IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRESSUPOSTOS
DEFEITOS NA OBRA
Sumário

I – Se o recorrente não especifica, designadamente nas conclusões, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, não cumpre o ónus previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC;
II – Se o apelante também não indica, seja na motivação ou nas conclusões das alegações, a decisão que entende dever ser proferida sobre as questões de facto relativamente às quais manifesta discordância, incumpre o ónus previsto na alínea c) do n.º 1 do citado preceito;
III - Verificada a falta de expressa impugnação da decisão de facto e perante o incumprimento dos indicados ónus, impõe-se rejeitar a apreciação da argumentação do apelante, na parte em que põe em causa a decisão de facto;
IV – Se o apelante não especifica, nas conclusões ou no corpo da alegação, qualquer argumento, jurídico ou fáctico, que ponha em causa a decisão recorrida, na parte relativa ao segmento condenatório que impugna na apelação não indicando os motivos pelos quais considera incorretamente julgado o litígio, mostra-se o recurso nesta parte manifestamente infundado, o que prejudica a apreciação da solução preconizada pelo recorrente.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 299/22.1T8ABF.E1
Juízo Local Cível de Albufeira
Tribunal Judicial da Comarca de Faro

Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

(…) intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra (…), pedindo a condenação do réu ao pagamento da quantia de € 9.499,12.
A fundamentar a pretensão, a autora alega que, no âmbito da remodelação de uma casa de banho da sua residência, acordou com o réu na aplicação, por este, de microcimento nesse compartimento, mediante o pagamento do montante correspondente aos serviços realizados, tendo pago ao réu o montante de € 450,00; acrescenta que, terminados os trabalhos, detetou os defeitos e estragos que elenca, os quais denunciou ao réu, que se comprometeu a repará-los, o que não efetuou, vindo posteriormente a recusar a realização de tal reparação, como tudo melhor consta da petição inicial.
Citado, o réu contestou, defendendo-se por exceção – arguindo a caducidade do direito invocado pela autora, com fundamento na falta da tempestiva denúncia dos defeitos – e por impugnação.
Notificada para o efeito, a autora apresentou articulado no qual se pronunciou sobre a matéria da exceção arguida.
Foi realizada audiência prévia, na qual se proferiu despacho saneador e se fixou o valor à causa, após o que se identificou o objeto do litígio e se procedeu à enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença, na qual se decidiu o seguinte:
Pelo exposto, julgo improcedente a exceção de caducidade e a ação parcialmente procedente e, em consequência:
a) condeno o réu (…) a pagar à autora (…) a quantia que vier a ser liquidada, correspondente ao valor necessário para reparação dos danos provocados pelo réu na casa de banho do autor;
b) absolvo o réu do pagamento da quantia peticionada a título de montantes pagos por material e mão de obra;
c) condeno autora e réu nas custas da presente ação, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 15% para a autora e 85% para o réu.
Registe e notifique.

Inconformado, o réu interpôs recurso desta sentença, pugnando pela revogação do respetivo segmento condenatório e prolação de decisão que o absolva do pedido formulado ou, subsidiariamente, o condene apenas a fazer a limpeza pós-obra, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. O réu não consegue alcançar o teor desta decisão a qual foi condenado.
2. Fica o réu em uma situação muito frágil quanto ao que a autora pode apresentar em sede de execução.
3. Não pode concordar com o teor desta decisão ao qual o condenou o réu (…) a pagar à autora (…) a quantia que vier a ser liquidada, correspondente ao valor necessário para reparação dos danos provocados pelo réu na casa de banho do autor.
4. A decisão contém erros irreparáveis de julgamento de facto e de direito.
5. Subsidiariamente, na eventualidade de proceder o peticionado pela Autora e ser o Réu condenado ao pagamento de quantia a ser liquidada correspondente ao valor necessário, sob pena de enriquecimento injustificado e ilícito da Autora.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
i) nulidade da decisão recorrida;
ii) impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
iii) reapreciação da decisão relativa à matéria de direito, quanto à obrigação de pagamento pelo réu do montante necessário à eliminação dos defeitos.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto

2.1.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:
1. A Autora contratou ao Réu para remodelar a casa de banho e aplicar um material chamado de Microcimento.
2. Foi o próprio réu que sugeriu o Microcimento.
3. Combinaram que a Autora compraria o material conforme este fosse indicado pelo Réu e este apenas lhe cobraria o valor da mão de obra.
4. A Autora deslocou-se, juntamente com o Réu à loja Leroy Merlin e efetuou a compra de todos os materiais que se encontravam na lista.
5. Em relação ao material Microcimento, a autora comprou numa empresa sediada em Lisboa, através de um contacto fornecido pelo Réu.
6. Posteriormente ficou o réu responsável apenas pela aplicação de Microcimento, tendo a Autora contratualizado os serviços de uma outra pessoa que não estava ligada ao Réu para realizar os trabalhos de canalização e os trabalhos que antecedam a aplicação do microcimento.
7. O Réu iniciou os trabalhos em março de 2021.
8. Já em abril do mesmo ano, após já ter verificado o trabalho realizado encontrou o Réu e aproveitou para lhe expressar o quão dececionada e desapontada estava com o resultado, pois as janelas, parapeitos, torneiras, portas e louça sanitária, encontravam-se salpicados pelo referido microcimento.
9. O réu deslocou-se à casa da autora e afirmou que iria reparar a casa de banho.
10. O Réu, por volta do mês de julho de 2021, a expensas próprias, comprou azulejos para colocar no chão da casa de banho e contratou os serviços de uma terceira pessoa para aplicar o chão.
11. Os danos provocados pelo réu não ficaram resolvidos, tendo a autora comunicado essa situação ao réu.
12. O réu afirmou que já não iria fazer mais nada.
13. Após tal situação, a Autora tentou por via de mensagem telefónica entrar em contacto com o Réu, no entanto, sem qualquer sucesso, tendo inclusive o Réu, bloqueado o número da autora.
14. Os danos causados são os seguintes:
a) A superfície das paredes onde foi aplicado o microcimento não ficou lisa e as paredes ficaram esborratadas;
b) Acabamento das paredes nos cantos e nos topos não foi efetuado;
c) Má aplicação e mau acabamento no rejunte dos rodapés;
d) Desnível do chão entre a casa de banho e o restante chão da casa;
e) As janelas e pedras de janelas já existentes ficaram salpicadas com a argamassa e nunca foram limpas, deixando o material secar;
f) Não terminou o Poliban (local do duche);
g) As paredes não se encontram direitas;
h) Não aplicação da massa de juntas nos rodapés que ficavam atrás de eletrodomésticos ou que ficavam mais escondidos;
i) Aplicação de microcimento em torneiras;
j) Borrou a madeira da porta na parte superior e inferior;
k) Os cantos aplicáveis nos cantos das paredes que levam azulejos e que servem de união entre azulejos, encontram-se totalmente soltos.
15. A autora pagou o montante de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros) ao réu a título de mão de obra.
16. Após visita de uma empresa com o nome “(…)”, estes orçamentaram os arranjos da casa de banho no valor de € 7.421,82 (sete mil, quatrocentos e oitenta e um euros e oitenta e dois cêntimos).
17. A Autora pediu também um orçamento com vista a reposição da porta, tendo contactado a “Carpintaria (…)”.

2.1.2. Factos considerados não provados em 1.ª instância:
A) A massa na parte inferior e superior da porta apenas sai se raspar a madeira por completo, o que danificaria a integridade da estrutura da porta.
B) Neste momento é quase impossível tirar as manchas das janelas e pedras de janelas.
C) Qualquer serviço que a ré vá contratar terá, necessariamente, que passar pela remoção do que lá se encontra e por colocação de material novo.
D) A porta de entrada da casa de banho teve de ser cortada, porque de outra forma não poderia ser aberta ou fechada.
E) A “Carpintaria (…)” orçamentou a reposição da porta no montante de € 627,30.
F) A Autora gastou o total de € 1.000,00 (mil euros) em materiais para aplicação de Microcimento.
G) A autora disse que não havia gostado principalmente da cor e do microcimento do chão, pois parecia pobre, e pediu ao réu que aplicasse um azulejo.
H) A autora disse ao réu que estava insatisfeita com o trabalho feito na casa de banho passados 4 meses.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

2.2.1. Nulidade da decisão recorrida
Vem posta em causa na apelação a sentença através da qual a 1.ª instância, na parcial procedência da ação, condenou o apelante a pagar à autora a quantia que vier a ser liquidada, correspondente ao valor necessário para reparação dos danos provocados pelo réu na casa de banho do autor, absolvendo-o do mais peticionado, isto é, do pagamento da quantia peticionada a título de montantes pagos por material e mão de obra.
O recorrente arguiu a nulidade da decisão recorrida, imputando-lhe, no corpo das alegações, diversos vícios e consignando, na conclusão 1.ª, o seguinte: «1. O réu não consegue alcançar o teor desta decisão a qual foi condenado».
É sabido que as conclusões das alegações delimitam o âmbito do objeto do recurso, conforme resulta do disposto no artigo 635.º, n.º 4, do CPC, ao estatuir o seguinte: Nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objeto inicial do recurso.
As questões a decidir serão, além das de conhecimento oficioso, apenas as que constarem das conclusões, cabendo ao recorrente o ónus de as formular e de nelas incluir as questões que pretende ver reapreciadas.
Assim sendo, no que respeita à arguição da nulidade da decisão recorrida, considerando que o apelante incluiu nas conclusões apenas um dos vícios que imputa à sentença, verifica-se que restringiu o objeto do recurso, não tendo a Relação de conhecer dos demais vícios mencionados no corpo da alegação, dado não se tratar de matéria de conhecimento oficioso.
As causas de nulidade da sentença encontram-se previstas no n.º 1 do artigo 615.º do CPC, nos termos do qual é nula a sentença quando: a) não contenha a assinatura do juiz; b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Sustentando o apelante que «não consegue alcançar o teor desta decisão a qual foi condenado», cumpre apreciar se ocorre alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, o que constitui a causa de nulidade prevista na 2.ª parte da citada alínea c).
O atual Código de Processo Civil (aprovado em anexo à Lei n.º 41/2013, de 26-06) não prevê a aclaração das decisões judiciais, conforme decorre da nova redação dada ao artigo 613.º, no seu confronto com o artigo 666.º do anterior CPC. No novo regime, a verificação de alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível constitui causa de nulidade da decisão, conforme decorre do supra citado preceito.
Esclarecem José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 735) que «no regime atual, a obscuridade ou ambiguidade, limitada à parte decisória, só releva quando gera ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal, nos termos dos artigos 236.º-1, CC e 238.º-1, CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar».
Não invocando o apelante, no caso presente, que a parte decisória da sentença seja suscetível de uma pluralidade de sentidos, afastada se encontra a causa de nulidade em apreciação.
Em conclusão, não enferma a sentença recorrida da nulidade arguida pelo recorrente.

2.2.2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
O apelante põe em causa a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida, tecendo considerandos sobre a prova produzida e sustentando que determinados elementos probatórios foram indevidamente desconsiderados pela 1.ª instância, sendo certo que não deduz qualquer pretensão visando a modificação da factualidade julgada provada ou não provada, assim não podendo considerar-se efetivamente impugnada a decisão proferida.
É sabido que a impugnação da decisão relativa à matéria de facto se encontra sujeita a determinados requisitos, impostos pelo artigo 640.º do CPC, pelo que cumpre verificar se os mesmos se mostram cumpridos.
Sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o citado preceito o seguinte:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Explicando o sistema vigente quando o recurso envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, afirma António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, págs. 165-166), além do mais, o seguinte: “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; (…) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente (…)”.
Em anotação ao citado preceito, explicam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 770) que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objeto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões”.
Analisando as alegações de recurso apresentadas, verifica-se que o recorrente não especifica nas respetivas conclusões os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.
A indicação dos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, apesar de parcialmente abordada no corpo das alegações, não foi levada às respetivas conclusões, as quais delimitam o âmbito do objeto do recurso, conforme resulta do disposto no artigo 635.º, n.º 4, do CPC.
Não tendo o apelante incluído a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados nas conclusões das alegações, verifica-se que restringiu o objeto do recurso, não tendo a Relação de conhecer da questão da impugnação dos pontos de facto mencionados no corpo da alegação, dado não se tratar de matéria de conhecimento oficioso.
Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de a falta de indicação, nas conclusões da alegação, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, importar o incumprimento do ónus de alegação a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, podem indicar-se, a título exemplificativo, os acórdãos de 05-01-2016, proferido na revista n.º 36/09.6TBLMG.C1.S1 - 6.ª Secção, de 21-01-2016, proferido na revista n.º 145/11.1TCFUN.L1.S1 - 2.ª Secção, de 02-02-2016, proferido na revista n.º 2000/12.9TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção, de 03-05-2016, proferido na revista n.º 145/11.1TNLSB.L1.S1 - 6.ª Secção, de 31-05-2016, proferido na revista n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1 - 1.ª Secção, de 02-06-2016, proferido na revista n.º 781/07.0TYLSB.L1.S1 - 7.ª Secção, de 05-08-2016, proferido na revista n.º 221/13.6TBPRD-A.P1.S1, de 14-02-2017, proferido na revista n.º 1260/07,1TBLLE.E1.S1 - 1.ª Secção, de 14-02-2017, proferido na revista n.º 462/13.6TBPTL.G1.S1 - 6.ª Secção, e de 02-03-2017, proferido na revista n.º 1574/11.6TBFLG.P1.S1 - 7.ª Secção, cujos sumários se encontram disponíveis para consulta em www.stj.pt.
Tendo-se constatado que o recorrente não especifica, nas conclusões, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, verifica-se que não cumpriu o ónus previsto na alínea a) do n.º 1 do mencionado artigo 640.º.
Acresce que o apelante também não indica, seja na motivação ou nas conclusões das alegações, a decisão que entende dever ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como tal incumprindo igualmente o ónus previsto na alínea c) do n.º 1 do citado preceito.
O incumprimento, pelo recorrente, de qualquer dos ónus previstos nas citadas alíneas a) e c), é cominado com a rejeição do recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, conforme decorre do estatuído no corpo do n.º 1 do citado artigo 640.º, assim se encontrando afastada a possibilidade de a Relação convidar ao aperfeiçoamento das alegações, de forma a suprir tal omissão.
No caso presente, verificado o incumprimento pelo recorrente destes ónus – indicação nas conclusões dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e indicação, na motivação ou nas conclusões, da decisão que entende dever ser proferida sobre tais questões de facto –, sempre seria de rejeitar o recurso na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, caso tivesse sido efetivamente deduzida, conforme decorre do estatuído no corpo do n.º 1 do citado artigo 640.º.
Verificada a falta de efetiva impugnação da decisão de facto, impõe-se rejeitar a apreciação da argumentação do apelante, na parte em que põe em causa a decisão de facto.

2.2.3. Reapreciação da decisão relativa à matéria de direito
O recorrente discorda da sentença proferida pela 1.ª instância, na parte em que o condenou a pagar à recorrida a quantia que vier a ser liquidada, correspondente ao valor necessário para reparação dos danos provocados pelo réu na casa de banho da autora, pugnando pela revogação de tal segmento condenatório e respetiva substituição por decisão que o absolva da totalidade do pedido formulado ou, caso assim se não entenda, o condene apenas a fazer a limpeza pós-obra.
Está em causa, nos presentes autos, uma relação jurídica estabelecida entre as partes – que acordaram na aplicação pelo réu de microcimento na casa de banho da residência da autora, mediante o pagamento de um preço –, qualificada na decisão recorrida como contrato de empreitada, o que não vem questionado no recurso, encontrando-se as partes de acordo a tal respeito.
Através da presente ação, sustentando que a obra executada apresentava defeitos, que incumbia ao réu a obrigação de os eliminar e que o mesmo recusou proceder a tal eliminação, a autora, invocando o incumprimento pelo réu da obrigação de eliminação dos defeitos, pretende obter, na parte ora em apreciação, a respetiva condenação a pagar-lhe o montante correspondente ao custo de tal reparação, pretensão que foi julgada procedente.
Extrai-se da fundamentação da decisão recorrida que tal condenação se baseou nos motivos seguintes:
(…) dos factos provados, verifica-se que as partes celebraram um contrato de empreitada.
Ao contrato de empreitada aplicam-se, em primeira linha, as regras especiais dos artigos 1207.º e seguintes do Código Civil bem como as normas gerais relativas aos contratos e que com aquelas se compatibilizem, sendo certo que, neste âmbito, o Decreto-lei n.º 67/2003, de 8 de abril, aplicável aos contratos de empreitada numa relação de consumo, revelam-se normas especiais relativamente às regras gerais do Código Civil previstas para o contrato de empreitada, derrogando aquelas com as quais se revelem incompatíveis no seu campo de aplicação - o da relação de consumo.
(…)
Assim, e conforme bem refere o acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 15-06-2020, relatado por Sílvia Pires no processo n.º 101/18.9T8VLF, a responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos existentes na obra, nos contratos de empreitada de consumo, rege-se pelas regras gerais previstas no C. Civil para o contrato de empreitada e pelas regras especiais previstas na Lei de Defesa do Consumidor e no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, adaptáveis a este tipo contratual, não sendo aplicáveis as normas do C. Civil que sejam incompatíveis com as normas constantes destes dois diplomas.
Conforme refere o supra citado acórdão, em posição com a qual se concorda na íntegra, não se vislumbram quaisquer razões para que exista uma diferença de regimes entre as empreitadas de criação de coisa nova e as restantes, designadamente nas que se traduzem em remodelações de imóvel já existente, pelo que não existindo agora obstáculos colocados pela letra da lei, deve a todas elas se aplicar o disposto no Decreto-lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, desde exista uma relação de consumo.
Consumidor é, nos termos do art. 1.º-B, alínea a), aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios, e bem de consumo é qualquer bem imóvel ou móvel corpóreo, incluindo os bens em segunda mão (art. 1.º-B, alínea b) do mesmo diploma).
Ora, tendo em conta os factos dados como provados, resulta que é este Decreto-lei n.º 67/2003 aplicável ao caso em apreço, na medida em que a empreitada realizada pelo réu à autora se destinou à remodelação da casa de banho da sua residência, ou seja, não destinado a uso profissional.
Nos termos do art. 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato, sendo que o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais (n.º 3 da referida norma).
Nos termos do n.º 2 do referido art. 4.º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, tratando-se de um bem imóvel, a reparação ou a substituição devem ser realizadas dentro de um prazo razoável, tendo em conta a natureza do defeito, e tratando-se de um bem móvel, num prazo máximo de 30 dias, em ambos os casos sem grave inconveniente para o consumidor.
Por seu turno, nos termos do n.º 2 do art. 2.º do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:
a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.
De tais presunções de não conformidade resulta que o conceito de falta de conformidade, abrange genericamente os casos de “vícios” e “desconformidades” da obra, referidos nos artigos 1208.º e 1218.º, n.º 1, do Código Civil, nos quais se subdivide o conceito mais amplo de “defeito”.
Efetivamente, nos termos do disposto no artigo 1208.º do Código Civil, o empreiteiro deve executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato., dispondo o artigo 1218.º, n.º 1, que o dono da obra deve verificar, antes de a aceitar, se ela se encontra nas condições convencionadas e sem vícios.
Existindo uma presunção, naturalmente que a mesma é ilidível, nos termos do disposto no art. 350.º, n.º 2, do Código Civil, mediante prova em contrário – ou seja, pode o vendedor fazer prova da conformidade do bem no momento da entrega ao consumidor.
Ora, no caso em apreço, provaram-se os defeitos alegados, com exceção do corte da porta.
Assim, tem a autora direito à eliminação dos defeitos dados como provados.
No caso em apreço, pedem os autores a condenação do réu no pagamento da quantia necessária à eliminação dos defeitos.
Conforme esclarece o já citado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, desde há alguns anos que vem sendo entendido na doutrina e na jurisprudência que, além das situações em que a eliminação dos defeitos revela urgência, também é possível o dono da obra proceder à eliminação dos defeitos, com direito ao reembolso das quantias gastas, ou pedir que o empreiteiro seja condenado a adiantar-lhe o dinheiro necessário para que essa eliminação tenha lugar, sempre que o empreiteiro tenha incumprido definitivamente a obrigação de eliminação dos defeitos.
Efetivamente, conforme se explica nesse aresto, se é compreensível e benéfico para ambas as partes que, preferencialmente, se dê oportunidade ao empreiteiro de ser ele a proceder à eliminação dos defeitos da obra que realizou, já perante uma situação de incumprimento definitivo desta obrigação, não tem cabimento que se imponha que o dono da obra obtenha primeiro, em ação declarativa, uma sentença que condene o empreiteiro a cumprir uma obrigação definitivamente incumprida e só na respetiva ação executiva se permita, finalmente, que ele próprio ou terceiro procedam às obras de reparação da obra deficientemente realizada, à custa do empreiteiro.
Ora, tendo ficado provado que réu afirmou que não iria fazer mais nada após a autora comunicar que os danos provocados não tinham ficado resolvidos e bloqueou o contacto da autora, conclui-se que o réu incumpriu definitivamente a sua obrigação de eliminar os defeitos, tendo a autora o direito a receber do réu a quantia necessária à eliminação dos defeitos.
Quanto à quantia a receber, é verdade que a autora pediu um orçamento, mas também é verdade que foi apenas um, que contemplo a remoção de todo o material e posterior colocação, sem se tenha provado que tal remoção é necessária.
Acresce que não se deu como provado o valor de substituição da porta, que não se provou ter de ter sido cortada.
(…)
Desta forma, tendo sido provados danos mas inexistindo elementos para fixar a sua quantidade, deverá o respetivo montante ser apurado em liquidação em sede de execução de sentença, os termos do disposto no artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Decorre deste excerto que a 1.ª instância concluiu que incumbe ao réu a obrigação de eliminação dos defeitos tidos por assentes e que ocorreu o incumprimento definitivo, imputável ao réu, de tal obrigação, pelo que se considerou assistir à autora o direito a receber do apelante o montante necessário a custear os trabalhos de eliminação dos defeitos, a quantificar em posterior incidente de liquidação.
O apelante, nas alegações de recurso, não obstante manifestar discordância relativamente ao segmento condenatório constante da sentença, preconizando seja substituído por decisão que o absolva da totalidade do pedido formulado ou, subsidiariamente, que o condene apenas a fazer a limpeza pós-obra, modificação que pressuporia a revogação parcial da sentença recorrida, não demonstra o desacerto da fundamentação que baseia a decisão que impugna.
Analisadas as alegações de recurso, verifica-se que o recorrente não apresenta qualquer argumentação, jurídica ou fáctica, destinada a pôr em causa o fundamento da decisão recorrida, a saber, a obrigação de proceder à eliminação dos defeitos tidos por assentes, o incumprimento pelo réu de tal obrigação e o direito da autora receber do apelante o montante que venha a ser tido por necessário ao custeio dos trabalhos de eliminação dos defeitos, a quantificar em sede de liquidação.
No que respeita a estas questões, o recorrente não tem em conta o conteúdo da decisão recorrida, designadamente os fundamentos pelos quais foi julgada procedente a pretensão cuja improcedência preconiza na apelação, os quais permanecem intocados, considerando que não são indicados os motivos pelos quais defende a alteração desta parte da decisão, assim não deduzindo uma verdadeira oposição à decisão que impugna.
Conforme supra exposto, as questões a decidir serão, além das de conhecimento oficioso, apenas as que constarem das conclusões, cabendo ao recorrente o ónus de as formular e de nelas incluir as questões que pretenda ver reapreciadas. Não tendo o apelante especificado, nas conclusões ou no corpo da alegação, qualquer argumento, jurídico ou fáctico, que ponha em causa a decisão recorrida, na parte relativa ao segmento condenatório, não indicando os motivos pelos quais considera incorretamente julgada a questão em causa, não se tratando de questão de conhecimento oficioso, mostra-se o recurso, nesta parte, manifestamente infundado.
Aqui chegados, perante a afirmação, consignada na conclusão 2.ª das alegações de recurso, de que «Fica o réu em uma situação muito frágil quanto ao que a autora pode apresentar em sede de execução», cumpre esclarecer que o montante devido pelo réu à autora, em resultado da condenação operada pela decisão recorrida, será quantificado no âmbito de incidente de liquidação que antecede a execução da sentença, tendo sempre como limite o montante peticionado pela autora como valor necessário para reparação dos danos provocados pelo réu na casa de banho.
Ora, o incidente de liquidação, regulado nos artigos 358.º e seguintes do Código de Processo Civil, é tramitado com intervenção de ambas as partes, admitindo a dedução de contestação pelo réu e a subsequente produção de prova, se tal se mostrar necessário, pelo que afastado se encontra o risco invocado pelo apelante nas alegações de recurso, carecendo de fundamento legal a afirmação consignada na mencionada conclusão.
Nesta conformidade, mostra-se o recurso totalmente improcedente, cumprindo confirmar a decisão recorrida.

Em conclusão: (…)

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
Évora, 13-02-2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
José Saruga Martins (1.º Adjunto)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário (2.ª Adjunta)