Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
COMODATO
IMÓVEL PARA HABITAÇÃO
USO DETERMINADO
Sumário
I - No âmbito de um contrato de comodato, para que o uso seja considerado determinado para os efeitos do disposto no nº 1 do artigo 1137º do Código Civil, exige-se que a utilização a dar ao objeto do comodato seja concretizada quer quanto à sua natureza quer quanto à sua duração, sendo que o comodato de um imóvel para habitação sem qualquer prazo temporal, não integra a qualificação de uso determinado, pelo que o contrato pode ser denunciado nos termos do disposto art. 1137.º, nº 2, do Código Civil. II - Considerando o estado de degradação de um imóvel, resultante da respetiva idade e de ao longo de décadas não ter sido objeto de obras, as benfeitorias no mesmo realizadas com vista a evitar a sua deterioração, nomeadamente ao nível do telhado, caixilharias, tubagens e pintura, são benfeitorias necessárias, sendo que, ainda que algumas se considerassem antes como benfeitorias úteis, sempre se trata de obras que aumentam o valor do imóvel, as quais pela sua natureza, não podem ser levantadas. III - Ainda que se verifiquem os requisitos do art. 754.º do Código Civil, para efeitos de direito de retenção, nos termos do disposto no art. 756.º, al. b) do Código Civil, é excluído tal direito a favor dos que tenham realizado de má fé as despesas de que proveio o seu crédito. IV - Mesmo resultando que a comodatária efetuou as obras sem autorização da dona do imóvel e que esta solicitou a devolução do prédio, o que aquela recusou, antes da realização dessas mesmas obras, entende-se que tais factos não se mostram suficientes para fazer prova de que a comodatária tenha realizado as obras de má fé, no sentido de estar a agir com a consciência de estar a lesar os direitos da autora, quando a comodatária habitava o imóvel há cerca de 50 anos e vai ter que proceder à respetiva entrega, no prazo de dois meses, ficando a dona do imóvel com um imóvel beneficiado, sendo que a realização das obras nenhuma vantagem trás para a ré, antes beneficia a autora que o recebe com as respetivas benfeitorias.
(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Texto Integral
Apelação 5290/21.2T8VNG.P1
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
AA, na qualidade de cabeça-de-casal da Herança Indivisa deixada por óbito do seu marido, BB, intentou ação de processo comum contra CC, pedindo que a ré seja condenada a:
a) Aceitar que a Autora tem legitimidade, como cabeça-de-casal da herança indivisa deixada por óbito de BB, seu falecido marido e pai do falecido marido da Ré, assim como os seus inerentes poderes de administração dos bens pertencentes à mesma (art. 2088.º, nº 1 do Código Civil);
b) Reconhecer o direito de copropriedade da Autora e condenar a Ré a proceder imediatamente à restituição do 1.º andar e a cave 6D, do prédio urbano sito na Rua ..., ..., em ....
Para tanto, alegou, em síntese, que a herança aberta por óbito de BB e a própria são donas do imóvel que identifica, e como a ré era casada com o filho da autora, deixaram que o filho aí vivesse com a ré, sem que pagassem qualquer contrapartida; que o filho da autora faleceu em ../../2005, continuando a ré a habitar o imóvel nas mesmas condições; que o seu falecido marido (da autora) lhe deixou a sua quota disponível através de testamento, sendo a sua vontade que a mesma começasse a ser preenchida pelo imóvel em causa nos autos; que sucede que a ré realizou obras no interior do referido imóvel e construiu um barraco, sem a autorização expressa da cabeça de casal da herança referida, e, nesse seguimento, a autora instou a ré extrajudicialmente para que procedesse à entrega do imóvel, tendo aquela recusado.
Regularmente citada, a Ré apresentou contestação, alegando, em síntese, que a vontade do de cujus BB foi que a quota disponível fosse preenchida pela casa da sua habitação e respetivo recheio à data do seu falecimento, que não era o imóvel aqui em casa; que não construiu qualquer barraco e nunca foi instada para a entrega do imóvel, nem nunca se recusou a fazê-lo; que habita no referido imóvel desde 1975, sendo que, existia um contrato de arrendamento entre si, o seu falecido marido e a autora, contudo, aquando da morte do seu falecido marido a autora abordou a ré e transmitiu-lhe que a partir desse momento não se encontrava onerada com o pagamento da renda, pelo uso do locado; que o imóvel em causa nos autos é a sua habitação própria e permanente, nunca lhe tendo dado outro uso que não este; que o imóvel tem cerca de 50 anos que que desde a sua construção não se realizaram obras de melhorias, pelo que se encontrava em péssimas condições de conservação, não tendo em 2019, condições para a ré o habitar, pois chovia dentro do mesmo, pelo que, em 2021, solicitou orçamento e efetuou obras de conservação, no valor de €15.657,90, entendendo que lhe assiste o direito de retenção sobre o referido bem imóvel até ao momento do pagamento do valor que despendeu, devendo após, ser-lhe dado um prazo razoável para a desocupação da coisa comodatada.
Deduziu, ainda, pedido reconvencional, pedindo o pagamento do valor das benfeitorias.
A autora replicou, pedindo a improcedência do pedido reconvencional deduzido e formulando ampliação do pedido, pedindo a condenação da ré numa sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na entrega efetiva do imóvel, no valor de €30,00, para além de peticionar a litigância de má fé da ré.
A ré, por sua vez, veio também requerer a condenação da autora como litigante de má fé.
Em 04.01.2024 foi nomeada curadora especial, nestes autos, à autora, DD.
*
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, onde se decidiu: “Considerando todo o exposto, decide-se: a) Julgar a presente ação totalmente procedente, e, em consequência, condenar a Ré CC a: i. Reconhecer que prédio urbano sito em ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo ...33 e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ...56/20201223, mostra-se registada na proporção de 2/3 a favor de BB, casado no regime de comunhão geral com EE, e de 1/3 a favor de FF. ii. Reconhecer que o prédio urbano descrito em i) pertence à herança aberta por óbito de BB, aqui representada pela cabeça de casal, EE. iii. Proceder a entrega do 1.º andar e a cave 6D, do prédio urbano sito na Rua ..., ..., em ..., à Autora AA, na qualidade de cabeça-de-casal da Herança Indivisa deixada por óbito do seu marido, BB, sem prejuízo do direito de retenção reconhecido para garantia do seu crédito. b) Julgar a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência condenar a Autora AA, na qualidade de cabeça-de-casal da Herança aberta por óbito do seu marido, BB, a pagar à Ré CC €13.159,77 (treze mil, cento e cinquenta e nove euros e setenta e sete cêntimos). c) Conceder à Ré CC o prazo de dois meses a contar do pagamento referido em b) para proceder à entrega do imóvel referido em iii). d) Absolver a autora e ré do demais peticionado. e) Condenar a Autora AA, na qualidade de cabeça-de-casal da Herança aberta por óbito do seu marido, BB, e a Ré CC no pagamento das custas da ação, na proporção do respetivo vencimento, nos termos do disposto no artigo 527.º, nº 1 e n.º 2, do Código de Processo Civil. Registe e notifique.”.
*
Não se conformando com o assim decidido, vieram tanto a Autora como a Ré interpor recurso, recursos que foram admitidos como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
*
A Ré formulou as seguintes conclusões: “1. A Recorrente entende que existe erro de julgamento, por parte do Tribunal a quo, da matéria de Direito, nomeadamente, erro de previsão, ao condenar a Recorrente a entregar o imóvel comodatado, nos termos no artigo 1137º nº 2 do CC. 2. O artigo 1137º nº 1 do CC indica que a restituição da coisa apenas quando finde do uso determinado para que a coisa foi comodatada, sendo que, a procedência ou improcedência do pedido principal depende se se pode considerar a habitação da recorrente como um uso determinado. 3. O tribunal a quo, na esteira de uma das correntes da doutrina e da jurisprudência, sustenta que a habitação não se trata de um uso determinado. 4. No entanto, a Recorrente, na esteira de Rui de Mascarenhas Ataíde6, sustenta que celebrado um comodato sem prazo para fins de habitação familiar, não existiria o dever de restituir o imóvel se não quando cessasse a necessidade habitacional do comodatário. 5. Tal entendimento tem tido reflexos também na jurisprudência, nomeadamente, AcSTJ proferido no processo 5779/18.0T8LSB.L1.S1, datado de 04-02-2021, em que foi relator MANUEL CAPELO e AcSTJ proferido no processo 1281/13.5TBTMR.E1.S1, datado de 5/06/2018, em que foi relator OLINDO GERALDES. 6. Em ambos os casos, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que, tratando-se de comodato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar, enquanto continuar a ter esse uso. 7. Todas as objeções à presente teoria levantadas na fundamentação da decisão recorrida são rebatidas por Rui Ataíde, nomeadamente: 8. Não se pode acolher o entendimento que existe um fim determinável se for temporalmente determinável, desde logo porque a determinação do uso não se confunde com a duração temporal específica do comodato. 9. Ao definir um uso específico para a coisa, o uso mantém-se enquanto o comodatário precisar, ou seja, o comodato fica subordinado a um termo final incerto. 10. Já no que se refere à perpetuidade do contrato comodato durante o acolhimento da posição aqui defendida, o mesmo autor relembra que, pese embora o comodato seja um direito temporário, nada obsta à celebração de um comodato vitalício para fins habitacionais, isto porque, estando o uso específico delimitado temporalmente pelo tempo de vida do comodatário, está satisfeita a exigência legal (1137.°/1, segunda parte). 11. Mais, para evitar a perpetuidade do contrato comodato, o comandante pode sempre defender-se impondo a estipulação de um termo certo para a utilização ou, por outro lado, pode invocar o mecanismo da justa causa objetiva que lhe permita resolver o contrato a todo o tempo, nos termos do artigo 1140º do CC. 12. O entendimento defendido pela aqui recorrente permite uma justa e equitativa resolução do litígio entre as partes, defendendo o seu direito constitucional à habitação. 13. Por outro lado, a decisão recorrida faz com que a recorrente seja impedida de poder usufruir do imóvel que é a sua habitação há 49 anos – facto provado 12 da Sentença recorrida. 14. Assim, forçosamente chegamos à conclusão de que o Tribunal a quo cometeu um erro de previsão da norma jurídica a aplicar, tendo em conta a factualidade dada como provada, tendo, erroneamente, aplicado o nº 2 do artigo 1137º do CC, quando a norma correta a plicar aos factos seria o nº 1 do artigo 1137º do CC. 15. Pelo exposto entende-se que existe erro de julgamento na matéria de direito por parte do Tribunal a quo, devendo o Tribunal ad quem substituir a decisão recorrida – artigo 665º do CPC – por uma decisão em que improcede na totalidade o pedido da Autora e, em consequência, torna os restantes pedidos inúteis, tendo em conta a sua subsidiariedade em relação ao pedido principal. Por todo o exposto, nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve a Decisão recorrida ser reformada, de modo a julgar procedente o presente recurso e assim se fazendo devida JUSTIÇA.”.
A Autora, por sua vez, concluiu as suas alegações, nos seguintes termos: “1. Admitir as presentes alegações, por ser idóneo o meio e tempestivo; 2. Reconsiderar a apreciação da matéria de facto, nomeadamente em confronto com a prova testemunhal feita em juízo, com particular atenção para aquela que neste articulado foi destacado; 3. Que se delibere, em primeiro lugar, quanto à questão prévia da admissibilidade do documento superveniente, uma vez que: i) A Autora solicitou ao Tribunal a quo a admissão de um documento superveniente essencial para o julgamento, o qual só se tornou disponível após a fase de indicação de prova, indicando a relevância e a necessidade de sua inclusão no processo. ii) O documento atende aos dois requisitos cumulativos exigidos para a apresentação superveniente, sendo pertinente e tempestivo, conforme as normas estabelecidas no Código Civil e respaldado pelo Acórdão do T.R.P., Processo nº 2518/21.2T8VNG-A.P1, de 23 de janeiro de 2023. iii) A pertinência do documento é justificada pela sua capacidade de estabelecer uma relação funcional com os factos da causa, sendo essencial para a comprovação da realidade dos mesmos (essencialmente o Ponto 18.º dos factos provados). iv) A tempestividade do documento é corroborado pelo facto de que a sua apresentação não foi possível em momento anterior devido a motivos justificados, que devem ser considerados pela Tribunal na avaliação da admissibilidade do documento. v) O indeferimento da junção deste documento pelo Tribunal a quo resultou na privação de um meio probatório decisivo, prejudicando a correta apreciação e decisão da causa, o que configura um vício que deve ser declarado nulo, agora em sede de recurso. vi) A interpelação pela Mandatária da Autora para que a Ré desocupasse o imóvel cedido a título precário é um elemento central para a compreensão do litígio, evidenciando a necessidade da junção do documento em questão para o esclarecimento dos factos. vii) Dessa forma, requer-se a V. Exas. que se dignem revogar a decisão do Tribunal a quo e admitir a junção do referido documento aos autos, por este ser indispensável à descoberta da verdade material e à justa composição do litígio. viii) Subsidiariamente, invocando o artigo 423.º, n.º 3, e o artigo 425.º, em remissão para o artigo 651.º, n.º 1, in fine do Código de Processo Civil, a Autora reitera a necessidade de junção do documento, considerando que sua inclusão é imprescindível para o julgamento proferido na 1.ª Instância. 4. Ora, por Sentença proferida no processo supra identificado, foi decidido pelo Tribunal a quo julgar: i) Julgar a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência condenar a Autora AA, na qualidade de cabeça-de-casal da Herança aberta por óbito do seu marido, BB, a pagar à Ré CC €13.159,77 (treze mil, cento e cinquenta e nove euros e setenta e sete cêntimos). ii) Conceder à Ré CC o prazo de dois meses a contar do pagamento referido em b) para proceder à entrega do imóvel referido em iii). 5. Com o devido respeito, e com a legitimidade que a fundamentação adiante exposta lhe conferirá, a Meritíssima Juiz a quo, apesar de indiscutivelmente imparcial, interpretou, porém, de modo imperfeito os factos e as provas que resultam dos autos. 6. A sentença, ao considerar a matéria de facto, não avaliou de forma adequada as declarações das testemunhas, essenciais para a correta elucidação dos eventos que cercam o litígio. 7. E, consequentemente não aplicou, de forma correta o Direito, i) Primeiro, não considerou as obras como Benfeitorias Voluptuárias; ii) Segundo, na fixação da indemnização; iii) E por fim, na (in)existência do Direito de Retenção; 8. Ora, da impugnação da decisão sobre a matéria de facto: 9. Nos termos do art.º 662.º, n.º1 do C.P.C. “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tido como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”; 10. Na sua fundamentação fáctica (exarada na 1.ª Parte da Douta Sentença de 24-09-2024), o tribunal dá como provados entre outros, pelo menos, os seguintes factos (que destacamos): i) “Ponto 9.: A ré efetuou as obras infra descritas em 16. sem autorização da autora. ii) Ponto 10.: Em data não concretamente apurada, mas aquando da pandemia global da Covid-19 e antes de janeiro de 2021, a autora solicitou a devolução do prédio à ré, o que esta recusou. iii) Ponto 15.: No início do ano de 2021 foi solicitado novo orçamento para a elaboração das obras. iv) Ponto 18.: A Ré nunca comunicou à Autora que o prédio em causa necessitava de obras. v) Ponto 19.: A Autora no ano de 2017 realizou obras numa das fachadas do imóvel mencionado em 1.” 11. A condenação da Autora ao pagamento de uma indemnização, pelas alegadas Benfeitorias, e consequentemente a atribuição do Direito de Retenção, é uma decisão que parece desprovida de lógica à luz dos factos dados como provados. 12. Não se compreende como, estando provado que a Ré realizou obras sem o consentimento da Autora e após ter sido interpelada para desocupar o Local, o Tribunal concluiu pela necessidade de compensação à Ré, pelas alegadas benfeitorias necessárias. 13. A solicitação formal da Autora à Ré para a devolução do imóvel é um indicativo claro da intenção de retomar a posse, o que deve ser considerado na avaliação das ações da Ré. 14. O depoimento do filho da Ré reforça a evidência de que havia uma intenção clara da parte da Autora em exigir a desocupação do imóvel. 15. Mesmo assim, a Ré recusou-se a devolver o imóvel, mantendo-se na posse do mesmo sem qualquer fundamento legítimo. 16. E, surpreendentemente, apenas após a interpelação para desocupar o imóvel é que a Ré decidiu proceder às referidas obras. 17. A coincidência entre a interpelação da Autora e o início das obras levanta fundadas suspeitas quanto à verdadeira necessidade destas intervenções. 18. É ainda mais intrigante o facto de que, em situações anteriores, sempre que surgiu a necessidade de fazer obras, bastava informar a Senhoria, que prontamente atendia aos pedidos, conforme demonstrado no depoimento de GG. 19. A cronologia dos eventos sugere que as obras não eram necessárias nem urgentes para a habitabilidade do imóvel, mas sim uma tentativa de criar uma situação de facto que justificasse um pedido de indemnização (como veio a acontecer). 20. Acresce que a Ré avançou com as obras sem solicitar o prévio consentimento da Autora, uma violação clara dos seus deveres enquanto ocupante precária do imóvel. 21. Tal facto é comprovado por diversos depoimentos das testemunhas, nomeadamente do depoimento do Companheiro da Ré. 22. Que o mesmo, quando questionado sobre a não comunicação responde: “Bom, ela não solicitou porque já outras obras foram feitas ou teriam sido feitas", referindo-se às obras de 2017, realizadas pela Autora. 23. Que levanta de novo sérias dúvidas sobre a necessidades das mesmas. 24. Mesmo assim, a Ré decidiu avançar unilateralmente com as obras, sem qualquer comunicação à proprietária, o que revela uma, continuada, atuação de má-fé. 25. E, para tal, contratou a empresa “A..., Lda.”, uma sociedade registada em nome do filho do atual companheiro da Ré –, o que levanta sérias dúvidas sobre os valores apresentados. 26. O facto de a empresa responsável pelas obras pertencer ao filho de HH, companheiro da Ré e residente no imóvel, compromete a isenção e a objetividade da avaliação dos custos das intervenções, levantando a suspeita de que as obras possam ter sido superfaturadas ou desnecessárias. 27. É que, a testemunha HH afirmou repetidamente que ele (próprio) tinha realizado diversas obras. 28. Obas essas que, só se pode chegar à conclusão, foram posteriormente faturadas. 29. Por exemplo, no minuto 28:41 da Gravação da Audiência datada de 10 de abril de 2024: questionado pelo mandatário da Autora, “A canalização foi o senhor que tratou?” Do qual o Sr. HH responde: “Sim, sim.” 30. Essa resposta, levanta sérias dúvidas quanto à verdadeira relação entre ele, a Ré, e a empresa que realizou as obras, reforçando a suspeita de que as obras foram realizadas apenas para inflacionar artificialmente o valor da indemnização. 31. Sendo de notar que a fatura apresentada não foi acompanhada de qualquer comprovativo de pagamento ou transferência bancária, o que lança ainda mais dúvidas sobre a sua veracidade e a realidade das obras supostamente realizadas. 32. Por outro lado, o Tribunal A Quo entendeu, s.m.o. erradamente, em classificar as benfeitorias como necessárias. 33. No contexto da audiência de julgamento, não foi demonstrado que as obras realizadas pela Ré se enquadravam na categoria de benfeitorias necessárias. 34. Ao contrário, a evidência sugere que essas intervenções devem ser corretamente classificadas como voluptuárias. 35. As intervenções executadas pela Ré, como pinturas, revisão de persianas e estores, não são imprescindíveis para a conservação ou habitabilidade do imóvel. 36. Tais obras foram executadas com o intuito de aumentar o conforto e alterar a estética do imóvel, corroborando a sua classificação como voluptuárias. 37. O depoimento de HH, quando questionado pelo mandatário da Ré no minuto 12:26 sobre a possibilidade de viver no imóvel, foi claro ao afirmar: “Era possível.” 38. A confirmação da habitabilidade do imóvel mesmo no seu estado anterior evidencia a desnecessidade das benfeitorias realizadas. 39. O próprio Perito, ao ser questionado, sobre a mesma questão, reafirmou que o estado do imóvel era razoável e que era possível habitá-lo, mesmo sem as intervenções realizadas pela Ré. 40. Ora, se era habitável, qual foi a intenção da Ré? 41. Só se pode concluir, que, uma vez que a Ré só avançou com as obras após ser interpelada para desocupar o imóvel, sugere que tais intervenções não tinham como objetivo garantir melhores condições de habitabilidade, mas sim criar uma situação de permanência ou alegar posteriormente algum tipo de direito sobre o imóvel. 42. Uma vez que a própria tinha alternativas habitacionais. 43. O depoimento do seu filho, mencionou a disponibilidade de outra casa, na ..., que estaria destinada para a sua mãe, que sublinha a desnecessidades das obras. 44. Assim, pelo exposto, e por ser equiparada a possuidora de má-fé quanto às benfeitorias, a Ré, enquanto comodatária, não tem direito a indemnização pelas benfeitorias voluptuárias nem ao levantamento das mesmas (art.º 1138.º do Código Civil). 45. Decisão, que deveria, mas infelizmente, não foi proferida pelo Tribunal A Quo. 46. Noutro pendor, também se discorda da fixação da indemnização pelo Exmo. Tribunal A quo. 47. A decisão do Tribunal a quo relativamente à fixação da indemnização carece de fundamentação suficiente e adequada, sendo que o valor estabelecido na sentença não se encontra devidamente justificado. 48. O montante fixado pelo tribunal é incorreto e desajustado, não correspondendo aos factos e à prova apresentada, o que justifica a sua revogação. 49. O tribunal não justificou adequadamente o valor atribuído à Ré pela execução das obras. 50. A ausência de fundamentação clara suscita dúvidas quanto à correção da quantia estipulada. 51. O facto de que a empresa que realizou as obras pertencer ao filho do companheiro da Ré gera preocupações sobre a legitimidade dos valores cobrados, levantando suspeitas de conflitos de interesse. 52. O montante total das obras excede o valor fixado pelo perito em 5.568,90€ o que reforça a suspeita de que o orçamento e a fatura apresentados possam ter sido inflacionados, configurando um possível caso de enriquecimento sem causa. 53. A falta de qualquer comprovativo de pagamento ou transferência bancária que acompanhe a fatura apresentada pela Ré intensifica as dúvidas sobre a sua veracidade e sobre a realidade das obras alegadamente realizadas. 54. O que se comprova, pelo facto de a testemunha, HH, que no seu depoimento assume que foi ele próprio quem realizou as obras. 55. A combinação entre a ausência de comprovativos de pagamento, o vínculo familiar da empresa que emitiu a fatura, e o depoimento de HH, reforça a suspeita de que os valores possam ter sido deliberadamente inflacionados com o intuito de beneficiar a Ré de forma indevida. 56. A ausência de documentação que comprove o pagamento das obras, aliada às discrepâncias nos valores e ao envolvimento da empresa do filho do companheiro da Ré, pode configurar uma tentativa de enriquecimento sem causa, o que reforça a necessidade de uma análise rigorosa e imparcial da situação. 57. Por fim, o Tribunal a Aquo reconheceu à Ré o direito de retenção até ao pagamento da compensação pelas benfeitorias. 58. No entanto, essa decisão deve ser revista à luz dos pressupostos legais estabelecidos pelos artigos 754.º e 756.º do Código Civil. 59. Ora, o Direito de Retenção só pode ser reconhecido quando se verificam os seguintes pressupostos: i) Detenção ilícita de uma coisa alheia e penhorável que deve ser entregue a outrem; ii) Titularidade do retentor de um crédito certo, exigível e liquidável sobre a pessoa com direito à entrega da coisa; iii) Conexão material e direta entre o crédito do detentor/retentor e a coisa detida/retida iv) Que a constituição do crédito não tenha resultado de despesas efetuadas de má-fé; v) Que o credor não preste caução suficiente 60. O direito de retenção é excluído quando as despesas que originaram o crédito foram realizadas de má-fé. 61. Ora, ficou provado na Sentença que: (1) A Ré não comunicou que o imóvel necessitava de obras à Autora; (2) A Ré, mesmo não tendo comunicado, prosseguiu na mesma com as obras; (3) Avançou com as obras, após ter sido interpelada extrajudicialmente para desocupar o imóvel. 62. Estes factos indicam claramente a má-fé por parte da Ré, que, ao realizar obras sem o consentimento da Autora e apenas após ser interpelada para devolver o imóvel, agiu com o claro intuito de tentar obter um crédito – inflacionando para nós o valor das benfeitorias – com o objetivo de prolongar indevidamente a sua permanência no imóvel. 63. Em jurisprudência, quiçá dominante, se refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. n.º 1315/17.4T8ALM.L1-2, datado de 10-09-2020, afirma que o direito de retenção é excluído quando o detentor age com a consciência de estar a prejudicar o proprietário. 64. Dado que as despesas realizadas pela Ré foram efetuadas de má-fé, nos termos do artigo 756.º, alínea d), do Código Civil, o direito de retenção deve ser excluído. 65. E, consequentemente, a Ré deve ser condenada a devolver o imóvel à Autora imediatamente, sem direito de retenção e sem qualquer compensação. 66. Sem prescindir e subsidiariamente, caso o Venerando Tribunal da Relação do Porto não entenda que todas as benfeitorias realizadas pela Ré sejam voluptuárias, ainda assim não se pode atribuir razão à Ré quanto à totalidade das obras. i) Mesmo que algumas das intervenções possam ser consideradas necessárias, nem todas as obras realizadas podem ser qualificadas dessa forma, devendo ser feita uma distinção clara entre as obras indispensáveis e aquelas que foram meramente estéticas ou de conforto. ii) Obras como pintura, aplicação de gesso, revisão de persianas e estores são exemplos de intervenções que não se enquadram na categoria de benfeitorias necessárias, uma vez que visam apenas o embelezamento ou aumento de conforto, e não a conservação ou habitabilidade do imóvel. iii) Qualquer valor que possa ser atribuído à Ré a título de indemnização deve ser ajustado para excluir as benfeitorias voluptuárias. iv) No entanto, é importante destacar que a totalidade das obras foram realizadas após a Autor ter interpelado a Ré para desocupar o imóvel, o que levanta questões adicionais, a nosso ver, sobre a legitimidade da exigência da indemnização. 67. Nestes termos e nos demais de Direito deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ordenar a revogação da, apesar de tudo, Douta Sentença. 68. E, decidindo desta forma, V. Exas. Colendos Desembargadores, como sempre melhor apreciando com o saber a que nos habituaram, farão a acostumada aplicação da LEI, do DIREITO e da JUSITÇA. 69. O que mais tiver por conveniente na circunstância, sempre em doutro suprimento.”.
Cada uma das Recorridas apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso da parte contrária.
*
Após os vistos legais, cumpre decidir.
*
II – OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelas Apelantes, são as seguintes as questões a apreciar:
- Se deve ser admitido o documento cuja junção a autora pretende, e que foi rejeitada pelo Tribunal a quo;
- Se existe motivo para rejeição do recurso da autora, quanto à impugnação da matéria de facto e, em caso negativo, se ocorre erro de julgamento, por errada apreciação das provas;
- Decidir se em conformidade, face à alteração, ou não, da matéria de facto e subsunção dos factos ao direito, deve ser alterada a decisão de direito, quer quanto à ação, quer quanto à reconvenção.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O Tribunal de 1ª Instância considerou provada a seguinte matéria de facto: “1. Na Rua ..., ..., situa-se um prédio urbano inscrito na matriz predial sob o art.º ...08.º urbano da União das freguesias ... e ... do concelho ... e descrito na competente Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob a descrição n.º ...56 das mencionadas freguesias e concelho. 2. O prédio urbano referido em 1. é composto por 2 pisos com 6 divisões em cada piso, quintal e 2 caves 3D e 6D. 3. A ré ocupa o 1.º andar e cave 6D. 4. O prédio urbano supra identificado faz parte da herança indivisa deixada por óbito de BB, pai de BB e marido da Autora. 5. Já que era pertença do falecido BB e da aqui Autora (cônjuge meeira), na proporção de 2/3, sendo esta, Autora, ainda, juntamente com a sua filha, FF, titular dos restantes 1/3 do prédio. 6. O filho da Autora, BB, faleceu em ../../2005. 7. A herança aberta por óbito de BB encontra-se por partilhar. 8. Por testamento outorgado em 14.08.1990, no Primeiro Cartório Notarial da cidade ..., BB, declarou que “Institui herdeira da sua quota disponível de seus bens (…) sua mulher AA, consigo convivente, querendo que a mesma quota disponível comece a ser preenchida pela casa de sua habitação, e pelo recheio existente na mesma casa, à data do seu falecimento”. 9. A ré efetuou as obras infra descritas em 16. sem autorização da autora. 10. Em data não concretamente apurada, mas aquando da pandemia global da Covid-19 e antes de janeiro de 2021, a autora solicitou a devolução do prédio à ré, o que esta recusou. 11. A última morada, em vida, do testador BB, foi na Rua ...., ..., em .... 12. A Ré reside no 1.º andar do prédio urbano e utiliza a cave identificado como CV6D, objeto dos presentes autos, desde o ano 1975 e de forma ininterrupta. 13. Existia, entre a Ré – com seu falecido marido – e a Autora, um acordo que designaram de contrato de arrendamento relativamente ao referido imóvel. 14. No final do ano de 2019 a ré solicitou orçamento para efetuar obras no imóvel referido em 1 a 3. 15. No início do ano de 2021 foi solicitado novo orçamento para a elaboração das obras. 16. A Ré efetuou as seguintes obras no prédio referido em 1 a 3, no valor total de €10.699,00 acrescido de Iva de 23%: a. Revisão do telhado – executado no período entre 11.01.2021 e 20.01.2021, no valor de €610,00 acrescido de IVA de 23%: i. Substituição de caleiras interiores; ii. Limpeza de telhado com substituição de telhas partidas; b. Trabalhos de Caixilharia – executado no período entre 07.02.2021 e 11.02.2021 no valor de €1746, 00 acrescido de IVA de 23%: i. Revisão de persianas com substituição de persianas em 3 janelas; ii. Reparação e pintura em 3 janelas de madeira; iii. Reparação e pintura em 3 janelas de madeira; iv. Fornecimento e aplicação de 3 janelas de alumínio cor branca com soleiras; c. Trabalhos de canalização – executado no período entre 10.03.2021 a 22.03.2021 no valor de €618,80 acrescido de IVA de 23%: i. Substituição de toda a tubagem de água quente e fria no 1.º andar, desde a entrada e distribuído para as divisões, cozinha, lavandaria e wc´s. d. Revisão da instalação elétrica executado em março de 2021 no valor de € 672,10 acrescidos de Iva de 23%: i. Substituição de cabo elétrico entre o contador localizado no r/chão, e quadro parcial no 1º andar; ii. Fornecimento e aplicação de quadro elétrico parcial, equipado com diferencial e disjuntores. iii. Substituição da rede elétrica da cozinha. e. Trabalhos executados entre maio e julho de 2021 no valor de €3913,32 acrescido de IVA de 23%: i. Tetos falsos e forro de paredes com gesso cartonado standard 13mm sobre estrutura metálica em 6 divisões no 1.º andar e na cave. ii. Gesso cartonado 13mm hidrófugo na cozinha e wc´s. iii. Incluiu 28 focos led. f. Trabalhos de pintura – executados entre julho e agosto de 2021 no valor de €3138,89 acrescido de IVA de 23%: i. Reparação e pintura de paredes e tetos interiores com 2 demãos de tinta aquosa na cor branca mate, CIN Vinlmatt refª 10-250 incluindo 1 demão de primário EP / GC 300. ii. Pintura de madeiras com AC-Thane. 17. Foi a ré que suportou as despesas das obras referidas em 16. 18. A Ré nunca comunicou à Autora que o prédio em causa necessitava de obras. 19. A Autora no ano de 2017 realizou obras numa das fachadas do imóvel mencionado em 1. 20. A Ré foi citada em 07.07.2021.”.
E deu como não provados os factos seguintes: “A) A ré, juntamente com o seu falecido marido começaram a habitar o 1.º andar e cave identificada como CV6D pela relação de parentesco com a Autora. B) A ré construiu um barraco sem autorização expressa da cabeça de casal da herança aberta por óbito de BB. C) O testamento referido em 8. visava o prédio identificado em 1. D) O acordo referido em 13. durou até à morte do marido da Ré. E) Aquando da morte do marido da Ré, a Autora abordou a Ré no sentido desta, desse momento em diante, não se encontrar onerada, com o pagamento da renda, pelo uso do locado. F) No final do ano de 2019 chovia dentro do imóvel referido em 1 a 3. G) As obras referidas em 16. totalizaram o montante de €15.657,90. H) O acordo designado por contrato de arrendamento que vigorou entre a Autora e Ré foi resolvido por falta de liquidação das rendas por parte da ré.”.
*
IV – MOTIVAÇÃO DE DIREITO
Por uma questão de sequência prática, depois de decidida a questão prévia da junção de documento, iremos começar a apreciação deste recurso pela impugnação da matéria de facto, por erro de julgamento, deduzida no recurso da autora/recorrente.
Seguidamente, apreciaremos as questões de direito levantadas, primeiro pela ré, quanto à ação, e, depois, pela autora, quanto à reconvenção.
*
1. Da junção de documento
Alega a autora/recorrente, quanto à questão da admissibilidade do documento que diz ser superveniente, que se trata de documento essencial para o julgamento e que apenas se tornou disponível após a fase de indicação de prova, afirmando que o documento atende aos dois requisitos cumulativos exigidos para a apresentação superveniente, sendo pertinente e tempestivo, conforme as normas estabelecidas no Código Civil.
O art. 423.º, nº 1 do CPC, dispõe que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
Os nºs 2 e 3 do mesmo preceito preveem exceções a essa regra, dispondo que se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado, e, ainda, que, após esse limite temporal só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
A situação em causa nos autos, integra-se nesta última previsão, já que a requerida junção foi formulada já após o início da audiência de julgamento, pelo que a junção apenas será admissível quando a respetiva apresentação não tenha sido possível até àquele momento, ou se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
Não é o caso dos autos.
O documento em causa, até de acordo com a alegação da própria recorrente, podia ter sido junto com a petição inicial, já que será anterior a essa data.
Por outro lado, ao contrário do que a autora pretende, a necessidade da sua junção não resultou de qualquer circunstância ocorrida posteriormente, nomeadamente durante a audiência de julgamento.
Refere a autora que o documento vai ao encontro do Ponto 18. dos factos provados, o que não se logra entender, já que tal facto provado diz que “A Ré nunca comunicou à Autora que o prédio em causa necessitava de obras”, o que nada tem a ver com o documento em causa que dirá respeito à comunicação da autora, à ré, para entregar o local em discussão.
Assim, não se vê sequer qual a importância do documento para a decisão que foi proferida, nomeadamente, qual dos factos, provados ou não provados, que tal documento visaria provar, até porque, o único facto que o documento poderia confirmar, já se mostra provado sob o ponto 10. dos factos assentes, facto que refere precisamente que a autora solicitou a devolução do prédio à ré, o que esta recusou.
Nada há, pois, a alterar quanto à decisão do tribunal a quo sobre essa questão, como também não é de admitir a junção do documento por este Tribunal, por não se verificar a previsão do art. 651.º, nº 1 do CPC.
Improcede, assim, esta parte do recurso da autora/recorrente.
*
2. Do erro de julgamento de facto
Das alegações do recurso da autora e respetivas conclusões parece resultar que a recorrente pretende impugnar a decisão da matéria de facto, até porque, no artigo 16.º das alegações e sob o ponto 1), refere expressamente “Da Impugnação da Decisão sobre a Matéria de Facto”, destinando-lhe, seguidamente, os artigos 17.º a 77.º do corpo das alegações.
Ora, o art. 640.º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar os concretos pontos da decisão que pretende questionar, ou seja, delimitar o objeto do recurso, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto, a fundamentação, e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pelo Tribunal da Relação.
No caso concreto, analisando as alegações do recurso e respetivas conclusões, não se vê quais os factos, provados ou não provados, que a apelante pretenda impugnar, já que apesar de transcrever algumas partes de depoimentos, não indica em que medida possam alterar qualquer facto e, sobretudo, quais os factos, como não refere a decisão que sugere para uma qualquer alteração da factualidade, pelo que, não se mostram, nem sequer minimamente, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, sendo que, para o efeito, o recorrente deve dar cumprimento ao disposto no citado art. 640.º do CPC, o que a recorrente não fez.
Face ao exposto, rejeita-se o recurso de impugnação da decisão da matéria de facto.
*
3. Do erro de julgamento de direito
a) Recurso da ré:
Através da ação que instaurou, pediu a autora que fosse a ré condenada a proceder à restituição do 1.º andar e da cave 6D, do prédio urbano sito na Rua ..., ..., em ..., andar onde a ré habita e cave que utiliza, pedido que foi julgado procedente pelo Tribunal a quo.
A ré/recorrente não se conforma com tal decisão, pese embora admita que a mesma não é desprovida de fundamento jurídico e que a respetiva fundamentação se encontra em consonância com parte da doutrina e da jurisprudência.
Contudo, entende que tal decisão fere os princípios da equidade e de justiça que devem pautar as decisões do poder judicial, sendo que, para além da corrente doutrinal e jurisprudencial seguida pela decisão recorrida, existe uma outra corrente da Doutrina e da Jurisprudência que defende que a habitação do comodatário constitui uma situação de um “uso determinado” e, como tal, lhe é aplicável o 1137.º, nº 1 do Código Civil.
Vejamos:
Não foi posto em causa pelas recorrentes que a relação entre a autora e a ré deve ser enquadrada como tratando-se de um contrato de comodato, o qual, nos termos do disposto no art. 1129.º do Código Civil, “é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.
No que para a decisão do recurso da ré interessa, há que ter em conta o disposto no art. 1137.º do diploma legal referido, o qual dispõe: (Restituição) 1. Se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação. 2. Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida. (…).
A sentença recorrida entendeu ser de aplicar ao caso o disposto no nº 2 do preceito citado, fundamentando tal decisão nos seguintes termos: “Importa aqui analisar a norma prevista no artigo 1137º do Código Civil. Na situação em causa nos autos o imóvel foi entregue para habitação e não foi estabelecido qualquer prazo de entrega. Se interpretarmos o artigo no sentido literal, então teríamos que concluir que o imóvel apenas poderia ser restituído quando a ré deixasse de o usar para esse fim. Contudo, sendo o direito à habitação genérico e de execução continuada no tempo, acompanhamos de perto a jurisprudência que defende sustentadamente que também neste caso o uso atribuído não é um uso determinado e, nessa medida, há lugar à aplicação do nº 2 do artigo 1137º. De facto, se assim não fosse, caíamos em situações que configurariam verdadeiras doações de imóveis, mantendo privados os seus proprietários do direito de fruir e dispor dos seus bens. Aliás, sendo o comodato um contrato que se destina a constituir um mero favor do comodante ao comodatário, seria abusivo permitir o uso prolongado no tempo quando na grande maioria das vezes não é essa a intenção do proprietário quando cede o uso do bem, especialmente se se tratar de um imóvel. Importa assim ter presente o que resulta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2019, processo nº 2/16.5T8MGL.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt que estipula que Não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do imóvel, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado art.º 1137º, do CC. Na verdade, conforme defende Rodrigues Bastos (Notas ao Código Civil Vol. IV, Almedina págs. 251-252), citado no aludido Acórdão “o uso da coisa, no comodato, deve durar por todo o tempo estabelecido no contrato. Discute-se se será admissível um comodato por mais de trinta anos, dado o que preceitua o art. 1025.° (para a locação). Embora a lei não marque, para esta hipótese, um limite à duração do uso, a verdade é que tem de considerar-se a cedência sempre limitada a certo período de tempo, sob pena de desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel. Bastará para isso pensar que um comodato muito prolongado de um imóvel converter-se-ia em doação (indirecta) do gozo da coisa, ou, se fosse para durar por toda a vida da outra parte, o comodato descaracterizar-se-ia em direito de uso e habitação. “. No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19.11.2020, processo nº 1564/19.0T8BJA.E1 segundo o qual O contrato de comodato, revestindo a característica da temporalidade, não consente a sua subsistência indefinida, seja por falta de prazo, seja por estar associado a um uso genérico ou de duração incerta. II – O uso só tem fim determinado se o for também temporalmente determinado ou, pelo menos, por tempo determinável. III - Não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo de uma casa para habitação e, por isso, não obsta à restituição da coisa comodada a circunstância de esse específico fim ainda ocorrer.” Mostra-se assim manifesto que a ré deve ser condenada a restituir o bem, neste caso à herança, aqui representada pela cabeça de casal.”.
Ou seja, a decisão recorrida optou pela aplicação, ao caso, da previsão do nº 2 do art. 1137.º do Código Civil, concluindo que, não tendo sido convencionado prazo para a restituição, e entendendo que o empréstimo de uma casa para habitação não constitui comodato para uso determinado, decidiu que a ré teria que entregar os espaços em causa, quando lhe fosse exigido, ao contrário do que entende a ré/recorrente que considera tratar-se de um comodato para uso determinado, sendo aplicável ao caso o nº 1 do art. 1137.º.
Ora, sendo certo que efetivamente existe uma corrente doutrinal e jurisprudencial que vai no sentido da pretensão da ré/recorrente, podemos afirmar que a jurisprudência maioritária é no sentido da versão que foi acolhida na sentença recorrida e com a qual concordamos.
Entendemos, como vem sendo decidido, pelo menos maioritariamente, por esta secção do Tribunal da Relação do Porto, que no âmbito de um contrato de comodato, o uso é considerado determinado quando foi determinado no momento da sua celebração ou o acordo tem elementos para que este seja determinável, sendo que, o comodato, sem fixação de limite temporal, de um imóvel para habitação sem qualquer prazo temporal não integra a qualificação de uso determinado, pelo que o contrato pode ser denunciado nos termos do art. 1137.º, nº 2, do Código Civil.
Neste sentido foi decidido no recente Acórdão desta secção do Tribunal da Relação do Porto, Processo 1140/22.0T8PVZ.P1, de 21-11-2024, Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA, onde consta do respetivo sumário que: “I - Num contrato de comodato o uso é considerado determinado quando foi determinado no momento da sua celebração ou o acordo tem elementos para que este seja determinável. II - A mera cedência, sem limite temporal, de um imóvel para habitação sem qualquer prazo temporal não integra essa qualificação. III - Por isso o contrato pode ser denunciado nos termos do art. 1137.º, nº 2, do CC.”.
Nesse mesmo acórdão, com o qual concordamos e cuja posição seguimos, diz-se, quanto à subsunção ao art. 1137º, nº1, do CC, da situação aí em causa e que serve para o caso em discussão nos presentes autos, “Pretendem, porém, os apelantes que estamos perante uma modalidade contratual na qual foi fixado um uso determinado. Note-se que a factualidade provada não sustenta esta versão, pois, está apenas demonstrado que “III) AA (ora Autor), por um lado, e BB e CC (ora Réus), por outro lado, acordaram que o imóvel identificado nos autos seria a habitação dos Réus para o resto vida destes”. Deste modo, teremos de concluir que o acordo celebrado entre as partes implicou o uso do bem, de forma gratuita (note-se a não comprovação também do pagamento de qualquer quantia pelos apelantes), sem que tenha sido fixado qualquer limite temporal do mesmo. Por isso, este uso não está determinado. E, quando assim seja, o acordo deve ser qualificado como um contrato de duração indeterminada, sujeito, por isso, à regra da cessação ad nutum prevista no art. 1137.º, n.º2 do Código Civil, que dispõe «se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida».”.
Assim, entende-se que “Num contrato de comodato o uso é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer”.
Nos mesmos termos, decidiu o também recente Ac. da RP de 5.2.24, processo nº 53/23.3T8VNG-A.P1 (Relator: Miguel Baldaia), citado no acórdão que vimos referindo, onde se esclareceu que “Num contrato de comodato, o preenchimento do conceito de “uso determinado”, para os efeitos do disposto no nº 1 do artigo 1137º do Código Civil, exige não só que a utilização a dar ao objeto do comodato seja concretizada quanto à sua natureza, mas também quanto à sua duração. A essa luz, não constitui comodato para uso determinado o empréstimo de uma casa para habitação sem qualquer delimitação temporal desse uso”.
Concluímos, assim, como se concluiu no citado acórdão proferido no Processo 1140/22.0T8PVZ.P1, de 21-11-2024, Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA, que não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do imóvel, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado art. 1137.º, do Código Civil.
Aliás, como se diz no mesmo acórdão, citando Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Vol. IV, p. 250, «tem de considerar-se a cedência sempre limitada a certo período de tempo, sob pena de se desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel (…). Um comodato muito prolongado de um imóvel converter-se-ia em doação (indireta) do gozo da coisa, ou, se fosse para durar toda a vida da outra parte, o comodato caracterizar-se-ia em direito de uso e habitação.».
No mesmo sentido, de que tem aplicação ao caso de um comodato de um imóvel para habitação, a previsão do nº 2, do art. 1137.º, do Código Civil, vejam-se, entre outros, os seguintes acórdãos:
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 28-09-2023, Processo 94/22.8T8ALR.E1, onde se decidiu que “- No contrato de comodato, que se alicerça numa conduta gentil ou de favor, a cedência tem de ser tomada sempre limitada a certo período de tempo; - a nota de temporalidade constitui, assim, traço essencial do contrato de comodato; - para efeitos do disposto no artigo 1137.º do CC, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável; - a cedência, a título gratuito, de prédio urbano para habitação do agregado familiar dos RR, sem fixação de prazo de vigência do contrato e sem delimitação temporal da necessidade do respetivo uso, pode ser denunciada, a todo o tempo, pelo comodante, resultando os comodatários obrigados a restituir o prédio.
Nesse acórdão cita-se, no mesmo sentido, o Ac. do STJ de 21/03/2019 (Maria do Rosário Morgado): «A jurisprudência do Supremo Tribunal tem entendido que o «uso determinado», a que se alude no artigo 1137.º do CC pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada mas antes atos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, caso em que se deve haver como concedido por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável.”.
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 03-06-2024, Processo 962/22.7T8VNG.P1, Relatora: FÁTIMA ANDRADE, no qual se decidiu que “I - A determinação do uso da coisa para efeitos do previsto no nº 1 do artigo 1137º do CC, implica a concretização de tal uso por referência a uma delimitada necessidade temporal. II - Não respeita esta exigência o acordo estabelecido entre as partes de que o imóvel objeto do contrato de comodato se destina a habitação dos comodatários.”.
Nada há, pois, a apontar à decisão proferida pelo Tribunal recorrido, no que diz respeito à entrega do bem, pelo que a mesma se mantém nos seus precisos termos, improcedendo o recurso da Ré.
b) Recurso da Autora:
O recurso da autora, uma vez improcedente a questão prévia e rejeitada a impugnação da matéria de facto, versa sobre três questões de direito:
1. A classificação das benfeitorias que a recorrente entende serem voluptuárias;
2. A fixação da indemnização devida à ré pelas benfeitorias realizadas;
3. A (in)existência do direito de retenção.
Vejamos. Quanto às benfeitorias:
A sentença recorrida decidiu condenar a Autora/reconvinda a pagar à Ré/reconvinte a quantia de € 13 159,77 (treze mil, cento e cinquenta e nove euros e setenta e sete cêntimos), a título de indemnização por benfeitorias.
Foi dado como provado, com interesse para esta questão, e não impugnado, que: 9. A ré efetuou as obras infra descritas em 16. sem autorização da autora. 12. A Ré reside no 1.º andar do prédio urbano e utiliza a cave identificada como CV6D, objeto dos presentes autos, desde o ano 1975 e de forma ininterrupta. 14. No final do ano de 2019 a ré solicitou orçamento para efetuar obras no imóvel referido em 1 a 3. 15. No início do ano de 2021 foi solicitado novo orçamento para a elaboração das obras. 16. A Ré efetuou as seguintes obras no prédio referido em 1 a 3, no valor total de €10.699,00 acrescido de Iva de 23%: a. Revisão do telhado – executado no período entre 11.01.2021 e 20.01.2021, no valor de € 610,00 acrescido de IVA de 23%: i. Substituição de caleiras interiores; ii. Limpeza de telhado com substituição de telhas partidas; b. Trabalhos de Caixilharia – executado no período entre 07.02.2021 e 11.02.2021 no valor de € 1 746,00 acrescido de IVA de 23%: i. Revisão de persianas com substituição de persianas em 3 janelas; ii. Reparação e pintura em 3 janelas de madeira; iii. Reparação e pintura em 3 janelas de madeira; iv. Fornecimento e aplicação de 3 janelas de alumínio cor branca com soleiras; c. Trabalhos de canalização – executado no período entre 10.03.2021 a 22.03.2021 no valor de € 618,80 acrescido de IVA de 23%: i. Substituição de toda a tubagem de água quente e fria no 1.º andar, desde a entrada e distribuído para as divisões, cozinha, lavandaria e wc´s. d. Revisão da instalação elétrica executada em março de 2021 no valor de € 672,10 acrescidos de IVA de 23%: i. Substituição de cabo elétrico entre o contador localizado no r/chão, e quadro parcial no 1º andar; ii. Fornecimento e aplicação de quadro elétrico parcial, equipado com diferencial e disjuntores. iii. Substituição da rede elétrica da cozinha. e. Trabalhos executados entre maio e julho de 2021 no valor de € 3 913,32 acrescido de IVA de 23%: i. Tetos falsos e forro de paredes com gesso cartonado standard 13mm sobre estrutura metálica em 6 divisões no 1.º andar e na cave. ii. Gesso cartonado 13mm hidrófugo na cozinha e wc´s. iii. Incluiu 28 focos led. f. Trabalhos de pintura – executados entre julho e agosto de 2021 no valor de € 3 138,89 acrescido de IVA de 23%: i. Reparação e pintura de paredes e tetos interiores com 2 demãos de tinta aquosa na cor branca mate, CIN Vinlmatt refª 10-250 incluindo 1 demão de primário EP / GC 300. ii. Pintura de madeiras com AC-Thane. 17. Foi a ré que suportou as despesas das obras referidas em 16. 18. A Ré nunca comunicou à Autora que o prédio em causa necessitava de obras.
De acordo com o disposto no art. 216.º do Código Civil, consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa, podendo as mesmas ser classificadas como benfeitorias necessárias, úteis ou voluptuárias.
Resulta ainda desse preceito (nº 3) que são benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante.
Sendo o comodatário, nos termos do art. 1138.º do Código Civil, equiparado, quanto a benfeitorias, ao possuidor de má fé, as benfeitorias conferem-lhe os direitos previstos nos arts. 1273.º e 1275.º do mesmo código, conforme se trate de benfeitorias necessárias e úteis ou de benfeitorias voluptuárias.
Tratando-se de benfeitorias necessárias, ainda que o possuidor esteja de má fé, como acontece com o comodatário face ao disposto no citado art. 1138.º, conferem-lhe o direito a ser indemnizado do seu valor – art. 1273.º, nº 1, 1.ª parte do CC.
No caso de benfeitorias úteis, pode o possuidor/comodatário levantá-las se o puder fazer sem detrimento da coisa, sendo que, caso não seja possível o levantamento das benfeitorias úteis sem o detrimento da coisa, deve o possuidor/comodatário ser indemnizado segundo as regras do enriquecimento sem causa – art. 1273.º, nº 1, 2.ª parte e nº 2 do CC.
Já quanto às benfeitorias voluptuárias, o art. 1275.º, nº 2 do CC prevê que o possuidor de má fé, como é considerado o comodatário, perde, em qualquer caso, as benfeitorias voluptuárias que haja feito.
Posto isto, decidiu o Tribunal a quo que “face à prova produzida, dúvidas não há que as obras mencionadas no facto provado em 16) foram necessárias a evitar a deterioração do imóvel que a ré detém atendendo ao mau estado em que o mesmo se encontrava, pelo que reconheceu à ré o crédito correspondente ao valor de todas as obras efetuadas”.
Ora, analisando as obras que a ré levou a cabo nos espaços do imóvel que habita e utiliza (1º andar e cave 6D) e que foram dadas como provadas no facto 16), concordamos que se afiguram necessárias, no sentido de evitar a deterioração do imóvel, atendendo ao mau estado em que o mesmo se encontrava, até tendo em conta a idade do prédio, no qual a ré já habita há cerca de 50 anos, pelo menos, as obras no telhado e a reparação das caixilharias, trabalhos de canalização e de revisão da instalação elétrica, mas também os próprios trabalhos dos tetos falsos, gesso e focos, bem como trabalhos de pintura, se afiguram necessários para evitar a deterioração do imóvel, sendo que, ainda que estes últimos se considerassem antes como benfeitorias úteis, sempre se trata de obras que aumentam o valor do imóvel, as quais pela sua natureza, não podem ser levantadas.
Tendo em conta o estado de degradação resultante da idade do imóvel e do facto de ao longo de décadas não ter sido objeto de obras, as benfeitorias no mesmo realizadas evitam, sem dúvida, a sua deterioração, ao que acresce também que levam a que a habitação tenha um valor superior ao que tinha antes das obras, já que todas as obras executadas são obras relevantes que aumentam, assim, o valor do imóvel.
E em nada releva para o efeito da questão que estamos a apreciar, a altura em que tais obras foram feitas, já que a ré residia no imóvel há cerca de 50 anos, como dito, e as obras estão integradas no prédio da autora, beneficiando-o e aumentando-lhe o valor.
Assim, a ré tem o direito de ser indemnizada pelas benfeitorias necessárias mencionadas, e teria igualmente esse direito, ainda que se considerassem úteis, sendo que voluptuárias não são, tendo em conta a definição legal respetiva.
Improcede, assim, esta parte do recurso interposto pela autora.
Quanto à indemnização:
Diz a autora/recorrente que relativamente à fixação da indemnização, se verifica que a decisão do Tribunal a quo carece de fundamentação suficiente e adequada, referindo também que se suscitam dúvidas quanto à correção da faturação apresentada pela ré, até porque a empresa que realizou as obras, pertence ao filho do companheiro da ré.
Mas sem razão.
O Tribunal a quo fundamenta o valor da indemnização, desde logo, na fundamentação da decisão de facto, quando refere em que meios de prova se baseou para dar como provado o facto 16, ou seja: “A materialidade do ponto 16. extraiu-se do relatório pericial junto aos autos, em 26.05.2022 e 02.09.2022, tendo o Senhor Perito verificado as obras executadas, além de que, efetuou a estimativa previsível do que a ré pagou pelos trabalhos, levando em consideração vários fatores, nomeadamente, medições de quantidades de trabalho, composição e preços unitários, a plataforma técnica “orçamentos.eu”, a sua experiência e a margem de lucro na venda, valores esses, acrescidos de IVA à data em vigor. Concluiu o Senhor Perito que “O valor dos trabalhos orçamentados e realizados, em sede de fatura, é taxado com iva. - Iva que, atualmente ou em passado próximo, tem uma taxa de incidência de 23% sobre o valor base. - Assim: - Valor total das obras realizadas em 11), alíneas b) a f): - Valor base: 10.089,00€ - Valor iva: (10.089,00€ x .023) = 2.320,47 - Valor total: (10.089,00€ + 2.320,47) = 12.409,47€”. No que se reporta ao telhado o Senhor Perito concluiu que o custo do material se fixou no total em €226 e o custo de mão de obra em €384, sendo o total do valor da obra dos trabalhos realizados no telhado no valor de €750,30, incluindo IVA.”.
Por sua vez, ao dar como provado tal facto que, aliás, não foi impugnado pela autora, facilmente e de forma congruente, o Tribunal a quo concluiu ser esse o valor das obras/benfeitorias realizadas e devido pela autora à ré.
Afigura-se totalmente irrelevante o que a recorrente refere quanto à fatura ou faturas juntas pela ré, ou quanto à discrepância de valores entre essas faturas e o valor fixado, uma vez que a o Tribunal atendeu, como da fundamentação transcrita resulta, ao teor do relatório pericial junto aos autos, na sequência da perícia ordenada pelo tribunal, sendo que o Tribunal, embora apreciado livremente as provas, não tinha qualquer motivo para do referido relatório duvidar.
E não se compreende o motivo pelo qual a recorrente refere que “é imperioso que se reanalise a fixação do valor da indemnização, atendendo-se à prova pericial produzida, que indica um montante significativamente inferior ao considerado pelo tribunal”, já que o valor fixado corresponde precisamente ao que foi indicado na perícia, conforme resulta dos emails de 26-05-2022 (relatório pericial), de 21-09-2022 (esclarecimentos quanto ao IVA) e de 27-02-2023 (perícia quanto aos trabalhos no telhado).
Improcede, assim, também este fundamento do recurso da autora/recorrente.
Quanto ao direito de retenção:
Na sentença recorrida, decidiu o Tribunal a quo, quanto a esta última questão, que: “Importa ainda aferir se a ré em face do crédito reconhecido tem direito de retenção sobre o bem imóvel em causa nos autos. Ora, dispõe o artigo 754º do Código Civil que o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados. Assim, “o direito de retenção pressupõe (i) a licitude da detenção da coisa; (ii) a reciprocidade de créditos entre o detentor da coisa e aquele que tem direito à restituição da mesma; e (iii) a existência de uma conexão direta e material entre o crédito do detentor e a coisa detida, resultante de despesas realizadas com ela ou de danos pela mesma produzidos (v. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, pág. 324). No caso vertente, encontram-se preenchidos todos os requisitos superexposto, decorrendo ainda do artigo 755.º, n.º 1, al. e) do Código Civil que goza do direito de retenção sobre o imóvel em consequência do respetivo contrato de comodato, pelo crédito dele resultante.”.
E bem, a nosso ver.
Invoca a recorrente que nos termos do disposto no art. 756.º, al. b) do Código Civil, o direito de retenção é excluído, quando tenham sido realizadas despesas de má fé que determinem a aquisição do crédito.
Efetivamente, o preceito referido dispõe que não há direito de retenção, a favor dos que tenham realizado de má fé as despesas de que proveio o seu crédito.
A prova da má fé na aquisição do crédito, neste caso concreto, da realização das obras/benfeitorias, cabia à autora/recorrente, prova que, contudo, não logrou fazer.
Cabia-lhe, como a própria refere, fazer prova de que quando a ré/recorrida realizou as despesas o fez com a consciência de prejudicar ou lesar o direito do dono da coisa, a autora/recorrente.
Diz a recorrente que ficou provado na sentença que: 1) A Ré não comunicou que o imóvel necessitava de obras, à Autora; 2) A Ré, mesmo não tendo comunicado, prosseguiu na mesma com as obras; 3) Avançou com as obras, após ter sido interpelada extrajudicialmente para desocupar o imóvel.
Ora, se é certo que resulta da matéria de facto provada que a ré efetuou as obras sem autorização da autora (facto provado 9), que a autora solicitou à ré a devolução do prédio, o que esta recusou, antes de janeiro de 2021 (facto provado 10), e que as obras foram executadas após esta data (facto provado 16), entende-se, contudo, que tais factos não se mostram suficientes para fazer prova de que a ré tenha realizado as obras de má fé, no sentido de estar a agir com a consciência de estar a lesar os direitos da autora, até porque, como supra se decidiu, a ré despendeu efetivamente o valor do crédito que agora reclama e que aumentou o valor do imóvel da autora, pelo menos, nessa medida.
Como se disse no Ac. STJ, de 07-04-1982, citado em anotação ao art. 756.º do Código Civil Anotado, de Abílio Neto e Herlander Martins, “A má fé referenciada no art. 756.º, b), deverá ser considerada no sentido psicológico. (…) Na resolução do problema da determinação da má fé, para exclusão do direito de retenção, deverá seguir-se um entendimento que permita a maior realização da justiça e equidade que dê mais garantia de realização do crédito que se pretende defender com o poder de retenção”.
Na situação concreta, a Ré/recorrida habita o imóvel em questão há cerca de 50 anos e vai ter que proceder à respetiva entrega, no prazo de dois meses, conforme decidido na sentença proferida, ficando a recorrente com um imóvel beneficiado, à custa da Ré. Perante este circunstancialismo não se pode concluir que a ré tenha efetuado as obras no imóvel de má fé, com consciência de estar a lesar direitos da recorrente, já que a realização das obras nenhuma vantagem trás para a ré que tem que entregar o imóvel, antes beneficia a autora que o recebe com as respetivas benfeitorias.
Mantém-se, deste modo, também esta parte da decisão, improcedendo o recurso na totalidade.
Deve, pois, manter-se a decisão recorrida, nos seus precisos termos, nada havendo a apontar-lhe.
*
*
III - DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedentes tanto a apelação da ré como a da autora, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo de cada uma das apelantes (art. 527.º, nºs 1 e 2 do CPC).