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ARRENDAMENTO
LEGITIMIDADE
INEFICÁCIA
ERRO
DENÚNCIA DO CONTRATO
PRÉ-AVISO CONTRATUAL
Sumário
I. O contrato de arrendamento tem efeitos meramente obrigacionais pelo que a legitimidade para a celebração deste tipo contratual e a consequente validade desse contrato, não depende do senhorio ser proprietário da coisa arrendada. II. Celebrado um arrendamento por quem não tem legitimidade para o celebrar, o mesmo não deixa de ser válido entre as partes contratantes, mas poderá ser ineficaz em relação ao proprietário ou aos restantes contitulares do imóvel. III. No que a um eventual erro vício diz respeito, torna-se evidente – em face da matéria de facto provada (e não impugnada neste recurso) – (i) que nada se apurou quanto a ter existido da parte da autora qualquer sugestão ou artifício utilizado para induzir ou manter a apelante em erro sobre a identidade do proprietário do imóvel dado de arrendamento, pelo que resulta inviável qualquer tese de situação de dolo passível de tornar o contrato anulável – cf. arts. 253º e 254º do Código Civil- (ii) nem mesmo um erro sobre os motivos determinantes da vontade, sendo que a Ré, na sua contestação em momento algum a mesma faz alusão à essencialidade para si, enquanto arrendatária, de Autor ser ou não proprietária da fracção e/ou de a mesma ser, ou não, objecto de um prévio contrato de locação financeira. – cf. arts. 247.º e 251.º do CC. IV. As normas imperativas previstas na Lei 13/2019, de 12-02, aplicam-se não apenas aos contratos futuros, mas também aos contratos celebrados em data anterior à entrada em vigor da lei, nos termos da regra geral sobre aplicação da lei no tempo prevista no n.º 2 do art.º 12.º, na medida em que tais normas contendem com o conteúdo de relações jurídicas abstraindo dos factos que lhes deram origem. V. É ilegal a cláusula que exclui a possibilidade de denúncia de um contrato de arrendamento não habitacional celebrado pela extensão do prazo de 10 anos, na medida em que – mesmo não se prevendo qualquer cláusula a sancionar tal denúncia com uma indemnização correspondente ao pagamento das rendas vincendas até ao final do prazo do contrato – essa exclusão terá na prática os mesmíssimos efeito que a consagração dessa cláusula, conduzindo a um evidente desequilíbrio de prestações ofensivo dos bons costumes, da boa fé, da ordem publica e da protecção social. VI. Ainda que não se decidisse no sentido da ilegalidade da referida cláusula - que exclui a possibilidade de denúncia - sempre se chegaria à mesma conclusão pela controlo da legitimidade do exercício do direito por parte da Autora /recorrida através da aplicação da figura do abuso do direito, atenta a manifesta desproporção entre o benefício do Autor – recebimento das rendas até ao final do contrato em cumulação com a absoluta disponibilidade do locado – e o sacrifício dos Réus – pagamento das rendas sem qualquer contrapartida para a Ré Arrendatária e, no caso dos fiadores, por o arrendatário ter feito uso da denúncia. VII. Temos por certo que a ilegalidade da cláusula não determina, nos termos do disposto no art.º 292.º do CC, a nulidade de todo o contrato, mas apenas a exclusão da mesma, na parte em que, ao fixar o prazo mínimo do contrato, exclui a possibilidade de denúncia antecipada. VIII. Nos contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais, nas situações em que as partes contratantes fixam expressamente o prazo de duração do contrato, mas não prevêem qualquer antecedência mínima para a efectivação de denúncia antecipada por parte do arrendatário, é aplicável a antecedência mínima e supletiva de um ano inscrita no nº. 2, do art.º 1110º, do Cód. Civil, inexistindo razão para aplicar os prazos previstos para a comunicação de oposição à renovação para o termo do contrato. IX. Tal inobservância do prazo de antecedência de 1 ano relativamente à data de cessação do contrato - não obstando à cessação do contrato de arrendamento em apreço - determina, todavia, a condenação da Ré arrendatária no pagamento das rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta (6 meses) – cf., o nº. 6, do art.º 1098º, ex vi do nº. 1, do art.º 1110º, ambos do Cód. Civil. (Sumário elaborado pela relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
K - INVESTIMENTOS MOBILIÁRIOS E IMOBILIÁRIOS S.A. intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra S – AUTO, UNIPESSOAL LDA., R e N pedindo:
- a condenação solidária dos Réus no pagamento à Autora da quantia global de € 22 200,00, correspondentes a 37 rendas mensais no valor de € 600/cada, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal para os juros comerciais, desde a data da instauração da presente acção.
Para tanto alegou a Autora, em síntese, que:
- é legítima possuidora da fracção autónoma designada pela letra A, correspondente à loja do lado direito do prédio sito na Rua E.., n.º .., Falagueira, Venda Nova, descrito na 1.ª Conservatória de Registo Predial da Amadora sob o n.º …;
- por contrato de 31-01-2014 deu de arrendamento à 1.ª Ré a referida fracção, para que esta destinasse ao comércio de veículos automóveis;
- no referido contrato de arrendamento os Réus R e N, constituíram-se fiadores e vincularam-se ao bom cumprimento das obrigações de tal contrato;
- a renda acordada foi de € 600,00/mês, sendo que na data da assinatura do contrato a 1.ª Ré procedeu ao pagamento de € 1.200,00, correspondentes ao valor das rendas de Maio e Junho;
- a 26-06-2020 a 1.ª Ré, através de carta registada com a/r, comunicou à Autora que pretendia denunciar o contrato com efeitos a 23-12-2020;
- por carta de 05-08-2020 a Autora, pelo mesmo meio, opôs-se à denuncia do aludido contrato, na medida em que o mesmo havia sido celebrado pelo período de 10 anos, e que tal prazo havia sido condição essencial para aceitação da proposta da Ré quanto ao valor da renda;
- em 22-12-2020 a 1.ª Ré procedeu à entrega das chaves e à desocupação do locado;
- em 25-01-2021 a Autora remeteu à 1.ª Ré uma carta comunicando, uma vez mais, que não aceitava a cessação antecipada do contrato, interpelando a Ré para proceder ao pagamento voluntário das rendas até ao final do contrato;
- Como a 1.ª Ré não procedeu ao pagamento, a Autora interpelou os 2.º e 3.º Réus;
- a Autora continua sem conseguir arrendar o imóvel, para além do arrendamento o mesmo não tem qualquer outra utilidade para a Autora, vendo-se assim privada do rendimento a que teria direito nos termos do contrato, não fora a denúncia ilegítima efectuada pela 1.ª Ré.
Conclui assim pelo incumprimento contratual e consequente procedência da acção e condenação das Rés em conformidade com o pedido.
Devidamente citados vieram os Réus R e N contestar alegando que, por desconhecimento, não alcançaram o sentido da renuncia ao benefício de excussão prévia que acordaram no contrato em causa nos autos.
Devidamente citada veio a S - Auto, Unipessoal Lda. contestar nos seguintes termos:
(i) Por excepção
- aquando da celebração do contrato não foi apresentada qualquer licença de utilização, sendo que constitui requisito da celebração do contrato de arrendamento a sua aptidão para o fim a que se destina, atestada pela licença de utilização;
- a licença da utilização é da responsabilidade do proprietário;
- pelo que falta um elemento formal e necessário à celebração do arrendamento, o que determina a sua nulidade;
- à data do arrendamento a Autora não era proprietária ou possuidora da fracção, não podendo dá-la de arrendamento a terceiros, como é o caso da 1.ª Ré, por não ter poderes de disposição sobre o mesmo, o que acarreta igualmente a nulidade do contrato;
- ilegitimidade da Autora, por não ser locadora e proprietária do imóvel, não podendo cobrar rendas a terceiros, provenientes de um contrato celebrado sem autorização do locador;
(ii) por impugnação
- a Ré denunciou o contrato dentro do prazo inicial de 10 anos e com 6 meses de antecedência relativamente à data de termo;
- o arrendatário tem o direito a denunciar o contrato desde que respeite as condições do art.º 1098.º, n.º 3, do CC.
Veio ainda requerer a intervenção acessória provocada do Banco …S.A. bem como requerer a condenação da Autora como litigante de má fé numa indemnização de 50 Uc´s a favor da Ré.
Por requerimento de 13-12-2022 veio a Autora pronunciar-se sobre o incidente de intervenção acessória provocada.
Por despacho de 22-05-2023 julgou-se improcedente o pedido de intervenção provocada do Banco … S.A. e concedeu-se à Autora o prazo de 10 dias para, querendo, se pronunciar sobre a matéria de excepção e requerimento de condenação como litigante de má fé, apresentadas em sede de contestação da 1.ª Ré.
Por articulado de 02-06-2023 veio a Autora pronunciar-se quanto à matéria de excepção invocada na contestação da 1.ª Ré, bem como ao pedido de condenação em litigância de má fé, pugnando pela sua total improcedência.
Determinou-se a realização de uma audiência prévia na qual, frustrando-se a possibilidade de conciliação entre as partes, foi proferido despacho que (i) fixou valor à acção, 8ii) proferiu despacho saneador, julgando improcedente a excepção de ilegitimidade invocada pela 1.ª Ré, (iii) identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova, (iv) proferiu despacho sobre os requerimentos probatórios e (v) designou data para julgamento.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento e, a 03-06-2024, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente, por provada, e em consequência CONDENOU os réus a pagar à autora, solidariamente, o montante de €22.200,00 (vinte e dois mil e duzentos euros) correspondente a 37 rendas mensais no valor de 600,00 euros, a que acrescem juros de mora à taxa comercial a contar da data de vencimento de cada uma das rendas, até efectivo e integral pagamento.
Inconformados com a sentença que julgou a acção procedente, vieram os Réus R e N interpor recurso, tendo apresentado as respectivas alegações, formulando as seguintes conclusões:
a. Foram os Apelantes condenados a pagar - solidariamente, com a Ré S – Auto, Unipessoal, Lda. – à Autora K – Investimentos Mobiliários e Imobiliários, S. A., a quantia global de € 22.200,00, correspondentes a 37 rendas mensais, de € 600,00 cada, acrescida de juros vencidos e vincendos, desde a data de vencimento até integral pagamento.
b. Em apreço, estava a validade da denúncia do contrato de arrendamento para fim não habitacional, que vigorava entre a Autora K (Senhoria), a Ré S (Arrendatária) e os Apelantes (Fiadores) (melhor identificado no Facto Provado nº 7, da sentença de que se recorre).
c. Tendo o tribunal a quo concluído que a denúncia em questão não era válida, porquanto as partes haviam contratualmente excluído a possibilidade de denúncia do contrato, antes do seu termo (entendimento melhor explicado infra).
d. E, por conseguinte, não tendo operado a cessação do contrato por efeito da denúncia, o tribunal a quo condenou a Ré arrendatária e os Apelantes, a pagar o total das rendas não pagas (37 rendas) até ao termo do contrato (que ocorreu em fevereiro de 2024).
e. Ora, atenta a matéria de facto dada como provada, no que concerne à referida denúncia – Factos provados nº 7 a 20, constantes na sentença recorrida – os Apelantes não se conformam com a mencionada decisão condenatória, pois não concordam com a subsunção jurídica dos factos apurados, exposta na decisão de que se recorre.
f. Para aferir a (in)validade da denúncia efetuada pela Ré Arrendatária, o tribunal a quo, interpretou as declarações negociais, em especial, a Cláusula 3.ª constante do contrato de arrendamento não habitacional.
g. Constava na referida cláusula que o arrendamento era feito por um prazo mínimo de 10 anos, que tinha o seu início a 1 de fevereiro de 2014 e o seu termo a 1 de fevereiro de 2024.
h. Ora, o tribunal a quo interpretou a referida declaração, no sentido que, ao convencionarem um prazo mínimo para o contrato, as partes pretenderam limitar a possibilidade de cessação do contrato antecipadamente a esse mesmo prazo.
i. Ou seja, segundo o entendimento do tribunal a quo: ao convencionarem a duração do contrato, associando-lhe o termo “mínimo”, entende-se que as partes estipularam – ao abrigo do nº 1 do artigo 1110º do CC – que o contrato não podia ser denunciado antes do termo estabelecido, e por tal.
j. Pelo que, o tribunal a quo conclui, que a Ré arrendatária não podia fazer cessar o contrato, porquanto não tinha esse direito.
k. Deste modo, conforme interpretação feita pelo tribunal a quo, na Cláusula 3.ª do contrato, as partes convencionaram uma exclusão do direito de denúncia, até ao termo do contrato.
l. Ora, os apelantes consideram que a interpretação da clausula 3.ª do Contrato de Arrendamento não habitacional, feita pelo Tribunal a quo, tem inerente uma exclusão do direito de denúncia, que é ilegal.
m. Enquanto que o tribunal a quo perceciona, a referida convenção, enquanto o exercício da liberdade de estipulação consagrada no nº 1 do artigo 1110º do CC, os Apelantes crêem que, com essa liberdade de estipulação, o legislador não pretendia conferir às partes a faculdade de suprimir o direito de denúncia (ou de oposição à renovação), mas apenas e somente de estabelecerem, livremente, as regras em que o mesmo se exerceria.
n. Pelo que, discordam do sentido com que o Tribunal a quo aplica a referida norma.
o. E consideram a referida convenção de exclusão do direito de denúncia, ilegal: por violação da imperatividade do direito de denúncia (art.º 1080.º CC), do princípio da imotivada, liberdade de desvinculação, e ainda do direito constitucional de iniciativa económica (art.º 61º CRP).
p. Por conseguinte, sendo ilegal a referida exclusão do direto de denúncia, até ao termo do contrato, devia entender-se que tal declaração/convenção é nula (ex vi art.º 294.º do CC).
q. Pelo exposto, os apelantes concluem que:
- interpretando a Cláusula 3.ª nos termos sustentados pela Autora, e acolhidos pelo Tribunal a quo, na decisão recorrida, então deveria o tribunal a quo ter julgado que tal convenção – de exclusão do direito de denúncia, durante a vigência do contrato – era ilegal, não cabendo no escopo da liberdade de convenção consagrada no nº 1 do artigo 1110.º do CC;
- Sendo tal convenção ilegal, deveria a mesma ter sido considerado nula, por aplicação do disposto no artigo 294.º do CC;
- E por tal, verifica-se uma lacuna de estipulação de regras relativas à denúncia, no referido contrato, pelo que, deveria ter-se aferido a validade da denúncia, exclusivamente, consoante as normas supletivas.
r. Já neste último tocante - da aplicação das normas supletivas reguladoras da denúncia – os Apelantes consideram que o tribunal a quo, deveria ter considerado que o contrato em questão era omisso, no referente às regras de exercício da denúncia (o tribunal a quo entendeu o contrário: que as partes haviam estipulado a Cláusula 3ª, afastando a aplicação das normas supletivas).
s. Pelo que, deveria ter aplicado o regime que resulta do nº1 do artigo 1110º do CC, in fine, que remete para o nº 3 do artigo 1098º do CC. E não o nº 1 do artigo 1110º, no seu início.
t. Assim, consoante a matéria de facto dada como provada, concluir-se-ia que, nos termos do nº 3 do citado artigo 1098º do CC, a Ré Arrendatária tinha a faculdade de denunciar o contrato, pois já tinha decorrido mais de um terço do prazo de duração inicial (tinham decorrido 6 de 10 anos).
u. Nos termos desse mesmo artigo - bem como dos demais termos legais relativos à forma e requisitos da denúncia - a denúncia foi feita de forma válida (aliás, nunca foi suscitada nenhuma invalidade em contrário).
v. Assim, tendo sido feita validamente, a denúncia do contrato, e face ao disposto no nº 2 do artigo 1110º do CC – no que concerne à antecedência mínima de denúncia do contrato – os Apelantes consideram que, no máximo, o contrato de arrendamento deve considerar-se cessado, por efeito da denúncia, a 1 de Junho de 2021 (isto é, 1 ano após a comunicação da denúncia).
w. Pelo que, concluem da seguinte forma:
- contrariamente ao entendido pelo tribunal a quo, in casu, há uma falta de estipulação das regras da denúncia e, por tal, deveria ter sido aplicado o disposto no nº 1 do artigo 1110º, in fine;
- pelo que, a denúncia em questão deveria ter sido analisado, na sua validade, conforme disposto no nº 3 do artigo 1098º e nº 2 do artigo 1110º;
- Tudo o que levaria á conclusão de que a denúncia feita por parte da Ré Arrendatária foi válida, e que o contrato de arrendamento cessou, no máximo, a 1 de Junho de 2021;
- Não sendo a Ré, e os Apelantes, devedores das rendas remanescentes, até ao termo (inicial) do contrato - i.e., das 37 rendas peticionadas – apenas, in máxime, até ao mês de junho de 2021 (por ser a data resultante da aplicação da antecedência mínima da denúncia, prevista no artigo 1110º nº 2 do CC).
Igualmente inconformada com a sentença que julgou a acção procedente, veio a Ré S Lda. interpor recurso, tendo apresentado as respectivas alegações, formulando as seguintes conclusões:
a) O tribunal a quo não deu como provada a ilegitimidade da autora para arrendar um imóvel, o qual, não era da sua propriedade;
b) A ilegitimidade da autora tinha como pressuposto a declaração que a mesma colocou no contrato de arrendamento para o exercício do comércio, na sua cláusula Primeira, ao declarar, ser esta que era dona e legitima possuidora de uma fração autónoma objecto do contrato, o que se demonstrou ser falso;
c) Ficou demonstrado nos autos, que a autora, ocultou e omitiu às partes contratantes, aqui recorrente, a propriedade do imóvel dado de arrendamento, bem sabendo que não era seu;
d) Em face desta conduta, e ao abrigo do regime legal da locação financeira, Dec. Lei 149/95, de 24 de junho, e do contrato de locação financeira celebrado entre a autora e o Banco .., SA, esta escondeu uma realidade objectiva à recorrente, como não prestou a informação e a devida autorização ao proprietário para vir sublocar, arrendar ou ceder o imóvel que se encontrava na sua posse;
e) A autora violou os preliminares do negócio relativo ao arrendamento, actuando com má-fé contratual, e praticando com dolo os erros de transmissão da declaração e sobre o objecto do negócio, nos termos dos art.ºs 250º, 251º e 253º, do CC, tornando o negócio e o contrato de arrendamento anulável;
f) Sem prejuízo deste facto, a recorrente denunciou o contrato de arrendamento, notificando a autora após ter decorrido mais de seis anos de vigência ou duração do contrato;
g) A recorrente ao notificar a autora da denuncia, fê-lo por critérios meramente económicos e financeiros que tinham a ver a actividade que exercia e que deixou de ser sustentável;
h) A recorrente fez e apresentou a referida denuncia nos termos conjugados dos art.ºs 1080º, 1098º e 1110º, todos do CC;
i) A autora após a denúncia, não se viu restringida nos seus direitos de uso e de posse do imóvel, podendo, querendo, continuar a arrendá-lo nos termos com que o fez com a recorrente;
j) A autora não ficou prejudicada com a denúncia porque poderia continuar a arrendar o imóvel em condições e em preços mais vantajosos à data de 2020 do que aqueles que tinham sido realizados em 2014,
Em face destes factos, evidentes e notórios, da prova apurada e assente, entendemos, que houve por parte do tribunal a quo uma errada apreciação das normas jurídicas bem como uma deficiente interpretação, que inquinam substancialmente o fundamento jurídico da decisão, vindo por esse meio, em face da errada apreciação das normas jurídicas, condenar mal a recorrente ao pagamento do montante de 22.200,00 euros, acrescido dos juros até integral pagamento, devendo nestes termos ser concedido provimento ao presente recurso de apelação, pela errada apreciação dos fundamentos de direito e das normas jurídicas a aplicar ao caso em concreto, facto que levou o tribunal a quo a decidir e a julgar de forma incorrecta e numa avaliação deficiente, a legitimidade da autora na qualidade de locatária para arrendar um imóvel com recurso a instrumentos que viciaram a vontade da recorrente e a erros sobre o objecto do contrato, sem prejuízo de não dar como válida e aceite a denúncia operada pela recorrente do contrato de arrendamento nos termos dos art.º 1098º e 1110º ambos do CC, vindo a condená- la de forma indevida e errada, devendo a sentença recorrida ser revogada nos precisos termos aqui recorridos e ser substituída por outra que absolva a recorrente a tudo a que foi condenado, fazendo assim V. Exas., a devida e necessária, Justiça.
A Recorrida apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:
a) Os RECORRENTES discordam da matéria de direito, nada se opondo contra a matéria de facto dada pelo tribunal como provado e não provado;
DA EXCLUSÃO DO DIREITO DE DENÚNCIA
b) Os RECORRENTES FIADORES alicerçam a sua defesa numa premissa incorreta, designadamente, que a Cláusula 3.ª impede a desvinculação contratual da RECORRENTE ARRENDATÁRIA;
c) Sucede que, ao se convencionar que “o arrendamento tem um prazo mínimo de 10 anos”, não se determina que a contraparte fique obrigada ad aeternum, excluindo toda e qualquer possibilidade de desvinculação do Contrato, mas apenas, a uma vinculação mínima, por existirem razões plausíveis para tal acordo;
d) De forma simples, a regulação do exercício da denúncia é uma questão completamente distinta da supressão desse direito, que não é o caso sub judice;
e) Por forma a sustentar a sua tese, os RECORRENTES FIADORES, invocam o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14 de setembro de 2023, processo n.º 3877/21.2TLRS.L1-2 (adiante “ACÓRDÃO DO TRL”);
f) Os RECORRENTES FIADORES descuram a ratio decidendi do ACÓRDÃO DO TRL, colhendo do mesmo um raciocínio incorreto com (mera) aparência de verdadeiro;
g) Ao contrário do que entenderam os RECORRENTES FIADORES, o tribunal ad quem, no sobredito ACÓRDÃO DO TRL, determinou que a convenção da duração mínima de um contrato de arrendamento não habitacional de 10 (dez anos) era excessivo, por não ter existido uma “justificação plausível”;
h) Assim, salvo melhor entendimento, o que está em questão nos presentes autos, é saber se a convenção de uma duração mínima de 10 anos, nos precisos termos do caso concreto, viola a lei, ou se ao contrário, existiram razões plausíveis para o efeito;
i) Salienta-se que, se não existissem razões atendíveis, como é lógico, a RECORRENTE ARRENDATÁRIA não teria celebrado o Contrato e os RECORRENTES FIADORES, não teriam se responsabilizado pessoalmente pelo pagamento;
j) Acresce que, conforme resulta inequívoco dos factos provados, o valor da renda foi acordado por um valor abaixo do mercado (€ 600,00);
k) Valore-se que, resulta do depoimento de parte dos RECORRENTES FIADORES que, à data dos factos, os mesmos pagavam 750 euros pelo arrendamento da loja do lado, com condições semelhantes;
l) Valore-se igualmente que foram necessárias obras para a instalação do estabelecimento dos RECORRENTES, tendo a RECORRIDA autorizado a remoção de um monta-cargas e várias divisórias, que agregavam valor comercial à loja;
m) Na lógica do arrendamento comercial, é compreensível que o senhorio médio apenas aceitaria tais condições desvantajosas em contraposição de alguma vantagem, neste caso, um contrato de longa duração, que garantisse pagamentos por 10 anos;
n) Atento ao exposto, se aplicarmos a (correta) ratio decidendi do ACÓRDÃO DO TRL invocado pelos RECORRENTES FIADORES, apenas será de concluir, tal como o tribunal a quo nos presentes autos concluiu, que as partes se vincularam a uma duração mínima de 10 (dez) anos por existirem razões atendíveis e em perfeita conformidade com os princípios de direito e com a lei;
o) Não se verificando qualquer desproporção entre o benefício e sacrifício imposto às partes.
p) Na verdade, se bem se notar, caso a RECORRENTE ARRENDATÁRIA não ficasse vinculada pelo prazo mínimo de 10 anos, aí é que se verificaria uma desproporção entre os benefícios e sacrifícios impostos, porém a pender para o senhorio, ora RECORRIDA;
q) Designadamente, a RECORRENTE ARRENDATÁRIA ver-se-ia “descansada” com a possibilidade de manter o arrendamento comercial do imóvel por 10 (dez) anos, ao passo que a RECORRIDA ficaria sujeita a ser surpreendida com a denúncia do Contrato a qualquer momento, sem qualquer compensação pela perda financeira sofrida com a redução do preço e destruição das estruturas anteriormente montadas no locado, concedidas especialmente em contraposição da longa duração do contrato;
r) Assim, a Cláusula 3.ª do Contrato não deverá ser considerada nula, e como tal, não deverão ser aplicáveis as invocadas normas supletivas, mantendo-se a denúncia realizada pela Recorrente Arrendatária completamente inoperante, por ser ilegal;
s) Por sua vez, a RECORRENTE ARRENDATÁRIA menciona diversos trechos do mesmo acórdão mencionado pelos Recorrentes Fiadores (ACÓRDÃO DO TRL) por forma a sustentar a sua tese;
t) Não obstante, cremos que já resulta suficientemente demonstrado existirem razões reais e de boa-fé justificativas da estipulação da duração mínima de 10 (dez) anos do Contrato;
u) Ressalva-se que a menção que a RECORRENTE ARRENDATÁRIA faz ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de maio de 2021, processo n.º 192/19.5T8PVZ-A.P1.S1, não releva para a discussão sub judice, dado que o tribunal decide quanto a ilegalidade de uma cláusula penal, que é uma questão manifestamente diferente da existência ou não do direito de denúncia;
v) Não obstante a questão ser diversa, e por isso não relevar para a decisão da questão sub judice, valore-se que o dito acórdão reafirma tudo o que tem sido propugnado pela Recorrida quando refere que “(…) decorre do princípio da liberdade contratual (…) auto-regularem (…) as suas relações jurídicas, os seus interesses, desde que o façam no respeito das regras legais, no quadro da boa-fé negocial.”;
w) Note-se que é irrelevante para a causa a eventual (porque não foi discutida nos autos) dificuldade da situação económico e financeira da RECORRENTE ARRENDATÁRIA, por tal ser um risco do negócio, e neste contexto, tal não pode ser utilizado para justificar o incumprimento;
x) Mais se refira que não é possível afirmar, com segurança, que teria sido possível arrendar o imóvel a outra pessoa, dado que, à época em que a RECORRENTE ARRENDATÁRIA deixou o locado, Portugal vivia um estado de emergência, com medidas de encerramento de comércio e confinamento ou limitação de circulação, com todos os efeitos económicos associados;
y) Sendo certo que o tribunal a quo deu como não provado que a RECORRIDA tenha voltado a arrendar o imóvel objeto dos autos, conforme resulta da alínea a) dos “factos não provados”;
DA VIOLAÇÃO DO CONTRATO DE LOCAÇÃO ENTRE A RECORRIDA E O BANCO BPI
z) Não ficou provado nos autos que a RECORRIDA tenha violado o sobredito contrato de locação;
aa) Ainda que se admitisse que existiu violação do contrato de locação, o eventual incumprimento deste contrato apenas teria efeito entre as partes do mesmo, cujo a RECORRENTE ARRENDATÁRIA figura como terceira;
bb) Mais sublinha-se que, ao nível factual, a RECORRENTE ARRENDATÁRIA nunca teve o gozo do imóvel prejudicado;
cc) Assim, apenas será de concluir que a (alegada) violação do contrato de locação financeira do imóvel é completamente irrelevante para a decisão da questão sub judice;
VÍCIOS NA FORMAÇÃO DO CONTRATO
dd) É completamente falso que a RECORRIDA tenha manipulado e enganado a RECORRENTE ARRENDATÁRIA quanto a propriedade do imóvel;
ee) A RECORRIDA nunca orquestrou qualquer plano para levar a RECORRENTE ARRENDATÁRIA ao erro, nem objetivamente tinha qualquer interesse nisso;
ff) Acresce que, se fosse verdadeiramente essencial para a RECORRENTE ARRENDATÁRIA que o senhorio fosse a RECORRIDA e não pessoa diversa, a mesma teria acautelado esta situação;
gg) A inexistência de qualquer diligência no sentido de confirmar que a RECORRIDA seria a proprietária do imóvel, revela que a questão era completamente irrelevante;
hh) A RECORRENTE ARRENDATÁRIA agarra neste lapso declarativo da RECORRIDA e subverte a verdade dos factos, invocando vícios na formação do contrato, numa numa derradeira tentativa de se imiscuir da vinculação ao contrato de arrendamento;
ii) Valore-se que tal “vício na formação do contrato” nunca foi, por qualquer forma, invocado, nem mesmo nas instâncias do tribunal a quo, tendo a questão sido despoletada, convenientemente, quando a RECORRENTE ARRENDATÁRIA se viu confrontada com a ação para pagamento das rendas incumpridas que correu termos nos presentes autos;
jj) Por fim, é completamente irrelevante “o caso da recorrente não querer celebrar um negócio de arrendamento com um Banco, mas sim com uma empresa ou com uma pessoa particular”, pois o Banco BPI nunca teve qualquer intervenção no contrato de arrendamento, tendo a RECORRENTE ARRENDATÁRIA contratado unicamente com a RECORRIDA.
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
* Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (arts. 5.º, 635.º n.º 3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim apreciar no caso concreto as questões que, por uma questão de lógica, se ordenam da seguinte forma:
- Da nulidade do contrato (1.ª conclusão do Recurso da Ré/Recorrente S Lda.)
(i) legitimidade da Autora/Recorrida para celebrar o contrato de arrendamento em análise nos presentes autos
(ii) culpa na formação do contrato, erro na transmissão da declaração
- Da denúncia /revogação unilateral do contrato de arrendamento – interpretação da cláusula 3.ª do contrato celebrado entre as partes (2.ª conclusão do Recurso da Ré/Recorrente S Lda. e al. f) a n) das alegações dos Réus/Recorrentes R e N)
- Da ilegalidade da exclusão do direito de denúncia por violação de norma imperativa do direito constitucional constante do art.º 61.º da CRP (als. o) a w) das alegações dos Réus/Recorrentes R e N)
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II. Fundamentação:
Na primeira instância foram considerados os seguintes
Factos provados
1. Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial da Amadora, sob o número …/19910315 a fração autónoma identificada pela letra “A”, designada por “Loja do Lado Direito, com cave”, do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Praceta da …, n.º 7, 7-A e 7-B e Rua E, n.º--, ---A e --B, Falagueira, Venda Nova;
2. Foi inscrita pela apresentação 33 de 2000/01/17 a aquisição da fração autónoma referida em 1), por compra, sendo sujeito ativo “---– Sociedade de Locação Financeira, S.A.”, tendo sido posteriormente averbado pela apresentação 3984 de 2010/03/05 a transmissão por transferência de património a favor de Banco …, S.A. Sociedade Aberta;
3. Foi inscrita pela apresentação 3987 de 2010/03/05 a Locação Financeira, pelo prazo de 178 meses, com início a 2010/02/09, sendo sujeito ativo K S.A, sendo sujeito passivo Banco .., S.A. - Sociedade Aberta;
4. Por acordo escrito intitulado Contrato de Locação Financeira Imobiliária datado de 9 de fevereiro de 2010, Banco …, S.A Sociedade Aberta, na qualidade de Locador, declarou ceder em locação financeira a, S.A., na qualidade de Locatário, que declarou aceitar, o imóvel identificado por fração autónoma em 1) dos factos provados, pelo prazo de 178 meses, com início na data da assinatura do contrato, sendo o residual e preço de venda de 4.000,00 euros, o valor de relocação de 200.000,00 euros, obrigando-se a locatária a pagar 178 rendas mensais, com vencimento antecipado, no montante de 1.339,99 euros. Ficou a constar na cláusula três das condições particulares que o imóvel será afeto a ESTABELECIMENTO COMERCIAL;
5. Ficou exarado no artigo 9.º das condições gerais do acordo que o locatário poderá usar o imóvel locado no desenvolvimento da atividade referida na cláusula três das cláusulas particulares e de acordo com as normas legais e administrativas aplicáveis. (…) O locatário compromete-se a dar imediato conhecimento ao Locador de todos os atos ou pretensões que ponham em causa o seu direito ou que possam acarretar-lhe prejuízo. (…) Compete ao locatário a obtenção das licenças administrativas necessárias à legalização do imóvel, eventuais obras ou ao exercício no mesmo da sua atividade;
6. Na cláusula décima das condições gerais ficou a constar que O locatário não pode ceder a sua posição contratual, sublocar ou de qualquer forma permitir a utilização do imóvel locado por terceiros, total ou parcialmente, sem o prévio e expresso consentimento do locador.
7. Por acordo escrito datado de 31 de janeiro de 2014, denominado Contrato de Arrendamento Urbano com Prazo Certo (Fim não Habitacional – Exercício do Comércio) S.A., na qualidade de Primeira Outorgante e “dona e legítima possuidora” da fração identificada em 1) dos factos provados declarou dar de arrendamento a S, Lda. na qualidade de Segunda outorgante, que declarou tomar de arrendamento, a fração identificada em 1) dos factos provados, no estado de conservação em que se encontra e cujas características são do inteiro conhecimento da Segunda Contraente;
8. Ficou a constar na cláusula terceira que o arrendamento é feito pelo prazo mínimo de dez anos, sucessivamente renovável por períodos de um ano, findo esse prazo, tendo o contrato o seu início no dia 1 de fevereiro de 2014, pelo que terá o seu termo inicial em 1 de fevereiro de 2024, e que os contraentes podem impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação a enviar à contraparte, através de carta registada com aviso de receção ou contato pessoal de advogado ou solicitador com 180 dias de antecedência sobre o termo do prazo inicial ou de qualquer uma das suas eventuais renovações.
9. A cláusula quarta define que o local arrendado se destina ao comércio de veículos automóveis, não podendo o locatário dar-lhe outro uso diverso sem prévia autorização por escrito da Primeira Outorgante, mais declarando a Segunda Outorgante reconhecer que o locado realiza cabalmente o fim a que é destinado, nem sublocá-lo no todo ou em parte sem prévia autorização a ser dada por escrito pela Primeira Contraente. 3. Todos e quaisquer licenciamentos ou autorizações camarárias necessárias ao exercício da atividade comercial da Segunda Contraente no locado são da total e exclusiva responsabilidade desta;
10. Na cláusula quinta, ficou estipulado que a renda mensal seria de 600 euros, pagos por transferência bancária, acordando as partes num período de carência de três meses, em que não será devida qualquer renda. Declarou ainda a segunda contraente antecipar o pagamento das rendas referentes aos meses e maio e junho, no valor de 1.200,00 euros;
11. R e N assinaram o documento referido em 7) na qualidade de Primeiro e Segundo fiador, respetivamente, tendo ficado estabelecido na cláusula décima quinta que Os fiadores assumem solidariamente com a Segunda Contraente a obrigação do fiel cumprimento de todas as cláusulas deste contrato e seus aditamentos legais até à efetiva restituição do locado, renunciando ao benefício da excussão prévia, sendo que a presente fiança que subsistirá pelos períodos de renovação do presente contrato e ainda que haja alteração da renda renunciando às faculdades previstas no artigo 655.º do Código Civil;
12. As assinaturas do legal representante da ré S Lda. e dos réus R e N, apostas no acordo referido em 7), foram reconhecidas presencialmente por solicitadora;
13. Por carta registada com aviso de receção datada de 26 de junho de 2020, a ré S, Lda., comunicou à autora que pretendia denunciar o referido contrato de arrendamento com efeitos a 23 de dezembro de 2020;
14. Em resposta, a autora enviou à ré S, Lda. carta registada com aviso de receção datada de 5 de agosto de 2020 em que comunica que não aceitam a denúncia com fundamento no contrato ter sido celebrado por prazo certo e por um período de 10 anos e que a duração alargada do contrato foi a conditio sine qua non para que a V/ proposta fosse aceite, em prejuízo de outras propostas contratuais que até pressuponham e implicavam o pagamento de rendas mais avultadas do que aquela que V. Ex.as pagam atualmente, mas com um período de duração mais curto. Concluem entender que o contrato deverá vigorar até ao seu termo em 31 de janeiro de 2024, sob pena de as legítimas expetativas da locadora resultarem flagrantemente defraudadas.
15. A 22 de dezembro de 2020, a ré S entregou as chaves do locado pertencente à autora, então desocupado, acompanhadas com uma carta que dizia conforme do combinado com o Sr. F via chamada, venho aqui enviar as chaves da loja que se situa na Rua E, n.º-- (…);
16. A 25 de janeiro de 2021, a autora remeteu à ré S, Lda. uma carta registada com aviso de receção, que esta recebeu em 2 de fevereiro de 2021, através da qual comunicou que não aceitava a cessação antecipada do contrato, que o contrato foi celebrado por um período mínimo de 10 (dez) anos e que não poderia cessar antes de 31 de janeiro de 2024, pelo que a restituição das chaves e entrega do locado determinam o incumprimento definitivo do contrato, interpelando a ré a, no prazo máximo de 20 dias, pagar as 37 rendas devidas até ao termo do contrato, que liquidaram em 22.200,00 euros;
17. A autora remeteu ao 2.º e 3.º réus, no dia 06 de abril de 2021, cartas recebidas por estes no dia 09 de abril de 2021, informando-os que o contrato de arrendamento no qual interviera na qualidade de Fiador vinha sendo incumprido pela 1.ª ré, bem como do montante que se encontrava em dívida;
18. Os réus não pagaram a renda que se venceu em janeiro de 2021 e as seguintes;
19. O prédio referido em 1) dispõe de licença de utilização número 599, datada de 22 de julho de 1975, para 37 fogos e 2 lojas, destinando-se a fração “A” a loja / comércio. Em data não concretamente apurada, foi substituído o vão da porta por um vão de porta de três folhas, para as quais não foi requerida nem emitida licença de utilização;
20. A autora aceitou a renda de 600 euros por o contrato ter a duração de 10 anos.
Factos não provados
a) A autora voltou a arrendar o imóvel objeto dos presentes autos;
b) O Banco … S.A. autorizou a autora a celebrar o contrato de arrendamento com os réus.
c) Os réus fiadores, por desconhecimento, não compreenderam a figura do benefício de excussão prévia.
Nenhuma outra matéria de facto foi apurada ou foi considerada não provada, com interesse para a decisão que ora se tem por proferir.
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III. O Direito:
Os Réus, em sede de recurso, não impugnaram a matéria de facto.
Assim, é com a factualidade adquirida pela 1.ª instância que este Tribunal da Relação trá de apreciar as questões equacionadas pelos Réus em sede de apelação.
a) Da nulidade do contrato (1.ª conclusão do Recurso da Ré/Recorrente S Lda)
A este respeito alega a Recorrente S Lda. nas suas conclusões das alegações que:
“ Desta sorte, o tribunal a quo não ponderou todos os factos que estavam ao seu alcance para decidir de forma contrária àquela que veio a decidir, descurando os factos e a prova documental e testemunhal apresentada, interpretando de forma errada os factos com a aplicação do direito, validando um contrato de arrendamento para o exercício do comércio o qual está ferido de nulidade por erros cometidos pela autora na formação do contrato com culpa, omitindo e enganado as partes e aqui recorrente na declarações do contrato e no objecto do contrato, nos termos dos art.º 227º, 250º, 251º e 253º do CC, sem prejuízo do logro e do engano provocado pela autora junto do Banco …, SA, dono e proprietário do imóvel dado em arrendamento, sem que tivesse o mesmo conhecimento do negócio que tinha sido formalizado sem informação e assentimento prévio.”
(i) Ilegitimidade da Autora/recorrida para dar de Arrendamento
A sentença recorrida, no que a este particular diz respeito, discorreu da seguinte forma:
“Provou-se, por certidão do registo predial, que o Banco … S.A. é titular do direito de propriedade sobre a fração autónoma identificada pela letra “A”, designada por “Loja do Lado Direito, com cave”, do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Praceta, n.º--, ---A e --B e Rua E, n.º--, --A e -B, por a ter comprado (então com a designação “– Sociedade de Locação Financeira, S.A.” – factos provados 1) e 2).
Provou-se ainda que, por acordo escrito intitulado Contrato de Locação Financeira Imobiliária, datado de 9 de fevereiro de 2010, Banco .., S.A, na qualidade de Locador, declarou ceder em locação financeira a K, S.A., na qualidade de Locatário, que declarou aceitar, o imóvel identificado por fração autónoma em 1) dos factos provados, pelo prazo de 178 meses – facto provado 4).
O contrato de locação financeira foi inscrito no registo predial, pela apresentação 3987 de 05/03/2010 – facto provado 3). Trata-se de uma imposição do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho.
Dos factos provados resulta que a autora é mera locatária financeira da fração, tendo celebrado um contrato de arrendamento na qualidade de senhoria.
A primeira questão que se coloca é a de saber se a locatária financeira tem legitimidade ceder a coisa dada em locação financeira de arrendamento.
Quais são os direitos emergentes do contrato de locação financeira?
O contrato de locação financeira está definido no art.º 1º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de junho, como sendo “o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados”.
Do contrato emergem os seguintes elementos constitutivos:
- a indicação da coisa a comprar ou a construir pelo por parte do locatário;
- o dever de aquisição da coisa ao fornecedor que incumbe ao locador;
- o dever do locador conceder temporariamente o gozo da coisa previamente escolhida pelo locatário;
- a obrigação do locatário de pagar uma renda;
- a faculdade de aquisição da coisa locada no termo do contrato pelo locatário.
Se acordo com o artigo 9.º daquele diploma, são, nomeadamente, obrigações do locador: a) Adquirir ou mandar construir o bem a locar; b) Conceder o gozo do bem para os fins a que se destina; c) Vender o bem ao locatário, caso este queira, findo o contrato;
O artigo 10.º enuncia as obrigações do locatário, nomeadamente, a obrigação do locatário pagar as rendas, de efetuar o seguro do bem locado, contra o risco da sua perda ou deterioração e dos danos por ela provocados, etc.
Uma das obrigações consiste em g) Não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial do bem por meio da cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, exceto se a lei o permitir ou o locador a autorizar; h) Comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo do bem, quando permitida ou autorizada nos termos da alínea anterior;
O titular do direito de propriedade goza, nos termos do artigo 1305.º do Código Civil, de modo pleno e exclusivo do direito de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
Contudo, o artigo 1306.º do Código Civil estipula que o próprio proprietário pode limitar ou restringir o seu direito, constituindo direitos reais menores [como o direito de usufruto (artigo 1439.º do Código Civil), de uso e habitação (artigo 1484.º do Código Civil), de superfície (artigo 1524.º) ou por servidões prediais (artigo 1543.º do Código Civil)] ou por direitos pessoais de gozo, através de negócios jurídicos.
E é nestes termos que se percebe que outros, que não o proprietário, tenham legitimidade para ceder o gozo da coisa: como está em causa apenas a cedência temporária do gozo, basta que o locador tenha os poderes necessários para esse efeito, os quais lhe podem advir da titularidade de outros direitos reais, como o já referido usufruto, ou mesmo de direitos de origem obrigacional, todos eles compressores da propriedade.
Tal princípio manifesta-se no n.º 1 do artigo 1024.º, o qual, ao estabelecer que “[a] locação constitui, para o locador, um ato de administração ordinária, exceto quando for celebrada por prazo superior a seis anos”, diz, de forma indireta, que tem legitimidade para locar uma coisa quem tiver a administração dela.
Nuno Alonso Paixão (in comentário ao artigo 1024, AAVV, António Agostinho Guedes / Júlio Vieira Gomes (coord.), Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Contratos em Especial, Lisboa: UCE, 2023, p. 384) conclui que têm legitimidade para dar em locação, além do próprio proprietário (art.º 1305), o comproprietário (art.º 1405/1), o usufrutuário (art.º 1446), o mandatário, quer com poderes especiais, quer com poderes gerais, que aliás só pode praticar atos de administração dita ordinária (art.º 1159), o representante legal – pais do menor de idade (arts. 1878/1, 1889/1, m), a contrario, e 1902), tutor (art.º 1935), acompanhante de maior (art.º 145), administrador legal dos bens do menor (art.º 1971) –, o curador provisório (art.º 94) ou definitivo (arts. 110 e 111) dos bens do ausente, o cônjuge administrador (arts. 1678 e ss.), exceto nas situações previstas nos arts. 1682 e 1682-A, o curador da herança jacente (art.º 2048/2), o cabeça-de-casal (art.º 2087/1) ou o testamenteiro (art.º 2326), o fiduciário (art.º 2290/1), o locatário, em sublocação (art.º 1060 e ss.), o administrador de insolvência (art.º 81 do CIRE) ou o depositário judicial (art.º 760 do CPC).
O acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23-04-2020, relatado por Vítor Sequinho (https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/48e694da6f1acb7980258566002b634d?OpenDocument), chega à conclusão que, tendo em conta as caraterísticas do contrato de locação financeira, também o locatário financeiro dispõe dos necessários poderes para locar a coisa.
Parte-se do princípio de que a locação financeira tem uma função é muito diversa da que é desempenhada pelo contrato de locação.
A função típica do contrato de locação financeira é muito diversa da do contrato de locação. A locação financeira, que tem como vocação o apoio ao investimento, desempenha simultaneamente as funções de crédito e de garantia, não se tratando, simplesmente, de uma cedência temporária do gozo de uma coisa mediante retribuição, como acontece na locação, com opção de compra pelo locatário financeiro uma vez decorrido o prazo estipulado no contrato. Note-se, a propósito, que, para efeitos da aplicação do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23.06, que estabelece o regime jurídico dos contratos de crédito aos consumidores para imóveis destinados a habitação, o contrato de locação financeira é expressamente abrangido pela definição de contrato de crédito, constante do artigo 4.º, n.º 1, al. e), daquele diploma legal.
Em conformidade com tal função, “as rendas da locação financeira são rendas financeiras, ou seja, compostas, cada uma delas, por dois elementos: numa parte, a amortização do capital e, noutra parte, os juros do crédito concedido (podem ser, eventualmente, aqui incluídas outras despesas que o locador financeiro tenha tido que efectuar, assim como eventuais comissões administrativas ou de gestão). (…) Note-se que elas não permitem a amortização da totalidade do valor pago pelo bem – valor que constitui o crédito concedido pelo locador financeiro, por via indirecta –, sendo para o efeito ainda necessário o pagamento do valor residual (ou pelo valor decorrente da sua venda no mercado, ou da sua rentabilização através de outro contrato de locação financeira, ou mesmo de locação).” Ou seja, as rendas não constituem, como na locação, uma mera contrapartida pelo gozo temporário da coisa locada.
Como se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 22.01.2004 (processo 03B4387), a locação financeira tem como função a “concessão de crédito para financiamento do uso do bem e de disponibilização de acrescidos instrumentos tendentes a possibilitar o exercício de uma atividade produtiva. Assim, visa solucionar o problema da atualização do equipamento produtivo, sem necessidade de o locatário despender vultuosas quantias em dinheiro, sendo que a duração corresponde ao período presumível da sua utilização económica.”
Esta e outras regras como as que prevêem que o risco de perda ou deterioração do bem locado corre por conta do locatário (artigo 15 do DL n.º 149/95, de 24.06 de Junho);que quando a locação versar sobre fração autónoma, cabe ao locatário pagar as contribuições para o condomínio (artigo 10.º/1, b), do DL n.º 149/95), ou no plano fiscal, levam à afirmação que “o locatário financeiro tem a propriedade económica da coisa locada, nomeadamente por ele ser o utilizador exclusivo da coisa e vigorar uma regra contabilística que determina que ele a considere como integrada no seu ativo imobilizado (Rui Pinto Duarte, “O contrato de locação financeira – uma síntese”, Themis – Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano X (2010), n.º 11, pp. 135-194).
Seguimos na esteira do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 09-11-2023, relatado por Gonçalo de Oliveira Magalhães, (https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/0a58bc403093aed780258a6f005777f3?OpenDocument). Nesta medida, a permanência do direito de propriedade sobre a coisa locada no património do locador desempenha também uma função de garantia. Como escreve Luís Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito Bancário cit., p. 286, “a locação financeira é um instrumento de financiamento garantido pela propriedade do bem, bem esse que o locador financeiro não quer explorar economicamente. Ele visa simplesmente a restituição do capital investido e dos juros (…) Na locação, pelo contrário, o locador pretende explorar economicamente o bem, cuja transferência não está em jogo. Ele recebe, como contrapartida, as rendas ou alugueres que consistem na sua retribuição por assegurar o gozo da coisa para o fim a que ela se destina [art.º 1031.º, al. b)] (…)
De acordo com esta acórdão, apesar de não ser o proprietário jurídico da coisa locada, o locatário é o proprietário económico, com isto se pretendendo vincar que o locatário financeiro tem poderes para locar a coisa enquanto o contrato vigorar, o que, diga-se, sempre parece resultar do disposto no art.º 10.º/1, g), do DL n.º 149/95, segundo o qual é obrigação do locatário financeiro não proporcionar a outrem o gozo do bem por meio de sublocação, exceto se o locador financeiro o autorizar.(sublinhado nosso)
Contudo, a locação feita pelo locatário financeiro, na qualidade de locador, não é uma sublocação, uma vez que, como referimos, a locação financeira não é um mero contrato locativo.
Por tudo, isto, concluímos que o locatário financeiro tem legitimidade para arrendar o prédio objeto do seu direito.
A pergunta que se coloca então é a de saber se o locatário financeiro tem de ter autorização do locador para dar o imóvel de arrendamento e as consequências da falta de autorização.
A obrigatoriedade de autorização do locador financeiro parece resultar da lei e do próprio contrato de locação financeira.
Efetivamente, como já referimos supra, o artigo 10.º, n.º 1, alínea g) do D.L. 149/95, de 24 de junho estabelece a obrigação do locatário financeiro ed g) Não proporcionar a outrem o gozo total ou parcial do bem por meio da cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador a autorizar;
Além disso, na cláusula décima das condições gerais do contrato de locação ficou exarado que o locatário não pode ceder a sua posição contratual, sublocar ou de qualquer forma permitir a utilização do imóvel locado por terceiros, total ou parcialmente, sem o prévio e expresso consentimento do locador.
Não se provou que o Banco … tenha autorizado a locatária financeira a ceder o gozo do imóvel através de contrato de locação.
Não há dúvida que a celebração do contrato de arrendamento sem autorização do Banco ... constitui uma violação ilícita e culposa por parte da K S.A. de obrigações legais e contratuais que visam proteger o locador financeiro. O incumprimento pelo locatário das obrigações legais e contratuais fazem-no incorrer em responsabilidade civil perante o locador, que pode resolver o contrato nos termos gerais.
É o que resulta da norma do artigo 17.º do D.L. 149/95: 1 - O contrato de locação financeira pode ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais, com fundamento no incumprimento das obrigações da outra parte, não sendo aplicáveis as normas especiais, constantes de lei civil, relativas à locação.
Mas a falta de autorização do locador financeiro à locação da coisa pelo locatário financeiro apenas inquina o contrato de arrendamento celebrado se o locador financeiro quiser efetivamente fazer extinguir o contrato por incumprimento, cessando assim dos poderes com base nos quais o locatário financeiro locou a coisa.
A norma violada visa proteger a posição do locador financeiro e não de terceiros àquele contrato. Se o locador financeiro não quiser exercer o direito potestativo de resolução do contrato, se o quiser manter em vigor, mantém o arrendatário o gozo do locado nos termos contratualmente assumidos. O que significa que a mera falta de autorização do locador financeiro não afeta a validade do contrato de arrendamento celebrado pelo locatário financeiro se este não quiser fazer extinguir o contrato de locação financeira.
É a posição expressa no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, relatado de 09-11-2023, supra citado https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/0a58bc403093aed78258a6f005777f3?OpenDocument: (…) resta apenas dizer que a eventual falta de autorização do locador financeiro à locação da coisa pelo locatário financeiro releva apenas no confronto entre ambos, redundando numa situação de incumprimento contratual por parte deste. Não inquina o contrato de locação celebrado, sem prejuízo, claro está, da repercussão que tal incumprimento pode ter, de forma imediata, na subsistência do contrato de locação financeira e, de forma reflexa, no contrato de locação. Estamos a pensar na hipótese de resolução do contrato de locação financeira, o que levará à cessação dos poderes com base nos quais o locatário financeiro locou a coisa. – sublinhado nosso.”
No que respeita à nulidade do contrato por ilegitimidade da Autora, na qualidade de senhoria, para celebrar o contrato de arrendamento, refere a Ré/Recorrente S Lda. no corpo das suas alegações que:
“(…) É certo que na matéria de facto provada nos autos, existiram contactos prévios entre o representante da autora, F e o representante legal da recorrente, C, sem prejuízo de contactos havidos com os fiadores.
Mais tais contactos nunca evidenciaram ou sugeriram por parte da autora, que a fracção autónoma a ser dada de arrendamento para o exercício do comércio à recorrente e aos fiadores, não era da sua propriedade.
A própria autora declara um facto falso e viciado no contrato de arrendamento ao afirmar, que é dona e legitima possuidora do imóvel dado de arrendamento.
Ora tal facto, por demais evidente e provado em sede de julgamento com prova testemunhal e documental carreada para os autos, não pode deixar de ser avaliada, ponderada e decidida em face dos argumentos de facto e de direito que devem sustentar uma decisão jurídica.
(…)
É a esta parte do contrato (sujeito activo) que geralmente detém os documentos necessários para a celebração de um arrendamento e que tem consciência e conhecimento da sua validade e eficácia real e material.
Ora neste caso em concreto, era a autora que detinha todo o acervo documental para proceder ao arrendamento, bem sabendo que o imóvel não era da sua propriedade.
(…)
Como ficou provado nos autos, documental e testemunhalmente, o imóvel era da propriedade do Banco …, SA.
(…)
A autora bem sabia que a fracção autónoma não era da sua propriedade, mas declarou ser.
(…)
No diploma que regula a locação financeira - Dec. Lei 149/95, de 24 de junho -, é claro, que nas obrigações decorrentes deste diploma, também é obrigatório, que a locatária tenha estas e outras obrigações junto do locador, ou seja, o proprietário do imóvel.
Ora estamos em total desacordo com a conclusão do tribunal a quo, quando refere em súmula, que tal regime legal e contratual a que a autora se obrigou a cumprir perante o Banco …, SA, é de somenos importância, porque tal facto não fere o direito que esta tinha em poder arrendar.
Se existe um regime legal para a locação financeira, este regime é imperativo nas relações entre o locador e o locatário, no qual este terá que cumprir um conjunto de obrigações, nomeadamente, usar o imóvel como usufruto, figura jurídica utilizada pelo tribunal a quo, mas não fazer dele como seu e dispor da forma que entender em colisão com a regras imperativas e contratuais assumidas.
Mas mais do que o regime legal, existe o regime contratual aceite e outorgado pela autora, em que no seu clausulado estava obrigada ao cumprimento de um conjunto de regras e obrigações, tais como, o não sublocar, ceder ou alienar o imóvel, sem o consentimento da locadora.
(…)
Na sentença do tribunal a quo, é dito a certa parte: “Dos factos provados resulta que a autora é mera locatária financeira da fração, tendo celebrado um contrato de arrendamento na qualidade de senhoria.”
Ora tal expressão é totalmente infeliz, porque nunca um locatário pode transfigurar-se num senhorio de coisa nenhuma. (…)”
Apreciando:
É facto que a Autora não era proprietária da fracção dada de arrendamento à 1.ª Ré.
Assim como é facto que proprietário dessa fracção era o Banco … que, em momento prévio à celebração do contrato de arrendamento, havia celebrado com a aqui Autora um contrato de locação financeira.
Tal como a decisão recorrida, entendemos que o art.º 1022.º do CC não exige a qualidade de proprietário à pessoa que se obriga a proporcionar a outra o gozo temporário de uma coisa.
E tanto assim é que a lei permite a locação de coisa alheia, como resulta evidente dos art.ºs 1060.º e 1061º do CC. Com efeito, é o próprio Código Civil que prevê, no regime do arrendamento civil, a possibilidade de o arrendamento ser feito por quem não é proprietário e qual a consequência de tal ocorrência.
Mais, o próprio art.º 1034.º do CC prevê, para a circunstância de (i) o locador não ter a faculdade de proporcionar a outrem o gozo da coisa ou (ii) o seu direito não ser de propriedade, determinarem apenas e tão só o incumprimento do contrato no caso de tais circunstancias determinarem a privação definitiva ou temporária do gozo da coisa ou a diminuição dele por parte do locatário.
Ora, só tem sentido o Código Civil falar no incumprimento de um contrato de arrendamento por parte de quem não tem a faculdade de proporcionar o gozo ou por parte de quem não for proprietário na perspectiva de estarmos perante contratos válidos entre o locador (senhorio) e o locatário.
Em igual sentido se decidiu no Ac. da R.G. de 10-01-2019 em cujo sumário se refere:
“1- O contrato de arrendamento tem efeitos meramente obrigacionais pelo que a legitimidade para a celebração deste tipo contratual e a consequente validade desse contrato, não depende do senhorio ser proprietário da coisa arrendada. (…)”
Assim, ainda que se entenda que um locatário financeiro não tem legitimidade para celebrar um contrato de arrendamento - o que não é líquido, nem pacífico[1] – nem mesmo nessa situação a consequência decorrente dessa falta de legitimidade é a invalidade/nulidade do contrato.
A celebração de um contrato de arrendamento por quem não é proprietário não tem, assim, como consequência – na relação entre as partes nesse concreto contrato de arrendamento – qualquer invalidade do negócio, mas tão somente um incumprimento contratual, apenas e tão somente no caso de o arrendatário ficar privado ou diminuído do gozo, definitivo ou temporário, da coisa.
Assim, uma primeira conclusão que podemos tirar é a de que é válida a locação de bens alheios – neste sentido Ac. STJ de 10-12-2024 proc. n.º 142805/15.0YIPRT.P1.S2.
Conforme se decidiu no Ac. desta Relação de 26-05-2022 “Celebrado um arrendamento por quem não tem legitimidade para o celebrar, o mesmo não deixa de ser válido entre as partes contratantes, mas poderá ser ineficaz em relação ao proprietário ou aos restantes contitulares do imóvel”.
Mas, conforme referimos supra, esse mesmo entendimento não determina - na relação entre as partes contratantes nesse contrato de arrendamento – qualquer invalidade do mesmo.
Este mesmo raciocínio vale para a circunstância de não se ter demonstrado que a Autora, enquanto locatária financeira, obteve expresso consentimento da locadora financeira/proprietária para a celebração do contrato de arrendamento.
Conforme se refere, acertadamente, na sentença recorrida, a celebração de um contrato de arrendamento sem autorização do Banco… (proprietário/locador financeiro) constitui uma violação das obrigações legais e contratuais da locadora financeira, e determina a ineficácia do referido contrato em relação àquele.
Mas, o incumprimento dessas obrigações pelo locatário financeiro na sua relação com o locador, apenas o fazem incorrer em responsabilidade contratual – incumprimento – perante este. O âmbito de protecção do art.º 17.º do DL 149/95 é o das partes contratantes no concreto contrato de locação financeira.
É certo que este incumprimento do contrato de locação financeira poderia – por arrastamento e no mero campo das hipóteses – levar à resolução do mesmo por parte do Banco … e com isso determinar o incumprimento contratual do contrato de arrendamento, nos termos do art.º 1034.º do CC.
Mas, mais uma vez, nesta situação hipotética seria no âmbito do incumprimento contratual que nos moveríamos, e não no da validade do contrato.
Concordamos, por isso, com a fundamentação da sentença recorrida e com a posição – nele seguida – do AC. da R.G. de 09-11-2023.
(ii) Culpa na Formação do Contrato /Erro
De forma sintética refere a Ré/Recorrente S Lda. nas suas conclusões das alegações de recurso que “o contrato está ferido de nulidade por erros cometidos na formação do contrato, com culpa, omitindo e enganando as partes e aqui recorrente nas declarações do contrato”.
A este respeito diz-se na sentença recorrida:
“Uma terceira questão que pode surgir é a circunstância de, no contrato de arrendamento, não se identificar a K como locadora financeira, mas como dona e legítima possuidora da fração locada.
A utilização das expressões dono ou legítimo possuidor tem um significado impreciso, não exprimindo necessariamente a titularidade do direito de propriedade sobre uma coisa, referindo-se o conceito ao poder de disposição fáctica sobre a coisa.
Ainda que, como vimos, o locador financeiro tenha direito a celebrar contratos de arrendamento sobre a coisa, poder-se-ia colocar a questão de o arrendatário estar convencido de que o senhorio era efeito proprietário do imóvel.
O que nos faz chamar à discussão a falsa representação da realidade por parte de um dos contraentes e os efeitos de tal erro na declaração negocial.
Como bem ensina Pedro Pais de Vasconcelos (in Teoria Geral do Direito Civil, 8.º edição, editora Almedina, p. 578) a vontade negocial, quando exista, pode estar viciada na sua formação, no processo de volição e de decisão, por deficiências do esclarecimento ou de liberdade. Assim sucede quando o esclarecimento ou a liberdade do seu autor tenham sido
perturbados de tal modo que os negócios jurídicos assim celebrados fiquem enfraquecidos ou fragilizados.
Distinguindo-se do erro na expressão da vontade, o erro como vício na formação da vontade traduz-se numa deficiência do discernimento, em consequência de uma falsa perceção da realidade, de uma desconformidade entre a realidade e o entendimento dessa realidade.
O erro pode incidir em aspetos vários do negócio e que a lei lhe dá um tratamento jurídico distinto, conforme os casos.
A lei distingue o erro sobre as pessoas ou sobre o objeto do negócio (artigo 251.º do Código Civil) o erro sobre os motivos (artigo 252.º, n.º 1 do Código Civil), o erro sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio (artigo 252.º, n.º 2 do Código Civil).
O erro sobre a pessoa ou sobre o objeto do negócio, constante do artigo 251.º, é tratado da seguinte forma:
O erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247.º
Ou seja, é anulável desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade para o declarante do elemento que incidiu o erro.
Reportando ao caso concreto, não se vislumbra que a falsa representação da qualidade de proprietário do imóvel / locatário financeiro fosse uma circunstância essencial ou causal para a realização do negócio.
O que importava para o arrendatário era poder receber o direito de uso do imóvel por quem tinha direito a dispor dele. E, em virtude do contrato de locação financeira celebrado, era a K quem tinha o direito de gozo sobre a coisa, não a sua proprietária, que tinha o seu direito limitado.
Ou seja, a ré não podia celebrar o contrato de arrendamento com a proprietária. Fez contrato de arrendamento com que podia ceder o gozo temporário do gozo do imóvel.
Não se demonstrou que o direito de uso da ré estivesse condicionado ou restringido pela natureza do direito de quem celebrou o contrato de arrendamento como locadora.
Em nenhum momento a ré demonstrou que a qualidade de proprietária fosse essencial ou causal para o contrato, que a essencialidade desse elemento era conhecida do declaratário ou ele não a poderia ignorar.
Deste modo, consideramos que não há qualquer vício na formação da vontade que afete a validade do contrato de arrendamento.”
A Ré recorrente convoca para esta questão a figura do erro vício numa dupla vertente.
No que respeita à culpa/dolo convoca a recorrente o art.º 227.º e o art.º 253.º do CC.
A culpa na formação do contrato, a que alude a recorrente – na sua remissão para o art.º 227.º do CC – apenas implica responsabilidade civil, e não invalidade do contrato, pelo que isoladamente não releva para efeitos do objecto do presente recurso.
Não obstante, em tese, poderá relevar na sua articulação com o art.º 253.º do CC.
No que se refere ao art.º 253.º do CC dispõe o mesmo que:
“1. Entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante.
2. Não constituem dolo ilícito as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as conceções dominantes no comércio jurídico, nem a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, de estipulação negocial ou daquelas conceções.”
O dolo constitui uma modalidade de erro-vício e releva enquanto vício na formação da vontade do declarante determinando-o a “manifestar uma vontade que não quereria se se tivesse apercebido da existência do erro provocado ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro”, caracterizando-se, assim, “por uma divergência entre a vontade real (a efectivamente formada pelo declarante) e a conjectural ou hipotética (a que manifestaria, não fosse o facto de ter sido enganado)”[2]
Em função da relevância que assuma, pode o mesmo ser classificado em: i) dolo ilícito ou relevante (dolus malus - n.º 1) e ii) dolo ilícito ou irrelevante (dolus bonus - n.º 2).
Apenas o primeiro fundamenta a anulabilidade do negócio cuja vontade tenha sido por ele determinada (art.º 254.º, n.º 1, do CC), além de poder constituir em responsabilidade o autor do dolo.
No que concerne ao “dolus malus”, segundo a doutrina e a jurisprudência, a sua relevância depende da verificação cumulativa de três requisitos:
a) Que o declarante esteja em erro;
b) Que o erro tenha sido provocado ou dissimulado pelo declaratário ou por terceiro;
c) Que o declaratário ou terceiro haja recorrido, para o efeito, a qualquer artifício, sugestão ou embuste.[3]
Para ter relevância jurídica, o dolo ilícito tem de ser causa do erro e “o erro deve ser determinante para a emissão da declaração negocial pelo declarante” ou, pelo menos, para a emissão da declaração negocial nos termos em que a fez. “O dolo tem, pois, de ser determinante da vontade. É esse o sentido a retirar da expressão «cuja vontade tenha sido determinada por dolo»”[4]
No que a um eventual erro vício diz respeito, torna-se evidente – em face da matéria de facto provada (e não impugnada neste recurso) – que nada se apurou quanto a ter existido da parte da autora qualquer sugestão ou artifício utilizado para induzir ou manter a apelante em erro sobre a identidade do proprietário do imóvel dado de arrendamento, pelo que resulta inviável qualquer tese de situação de dolo passível de tornar o contrato anulável – cf. arts. 253º e 254º do Código Civil.
Por sua vez o art.º 251.º do CC dispõe que “o Erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável, nos termos do art.º 247.º do CC.”
A aplicação remissiva do art.º 247.º do CC exige assim que o declaratário conhecesse, ou não devesse ignorar, a essencialidade para o declarante do elemento sobre o qual incidiu o erro.
Na esteira de alguns autores podemos avançar com a definição de declaração de vontade negocial como aquela que traduz um comportamento que, exteriormente observado, cria a aparência externa de um certo conteúdo da vontade negocial, caracterizando depois essa vontade como a intenção de realizar determinados efeitos práticos, com o objectivo de que os mesmos sejam juridicamente tutelados e vinculantes: o comportamento externo em que se traduz a declaração manifesta, normalmente, uma vontade, formada sem anomalias e coincidente com o sentido exteriormente captado daquele comportamento ( cf. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, 416; Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II Volume, 122; Heinrich Ewald Hörster, A Parte Geral Do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, 1992, 417/422)
A declaração negocial tem, assim, como função primordial, a de exteriorizar a vontade psicológica do declarante, visando, dessa forma e sob a égide do princípio da autonomia privada, realizar a vontade particular através da produção intencional de um efeito e/ou de uma regulamentação jurídico-privada.
Contudo, o negócio jurídico só poderá operar de pleno, enquanto manifestação de duas (ou mais) vontades livres e esclarecidas, se as mesmas tiverem sido obtidas dessa forma, sem quaisquer deformações provindas de influências externas. Se a formação da vontade foi abalada por algum vício que a toldou, é óbvio que a expressão da mesma ficou viciada.
Ocorrendo um vício, está em causa o lado interno da declaração o qual conduziu a uma deformação da vontade durante o seu processo formativo: a vontade viciada diverge da vontade que o declarante teria tido sem a deformação (vontade conjectural ou hipotética), sendo que o vício, nestas circunstâncias, afectou a génese da vontade e repercutiu-se numa declaração negocial coincidente com ela (neste sentido cfr. Heinrich Ewald Hörste, obra supra citada).
Estamos ainda âmbito do erro-vício: não existe aqui qualquer divergência entre a vontade e a declaração, pois a declaração está em perfeita sintonia com a vontade, mas é esta que está viciada, porque foi mal esclarecida.
Trata-se de um erro sobre os motivos, ainda que designado por erro-vício: o erro sobre os motivos é, por conseguinte, uma ideia inexacta, uma representação inexacta, sobre a existência, subsistência ou verificação de uma circunstância presente ou actual que era determinante para a declaração negocial, ideia inexacta essa sem a qual a declaração negocial não teria sido emitida ou não teria sido emitida nos precisos moldes em que o foi.
No que a esta particular questão diz respeito – e em face da matéria de facto adquirida nos autos – não podemos deixar de acompanhar a fundamentação da sentença recorrida quando refere que “Reportando ao caso concreto, não se vislumbra que a falsa representação da qualidade de proprietário do imóvel / locatário financeiro fosse uma circunstância essencial ou causal para a realização do negócio.
O que importava para o arrendatário era poder receber o direito de uso do imóvel por quem tinha direito a dispor dele. E, em virtude do contrato de locação financeira celebrado, era a K quem tinha o direito de gozo sobre a coisa, não a sua proprietária, que tinha o seu direito limitado.
Ou seja, a ré não podia celebrar o contrato de arrendamento com a proprietária. Fez contrato de arrendamento com que podia ceder o gozo temporário do gozo do imóvel.
Não se demonstrou que o direito de uso da Ré estivesse condicionado ou restringido pela natureza do direito de quem celebrou o contrato de arrendamento como locadora.
Em nenhum momento a ré demonstrou que a qualidade de proprietária fosse essencial ou causal para o contrato, que a essencialidade desse elemento era conhecida do declaratário ou ele não a poderia ignorar.”
Mais se diga que, percorrida toda a contestação apresentada pela Ré S Lda., em momento algum a mesma faz alusão à essencialidade para si, enquanto arrendatária, de a K S.A. ser ou não proprietária da fracção e/ou de a mesma ser, ou não, objecto de um prévio contrato de locação financeira. Por esta razão não encontramos nem nos factos provados, nem nos factos não provados, qualquer alusão a estes motivos determinantes da vontade e sua essencialidade para a Ré S Lda.
Em face do exposto, terá de necessariamente improceder qualquer pretensão da Ré/Recorrente S Lda. quanto à invalidade do contrato de arrendamento, seja por força da ilegitimidade da Autora para o celebrar, seja pela ilicitude do mesmo em face do contrato de locação financeira, seja, por ultimo, em razão de qualquer erro-vício.
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b) Da licitude/ilicitude da denúncia operada pela 1.ª Ré
b.1) Da lei aplicável à denúncia do contrato – aplicação da lei no tempo
O nó górdio da presente acção centra-se na possibilidade, ou não, de a arrendatária fazer cessar o contrato de arrendamento antes de terminado o prazo de duração estipulada do mesmo que, no caso concreto, foi de 10 anos.
Com efeito, provou-se que:
- a K, S.A. deu de arrendamento a S, Lda. a fracção autónoma identificada pela letra “A”, designada por “Loja do Lado Direito, com cave”, do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Praceta, n.º--,--A e --B e Rua E, n.º--,--A e --B ao comércio de veículos automóveis;
- O contrato foi celebrado pelo prazo mínimo de dez anos, sucessivamente renovável por períodos de um ano, findo esse prazo, tendo o contrato o seu início no dia 1 de fevereiro de 2014 e termo no dia 1 de fevereiro de 2024, e que os contraentes podem impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação a enviar à contraparte, através de carta registada com aviso de recepção ou contacto pessoal de advogado ou solicitador com 180 dias de antecedência sobre o termo do prazo inicial ou de qualquer uma das suas eventuais renovações;
- por carta registada com aviso de recepção datada de 26 de junho de 2020, a ré Lda., comunicou a K S.A. que pretendia denunciar o referido contrato de arrendamento com efeitos a 23 de Dezembro de 2020.
Prevendo acerca das formas de cessação dos arrendamentos de prédios urbanos, prescreve o art.º 1079º do Cód. Civil que “o arrendamento urbano cessa por acordo das partes, resolução, caducidade, denúncia ou outras causas previstas na lei”.
Por seu turno, acrescenta o art.º 1080.º do CC – a propósito da imperatividade – que “as normas sobre a resolução, a caducidade e a denúncia do arrendamento urbano têm natureza imperativa, salvo disposição legal em contrário”.
No âmbito das disposições do arrendamento para habitação, prevendo acerca da oposição à renovação ou denúncia pelo arrendatário, refere o art.º 1098º, na actual redacção – introduzida pela Lei nº. 13/2019, de 12/02 -, que:
“1 - O arrendatário pode impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação ao senhorio com a antecedência mínima seguinte: a) 120 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis anos; b) 90 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a um ano e inferior a seis anos; c) 60 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis meses e inferior a um ano; d) Um terço do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação, tratando-se de prazo inferior a seis meses. 2 - A antecedência a que se refere o número anterior reporta-se ao termo do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação. 3 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, decorrido um terço do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação, o arrendatário pode denunciá-lo a todo o tempo, mediante comunicação ao senhorio com a antecedência mínima seguinte: a) 120 dias do termo pretendido do contrato, se o prazo deste for igual ou superior a um ano; b) 60 dias do termo pretendido do contrato, se o prazo deste for inferior a um ano. (..) 4 - Quando o senhorio impedir a renovação automática do contrato, nos termos do artigo anterior, o arrendatário pode denunciá-lo a todo o tempo, mediante comunicação ao senhorio com uma antecedência não inferior a 30 dias do termo pretendido do contrato. 5 - A denúncia do contrato, nos termos dos nºs. 3 e 4, produz efeitos no final de um mês do calendário gregoriano, a contar da comunicação. 6 - A inobservância da antecedência prevista nos números anteriores não obsta à cessação do contrato, mas obriga ao pagamento das rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta, exceto se resultar de desemprego involuntário, incapacidade permanente para o trabalho ou morte do arrendatário ou de pessoa que com este viva em economia comum há mais de um ano”.
Este mesmo art.º 1098.º do CC – na redacção da Lei 6/2006 de 27-02 – dispunha que:
“1 - O arrendatário pode impedir a renovação automática mediante comunicação ao senhorio com uma antecedência não inferior a 120 dias do termo do contrato. 2 - Após seis meses de duração efectiva do contrato, o arrendatário pode denunciá-lo a todo o tempo, mediante comunicação ao senhorio com uma antecedência não inferior a 120 dias do termo pretendido do contrato, produzindo essa denúncia efeitos no final de um mês do calendário gregoriano. 3 - A inobservância da antecedência prevista nos números anteriores não obsta à cessação do contrato, mas obriga ao pagamento das rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta”.
Já no que respeita ao arrendamento para fins não habitacionais – que é exactamente o caso dos autos – dispõe o art.º 1110.º, n.ºs 1 e 2 do CC (na redacção dada pela Lei 13/2019, de 12-02) que: “1 - As regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes, aplicando-se, na falta de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação, sem prejuízo do disposto no presente artigo e no seguinte. 2 - Na falta de estipulação, o contrato considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos, não podendo o arrendatário denunciá-lo com antecedência inferior a um ano”.
Esse mesmo normativo, na redacção da Lei 06/2006 de 27-02 (em vigor à data da celebração do contrato de arrendamento) dispunha que:
“1 - As regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes, aplicando-se, na falta de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação. 2 - Na falta de estipulação, o contrato considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de 10 anos, não podendo o arrendatário denunciá-lo com antecedência inferior a um ano”. A referência que se faz às duas redacções dos artigos 1098.º e 1110.º do CC deve-se à circunstância de o contrato de arrendamento não habitacional, em questão nos presentes autos, ter sido celebrado em Janeiro de 2014 (facto 7) e de a denúncia ter ocorrido em 26-06-2020 (facto 13), para surtir efeitos a 23-12-2020.
Nesta medida cumpre apreciar qual as disposições aplicáveis ao presente caso – por referência à data da celebração do contrato ou por referência à data da produção de efeitos da denúncia – tendo em atenção os critérios do art.º 12.º do CC.
Dispõe este art.º 12.º do CC, a propósito da aplicação da lei no tempo, que: “1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.
A propósito das alterações em matéria de arrendamento, escreveu Maria Olinda Garcia ( Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019, in Julgar Online, Março de 2019, p.8 ) que “no que respeita à aplicação da lei no tempo, tais alterações aplicam-se não só aos contratos futuros, mas também aos contratos em curso, como decorre da regra geral do artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil. Acresce que o legislador esclareceu expressamente que algumas alterações têm aplicação mesmo a situações constituídas antes da entrada em vigor da presente lei (artigo 14.º). Assim acontece quanto à forma do contrato, prevista no n.º 2 do artigo 1096.º, e quanto ao disposto no artigo 1041.º”.
Da mesma forma tal foi defendido por Jéssica Rodrigues Ferreira (Análise das principais alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, aos regimes da denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais, in Revista Electrónica de Direito, fevereiro 2020, n.º 1, vol. 21) referindo que, regra geral, “as normas imperativas previstas na Lei 13/2019 se aplicam não apenas aos contratos futuros, mas também aos contratos celebrados em data anterior à entrada em vigor da lei, nos termos da regra geral sobre aplicação da lei no tempo prevista no n.º 2 do art.º 12.º, na medida em que tais normas contendem com o conteúdo de relações jurídicas abstraindo dos factos que lhes deram origem”.
Ainda a propósito desta matéria, é de referir o Ac. do STJ de 30-11-2021, no qual se refere que “o “estatuto do contrato” (da autonomia privada) é determinado perante a lei vigente ao tempo da sua celebração. Todavia, a lei nova que, interalia, respeite à organização da economia ou vise a tutela da parte mais vulnerável, limita o domínio da autonomia da vontade e será de aplicação imediata. A Lei n.º 13/2019, ao abrigo do art.º 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do CC, na medida em que as suas disposições se revistam de natureza imperativa, aplica-se às relações jurídico-arrendatícias que subsistam à data do seu início de vigência, porquanto dispõe sobre o seu conteúdo e o conforma abstraindo do facto que lhes deu origem”. Acrescentando que “muitas das disposições contidas na lei nova (Lei n.º 13/2019), tendo em vista tutelar um interesse social particularmente imperioso (ordem pública económica de proteção), se revestem de natureza imperativa”, pois dispõem “sobre o conteúdo de situações jurídicas (…), abstraindo do facto que a tais situações jurídicas deu origem, conforme o art.º 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do CC”. Igual posição tinha sido anteriormente assumida – no âmbito de legislação pretérita – pelo Ac. do STJ de 23-05-2002, sendo que do respectivo sumário consta: I - As leis relativas às Relações Jurídicas de arrendamento são, em princípio, de aplicação imediata por visarem não o "Estatuto Contratual" das partes, mas antes o respectivo "Estatuto Legal", atingindo-as assim não tanto como partes contratantes mas enquanto sujeitos de direito ligados por um particular e específico vínculo contratual. II - Ocorrendo a inovação legislativa da pendência da acção aplica-se à Relação Jurídica (subsistente), julgando-se a causa ainda que em recurso em conformidade com a mesma.
Assim, no que se refere à forma de cessação do contrato de arrendamento, em que se traduz a denúncia, o facto extintivo do contrato de arrendamento, é a declaração de denúncia. A cessação do arrendamento é o efeito ou consequência da comunicação feita por uma das partes – neste sentido Jéssica Rodrigues Ferreira (ob. supra citada).
O que nos leva a concluir no sentido da aplicação aos presentes autos da lei vigente à data em que ocorreu a denúncia – 26-06-2020, isto é, dos arts. 1098.º e 1110.º do CC nas redacções introduzidas pela Lei 13/2019 de 12-02.
b.2) Da interpretação da cláusula 3.ª do contrato de arrendamento celebrado e sua validade
Consta da cláusula 3ª do contrato de arrendamento não habitacional, na parte que aqui importa que:
Facto 8: Ficou a constar na cláusula terceira que o arrendamento é feito pelo prazo mínimo de dez anos, sucessivamente renovável por períodos de um ano, findo esse prazo, tendo o contrato o seu início no dia 1 de fevereiro de 2014, pelo que terá o seu termo inicial em 1 de fevereiro de 2024, e que os contraentes podem impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação a enviar à contraparte, através de carta registada com aviso de receção ou contato pessoal de advogado ou solicitador com 180 dias de antecedência sobre o termo do prazo inicial ou de qualquer uma das suas eventuais renovações.
Conhecendo acerca da pretensão da Autora - no sentido de que a Ré arrendatária estava impedida de denunciar os contratos durante o período da sua vigência inicial (10 anos) e, como tal, fazendo-o, deveria suportar o pagamento da totalidade das rendas que se venceriam naquele período - consignou-se na sentença apelada o seguinte:
“Mas o contrato objeto dos autos não é um contrato de arrendamento para habitação, mas um contrato de arrendamento para fins comerciais, pelo que a aplicação do artigo 1098.º do Código Civil, porquanto relativa à cessação do contrato por denúncia, não é imperativa, mas apenas supletiva, podendo as partes estipular um regime contrário. É, como vimos, a regra que consta do artigo 1110.º, n.º1 do Código Civil.
O acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado ed 28-01-2021, relatado por Mata Ribeiro, assinala o seguinte (https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/e9d1dae812d4da2280258684006dd5e1):
i) da conjugação do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) instituído pela Lei n.º
6/2006 de 27/02, que repôs em vigor o art.º 1110.º do CC epigrafado de “Duração, denúncia ou oposição à renovação” com o art.º 405º do CC, decorre que, à data em que foi outorgado o contrato de arrendamento para fins não habitacionais, no que respeita à duração, denúncia e oposição à renovação existia liberdade de estipulação sem limites, ressalvando, no entanto as regras gerais da locação, em especial o que consta sobre a duração máxima dos contratos que está fixada em 30 anos.
ii) a norma do n.º 1 do art.º 1110º do CC dá prioridade à vontade das partes no que respeita à denúncia e oposição à renovação, não existindo vinculismo legal quanto a tal, valendo o princípio geral da autonomia negocial, em conformidade com o que dispõe o art.º 405º do CC, pelo que as partes podem estabelecer o clausulado que entenderem nessas matérias.
iii) no NRAU, tal como sucede quanto à duração, em sede de denúncia e oposição à renovação no contrato de arrendamento comercial, as regras passaram a poder ser livremente estabelecidas pelas partes: tanto ao locador como ao locatário, é permitido regular os seus termos, daí que se imponha a apreciação do alcance das cláusulas contratuais que definam os parâmetros do exercício do direito.
iv) perante um contrato a prazo certo de seis meses em que as partes acordaram expressamente que só os arrendatários podiam denunciar ou deduzir oposição à renovação, esta cláusula consagra o princípio da liberdade contratual previsto no artigo 1110.º n.º 1, não contraria regra imperativa, nem é contrária à ordem pública.
A liberdade de estipulação nos contratos emerge do que dispõe o artigo 405º do CC epigrafo de “Liberdade contratual”:
1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver.
2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei.
Importa, assim, interpretar as declarações negociais exaradas no contrato de arrendamento, no sentido de aferir se as partes quiseram afastar a possibilidade de denúncia ou revogação unilateral do contrato pelo inquilino antes do termino previsto para o contrato.
Na cláusula terceira as partes estipularam que o arrendamento é feito pelo prazo mínimo de dez anos, sucessivamente renovável por períodos de um ano, findo esse prazo.
A cláusula respeita o artigo 1025.º do Código Civil estabelece o prazo máximo de duração do contrato de 25 anos, sendo este um limite à autonomia das partes.
A solução deve ser encontrada nas regras da interpretação da vontade negocial prevista nos artigos 236.º e ss. do Código Civil.
1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
Consagra-se a teoria da impressão do destinatário, temperada com o conhecimento efetivo da vontade real do declarante.
Nos negócios formais, a declaração deve valer com um sentido que não tenha o mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso.
Analisando as declarações negociais, verificamos que as partes declaram que o arrendamento é feito pelo prazo mínimo de dez anos, sucessivamente renovável por períodos de um ano, findo esse prazo, tendo o contrato o seu início no dia 1 de fevereiro de 2014, pelo que terá o seu termo inicial em 1 de fevereiro de 2024, e que os contraentes podem impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação a enviar à contraparte, através de carta registada com aviso de receção ou contato pessoal de advogado ou solicitador com 180 dias de antecedência sobre o termo do prazo inicial ou de qualquer uma das suas eventuais renovações.
Interpretando a cláusula contratual à luz das normas citadas, consideramos que um declaratário normal não deixaria de interpretar que a utilização do adjetivo “mínimo” junto com a expressão prazo de 10 anos teve a intenção de limitar a possibilidade de qualquer das partes terminar o contrato de arrendamento antes do decurso desse prazo de 10 anos.
Salvo melhor opinião, a melhor interpretação das declarações negociais vertidas no documento identificado é que as partes, ao declarar que o contrato teria um prazo mínimo de 10 anos, quiseram afastar a norma supletiva constante do artigo 1098.º, n.º 3, ex vi artigo 1110.º, ambos do Código Civil.
Consequentemente, por não ter esse direito, não podia a locatária revogar unilateral e livremente o contrato de arrendamento até ao termo do mesmo, que tinha sido contratualizado até 1 de fevereiro de 2024.
A ré locatária ficou adstrita para com a locadora a pagar as rendas que se venceram até 1 de fevereiro de 2024, ao abrigo do princípio de que o contrato deve ser pontualmente cumprido, podendo o autor exigir judicialmente o seu cumprimento – artigos 406.º e 817.º do Código Civil. (…)”
Cumpre apreciar:
A denúncia de um contrato - enquanto forma de cessação do vínculo contratual – consubstancia uma figura privativa dos contratos de execução duradoura, como é o caso do contrato de arrendamento.
A denúncia consiste na declaração feita por uma das partes à outra, em regra com certa antecedência sobre o termo do período negocial em curso, de que não quer a renovação ou a continuação do contrato renovável ou fixado por tempo indeterminado e permite desta forma fazer cessar unilateralmente um contrato com execução prolongada no tempo (ou evitar a sua renovação automática).
Feitos estes considerandos, é momento de analisar a cláusula 3.ª do contrato no sentido de apurar se a mesma permitia, ou não, a denúncia do contrato para momento anterior ao seu termo inicial. Isto é, saber se as partes clausularam a possibilidade/impossibilidade de denúncia do contrato durante o seu prazo inicial.
É o seguinte o teor da cláusula 3.ª do contrato de arrendamento.
“1. O arrendamento é feito pelo prazo mínimo de 10 anos, sucessivamente renovável por períodos de um ano, findo este prazo.
2. O contrato tem o seu início no dia 1 de Fevereiro de 2014, pelo que terá o seu termo inicial em 01 de Fevereiro de 2024.
3. Os contraentes podem impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação a enviar à contra parte, através de carta registada com aviso de recepção ou contacto pessoal de advogado ou solicitador, com 180 dias de antecedência sobre o termo do prazo inicial ou de qualquer uma das suas renovações.”
Da leitura conjugada do n.º 1 da referida cláusula – nomeadamente da referência ao prazo mínimo de 10 anos – com o n.º 3 da mesma, temos de dar razão à decisão recorrida quando refere que, com estas concretas estipulações, quiseram as partes afastar a possibilidade de denuncia do contrato durante o prazo inicial de 10 anos.
Com efeito, face ao teor e interpretação conjunta e sistemática dos nºs 1 e 3 da Cláusula 3.ª não podemos de forma convicta afirmar que as partes não previram ou estipularam a denúncia do contrato, mas sim que previram essa situação e a quiseram afastar.
Estamos por isso perante uma situação diversa daquela que se tratou no Ac. desta Relação de 14-09-2023 e que teve como ponto de partida que as partes estipularam um prazo de duração do contrato de 10 anos, mas que entendeu – na falta de outras referências – que a vontade real das partes não era descortinável e – face ao seu desconhecimento – recorreu aos critérios estabelecidos no art.º 236.º do CC.
Com efeito, como nesse mesmo Acórdão se refere: “Na definição e aferição do clausulado pelas partes urge, efectivamente, ponderar acerca do regime legal de interpretação dos negócios jurídicos, com especial enfoque no estatuído nas regras gerais inscritas nos artigos 236º a 239º, do Cód. Civil.
Assim, e sem prejuízo de tais regras, “a primeira regra de interpretação até será a vontade real comum, o sentido subjetivo comum, ou seja, se há consenso das partes, do declarante e do declaratário, sobre o sentido da declaração, é de acordo com ele que a declaração deve ser interpretada”.
A segunda regra interpretativa encontra-se prevista no “art.º 236.º, n.º 2, do CC, segundo a qual, em caso de divergência entre o sentido subjetivo da declaração e o seu sentido objetivo, prevalece o sentido subjetivo desde que o declaratário o conheça (em conformidade com o ditame da velha máxima falsa demonstrativo non nocet)”.
Por sua vez, “em caso de divergência entre o sentido subjetivo da declaração e o seu sentido objetivo, desconhecendo o declaratário a vontade real do declarante, prevalece, segundo a terceira regra, contida no art.º 236.º, n.º 1, do CC, o sentido objetivo da declaração, salvo se o declarante não puder contar com ele, isto é, desde que tal sentido não colida com a expetativa razoável do autor da declaração: é a chamada teoria da impressão do destinatário” – cf., o sumariado no douto Acórdão do STJ de 27/04/2022, Relator: António Barateiro Martins, Processo nº. 2052/19.0T8BRG.G1.S1, in www.dgsi.pt.
Ora, in casu, inexiste acordo das partes contratantes quanto à vontade real comum subjacente ao clausulado inserto na transcrita cláusula 2ª, sendo que nada se provou, ainda, em termos do que seria a vontade real das partes declarantes.
Donde, em termos interpretativos, ficamos limitados ou circunscritos à aplicabilidade da regra contida no nº. 1, do art.º 236º, pelo que, constando do nº. 1 de tal cláusula que o arrendamento é pelo prazo de 15 anos, e sendo a mesma totalmente omissa quanto à possibilidade de denúncia de tal contrato, por parte da arrendatária, durante tal período, a sua interpretação deve ser necessariamente a que nada se clausulou, quanto à concreta possibilidade de exercício da denúncia durante tal prazo inicial do contrato.
Todavia, de tal omissão ou incompletude também não é extraível que as partes contratantes tenham querido afastar a cessação contratual por denúncia da arrendatária durante tal período.” A situação dos presentes autos reveste contornos diversos daqueles que estavam em análise no referido Acórdão: desde logo porque o contrato de arrendamento que agora nos ocupa refere de forma expressa que a duração do contrato é pelo prazo mínimo de 10 anos, o que nos inculca a convicção – com tradução da letra do contrato – de que a denúncia do contrato não era passível de ocorrer durante o período de duração mínima.
Donde se conclui, conforme defendido na decisão recorrida, no sentido de ter não ter existido omissão contratual relativamente ao regime da sua denúncia durante o prazo de arrendamento inicial de 10 anos, mas sim que as partes tiveram a intenção de afastar a possibilidade de denúncia durante tal período, apenas reservando tal possibilidade após o termo daquele período inicial e já nos períodos anuais de automática renovação.
Todavia, e não obstante a diversa interpretação das concretas cláusulas contratuais neste concreto contrato e no contrato em análise no Acórdão da Relação de Lisboa de 14-09-2023, a que vimos fazendo referência, este mesmo Acórdão não deixa de tomar posição sobre a situação dos presentes autos quando afirma: “Todavia, ainda que assim não se entendesse, e se considerasse que o labor interpretativo conduziria, necessariamente, no sentido de exclusão daquela forma de cessação contratual, durante o prazo inicial de 15 anos do contrato de arrendamento, esta putativa exclusão não era legalmente sustentável.
Procuremos fundamentar esta conclusão.
No douto Acórdão do STJ de 20/05/2021 – Relator: Ferreira Lopes, Processo nº. 192/19.5T8PVZ-A.P1.S1, in www.dgsi.pt – apreciou-se acerca da validade de cláusula contratual, inserta em contrato de arrendamento urbano para fins não habitacionais, no âmbito da qual “o arrendatário compromete-se de acordo com o estipulado no número anterior (ou seja, no prazo de 10 anos), a cumprir o contrato até 30 de Abril de 2024, obrigando-se, em caso de denúncia antecipada, a pagar ao senhorio o valor das rendas em falta pelo período contratualmente estabelecido”.
Começando por citar o consignado no Acórdão recorrido, proferido pela Relação, exarou que: “A possibilidade de denúncia do contrato de arrendamento ou de oposição à prorrogação automática por parte do arrendatário, tal como acima concluímos, está abrangida pela regra da imperatividade. Nesta linha de raciocínio, considera-se que a cláusula que impõe à arrendatária, sem justificação plausível, o pagamento de uma indemnização elevada, após a denúncia do contrato, correspondente às rendas que seriam devidas até ao seu termo, é susceptível de impedir, na prática, o livre exercício do direito de denúncia do arrendamento. A cláusula em apreço na medida em que obsta, dificulta ou impede a cessação do contrato pela arrendatária, que seria obrigada, em contrapartida, a pagar à locadora, de uma só vez, as rendas vincendas, desrespeita a citada norma imperativa que consagra a denúncia e a oposição à renovação automática como formas de desvinculação da relação arrendatícia, sendo, por isso, nula (cfr. art.º 294.º do CC). Como claramente discorre Fernando de Gravato Morais “A denúncia de um negócio não importa o pagamento de qualquer valor ressarcitório ao outro contraente, ainda que a cessação da relação jurídica cause a este prejuízos. (…) No entanto, as partes, ao abrigo da liberdade contratual, podem prever um dever, àquele que denuncia, de compensar o outro contraente. Há, porém, que apreciar em particular a cláusula em apreço, pois a compensação estipulada pode impedir a denúncia que se pretende livre. Imagine-se a hipótese em que se permite ao arrendatário comercial a extinção do contrato com o prazo de pré-aviso tipo (o do art.º 1098.ºCC, NRAU), mas se fixa, em simultâneo, uma indemnização avultada a pagar por este se tal suceder.” Na jurisprudência, esse raciocínio é seguido nos Acórdãos das Relações de Coimbra, de 22/11/2005 e de Lisboa de 04.12.2006, no domínio do similar (revogado) regime anterior, declarando-se no primeiro que “Ao agir no livre exercício de um direito que lhe é atribuído pelo nº 4 do art.º 100 do RAU, o Réu não incumpriu qualquer dever: a sua hipotética responsabilidade por via de uma pena convencional equivaleria a negação daquele direito.”
A nulidade da cláusula, objecto de análise, determina a absolvição das Rés no que concerne ao pedido da quantia de € 127.000,00, exigida a esse título. De qualquer modo, mesmo que assim não se entendesse, consideramos que se impunha a mesma solução, no caso concreto, pela figura do abuso de direito. Neste particular, cumpre relembrar que o contrato de arrendamento, celebrado pelo prazo de dez anos, foi denunciado pela arrendatária quando ainda faltavam seis anos para o fim da vigência do mesmo, pelo que, segundo a (inválida) cláusula, as Rés teriam de pagar à Autora quantia de €127.000,00, sem ter como contrapartida o gozo do arrendado, o qual podia e pode ser novamente dado de arrendamento pois não ficou acordado qualquer impedimento nesse sentido. A declaração em juízo de que não tencionam arrendar o locado, a não ser que esta questão não obtenha procedência, não reflecte qualquer acordo mas apenas uma mera intenção. Assim, em bom rigor, para além da compensação de € 127.000,00 nada impede que a Autora celebre novo contrato de arrendamento. E assim sendo, nestas circunstâncias específicas, afigura-se-nos que estamos perante uma actuação contrária à boa fé (art.º 334.º CC) por revelar um desequilíbrio que atenta contra vetores fundamentais do sistema. Como bem referem as Recorrentes, o exercício deste direito por parte da Autora é manifestamente excessivo, pelo facto de não ter sofrido qualquer tipo de prejuízo com a denúncia antecipada da Ré, possibilitada, aliás, pela letra do contrato”.
Adrede, na corroboração do juízo sufragado pela Relação, reconhece decorrer do n.º 1, do art.º 1110º, do Cód. Civil, que no arrendamento urbano para fins não habitacionais – reconduzível às situações sub judice -, os prazos do art.º 1098º, do mesmo diploma, são meramente supletivos.
Todavia, ressalva, neste n.º 1, do art.º 1110º “o legislador deixa ao critério das partes as regras da denúncia e da oposição à renovação, apenas isso, não a faculdade de suprimirem o direito à resolução, ou a denúncia do arrendamento, cujas normas, aliás, são imperativas (art.º 1080º do CC)”.
E, voltando a citar o Acórdão recorrido, acrescenta que “uma interpretação normativa que considere admissível a impossibilidade do arrendatário, por via consensual, de denunciar ou se opor à renovação automática do contrato, pode configurar uma violação do direito constitucional de iniciativa económica privada consagrado no art.º 61.º da CRP.
(…) a regulamentação do exercício do direito de denúncia é uma questão distinta da proibição desse direito, por acordo das partes, direito que está abrangido pela natureza imperativa desse regime”.
Desta forma, considera dever dar-se como “assente que o arrendatário no contrato de arrendamento urbano para fins não habitacionais goza do direito de denúncia, desde que, bem entendido, o exerça nas condições acordadas pelas partes ou, na ausência destas nos termos previstos na lei (…)”.
Donde, conclui pela ilegalidade de tal cláusula, “porque, ao fazer depender o exercício do direito de denúncia do pagamento “do valor das rendas em falta pelo período contratualmente estabelecido”, a referida cláusula, por via indirecta, limita o direito de denúncia, sendo por isso contrária à ordem pública, entendida como “o conjunto de princípios fundamentais subjacentes ao sistema jurídico que o Estado e a sociedade estão interessados em que prevaleçam e que tem uma acuidade tão forte que prevalece sobre as convenções privadas” (Mota Pinto, Teoria Geraldo Direito Civil, 3º edição, pág. 551), estando, portanto, ferida de nulidade (art.º 280º, nº 2 do Cód. Civil)”.
Como lastro argumentativo de tal conclusão, enuncia, ainda, o referenciado no douto “Acórdão da Relação de Coimbra de 17.04.2012, CJ, 2º, pág. 29, relatado pelo ora Conselheiro Barateiro Martins, e citado no Acórdão deste STJ de 05.05.2016 (Salazar Casanova): “Resulta, é certo, do princípio geral pacta sunt servanda (art.º 406º do CC) que as partes não podem livremente desvincular-se dos contratos celebrados, que o contrato deve ser pontualmente cumprido e que qualquer das partes, sem motivo, não pode furtar-se à realização das suas prestações; mas nos contratos de execução duradoura/continuada (de prestações permanentes ou duradouras cuja prestação não se esgota num só momento/instante) há que introduzir um princípio de não vinculação não indefinida de modo compulsório.
Efectivamente, a liberdade das partes não é conciliável com a perpetuidade dos vínculos contratuais, pelo que tem sempre que se aceitar a desvinculação incondicional duma das partes num contrato de execução continuada; uma vinculação eterna ou excessivamente duradoura violaria a ordem pública, pelo que os negócios de duração indeterminada ou ilimitada só não são nulos, por força do art.º 280º do CC, por se considerar que ficam sujeitos ao regime da livre denunciabilidade ad nutum.””.
Donde, conclui que estando “o contrato de arrendamento sujeito ao princípio da liberdade de desvinculação, imotivada, não é possível configurar a existência de uma cláusula penal, de valor equivalente ao total das rendas pelo tempo de duração do contrato, como sanção para a denúncia antecipada do contrato” (sublinhado nosso).”
Na sequência do que supra se transcreveu concluiu o citado acórdão desta Relação de 14-09-2023, que:
- a necessária consideração do nº. 1, do art.º 1110º, do Cód. Civil e a supletividade dos prazos do art.º 1098º, do mesmo diploma, no âmbito do arrendamento urbano para fins não habitacionais;
- no art.º 1110.º do CC o legislador deixou ao critério das partes as regras da denúncia e da oposição à renovação, mas apenas isso, e não a faculdade de suprimirem o direito à denúncia do arrendamento, cujas regras são, inclusive, imperativas (o art.º 1080º, do Cód. Civil);
- assim, no contrato de arrendamento para fins não habitacionais, o arrendatário goza do direito de denúncia, desde que o exerça nas condições contratualmente acordadas ou, na falta destas, nos termos previstos na lei;
- pelo que, tal contrato de arrendamento está, assim, sujeito ao princípio da, imotivada, liberdade de desvinculação.
Não se desconhece que o Ac. do STJ – citado abundantemente no Ac. da R.L. de 14-09-2023 – foi alvo de críticas nomeadamente de Pinto Furtado que, relativamente ao mesmo, manifestou a sua discordância.
Para este autor a imperatividade das normas respeitantes à cessação do contrato visam estigmatizar a perpetuidade do contrato e, por isso, no que concerne à denúncia do contrato de arrendamento, só as normas que asseguram a não perpetuidade do arrendamento de duração indeterminada beneficiam de imperatividade, ou seja, as regras de denúncia típica (cf. Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, 4.ª edição, 2022, Almedina, pág. 477: este autor distingue a denúncia típica da denúncia atípica e considera que um contrato de arrendamento para fins não habitacionais com prazo certo não determina a perpetuidade, pelo que estaríamos perante uma denúncia atípica, em que não havia de considerar qualquer regime imperativo, vigorando o princípio da autonomia contratual).
Não se desconhece igualmente o teor do Ac. do STJ de 09-01-2024 de cujo sumário consta que “É legal, sendo autorizada nos termos do art.º 1110.º, n.º 1, do CC, uma cláusula de renúncia, pelo arrendatário, à denuncia de um contrato de arrendamento para fim não habitacional, com prazo certo de três anos”.
Mas, uma leitura atenta e integral deste mesmo acórdão não deixa de referir que a afirmação de princípio nele feita – e passada para o sumário do mesmo – leva em consideração o concreto prazo de duração do contrato de arrendamento não habitacional que estava em questão no mesmo: 3 anos.
E nessa senda, chega mesmo a afirmar que “A letra do n.º 1 do art.º 1110.º do Código Civil não distingue entre a regulação do direito de denúncia e a regulação do modo de exercício desse direito. No que concerne à teleologia do preceito, ele visa abrir às partes, no arrendamento urbano não habitacional, a livre regulação dos seus interesses, em linha com o princípio da autonomia da vontade expresso no princípio da liberdade contratual (art.º 405.º do Código Civil). A abertura contratual preconizada não autorizará que as partes acordem no sentido da perpetuidade, ou algo equivalente, da relação locatícia (perpetuidade proibida pelo art.º 1025.º do CC), nem na criação de um estado de instabilidade e insegurança do inquilino - atendendo, nomeadamente, a preceitos como os constantes no n.º 4 do art.º 1110.º e no n.º 1 do art.º 1110.º-A do Código Civil. (sublinhado nosso)
No caso dos autos, a vinculação do arrendatário à execução do contrato pelo prazo estipulado de três anos foi acompanhada da fixação de um plano de rendas que determina a anual diminuição do respetivo valor. De facto, ficou acordado que no primeiro ano as rendas orçariam em € 2.500,00 por mês, no segundo ano seriam de € 2.000,00 por mês e no terceiro ano de € 1.500,00 por mês. O que constitui, afinal, uma contrapartida pela mencionada vinculação da arrendatária ao cumprimento integral do contrato.
Face ao exposto, cremos que uma cláusula como a que constitui objeto dos autos, isto é, a renúncia à denúncia do contrato por parte do arrendatário, num contrato de arrendamento para fim não habitacional, com prazo certo de relativamente curta duração (três anos), é legal, sendo autorizada nos termos do art.º 1110.º n.º 1 do Código Civil.”
Podemos transpor o mesmo raciocínio para um contrato de arrendamento não habitacional em que o prazo de duração é de 10 anos? A nosso ver não.
Para esta tomada de posição convocamos o constante do Ac. do STJ de 09-02-2021 em cujo sumário se fez constar que “II. A cláusula prevista num contrato de arrendamento para fins não habitacionais pelo prazo de 5 anos, em que se prevê que “Se a Segunda Outorgante pretender cessar o contrato de arrendamento, antes de decorrido o prazo referido no número 1 da presente cláusula, constitui-se na obrigação de pagar à Primeira o montante das rendas vincendas, respeitantes ao período que medeia entre a data de cessação e a data de final do prazo contratual”, é uma cláusula penitencial, na medida em que é independente do facto de se tratar de um inadimplemento contratual e, portanto, de um facto ilícito”.
Referindo-se ainda nesse mesmo sumário que “III. À semelhança do que sucede com as cláusulas penais, que pressupõe o incumprimento do contrato, também na cláusula referida em II. se justifica o controlo da legitimidade do exercício do exercício do direito à pena, nos termos do art.º 334º, nº 1 do Código Civil”, pelo que “existe abuso de direito, por violação dos limites impostos pela boa fé (de que o princípio da proporcionalidade é um sub-princípio), se houver desproporção grave entre o benefício do titular exercente do direito e o sacrifício por ele imposto a outrem”.
Acrescentando, adiante no ponto V. do Sumário que, “Ora, existe uma manifesta desproporcionalidade entre a vantagem auferida pela autora (que recebe 36 rendas vincendas, no montante de 68.400 euros, acrescidos de juros, sem proporcionar à arrendatária o gozo do locado) e o sacrifício imposto pela autora aos réus, sócios da arrendatária (que pagam aquelas rendas, por a arrendatária ter feito uso da denúncia prevista no contrato)”, pelo que “ em consequência do abuso, deve paralisar-se o exercício do direito da autora à pena e denegar-se a sua pretensão de pagamento das rendas vincendas após a denúncia da arrendatária”.
Voltando ao caso de que nos ocupamos:
É certo que, in casu, não estamos perante a estipulação de uma cláusula expressa da natureza da transcrita no referido Acórdão, com bem refere a recorrida nas suas alegações de recurso. Todavia, caso se entendesse - como entendeu a decisão recorrida - fruto da interpretação da cláusula 3ª, que durante o período inicial de vigência daquele (10 anos) dever-se-ia considerar como excludente a forma de cessação contratual denúncia, tal implicaria a total exigibilidade das rendas vincendas (como é pretensão da Autora e foi decidido pela sentença recorrida), pelo que o resultado final seria em tudo semelhante ao que resultava da expressa cláusula apreciada no citado Acórdão. Aliás foi esse – e não outro – o pedido formulado pela Autora: o pagamento das rendas que se venceriam até ao final do prazo mínimo do contrato.
Não está em causa considerar-se estarmos perante uma cláusula penal ou perante uma indemnização pelo incumprimento do contrato. Está antes em causa o resultado que advém de qualquer uma delas. E em qualquer uma delas – seja na indemnização pelo incumprimento contratual pela denúncia ilícita, seja pela aplicação de uma cláusula penal daquele jaez – o resultado prático é sempre o mesmo: condenação no pagamento das rendas vincendas até ao final do contrato.
O que nos leva a concluir pela ilegalidade da exclusão da possibilidade de denúncia de um contrato de arrendamento não habitacional celebrado pela extensão do prazo de 10 anos, na medida em que – mesmo não se prevendo qualquer cláusula a sancionar tal denúncia com uma indemnização correspondente ao pagamento das rendas vincendas até ao final do prazo do contrato – essa exclusão teria na prática os mesmíssimos efeito que a consagração dessa cláusula. Conduzindo a um evidente desequilíbrio de prestações ofensivo dos bons costumes, da boa fé, da ordem publica e da protecção social.
Ainda que não se decidisse no sentido da ilegalidade da cláusula que exclui a possibilidade de denúncia, sempre se chegaria à mesma conclusão pela controlo da legitimidade do exercício do direito por parte da Autora/recorrida através da aplicação da figura do abuso do direito, atenta a manifesta desproporção entre o benefício do Autor – recebimento das rendas até ao final do contrato em cumulação com a absoluta disponibilidade do locado – e o sacrifício dos Réus – pagamento das rendas sem qualquer contrapartida para a Ré Arrendatária e, no caso dos fiadores, por o arrendatário ter feito uso da denúncia.
Pelo que, em consequência desse abuso, sempre seria de paralisar o direito da Autora à pretensão de pagamento das rendas vincendas até ao final do contrato.
b.3) Da denúncia do contrato e da observância do prazo de pré-aviso
Tendo-se decidido pela ilegalidade da cláusula que excluiu a possibilidade de denúncia do contrato, resta aferir em que condições poderia a Ré /Arrendatária efectuar essa denúncia e se a mesma foi correctamente efectuada, de acordo com os critérios legais.
Temos por certo que a ilegalidade da cláusula não determina, nos termos do disposto no art.º 292.º do CC, a nulidade de todo o contrato, mas apenas a exclusão da mesma, na parte em que, ao fixar o prazo mínimo do contrato, exclui a possibilidade de denúncia antecipada.
Está assim em equação aferir qual o prazo legalmente exigível como de antecedência mínima para a efectivação de denúncia por parte do arrendatário, nos contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais, nas situações em que as partes contratantes não prevêem, pelo menos durante o prazo de duração inicial, aquela possibilidade e, consequentemente, qualquer prazo de antecedência para a sua efectivação.
Analisando o entendimento doutrinal e jurisprudencial a este respeito:
- o Acórdão da RP de 29/01/2013 – Relator: Vieira e Cunha, Processo nº. 27/11.7TBPRD.P1, disponível em www.dgsi.pt -, de cujo sumário consta que ”no caso dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais, com prazo certo, como é o caso do arrendamento dos autos, em matéria da chamada "denúncia" do contrato pelo arrendatário e na falta de estipulação das partes, aplica-se o disposto no art.º 1098º nº 3 CCiv, que rege quanto ao arrendamento para habitação, ex vi art.º 1110º nº 1”.Todavia, “tal aplicação supletiva, porém, cede em face do disposto no nº2 do art.º 1110º; assim, o prazo de denúncia pelo arrendatário previsto no nº3 do art.º 1098º é afastado pela disposição específica do nº 2 do art.º 1110º”, pelo que, “nos termos do nº 2 do art.º 1110º CCiv, desde que nada se encontre previsto no contrato, o arrendatário só pode denunciar o contrato de arrendamento não habitacional "com uma antecedência igual ou superior a um ano" sobre o termo pretendido do contrato” (sublinhado nosso).
Nesse mesmo acórdão se faz referência ao entendimento doutrinário do Professor Gravato de Morais (in Novo Regime do Arrendamento Comercial, 3.ª edição, pág. 293) que refere que se pretende, com o prazo mencionado igual ou superior a um ano, “tutelar os interesses do senhorio, que se encontra assim a coberto de uma cessação contratual num prazo breve ou escasso”.
- Acórdão da mesma RP de 04/07/2013 – Relator: Pedro Lima Costa, Processo nº. 1477/12.7TJPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt -, de cujo sumário consta “I -No contrato de arrendamento urbano para fim não habitacional em que as partes estabelecem prazo certo de duração do contrato mas não estabelecem a antecedência mínima que o arrendatário tem de respeitar quando pretende denunciar o contrato dentro daquele prazo de duração, vigora o disposto no art.º 1110 nº 2 do Código Civil, sendo aquela antecedência mínima de 1 ano em relação ao termo pretendido para o contrato”
Este último acórdão, na sua fundamentação, após citar e anuir ao entendimento exposto no acórdão antecedente referido (da mesma Relação), refere que “o silêncio das partes quanto ao prazo de duração do contrato tem resultados antagónicos nos arrendamentos para habitação e nos arrendamentos para fins não habitacionais: no primeiro caso, o art.º 1094 nº 3 do CC faz impor a duração indeterminada e no segundo caso o art.º 1110 nº 2 do CC faz impor o prazo de 10 anos. Esta divergência primária também contribui para uma interpretação integrada – ou internamente agregada – do art.º 1110 nº 2 do CC, no sentido de a efectiva estipulação do prazo de duração do contrato ser quanto baste para que se tenha por legalmente suprida a ausência de estipulação quanto à antecedência mínima que o arrendatário tem de respeitar na denúncia, valendo nesse suprimento a antecedência mínima de 1 ano.
De outra forma misturam-se detalhes que, à partida, a lei quer distinguir entre o regime do arrendamento para habitação e o regime do arrendamento para fins não habitacionais.
No entendimento que se vem defendendo, seja qual for o prazo certo que as partes fixem no contrato para fins não habitacionais, mas com silêncio sobre a antecedência mínima para a denúncia por parte do arrendatário, vale sempre o prazo mínimo de 1 ano para a antecedência de tal denúncia” (sublinhado nosso).
- em igual sentido foi o Acórdão da RE de 20/10/2016 – Relator: Tomé Ramião, Processo nº. 1384/15.1T8FAR.E1, disponível em www.dgsi.pt -, sumariado da seguinte forma: “É de acolher a orientação, por mais conforme à letra e ao espírito da lei, segundo a qual o n.º 2, do art.º 1110.º, do C. Civil, ao estabelecer a antecedência mínima de 1 ano para a denúncia, por parte do arrendatário, nos contratos de arrendamento para fins não habitacionais, é aplicável quer as partes hajam fixado expressamente prazo de duração do contrato, mas nada disseram quanto à denúncia, quer nos casos em as partes não fixaram qualquer prazo de duração do contrato.”
Nele se refere ser este o entendimento conforme com a letra e espírito da lei, “segundo a qual o n.º2 do art.º 1110.º do C. Civil, ao estabelecer a antecedência mínima de 1 ano para a denúncia por parte do arrendatário, nos contratos de arrendamento para fins não habitacionais, é aplicável quer as partes hajam fixado expressamente prazo de duração do contrato, mas nada disseram quanto à denúncia, quer nos casos em as partes não fixaram qualquer prazo de duração do contrato” (sublinhado nosso) ;
- Acórdão da RG de 30/04/2020 – Relatora: Maria dos Anjos Nogueira, Processo nº. 535/18.9T8VCT.G1, disponível em www.dgsi.pt -, em cuja fundamentação se refere “desde logo, como resulta do texto legal, a previsão do n.º 2, do art.º 1110.º do C. Civil, não abrange apenas os casos em que as partes não previram a duração do contrato de arrendamento, já que aí apenas se refere a “falta de estipulação”.
Pois, o facto é que, não obstante se estabelecer um prazo de 5 anos de duração para o contrato, a verdade é que ele é omisso quanto à sua denúncia, pelo que é de aplicar, quanto à denúncia, o prazo supletivo indicado no n.º 2, do art.º 1110.º.
Aliás, não faria sentido que o legislador fixasse esse prazo mínimo (um ano), no caso de ausência apenas para a fixação de prazo de duração do contrato, e admitisse simultaneamente a aplicação do n.º 2 (ou 3 e 5, conforme a versão aplicável) do art.º 1098.º do C. Civil, por tal conduzir a uma ilogicidade do sistema jurídico e incompreensível desigualdade de soluções jurídicas.
Neste sentido, consideramos ser de acolher a orientação perfilhada pela 1.ª instância, por mais conforme com a letra e o espírito da lei, segundo a qual o n.º 2 do art.º 1110.º do C. Civil, ao estabelecer a antecedência mínima de 1 ano para a denúncia por parte do arrendatário, nos contratos de arrendamento para fins não habitacionais, é aplicável quer as partes hajam fixado expressamente prazo de duração do contrato, mas nada disseram quanto à denúncia, quer nos casos em as partes não fixaram qualquer prazo de duração do contrato” (sublinhado nosso).
- por último, Ac. da R.L. de 14-09-2023 (e a que já referimos sobejamente supra, atentas as similitudes com os presentes autos) de cujo sumário, no ponto V, se fez constar “V - Nos contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais, nas situações em que as partes contratantes fixam expressamente o prazo de duração do contrato (ou não fixam qualquer prazo de duração do contrato), mas não prevêem qualquer antecedência mínima para a efectivação de denúncia por parte do arrendatário, é aplicável a antecedência mínima e supletiva de um ano inscrita no nº. 2, do art.º 1110º, do Cód. Civil; (…)”.
Em termos doutrinários, para além do Professor Gravato de Morais (citado no Ac. da Relação do Porto, nos termos supra) temos:
- bem como o defendido por Maria Olinda Garcia – Arrendamento Urbano Anotado, Regime Substantivo e Processual, 3ª Edição, Coimbra Editora, Maio 2014, pág. 86 -, em anotação ao referenciado art.º 1110º, mencionando expressamente que “o prazo de denúncia previsto no nº. 3 do artigo 1098º não terá aqui aplicação, por ser afastado pela disposição específica do nº. 2 do artigo 1110º”.
Aqui chegados, podemos enunciar as seguintes directrizes:
- nos contratos de arrendamento urbano para fins não habitacionais, nas situações em que as partes contratantes fixam expressamente o prazo de duração do contrato, mas não prevêem qualquer antecedência mínima para a efectivação de denúncia antecipada por parte do arrendatário, é aplicável a antecedência mínima e supletiva de um ano inscrita no nº. 2, do art.º 1110º, do Cód. Civil;
- efectivamente, prevalece, nestas situações, a regra específica prevista naquele normativo (1110º, nº. 2), inexistindo razão para aplicar os prazos previstos para a comunicação de oposição à renovação para o termo do contrato; -
- a legal menção inscrita no nº. 2, do art.º 1110º - na falta de estipulação –abrange não só a falta de estipulação da duração do contrato, como ainda a concreta imperatividade na fixação de um prazo mínimo de denúncia antecipada do contrato.
Assim, deveria a Ré Arrendatária ter observado um prazo de antecedência de 1 ano.
Com efeito, o prazo de 180 dias previsto contratualmente da cláusula 3.ª foi estabelecido por referência à possibilidade de oposição à renovação com antecedência em relação ao termo do prazo de duração inicial do contrato.
Mas o facto é que a antecedência da denúncia, relativamente ao termo contratualizado do contrato, foi de 180 dias, e não de 1 ano, conforme estabelecido no art.º 1110.º, n.º 2, do CC.
Tal inobservância do prazo de antecedência de 1 ano relativamente à data de cessação do contrato - não obstando à cessação dos contratos de arrendamento em apreço - determina, todavia, a condenação da Ré arrendatária no pagamento das rendas correspondentes ao período de pré-aviso em falta (6 meses) – cf., o nº. 6, do art.º 1098º, ex vi do nº. 1, do art.º 1110º, ambos do Cód. Civil.
Em face do exposto, mais não resta a este Tribunal da Relação que julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos Réus, o que implica a parcial revogação da sentença que se substitui por um juízo de parcial procedência do pedido deduzido pela Autora, condenando-se a Ré arrendatária e solidariamente os Réus fiadores, no pagamento das rendas correspondentes ao período do pré aviso em falta (6 meses), no valor de € 3.600,00 (três mil e seiscentos euros), correspondente aos seguintes valores: € 600,00/renda x 6 meses (Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio e Junho de 2021).
Tendo tanto Autora/Apelada como Réus/Apelantes decaído no recurso, são os mesmos responsável pelas custas na proporção do decaimento – artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil, sem prejuízo de eventual benefício de apoio judiciário.
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IV. Decisão:
Por todo o exposto, acordam os juízes desta 6.ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação dos Réus parcialmente procedente e em consequência revogar parcialmente a sentença recorrida, reduzindo a condenação solidária da Ré arrendatária e dos Réus Fiadores ao pagamento da quantia de € 3 600,00 (três mil e seiscentos euros) a que acrescem juros de mora à taxa comercial a contar da data de vencimento de cada uma das rendas, até efetivo e integral pagamento.
Custas da apelação pelas Rés/Apelantes e Autora/Apelada, na proporção do decaimento.
Registe e notifique.
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Lisboa, 06 de Fevereiro de 2024
Maria Teresa F. Mascarenhas Garcia
Anabela Calafate
Elsa Melo
_______________________________________________________ [1] Como reporta Jorge Henrique Pinto Furtado (Manual do Arrendamento Urbano; Vol. I, 4.ª ed., Almedina, 2007, p. 367), “a regra geral da legitimidade negocial para prestar arrendamento é, naturalmente, a de que estará para tal legitimado o titular do gozo do imóvel que, pelo contrário, como parte, se obriga a proporcionar à contraparte: presta-se aquilo que se tem. Assim, deterão elementarmente legitimidade negocial para prestar arrendamento o proprietário (art.º 1305 CC), o usufrutuário (art.º 1446 CC), ou o fiduciário (art.º 2290-1 CC), entre outros”.
E, conforme sublinha o referido Autor (ob. e loc. cit.), em face do disposto no artigo 1024.º, n.º 1, do CC, deterá legitimidade para prestar arrendamento, antes de mais e enquanto acto de administração ordinária, quem for administrador do imóvel a arrendar. Entre outros: o cabeça de casal da herança; os pais relativamente a bens dos filhos sob sua administração; o curador provisório ou definitivo dos bens dos ausentes; o tutor; o administrador da insolvência; o depositário judicial de bens penhorados; o mandatário; o consignatário (em semelhante linha, vd. Soares Machado e Regina Santos Pereira; Arrendamento Urbano (NRAU), 3. ª ed., Petrony, 2014, p. 27). [2] Ana Filipa Morais Antunes, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, pág. 607. [3] Cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, CC anotado, 4.ª ed., vol. I, pág. 237; Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil português, II volume, Parte Geral, 4.ª ed., 2017, pág. 873; acórdão do STJ de 20-01-2010, Revista n.º 608/09.9YFLSB, com sumário publicado em www.dgsi.pt [4] Ana Filipa Morais Antunes, obra citada, pág. 609.