DESPACHO DE RECEBIMENTO DA ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
NULIDADE
Sumário

I. Após prolação da sentença pode o tribunal reparar vícios anteriores, tal como a falta de notificação do despacho de recebimento da acusação, anulando todo o processado desde esse momento processual, ao abrigo do artigo 414.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, não se encontrando para tal efeito o seu poder jurisdicional esgotado.
II. A falta de notificação ao arguido da acusação pelo Ministério Público configura uma mera irregularidade dependente de arguição, visto esta situação ser em princípio sanável com a prolação do despacho previsto no artigo 311.º-A do Código de Processo Penal, não se beliscando as garantias básicas de defesa do arguido.
III. Já a não notificação ao arguido do despacho de recebimento da acusação, previsto naquele artigo 311.º-A, mesmo que mais à frente venha a ser notificado da data do julgamento, configura uma irregularidade que, pela sua gravidade, é de conhecimento oficioso, enquadrável no n.º 2 do artigo 123.º do Código de Processo Penal.
IV. Nesta última situação haverá que declarar nulo todo o processado após o despacho de recebimento da acusação.

Texto Integral

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I. RELATÓRIO
No Juízo de Competência Genérica de Porto Santo, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, no âmbito do processo abreviado n.º 183/23.1PAPST, o arguido AA, devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, tendo a final sido proferida sentença que o condenou:
a) Numa pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o total € 540,00 (quinhentos e quarenta euros); e
b) Em pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 4 (quatro) meses e 15 (quinze) dias.
Inconformado com esta decisão veio o arguido interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
A. Após a prolação de despacho que admite o recurso e fixa os seus efeitos, está esgotado o poder jurisdicional do Tribunal de Primeira Instância.
B. O despacho de 14-03-2024, (Ref.ª CITIUS 55013070) apreciou o mérito do recurso, quanto à falta de notificação ao arguido do despacho de acusação e declarou nula a sentença por vicio de nulidade insanável. Este despacho, porque proferido após o esgotamento do poder jurisdicional, está ferido de inexistência jurídica.
C. O entendimento que, em processo penal, proferida sentença; interposto recurso e admitido o mesmo por despacho, pode ainda assim o Tribunal recorrido, em despacho posterior declarar nula a sentença por vício de nulidade insanável, é inconstitucional por violação dos princípios da segurança jurídica, da confiança e do processo equitativo, e das garantias de defesa consagradas nos artigos 2.º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa
D. O arguido não foi notificado do despacho de acusação, bem como dos despachos judiciais posteriores, porque os mesmos foram remetidos para morada diversa da constante no TIR.
E. A falta de notificação do despacho de acusação constitui nulidade insanável por violar de forma grosseira as mais elementares garantias de defesa como: conhecer os factos que lhe são imputados bem como o crime de que vem acusado.
F. O entendimento que: a falta de notificação ao arguido do despacho de acusação, não estando prevista nos artigos 119.º e 120.º do Código de Processo Penal, não constitui nulidade, insanável ou dependente de arguição, mas simples irregularidade, nos termos do artigo 123.º do mesmo Código, é inconstitucional por violar as garantias de defesa plasmadas no art.º 32 da CRP e o artigo 48º nº 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
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O recurso foi admitido por despacho proferido a 9 de Outubro de 2024, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Pelo Ministério Público foi apresentada resposta, na qual, de forma breve e sintética, pugna pela manutenção da decisão nos seus precisos termos.
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Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa, pela Procuradora-Geral Adjunta foi lavrado parecer, no qual defende a improcedência do recurso, mas sustentando a existência de nulidade insanável, a par de irregularidade de conhecimento oficioso, que deverão ser oficiosamente declaradas.
Cumprido o preceituado no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, nada mais foi alegado.
Efectuado o exame preliminar verifica-se ser de proferir, de imediato, decisão sumária, com fundamento nos artigos 417, n.º 6 al. b) e 420.º, n.º 1, al. a), ambos do Código de Processo Penal.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
São os seguintes os factos emergentes da tramitação processual e que relevam para a apreciação deste recurso:
1. No dia 22 de Novembro de 2023 teve lugar audiência de julgamento na ausência do arguido e aqui recorrente, bem como do seu mandatário.
2. Nesse acto foi proferida sentença que condenou o arguido pelo crime pelo qual estava acusado.
3. Notificado dessa decisão, em 19/01/2024, o arguido veio recorrer, invocando nulidade decorrente de não ter sido notificado do despacho de acusação, bem como dos despachos judiciais posteriores, porque os mesmos foram remetidos para morada diversa da constante no TIR.
4. Este recurso foi admitido por despacho de 01/02/2024, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
5. Seguidamente, em 14/03/2024, pela Mma. Juiz do processo foi proferido o seguinte despacho, catalogado como de «marcação de julgamento»:
Foi interposto recurso de Apelação para o T.R.L. pelo arguido AA da sentença proferida a fls. 45 a 49, que o condenou como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), artigo 292.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na pena de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco) euros, o que perfaz o montante global de €425,00.
Apresenta ele as seguintes conclusões:
- O arguido não foi notificado do despacho de acusação, bem como dos despachos judiciais posteriores, porque os mesmos foram remetidos para morada diversa da constante do TIR;
- A falta de notificação do despacho de acusação constitui nulidade insanável por violar de forma grosseira as mais elementares garantias de defesa como: conhecer os factos que lhe são imputados bem como o crime de que vem acusado.
- O entendimento que: a falta de notificação ao arguido do despacho de acusação, não estando prevista nos artigos 119.º e 120.º, do Código de Processo Penal, não constitui nulidade, insanável ou dependente de arguição, mas simples irregularidade, nos termos do artigo 123.º, do mesmo Código, é inconstitucional por violar as garantias de defesa plasmadas no artigo 32.º, da CRP e o artigo 48.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
- Na sequência do já exposto, o arguido não foi notificado da data para julgamento, a ausência do arguido no julgamento por falta ou irregularidade da notificação, constitui nulidade insanável nos termos do artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal, nulidade que afeta a audiência de julgamento e a sentença proferida nos autos.
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A digna magistrada do Ministério Público respondeu pugnando pela procedência parcial do recurso, pois que se verifica a invocada nulidade do despacho para apresentação de contestação e do despacho que designa dia para audiência de discussão e julgamento. Nulidade essa que considera afectar o despacho que designou dia para julgamento, bem como todos os actos subsequentes.
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Nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2022: De acordo com o princípio da tipicidade consagrado no art.º 118.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a violação ou inobservância das disposições da lei de processo só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que – n.º 2 da norma –, nos casos em que a lei não comina a nulidade, o acto ilegal é irregular.
As nulidades insanáveis são por definição, insusceptíveis de reparação, podendo ser conhecidas a todo o tempo na pendência do procedimento, oficiosamente ou a pedido. Não podem, porém, ser declaradas após a formação de caso julgado sobre a decisão final que, neste aspecto, actua como forma de sanação. A regra geral é a de que as nulidades relativas e as irregularidades ficam sanadas se não forem acusadas nos prazos legais de arguição. Tais prazos quanto às nulidades, são o geral de 10 dias previsto no art.º 105.º, n.º 1 e os específicos previstos nos arts. 120.º, n.º 3. Podendo a sanação ocorrer, ainda, por via da assunção das atitudes tipificadas no art.º 121º. As irregularidades, haverão de ser arguidas no próprio acto em que tiveram ocorrido, isso estando os interessados presentes. Não tendo assistido ao acto, devem os interessados suscitá-las «nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado» – art.º 123.º n.º 1 do mesmo diploma.
Da leitura do art.º 119º do Código de Processo Penal, logo se extrai que a notificação da acusação a um arguido para uma morada diversa daquela que o mesmo havia indicado no TIR não integra qualquer uma das nulidades ali expressamente previstas, mormente a da alínea c). Tal como refere o arguido, o art.º 119º c) do Código de Processo Penal comina de nulidade insanável “a ausência do arguido ou do seu defensor nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência”. No entanto, diversamente do que ocorre, por exemplo, nos casos em que a audiência de julgamento figura como uma das situações em que é obrigatória a comparência do arguido (cfr. 332º nº 1 e 64º nº 3 a), ambos do Código de Processo Penal), já no que respeita ao acto de notificação da acusação o mesmo para ser válido, não exige a presença ou comparência do arguido. A validade do acto de notificação da acusação não depende, nem pressupõe a presença do arguido.
Na verdade, não acontece no Código de Processo Penal qualquer norma que comine com o vício da nulidade insanável (nem sequer com o vício da nulidade sanável ou dependente de arguição) a situação de um arguido ser notificado da acusação para uma morada diversa daquela que no TIR havia indicado para o efeito de receber notificações. Por isso, apesar da notificação da acusação ser efectuada para uma morada diversa daquela que no TIR havia sido indicada para efeitos de notificações, jamais se está perante qualquer nulidade insanável, nem sequer se enquadra no leque das nulidades relativas ou dependentes de arguição a que alude o art.º 120º do Código de Processo Penal, de onde se pode concluir que estaremos somente perante o vício da mera irregularidade.
Tendo em consideração que o arguido invoca a inconstitucionalidade de assim se qualificar esse vício, cumpre referir que “a existência de uma fase de instrução subordinada ao princípio do contraditório é, decerto, uma garantia de defesa, na medida em que permite ao arguido, ainda antes do julgamento, corrigir, questionar e até contrariar a prova indiciária que fundamentou a acusação, e evitar assim que haja de ser sujeito a um julgamento por factos que não praticou. Ora, segundo o nº 1, do artigo 32º, da CRP, o processo penal tem de assegurar todas as garantias de defesa.
Todavia, esta disposição constitucional, como tantas outras em matéria processual penal, tem de ser interpretada à luz do princípio da proporcionalidade. Assim, quando se fala em “garantias de defesa” há-de se entender as garantias necessárias e adequadas a um eficaz exercício do direito de defesa. (Ac. T. C de 02/04/92).
Como seguramente o arguido não desconhece, “a Constituição não estabelece qualquer direito aos cidadãos a não serem submetidos a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação de existência de razões que indiciem a sua presumível condenação, pelo que o simples facto de se ser submetido a julgamento não pode constituir, só por si, no nosso ordenamento jurídico, um atentado de bom nome e reputação” (Ac. T. C, de 28/06/94).
Do que deixámos exposto resulta que a qualificação do vício como mera irregularidade, mostra-se consentânea com a posição do Tribunal Constitucional e por isso conforme a Constituição, pelo que não se verifica a inconstitucionalidade que arguiu que assim se desatende.
O regime a aplicar assim a essa irregularidade que segundo o art.º 123.º só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tivessem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele a que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado. (sublinhado nosso)
No nosso caso, e no que respeita à falta de notificação do despacho de acusação, compulsados os autos verifico que AA prestou TIR a fls. 7 dos autos tendo indicado como morada – ... que é também a morada constante da acusação.
No entanto, a notificação por via postal simples com PD do despacho de acusação foi enviada para a morada ... e assim, onde devia constar CCI 401, ficou a constar o CCI 411.
Ora, como vimos a falta de notificação do despacho de acusação constitui mera irregularidade processual, que nos termos do artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, é dependente de arguição.
Verifico então que no dia 29 de Setembro de 2023, conforme referência 5429888, o arguido veio juntar aos autos procuração forense a favor do seu Ilustre Mandatário Dr. BB, pelo que teve intervenção nessa data no processo, recordemos o texto acima transcrito na parte que ora nos interessa “(…). ou intervindo em algum acto nele praticado» – art.º 123.º n.º 1 do Código de Processo Penal.
Assim, não tendo a irregularidade sido arguida nos três dias após a intervenção nos autos, isto é, no prazo preconizado pela lei e sendo embora certo que pode ser reparada oficiosamente aquela irregularidade que possa afectar o valor do acto praticado no momento em que dela se tomar conhecimento, pressupõe tal reparação obviamente, que ela não ainda esteja sanada, sob risco de admitindo-se a reparação de irregularidades já sanadas, se distorcer de forma insustentável o sistema, pois que se teria de admitir que relativamente ao menos solene dos vícios formais, se aplicaria um regime de reparação semelhante ao do principal vício formal (nulidades insanáveis), o que seria sistemicamente insuportável.
Pelo exposto, a omissão consubstanciada na mera irregularidade da falta de notificação do despacho de acusação ao arguido, mostra-se sanada por não ter sido arguida em seu devido tempo, pelo que nada tenho a reparar.
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Quanto à falta de notificação do arguido do despacho de acusação, do despacho que designa prazo para exercer o contraditório e do despacho que designa dia para a realização da audiência de discussão e julgamento.
Verifico que as notificações em causa foram remetidas para morada diversa da que consta do TIR prestado a fls. 7 dos autos, pois que o foram para a ..., sendo que, tal morada não é a mesma que consta do TIR prestado.
Nos termos do artigo 332.º, n.º 1, do Código de Processo Penal: “é obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 333.º e nos n.ºs 1 e 2, do artigo 334.º”.
O arguido tem o direito de estar presente na audiência de julgamento, sendo a sua presença obrigatória, com as excepções em cima mencionadas, sendo que para o efeito deverá ser devidamente/regularmente notificado.
Por conseguinte, o arguido não foi devidamente notificado do despacho para deduzir contestação e do despacho que designa dia para realização de audiência de julgamento.
Sob a epígrafe “Nulidades insanáveis”, estipula o artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal: constitui nulidade insanável, que deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, a ausência do arguido, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência.
Como é líquido o arguido foi julgado na ausência, conforme acta de julgamento de fls. 45 a 49, não tendo comparecido em juízo, nem participado nos autos desde o dia 29.09.2023.
De acordo com o artigo 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tal nulidade torna inválido o acto em que se verificar, bem como os que dele dependerem e aquela puder afectar.
Assim e decidindo,
Declaro verificada a invocada nulidade insanável do despacho para apresentação de contestação e do despacho que designa dia para audiência de discussão e julgamento, que afecta todos os actos subsequentes, pelo que decido proceder à sua reparação e em consequência:
Declaro nulo todo o processado a partir do recebimento da acusação, incluindo o julgamento e a sentença proferida.
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Passa-se assim a proferir despacho para apresentação de contestação e do despacho que designa dia para audiência de discussão e julgamento.
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DESPACHO A QUE ALUDEM OS ARTS. 311º, 311º-A, 311-B DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Autuação correcta como processo especial ABREVIADO da competência do TRIBUNAL SINGULAR.
O tribunal é competente.
Não se verificam nulidades nem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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Recebo a acusação deduzida nos autos pelo Digno Magistrado do Ministério Público contra o arguido AA, com os sinais dos autos, pelos factos que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais e que imputam àquele em autoria material e na forma consumada (artigos 13.º, 14.º, n.º 1, 26.º, todos do Código Penal):
- um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto pelo artigo 292º, n.º 1 e 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal, punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
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Medidas de coacção:
Nada a ordenar (Termo de Identidade e Residência prestado a fls. 7)
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Para realização da audiência de julgamento, que terá lugar neste Juízo de Competência Genérica de Porto Santo, no Palácio da Justiça, designo o próximo dia:
- 17 de Abril de 2024, pelas 10h.
Em caso de adiamento ou para audição do arguido (artigo 312º, nº 2 do Código de Processo Penal):
-18 de Abril de 2024, pelas 10h.
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Requisite CRC actualizado do arguido, com antecedência máxima de 10 dias sobre a primeira data agora designada.
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Notifique (artigo 313º, nº1 e 311º-B, do Código de processo Penal):
- o arguido, nos termos do artigo 113º, n.º 1, als. c), e 3, do Código de Processo Penal.
- as testemunhas, nos termos do artigo 113º, n.º 1, als. a), do Código de Processo Penal, com a cominação prevista no artigo 116º do mesmo diploma
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Porto Santo, 14.03.24
6. A 18/03/2024 foram expedidas duas notificações ao arguido: uma que continha cópia dos despachos proferidos no dia 14/03/2024 e supra transcritos, bem como de cópia do despacho de acusação, notificações essas expedidas por via postal simples com prova de depósito com a referência 55069473; outra dos dias designadas para audiência de discussão e julgamento, igualmente mediante notificação por via postal simples com prova de depósito.
7. Foi expedida ao mandatário do arguido, a 18/03/2024, notificação nos termos e para os efeitos previstos no artigo 313.º do Código de Processo Penal, através da referência 55069594, com cópia do despacho de acusação, bem como dos despachos proferidos a 14/03/2024.
8. A 17/04/2024, data que havia sido designada para a realização de julgamento, foi aberta conclusão à Mma. juiz com a seguinte informação:
CONCLUSÃO - 17-04-2024 - com informação a V.Ex.ª de que, à hora designada para a audiência de julgamento, ao efetuar a chamada dos intervenientes processuais, verifiquei não estarem presentes o arguido e o seu Ilustre Mandatário. Apenas se encontravam presentes os Agentes da PSP.
Estabelecido contacto para Ilustre Mandatário, o mesmo não foi possível.
Contatado telefonicamente o arguido, pelo mesmo foi dito não ter recebido qualquer notificação para audiência de julgamento.
Face ao teor desta informação, compulsados os autos verifiquei que a prova de depósito que comprova a notificação do arguido não se encontra junta aos autos, assim como, por lapso o Ilustre Mandatário do arguido foi notificado para dia 18-04-2024, cfr ref.ª 55069547 de 18-03-2024, pelo que levo consideração a V.Ex.ª que ordene o que tiver por conveniente.
9. Em face desta informação, em 17/04/2024, foi proferido despacho com o seguinte teor:
Face ao teor da informação que antecede, cujo lapso ali assinalado (errada notificação do Il mandatário do arguido) relevo uma vez que também o arguido não se encontra ainda notificado, dou sem efeito a audiência de julgamento.
Como novas datas designo:
1ª data: 15 de Maio 2024, pelas 9h30m
2ª data: 16 de Maio 2024, pelas 9h30m
Notifique.
10. Em 17/04/2024 foi expedida, através de notificação por via postal simples com prova de depósito com a referência 55210156, notificação ao arguido deste despacho, a qual era acompanhada de cópia da conclusão com a informação acima transcrita, bem como do despacho a designar nova data, igualmente acima transcrito.
11. Ao mandatário do arguido foi igualmente expedido, em 17/04/2024, ofício notificatório, o qual continha a conclusão com informação acima transcrita, bem como o despacho a designar nova data, igualmente acima transcrito.
12. Nesse mesmo dia o Tribunal apercebeu-se de lapso na marcação da nova data de julgamento, tendo proferido novo despacho no qual se designava para julgamento o dia 9 de Maio de 2024 às 09.30 horas.
13. Foi expedido ofício notificatório ao arguido, nesse mesmo dia, através de notificação por via postal simples com prova de depósito, documento com a referência 55213822, e expedida notificação ao seu mandatário através de ofício com a referência 55213815.
14. Foi a 07/05/2024 junta aos autos a prova de depósito respeitante à notificação feita com a referência 55213822.
15. A 09/05/2024 teve lugar audiência de discussão e julgamento, onde estiveram ausentes o arguido e o seu mandatário, tendo sido então designado defensor oficioso ao primeiro e determinada a realização da diligência.
16. Mais nenhuma prova de depósito consta dos autos.
17. Realizado este julgamento, foi proferida sentença para acta, que culminou com o seguinte dispositivo:
Julgo procedente, por provada, a acusação e consequentemente decido condenar o arguido AA:
- pela prática, a 16-08-2023, em autoria material e na forma consumada (cf. Os artigos 10.ᵒ, n.ᵒ 1, 13.ᵒ, 14.ᵒ, n.ᵒ 1, e 26.ᵒ, primeira parte, do Código Penal), de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido, pelos artigos 69.ᵒ, n.ᵒ 1, alínea a), e 292.ᵒ, n.ᵒ 1, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante total de €540,00 (quinhentos e quarenta euros);
- condenar o arguido na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 4 (quatro) meses e 15 (quinze) dias, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal;
- condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2(duas) UC'S, e nos demais encargos sem prejuízo da eventual concessão de apoio judiciário.
III. FUNDAMENTOS DO RECURSO
Questões a decidir no recurso:
Constitui jurisprudência assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417.º do Código de Processo Penal), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal1, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).2
A exigência de conclusões nos recursos, quer no âmbito penal quer no contra-ordenacional, tem em vista a determinação precisa e clara por parte dos sujeitos processuais dos aspectos que, por considerados incorrectamente julgados, pretendem ver reapreciados, de modo a permitir ao Tribunal conhecer de forma sintética, mas precisa as razões do pedido que lhe é dirigido.
ALBERTO DOS REIS, as conclusões são a enunciação resumida dos fundamentos do recurso, «as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação»3, sendo elas que delimitam o objecto do recurso, como acima se referiu.
No recurso em apreciação, tendo em consideração as conclusões delimitadoras das pretensões do recorrente, cumpre apreciar:
I. Extinção do poder jurisdicional após admissão do primeiro recurso;
II. Nulidade decorrente da falta de notificação ao arguido do despacho de acusação;
III. Nulidade decorrente da falta de notificação do despacho de recebimento da acusação e do direito a poder contestar.
I. Alega o recorrente na sua segunda conclusão:
O despacho de 14-03-2024, (Ref.ª CITIUS 55013070) apreciou o mérito do recurso, quanto à falta de notificação ao arguido do despacho de acusação e declarou nula a sentença por vicio de nulidade insanável. Este despacho, porque proferido após o esgotamento do poder jurisdicional, está ferido de inexistência jurídica.
Com efeito, e já após ter admitido o recurso do arguido, na sequência da notificação da sentença, no qual aquele invocava nulidade decorrente da não notificação da acusação, o Tribunal de primeira instância proferiu despacho a conhecer daquela arguição e, concordando parcialmente com o recorrente, declarou a nulidade de todo o processado a partir do recebimento da acusação, incluindo o julgamento e a sentença proferida.
Defende por isso o recorrente que este despacho «está irremediavelmente ferido de inexistência jurídica», porque proferido após o esgotamento do poder jurisdicional, pois não se enquadra em nenhuma das situações previstas no artigo 380.º do Código de Processo Penal para a correcção da sentença.
Preliminarmente diremos que não faz sentido convocar aqui esta norma, posto que o Tribunal a quo não procedeu à correcção da sua sentença, antes declarou nulo todo o processado, onde se inclui aquela decisão.
Ora, o despacho ora em causa, e como bem afirma o Ministério Público no seu Parecer, foi proferido ao abrigo da faculdade conferida pelo n.º 4 do artigo 414.º do Código de Processo Penal, que assim reza:
Se o recurso não for interposto de decisão que conheça, a final, do objecto do processo, o tribunal pode, antes de ordenar a remessa do processo ao tribunal superior, sustentar ou reparar aquela decisão.
Foi precisamente isto que a Mma. Juiz da primeira instância fez: após admissão do recurso, ao invés de o mandar subir, apercebendo-se da nulidade, proferiu despacho a reparar a mesma, declarando nulo todo o processado após a ocorrência da falta.
Não assiste assim razão ao arguido neste primeiro fundamento recursório.
II. De seguida invoca o recorrente a verificação de nulidade insanável decorrente da não notificação ao mesmo do despacho de acusação.
Não lhe assiste razão.
As nulidades que a lei reputa de insanáveis são apenas aquelas tipificadas, nomeadamente as constantes do artigo 119.º do Código de Processo Penal. Delas não consta a falta de notificação ao arguido da acusação.
Dos autos resulta evidente que o arguido nunca chegou a ser notificado da acusação contra si deduzida, ao contrário do que deveria ter sucedido, se não vejamos.
O despacho do Ministério Público de acusação deve ser notificado ao arguido, como preceitua o n.º 5 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Mas a falta deste acto não nos conduz a qualquer nulidade, mas antes a uma mera irregularidade. Ora, esta invalidade vem disciplinada no artigo 123.º do Código de Processo Penal:
1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.
Não desconhecendo existir jurisprudência, porventura maioritária, que enquadra esta irregularidade naquele n.º 2, reputando-a de conhecimento oficioso, aderimos àqueloutra que entende ser antes subsumível no n.º 1. Com efeito, como se decidiu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa, de 26/11/20194, «[a]contece que a falta de notificação da acusação ao arguido não afecta as suas garantias de defesa, já que, chegado o processo à fase de julgamento, e tendo o Tribunal conhecimento do paradeiro do arguido, será o mesmo notificado da acusação — podendo então requerer instrução, para o que disporá do prazo legal normal estabelecido no art.º 287º n.º 1 CPP.
«Estamos, assim, perante uma irregularidade com previsão no n.° 1 do art.º 123º do Cód. Proc. Penal, e não no n.º 2. Desta forma, a falta de notificação da acusação do Ministério Público ao arguido constitui uma irregularidade que tem de ser arguida pelo interessado, no caso o arguido, no prazo de 3 dias, não sendo de conhecimento oficioso (neste sentido, cfr. o acórdão do TRE, de 14.04.2009, in CJ XXXIV, tomo II, p. 294)».
Somos em crer que o cerne da questão, quanto à inclusão deste vício no n.º 1 ou no n.º 2 daquele preceito, está no potencial prejuízo para as garantias de defesa do arguido. Ora, seguindo-se àquele momento processual o despacho de recebimento de acusação, altura em que o arguido poderá além do mais arguir esta irregularidade e, por outro lado, se assim o entender, requerer a abertura da instrução, ficam salvaguardados todos os seus direitos de defesa.
Mas mais. Ainda que se entendesse ficar precludido o direito a requerer a instrução do processo, face à não arguição tempestiva da irregularidade, isso não implicaria uma diminuição das garantias de defesa. Convocamos aqui a jurisprudência do Tribunal Constitucional segundo a qual o n.º 1, do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa – «o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso» – tem de ser interpretado à luz do princípio da proporcionalidade. «Assim, quando se fala em “garantias de defesa” há-de se entender as garantias necessárias e adequadas a um eficaz exercício do direito de defesa»5.
Como é bom de ver, esta falha no processo foi apenas arguida pelo recorrente em sede de recurso, portanto muito depois de decorridos aqueles 3 dias, que na pior das hipóteses se teriam de contar a partir da sua notificação da sentença.
III. Invoca o Ministério Público, no seu Parecer, a existência de nulidade emergente da não notificação ao arguido do despacho de recebimento da acusação e do direito que tinha de apresentar contestação à acusação.
Apesar deste não ser fundamento invocado pelo arguido no seu recurso, estando em causa nulidade de conhecimento oficioso, pode e deve o tribunal ad quem dela conhecer (cfr. artigo 410.º, n.º 3 do Código de Processo Penal).
Teremos agora de nos ater à marcha do processo após a prolação do despacho de 14/03/2024, que, declarando a nulidade de todo o anterior processado, ordenou a notificação ao arguido do despacho de recebimento da acusação e de que dispunha de prazo certo para, querendo, a contestar e arrolar testemunhas.
Do processo não consta que o arguido tenha sido validamente notificado, desde logo porque não se mostra junta qualquer prova da sua notificação (seja por contacto pessoal, seja por carta registada com prova de depósito deixada na caixa de correio correspondente à morada do TIR).
Ou seja, e por outras palavras, não consta do processo que alguma vez tenha sido comunicada ao arguido o teor daquilo de que estava acusado, bem como dos direitos de defesa que lhe assistiam: nunca chegou a ser notificado da acusação propriamente dita; tampouco existe prova de que tenha sido notificado do despacho de recebimento da acusação, proferido em 14/03/2024.
Por outro lado, tendo sido, e bem, declarado nulo todo o processado a partir do recebimento da acusação (incluindo este), nunca a falta referida se poderia ter como sanada com o recebimento da notificação da primeira sentença.
Da conjugação dos n.ºs 3 e 10 do artigo 113.º do Código de Processo Penal resulta que o arguido deveria ter sido notificado, através de carta simples com prova de depósito, da acusação, ou pelo menos do despacho de recebimento daquela, momento em que tomaria conhecimento da primeira, bem como do direito a contestar o libelo.
Como já foi decidido por este Tribunal6:
(…)
II. O arguido desconhece os factos pelos quais foi acusado. A falta de notificação constitui uma irregularidade que o Juiz do tribunal a quo pode conhecer oficiosamente ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 123.º do CPP na medida em que tal omissão pode vir a afectar a validade de todos os actos processuais posteriores e não se mostra sanada.
III. O recebimento da acusação no pressuposto de que foi devidamente notificada e a designação de data para julgamento com envio, mais uma vez, de carta simples para a morada do TIR, redundaria, como aconteceu, na realização de uma audiência à margem do arguido, sem culpa deste. Neste caso, estamos perante uma nulidade insanável sendo declarado nulo o julgamento e a sentença, se a houver.
IV. Começando por sanar a irregularidade, há que determinar a notificação (nos termos legais) da acusação e seguindo o processo em função do que for requerido.
Com efeito, estamos perante uma falha que afecta direitos fundamentais do arguido, tais quais sejam aqueles garantidos pelo artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa – direito a um processo justo e a poder defender-se.
Porque trata de questão exactamente igual àquela sub judice, transcrevemos aqui parte da fundamentação expendida naquele mencionado aresto (ainda que não aderindo, como no ponto anterior deixamos expresso, à tese de qualificação da irregularidade da não notificação da acusação como sendo de conhecimento oficioso):
Neste caso em concreto, parece-nos que a questão da competência para a notificação está claramente prejudicada, uma vez que a acusação foi recebida, tendo havido julgamento e Acórdão.
Em suma, quer considerando uma nulidade, quer considerando uma irregularidade - falta de notificação da acusação ao abrigo do disposto no art.º 123º nº 2 do CPP (nesta última hipótese esta irregularidade teria/devia ter sido conhecida pelo juiz que recebeu a acusação e designou data para julgamento) - o resultado final acabará por ser idêntico.
Se consideramos existir uma nulidade insanável a questão levantada no recurso termina por aqui, julgando-se o mesmo procedente e declarando nulo todo o processo que ocorreu após a prática daquele acto, incluindo julgamento e Acórdão.
A consideramos que se trata de uma irregularidade e que a mesma não foi suprida quando os autos foram sujeitos à apreciação do juiz para designar data para julgamento, teremos um efeito “bola de neve” na medida em que tal omissão vai a afectar a validade de todos os actos processuais posteriores.
O recebimento da acusação no pressuposto de que foi devidamente notificada e a designação de data para julgamento com envio, mais uma vez, de carta simples para a morada do TIR, redundaria, como aconteceu, na realização de uma audiência à margem do arguido, sem culpa deste.
Tal significava que haveria uma nulidade insanável – art.º 119º al. c) do CPP – que, tal tsunami, afectaria todos os actos subsequentes a essa mesma notificação.
Aqui chegados resta concluir, acompanhando o Parecer lavrado pelo Ministério Público junto deste Tribunal da Relação (na parte em que sustenta a verificação da nulidade insanável).
Não obstante o recurso improceder nos fundamentos invocados pelo arguido, deverá ser declarada a supra identificada invalidade, declarando-se nulo todo o processado desde o despacho de recebimento da acusação.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em:
a) Declarar nulo todo o processado a partir do recebimento da acusação, incluindo o julgamento e a sentença;
b) Determinar seja prolatado novo despacho de recebimento da acusação, o arguido devidamente notificado do mesmo, seguindo-se os regulares termos do processo.
Sem custas.
Notifique.
*
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2025
Diogo Coelho de Sousa Leitão
Manuela Trocado
Ana Marisa Arnêdo (vencida conforme voto infra)

Declaração de voto de vencida
Em abreviada síntese, pacificamente, o recurso versa sobre a falta de notificação do despacho de acusação ao arguido/recorrente.
Na perspectiva que fez vencimento, e que não perfilhamos, tal omissão consubstancia uma irregularidade que, não tendo sido atempadamente arguida, sanou (assim ponto II).
Com efeito, sem quaisquer reservas, acompanhamos a jurisprudência maioritária que propugna que a falta de notificação do despacho de acusação afecta, indelevelmente, os direitos fundamentais do arguido e, por isso, é uma irregularidade de conhecimento oficioso7.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 650/12.2PBFAR-A.E1, in www.dgsi.pt, «O que se discute é que o Ministério Público não notificou o conteúdo da acusação ao arguido. Tão só.
E para isso também serve o artigo 311º do Código de Processo Penal na sua vertente de saneamento do processo. Porque o artigo não limita o seu papel ao possível controlo dos defeitos manifestos da acusação em termos substanciais, nem ao conhecimento de uma precisa questão processual - a al. b) do n. 2 – também, e com prioridade, a conhecer das nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e que possa desde logo conhecer.
E a inexistência de notificação da acusação é uma questão prévia que obsta a conhecer de mérito e que o juiz está legitimado a conhecer no momento do artigo 311º do Código de Processo Penal.
Só faltava que o descarado desrespeito por um direito constitucional e convencional fosse de conhecimento vedado ao juiz no momento em que ele deve conhecer de questões prévias e incidentais.
E, vendo o juiz que a notificação da acusação não existe, tem que constatar um vício processual de grande relevo, na medida em que essa notificação é uma exigência processual com bastos aspectos substantivos.
Esse vício processual tem importantes reflexos substantivos – não é uma mera questão processual – já que briga com o direito a conhecer os factos de que se é acusado, a saber qual o objecto do processo e o âmbito do julgamento a que poderá ser submetido.
(…) Porque aqui impõe-se não olvidar ou menosprezar outros artigos, como os arts. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 32º da Constituição da República Portuguesa e outros, muitos outros do Código de Processo Penal e os princípios da economia e celeridade processuais.
Desde logo que o Código de Processo Penal muito claramente determina que o processo só prosseguirá para a fase seguinte – de julgamento – se “os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes” – artigo 283º, n. 5, segunda parte, do Código de Processo Penal.
E isto tem ligação com o regulado nos artigos 332º, n.º 1, 335º e 336º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
E a previsão do n. 3 do artigo 336º do Código de Processo Penal é excepcional, no que implica de um retrocesso à fase anterior do processo, plenamente justificada pelas dificuldades de notificação.
O que se não pode é erigir o excepcional em normal, considerando que o processo deve prosseguir para a fase seguinte quando (em termos gerais e abstractos) proceder à notificação – face à profusão de casos de que se dá conta - é um “incómodo”, uma questão estatística, de “personalidade” ou outra.
(…) E existe uma diferença de posição do arguido quando recebe a notificação da acusação logo após a dedução da acusação, de uma outra situação em que o arguido só dela sabe quando o julgamento está marcado.
Não é indiferente a fase do processo em que o arguido é notificado da acusação.
(…) Pode concretizar-se com facilidade para o arguido que sabe ou tem facilidade de contratar quem saiba. Não para o comum cidadão que não sabe e/ou não tem facilidade de contratar quem saiba em tempo útil. E que tenderá a considerar que a marcação do julgamento é uma realidade inultrapassável».
Ana Marisa Arnêdo
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1. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, Diário da República – I Série, de 28/12/1995.
2. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/01/2015 (Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5.ª Secção).
3. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, 1981, pág. 359.
4. https://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_main.php; no mesmo sentido, e entre outros, vide Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 06/02/2017, Proc. 540/14.4GCBRG.G1, do Tribunal da Relação de Évora, de 06/11/2012, Proc. 2592/08.7PAPTM.E1, do Tribunal da Relação do Porto, de 11/04/2019, Proc. 96/17.6SGPRT.P1 (todos acessíveis em www.dgsi.pt).
5. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 13/92, de 02/04/92 (https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/#listagem).
6. Acórdão de 23/02/2023, proferido no Proc. n.º 1837/11.0GACSC.L2-9 (www.dgsi.pt).
7. Aliás, essa é, inequivocamente, a posição sustentada no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/2/2023, processo n.º 1837/11.0GACSC.L2-9, in www.dgsi.pt, paradoxalmente citado na parte III.