada, certo é que age no exercício de um poder público pelo que em causa está uma relação jurídica administrativa.
E não colhe a alegação de desprotecção, já que, obviamente, garantida tutela jurisdicional à pretensão. No quadro de outra jurisdição, especializada.
Donde o conflito a que respeitam os presentes autos respeita a uma relação jurídica administrativa, segundo o conceito dela acima indicado, cabendo a respectiva apreciação e decisão aos tribunais administrativos, conforme o citado art. 1, do ETAF.
III.
Pelo exposto, julga-se a apelação da Autora totalmente improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Porto, 20 de Fevereiro de 2025
Isabel Peixoto Pereira
Isoleta de Almeida Costa
Francisca Mota Vieira
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[1] Destacado nosso.
[2] Pedro Gonçalves in “ A concessão de Serviços Públicos (uma aplicação da técnica concessória)”, Almedina, 1999, pag.108.