RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CONCORRÊNCIA DE CAUSAS
CAUSALIDADE INTERROMPIDA
RESPONSABILIDADE MÉDICA
LEGES ARTIS
ÓNUS DA PROVA
Sumário

(Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art.º 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)
1. A responsabilidade contratual ou obrigacional distingue-se da extracontratual ou aquiliana por:
- na primeira estar em causa a violação de direitos de crédito ou de obrigações em sentido técnico, nelas se incluindo não só os deveres primários de prestação, mas também deveres secundários;
- a segunda emergir da violação de deveres de ordem geral e, correlativamente, de direitos absolutos do lesado.
2. Para haver responsabilidade obrigacional é necessário que seja violada uma obrigação em sentido técnico, para o que é necessário que uma obrigação exista e se tenha validamente constituído, só ocorrendo tal tipo de responsabilidade quando a violação da obrigação é imputada ao devedor.
3. Só há responsabilidade obrigacional pelos danos causados ao credor, pois os danos derivados da inexecução de uma obrigação que se verifiquem noutros sujeitos são cobertos pela responsabilidade extracontratual.
4. Em sede de concorrência de causas ou policausalidade para a produção do dano, ou seja, em sede de nexo delimitador, é possível distinguir entre:
a) Concorrênciareal:
- complementar;
- subsequente;
- coincidente;
- cumulativa; e;
b) Concorrência virtual, nomeadamente em sede de causalidade alternativa.
5. Na concorrência complementar, o prejuízo depende em simultâneo de todas as causas para a sua verificação, embora entre as causas operantes não exista uma conexão de adequação quanto à respetiva verificação.
6. Na concorrência subsequente, as causas concorrem para a produção do resultado, embora com estreita conexão e dependência em termos de verificação, ou seja, a conexão ocorre porquanto a causa inicial é permissiva da existência da causa posterior, operante do dano causado, sendo ponto determinante o estabelecimento da conexão de adequação entre a causa inicial e a subsequente, rompendo com a necessidade de uma causalidade direta.
7. Na concorrência coincidente, o dano produz-se numa zona simultaneamente coberta pela sanção contra o facto ilícito de uma pessoa e pelo risco a cargo de uma outra, caso em que existem títulos omissivos puros associados à responsabilidade pelo risco, a qual assenta sobre um facto natural, de terceiro ou do próprio lesado, e nunca sobre um do responsável, o qual não o provoca culposamente.
8. A concorrência cumulativa ocorre perante a intervenção de várias causas na produção do resultado, tal como sucede na concorrência complementar, embora qualquer uma seja apta a produzir isoladamente o resultado danoso, motivo pelo qual a concorrência cumulativa é por vezes designada de casualidade dupla ou concorrência alternativa real.
9. Existe causalidade interrompida quando um facto teria provocado realmente um determinado efeito, mas a verificação deste efeito foi impedida por um outro facto que por sua parte o produziu com anterioridade, caso em que:
- o 1.º facto não foi senão uma causa virtual do efeito, que não chegou a causar;
- o 2.º facto, que provocou realmente o dano, interrompeu a 1.ª série causal,
pelo que as situações de causalidade interrompida não são casos de causalidade cumulativa, mas de causalidade hipotética.
10. Ato médico é aquele que é executado por um profissional de saúde consistente numa avaliação diagnóstica, prognóstica ou de prescrição e execução de medidas terapêuticas.
11. As leges artis consistem em princípios e normas de avaliação de uma certa conduta médica, valorando a conformidade dessa conduta com a técnica e padrões exigidos ou a adequação da mesma à situação concreta, não esquecendo diversos fatores como a gravidade do estado do paciente ou os fatores exógenos aos quais esteja sujeita, tendo em conta casos análogos, bem como o resultado provocado.
12. A responsabilidade civil dos médicos é uma responsabilidade situada entre dois pólos:
- o da lesão da autonomia; e,
- o da lesão da integridade,
para distinguir duas grandes áreas da responsabilidade civil dos médicos:
- a responsabilidade por defeito do consentimento; e,
- a responsabilidade por defeito do tratamento.
13. A atuação do médico, se estiver em causa uma obrigação de meios, e não de resultado, deve adequar-se a um padrão de atuação tida como legis artis, pelo que, nesse caso, o erro médico consiste numa inadequada conduta profissional da sua parte, resultante da utilização de uma técnica médica ou terapêutica incorretas, lesivas para a saúde ou vida do paciente, podendo ter várias causas, como imperícia, insuficiência de conhecimentos, inexperiência, inconsideração ou negligência.
14. No caso da obrigação de meios, é sobre o lesado que recai o ónus da prova do facto típico e ilícito, enquanto pressupostos da responsabilidade civil, ou seja, cabe-lhe provar que as legis artis exigiam uma conduta diferente daquela que foi tomada pelo médico, o que significa que a diligência que a este é exigível constitui o critério da tipicidade e da ilicitude do seu comportamento.
15. (...) comportamento esse que preenche os requisitos da tipicidade e da ilicitude se omitir a mais elevada medida de cuidado exterior, isto é, se no caso concreto não prestar ao paciente os cuidados ao alcance de um médico ideal, com as mais amplas capacidades e a mais completa experiência razoavelmente concebíveis.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
FF instaurou ação declarativa de condenação contra T, Lda.[1], L Seguros, SA[2], e ALM, S.A.[3], alegando, em suma, que no dia 19 de janeiro de 2016 sofreu um acidente de trabalho, consistente no embate de uma pedra no seu olho esquerdo.
O acidente já foi reconhecido como sendo de trabalho no âmbito do Proc. n.º ____/__._T8LSB, a correr termos no Tribunal do Trabalho de Lisboa.
No dia 20 de janeiro de 2016, não suportando as dores, e porque pouco conseguia ver desse olho, deslocou-se ao Serviço de Urgência do Hospital ____, onde foi atendido, aí lhe tendo sido receitados medicamentos para desinflamar o olho.
Neste mesmo dia, o autor reportou o sucedido à 1.ª ré, sua entidade patronal, a quem pediu que fizesse a participação à 2.ª ré, desconhecendo a data em que tal participação ocorreu.
Uma vez que os dias passavam e não lhe era marcada consulta médica, a sua esposa contactou a 2.ª ré para o efeito, ao que esta respondeu que não o faria enquanto a 1.ª ré não participasse formalmente o acidente.
Por sua vez, a 1.ª ré, umas vezes informava o autor que já havia participado o acidente, e outras, que se havia esquecido de o fazer.
Só no dia 5 de março de 2016 é que o autor foi consultado na clínica da 3ª ré, onde lhe foi dito que no olho esquerdo «apenas tinha uma cicatriz de nascença, e nada mais.»
Em julho de 2016, o autor começou a perder a visão, na sequência do que contactou novamente a 2.ª ré, que lhe afirmou que apenas reabriria o processo a pedido da 1.ª ré.
Perante isto, o autor deslocou-se ao Hospital ____, onde foi visto por um médico que lhe diagnosticou inflamação, tendo sido medicado para o efeito.
Passados poucos dias, e uma vez que os sintomas persistiam, o autor deslocou-se ao Hospital de ____, em Lisboa, onde, para além de inflamação, lhe foi diagnosticada uma catarata no olho esquerdo.
No dia 10 de outubro de 2016, o autor foi a uma consulta particular no “Oculista do ____” (Grupo Optivisão), onde lhe foram diagnosticadas, no olho esquerdo, disfunções pupilares devido a sinéquias por inflamação úveal anterior antiga, devido a traumatismo, apresentando uma catarata unilateral não senil.
Reportada a situação à 2.ª ré, foi agendada nova consulta na clínica da 3.ª ré, na qual o autor foi informado que, fruto dos 10 meses decorridos, sem tratamento conveniente da inflamação e a trabalhar, teria que ser sujeito a cirurgia urgente para remover a catarata no olho esquerdo.
Tal cirurgia foi realizada no dia 25 de novembro de 2016, mantendo-se o autor em situação de baixa médica desde então e até ao dia 17 de janeiro de 2017, altura em que regressou ao trabalho, em regime de tratamento sem incapacidade.
No dia 7 de março de 2017, a 3ª ré deu alta ao autor com a indicação «curado sem desvalorização», apesar de referir no relatório que o olho esquerdo precisava, a partir de então, de correção ótica, ou seja, do uso de lentes progressivas.
Sucede que, no dia 25 de junho de 2017, o autor deixou de ver por completo do olho esquerdo, facto que reportou à 1.ª ré, e esta à 2.ª ré, a qual, por sua vez referiu ao autor que deveria dirigir-se a um Hospital.
Perante a insistência do autor, a 2.ª ré remeteu-o novamente para a 3.ª ré, em cuja clínica foi consultado no dia 28 de junho de 2017, tendo-lhe sido diagnosticado descolamento da retina do olho esquerdo.
Nessa altura foi agendada nova consulta para o dia 30 de junho de 2017, em regime de incapacidade absoluta.
Nesta última consulta foi marcada uma 2ª cirurgia para o dia 30 de junho de 2017, que se realizou, tendo-lhe sido retirados os pontos três semanas depois.
Em 20 de novembro de 2017 ocorreu um novo descolamento da retina do olho esquerdo, pelo que, no dia seguinte, foi realizada uma 3.ª cirurgia, tendo-lhe sido retirados os respetivos pontos no dia 27 de novembro de 2017.
No dia 12 de fevereiro de 2018, a 2.ª ré deu alta ao autor para readaptação funcional, em regime de incapacidade temporária parcial, com o coeficiente de 20%, e incapacidade permanente parcial a partir de 26 de fevereiro de 2018.
Não obstante se encontrar a correr termos no Tribunal do Trabalho o processo acima identificado, decorrente de acidente de trabalho, «o que se discute na presente ação é a responsabilidade pela perda de visão quase total do olho esquerdo do A..
Que, para o A., não se ficou a dever exclusivamente ao acidente, outrossim, à negligência das 1ª e 2ª RR. no tratamento e agilização do processo de sinistro e à negligência médica da 3ª R. no tratamento da inflamação e na realização tardia das 1ª e 2ª intervenções cirúrgicas (25.11.2016 e 30.06.2017), assim como nas técnicas e materiais usados.
Pois, qualquer das operações teria que ter sido realizada no período máximo de 48 horas, assim o ditam as boas práticas médicas.
O que teria evitado a cegueira do olho esquerdo, assim como os danos materiais e morais, a depressão psicológica, os incómodos, transtornos e dores, de que o A. padeceu.»
Em consequência da atuação das rés, o autor sofreu danos de natureza patrimonial e não patrimonial, que computa em € 60.000,00, «a pagar pelas três RR. ao A., na proporção de responsabilidade que o Tribunal vier a arbitrar, mas que se indica de 20% para a 1ª R., 30% para a 2ª R. e 50% para a 3ª R..»
O autor conclui assim:
«Nestes termos e nos melhores de direito, deve:
A presente ação ser julgada procedente por provada, condenando-se as RR. a pagar ao Autor, na proporção da responsabilidade que lhes vier a ser arbitrada, uma indemnização global de € 60.000,00 (sessenta mil euros), acrescida dos juros devidos desde a data do sinistro até integral pagamento, assim como a pagar o valor de procuradoria e demais custas e encargos do processo».
*
A 3.ª ré contestou, defendendo-se por impugnação ao logo de prolixo e exageradamente extenso articulado, onde deduziu ainda o incidente de intervenção principal provocada da sociedade SU, S.A..
Conclui assim:
«Nestes termos, nos melhores de Direito e nos que mais doutamente serão supridos, deverá:
a) Ser a presente ação julgada improcedente, por não provada e, em consequência, ser a R. absolvida do pedido.
b) Ser admitida a intervenção principal provocada da Seguradora SU, S.A., (...), para no caso de ser efetivada a responsabilidade civil da R. ser aquela seguradora considerada a responsável pelo pagamento dos montantes indemnizatórios e condenada nessa medida».
*
A 2.ª ré apresentou igualmente contestação, começando por arguir a exceção dilatória consistente na sua ilegitimidade para os termos da presente causa.
No mais, defende-se por impugnação.
Conclui assim:
«Nestes termos e nos melhores de Direito, deve a invocada excepção de ilegitimidade ser julgada procedente por provada e, consequentemente, ser a Ré LS, S.A. absolvida da instância para todos os devidos e legais efeitos.
Caso assim se não entenda, deve presente acção ser julgada improcedente por não provada e, consequentemente, ser a Ré LS, S.A. absolvida do pedido com todas as legais consequências.»
*
A 1.ª ré também contestou, defendendo-se por impugnação.
Conclui assim:
«Nestes termos e nos mais de direito deve a R. ser absolvida.»
 *
Por decisão de 2 de maio de 2019. foi julgado procedente o incidente de intervenção principal provocada da seguradora SU, S.A..
*
Citada a chamada SU, S.A., apresentou contestação, defendendo-se por via de impugnação.
Conclui assim:
«Termos em que deve o presente pedido ser julgado improcedente, por não provado, com as necessárias consequências legais.»
*
No requerimento que apresentou no dia 21 de setembro de 2019, a 3.ª ré deduziu incidente de intervenção principal provocada da F – Companhia de Seguros, S.A., o qual foi julgado procedente por decisão de 30 de outubro de 2019.
*
Citada, a chamada F apresentou contestação, que concluiu assim:
«Nestes termos e nos melhores de Direito, deve:
(i) Ser julgada procedente a defesa por excepção relativa aos limites de cobertura dos contratos de seguro, às exclusões previstas no contrato de seguro e ao limite decorrente da existência de pluralidade de seguros, com as legais consequências;
(ii) Ser a presente acção julgada improcedente por não provada, absolvendo-se a ora Interveniente do pedido».
*
Na audiência prévia foi julgada improcedente a exceção dilatória arguida pela 2.ª ré, consistente na sua ilegitimidade para os termos da causa.
*
Ainda na audiência prévia foi decidido o seguinte:
«Relativamente à desistência da instância requerida pela Ré ALM, 3ª. Ré, quanto à Chamada SU, S.A., por esta foi declarado que aceita tal desistência.
Assim, por válida e eficaz, homologo a desistência da chamada SU, S.A. – artigos 283º, n.º 1, 285º, n.º 2 e 286º, n.º 1 do C.P.C.»[4].
*
Na subsequente tramitação dos autos, realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Face ao exposto e sem necessidade de outras considerações, julgo improcedente por não provada a acção e, em consequência, absolvo as rés do pedido».
*
Inconformado, o autor interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«I- Em nosso entendimento, há contradição entre a matéria de facto dada como provada e a fundamentação de facto e direito usadas.
II- Dos factos dados como provados, só poderia resultar provada a culpa e responsabilidade das RR. nos danos/perda de visão do OE do A.
IV- De acordo com a matéria dada como provada, o Tribunal teria de ter concluído que o atraso e a falta de tratamento adequado do traumatismo ocular, originou a catarata e a falta de tratamento desta, causou o 1º descolamento de retina e a inflamação dos pontos deste, o 2º descolamento de retina e tudo isto a perda de visão do OE.
XII- (...) resulta claro que o traumatismo causou a inflamação (de que as sinequias são sinal) e a catarata foi consequência desse processo inflamatório.
XIII- E os descolamentos - que, por sua vez, levaram à perda de visão do OE -foram consequência da catarata.
XXI- Aquando da 2ª cirurgia por descolamento da retina já o mal estava feito.
XXII- Pois, aqui a perda de visão já era irreversível... o objetivo aqui já foi a de salvar o olho, de molde a não retirarem o órgão!
XXIV- (...) volvidas as mais de 30 consultas, 10 exames e 3 cirurgias ao OE, mais 3 de retirada de pontos, é visível que algo neste processo não correu bem:
XXV- Ausência de participação do acidente pela R. T, Lda. (quando existia a obrigação por parte da entidade patronal de comunicar o acidente à seguradora no prazo de 8 dias logo após ter sido informada, o que não fez-vidé pp 33 da decisão);
XXVII- Ausência de encaminhamento urgente do processo / autorizações de intervenção adequadas ao tratamento das queixas do A., pela R. L (que só em 15-11-2016 reabre o processo);
XXVIII- Ausência de Intervenção urgente e aplicação das práticas médicas pela R. ALM mais adequadas e necessárias a evitar inflamações, catarata e descolamentos de retina e/ou agravamento de qualquer das situações, de molde a evitar a perda de visão (que foi ignorando as queixas e sinais apresentados pelo A.; não fez os exames de diagnóstico apropriados e só marcou as cirurgias à catarata e ao 1º descolamento muito tardiamente, com técnicas evasivas de sutura, que causaram um 2º descolamento);
XXXIII- (...) a cirurgia só foi realizada pela R. ALM em 7-2.2017.
XXXV- (...) o Relatório pericial refere quanto à catarata “Um traumatismo com impacto cinético suficiente pode induzir alterações retinianas e/ou vítreas, que podem subsequentemente evoluir para um quadro de descolamento de retina”.
XXXVI- Que foi o que sucedeu.
XXXVII- Não se pode, também, aceitar que o Tribunal A Quo tivesse dado como não demonstrado que o tardar na execução da cirurgia de 30-06-2017 (com queixa de perda de visão a 22-06-2017) e consulta a 26-06-2017 não seja imputável à R. ALM ou à R. L.
XXXVIII- (...) os descolamentos de retina têm de ser intervencionados, no máximo, no período de 48 horas.
XXXIX- O que não foi respeitado pela R. ALM.
XLIV- (...) o Tribunal ignorou que não foi no âmbito [do] 1º descolamento que se deu a perda de visão total do OE, mas do 2º descolamento (20/11/2017), que se sucedeu à retirada – desastrosa – dos pontos de vicril da cirurgia do 1º descolamento da retina.
XLVII- (...) o A. fez prova do nexo de causalidade entre o acidente e os danos sofridos e da culpa das RR. na violação dos seus deveres objetivos de cuidado;
XLVIII- Assim como se fez prova do sofrimento físico e psicológico do A.;
XLIX- Devendo o Tribunal alterar a decisão dando como provados os factos das alíneas e) a i) da matéria não provada.
LII- [Impõe-se], assim, a substituição da decisão por outra que considere demonstrado o nexo de causalidade e a culpa das RR. na produção dos danos, que eram evitáveis, condenando-as ao pagamento da indemnização pelo valor peticionado, para reparação dos danos de que padeceu: total perda da visão no olho esquerdo, dores, incómodo, transtornos e elevado sofrimento físico e psicológico.»
Conforme refere Rui Pinto, «depois de formular conclusões, o recorrente termina deduzindo um pedido de revogação, total ou parcial, de uma decisão judicial.»[5].
No presente recurso, após a formulação das conclusões as apelantes deduzem o seguinte pedido revogatório:
«Atento o exposto, deverá o presente Recurso proceder e a douta decisão recorrida ser substituída por outra que considere demonstrada o nexo de causalidade e a culpa das RR. na produção dos danos e condene as RR. a pagar ao A. o valor peticionado, de 60.000 € (sessenta mil euros), a que acrescem ainda os juros de mora comerciais vincendos desde a data do sinistro, até efetivo e integral pagamento e ao pagamento das custas do processo e custas de parte, procuradoria e demais encargos do processo.»
*
As rés e a chamada F apresentaram contra-alegações, pugnando todas pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da sentença recorrida.
*
II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art.º 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art.º 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art.º 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir:
a) se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto;
b) se estão verificados, relativamente a cada uma das rés, os pressupostos da responsabilidade civil.
*
III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
3.1.1 - A sentença recorrida considerou provado que:
«1. No dia 19 de Janeiro de 2016, e no exercício da sua actividade profissional de pedreiro por conta da ré T, Lda. o autor sofreu um acidente, no qual uma pedra lhe bateu no olho esquerdo.
2. No processo nº ____/__._T8LSB, a correr seus termos no Juiz _ do Juízo de Trabalho do Tribunal de Trabalho de Lisboa o acidente foi reconhecido como sendo de trabalho.
3. Entre a ré L e a empresa T, Lda. foi celebrado um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, titulado pela apólice n.º ____.
4. Através do qual a L assumiu a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho sofridos pelos trabalhadores da ré T, Lda..
5. Na noite subsequente ao acidente referido em 1 o autor mal conseguiu dormir e acordou com o olho esquerdo inchado e com dores.
6. No dia 20 de Janeiro de 2016, por causa das dores e porque pouco conseguia ver desse olho, o autor foi ao Hospital ____.
7. Atendido por oftalmologista na consulta de urgência, apresentava queixa de hiperemia ocular esquerda com sensação de corpo estranho e ardor, referia dor, hiperemia e verificando-se ter exsudado mucopurulento, hiperemia conjuntival, córnea fluoronegativa, cicatriz antiga, pigmento no cristalino, tendo-lhe sido diagnosticada uma conjuntivite mucopurulenta.
8. Foi medicado com colírios e pomada oftalmológica.
9. Nesse dia, o autor reportou o sucedido à sua entidade patronal, a qual pediu que fizesse a participação à seguradora.
10. Como não fosse marcada consulta através da seguradora e não apresentasse melhoras, a esposa do autor insistiu por telefone, para que marcassem uma consulta médica ao marido.
11. Em contactos telefónicos feitos pela mulher do autor com a seguradora L, a mulher do autor foi informada que a seguradora não marcaria qualquer consulta enquanto a entidade patronal não fizesse a participação do acidente.
12. O autor abordava a entidade patronal, na pessoa de Jaime Correia e este referia-lhe, umas vezes, que já havia feito a participação e outras, que se havia esquecido.
13. A 8.3.2016 foi recepcionada na ré L a participação do acidente.
14. Pela ré L foi feito um contacto telefónico com o autor e foi encaminhado para a Trust – GIS.
15. E foi agendada uma consulta médica na qual o autor compareceu a 18.3.2016 na Clínica ____.
16. Foi prescrito ao A. a realização de uma ecografia, a ser analisada na consulta seguinte que foi agendada para 29/03/2016.
17. Na consulta de 29/03/2016 a ecografia não revelava a existência de qualquer corpo estranho intra-ocular, pelo que, o A. foi dado como curado sem desvalorização.
18. Em Julho de 2016, o autor começou a “perder a visão”.
19. A mulher do autor ligou para a seguradora, obtendo como resposta só reabririam o processo, a pedido do segurado.
20. Por causa da “perda de visão”, incómodo e dores o autor deslocou-se a 16.7.2016 ao Hospital ____.
21. Nessa instituição foi observado na consulta de urgência por queixa de corpo estranho no olho esquerdo desde o dia anterior.
22. No relato dessa consulta foi consignado que o autor apresentava hiperemia e sensação de corpo estranho a nível do OE.
23. No mesmo relatório de urgência sob o item “História da Doença actual” consignou-se: “Refere que após ter estado exposto a ventos e poeiras iniciou sensação de corpo estranho no OE. Manteve sensação até à poucos minutos…” (…) “…OE francamente ruborizado”.
24. Foi-lhe dada alta com destino para o Hospital de ____.
25. No Hospital de ____ fez-se constar na ficha de urgência como “motivo da consulta”: “recorre por edema palpebral do olho esq com sensação de corpo estranho. discreta hepiemia local. Início há 3 dias.”
26. Na mesma ficha no item “Observação da especialidade” fez-se constar: “Erosão córnea do OE. Removido corpo estranho da conjuntiva tarsal. CA formada e opticamente vazia.”
27. A 10 de Outubro de 2016, o A. foi a uma consulta particular no “Oculista do ____” (Grupo Optivisão) onde, no olho esquerdo, lhe foram diagnosticadas disfunções pupilares devido a sinéquias por inflamação úveal anterior antiga, devido a traumatismo, apresentando uma catarata unilateral não senil.
28. Nessa sequência a mulher do autor telefonou para a ré L relatando a situação o tendo-lhe sido pedido o envio do relatório via correio electrónico.
29. O que a mulher do autor fez, assim que obteve o referido relatório.
30. A 10/11/2016 foi solicitado marcação de consulta urgente por recaída do A.
31. A consulta realizou-se no dia 15/11/2016 tendo o autor comunicado que teria ido há 15 dias atrás a uma consulta particular que lhe diagnosticara uma inflamação ocular e diminuição progressiva da acuidade.
32. Tendo sido agendada nova consulta para 23/11/2016.
33. Nesta consulta foram solicitados novos exames de diagnóstico e agendada nova consulta para 06/12/2016.
34. Com data de 25.11.2016, pelo médico oftalmologista da ré ALM foi elaborado um relatório no qual este clínico fez constar que depois da realização da “UBM” (Ultrabiomicroscopia, substituída pela Ecografia Oftálmica A+B) ao olho esquerdo do autor se verificou “a existência de c. anterior acusticamente vazia, com profundidade máxima de 2.89mm, ângulos abertos em todos os quadrantes, não se evidenciando anomalias na íris e no corpo cilar; não se notam zonas de bloqueio angular no estudo cinético em ambientes escotópico e mesópico e não se detetam sinas de corpo estranho”.
35. Após a realização de “Bio” (Microscopia Especular), o Dr. LC consignou estar na presença de “córneas com densidades celulares dentro dos valores normativos para a idade, sem evidência de polimegatismo ou de pleomorfismo”.
36. Na consulta de 06/12/2016 foi confirmado o diagnóstico da catarata no olho esquerdo, com indicação cirúrgica e marcação de nova consulta para 20/12/2016 com o médico oftalmologista CM.
37. Na consulta de 20.12.2017 foi solicitada por CM a realização de fotografia especial do segmento anterior OE (olho esquerdo) e a biometria oftálmica com cálculo de potência intraocular do olho esquerdo.
38. Na informação elaborada pelo mesmo clínico e remetida à “Trust” conclui-se “propor cirurgia de catarata com lente refrativa pela idade” acrescentando-se que “Existe nexo causal pelo tipo de catarata e o prognóstico depende da função retiniana que é difícil de objetivar”.
39. Foi reagendada uma nova consulta para 17.1.2017 e solicitada a realização dos referidos exames.
40. O que a Trust veio a autorizar.
41. Bem como a 23.1.2017 autorizou a realização da cirurgia.
42. A 07/02/2017 o clínico CM, realizou a intervenção cirúrgica para facoemulsificação do cristalino com implantação de lente intraocular.
43. Fazendo aquele médico constar que a cirurgia havia decorrido “sem complicações componente sub capsular e capsular opacificada”.
44. O autor teve consultas de acompanhamento a 08/02/2017, 15/02/2017 e a 07/03/2017.
45. Na observação da consulta de 15.2.2017 consta “sem queixas”.
46. Foi dado pela médica recomendação de incapacidade temporária absoluta até nova consulta.
47. No relato da consulta de 7.3.2017 consta nota de facoemulsificação correta e de ter sido receitado um par de óculos com lentes progressivas.
48. A 18.4.2017 foi dado ao autor alta com indicação de curado com acuidade visual corrigida de 10/10 no olho direito e no olho esquerdo.
49. Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre os dias 22 e 25 de Junho de 2017, o A. deixou de ver quase por completo do olho esquerdo.
50. Voltando a consulta a 26 de Junho de 2017 na Clínica ____ com indicação de descolamento da retina.
51. Consta da informação lavrada na Clínica ____ “apresenta um D.R. nos quadrantes superiores com uma rasgadura às 12H e macula off seguramente”.
52. A 26.6.2017 às 17h47 a Trust remeteu à ALM uma correspondência electrónica na qual solicita o agendamento de uma consulta para o autor “o mais urgente possível”.
53. A consulta foi agendada e foi realizada pela ALM com o médico CM no dia 28.6.2017.
54. Na informação clínica dessa consulta consta: “perda súbita de visão 22/7/2017, amputação total do campo visual exceto quadrante superior. Recorreu a colega que o referenciou para esta consulta” e sob o item “Observação”: “segmento anterior sem alterações, faco correcta, descolamento retina regmatogenico com rasgadura superior grande 3 discos opticos por proliferação, com “bodods dobrados, macula off, pvr classe 2 – 3 início”. “proposta cirurgia de descolamento retina com peling de membranas proliferativas, endolaser tamponameto com óleo de silicone”
55. A 28.6.2017 é remetido à Trust por correio electrónico a informação clínica de “descolamento retina proliferativo. Para indicação cirúrgica”, pedindo-se autorização para realização de “Retinografia ODE” e “descolamento de retina com vitrectomia e segmentação, delaminação e corte de membranos de vítreo ou ou subretinianas, neovasos c/ou s/ ecolaser c/ ou s/ cirurgia do cristalino.” Faz-se menção de cirurgia já marcada para o dia 30.6.2017 às 11 horas.
56. A intervenção cirúrgica foi realizada a 30.6.2017.
57. O autor voltou a novas consultas de controlo a 03/07/2017, 07/07/2017, 13/7/2017, 21/7/2017, 21/8/2017 e 27/9/2019.
58. Na consulta de 7/7/2017 foi efetuado um reforço de laser e midríase, mantendo-se a terapêutica que havia sido prescrita.
59. Na informação da consulta de 13/07/2017 consta que o autor relatou que sentia “dores oculares” observando a médica que o olho esquerdo se encontrava “calmo” mantendo a terapêutica.
60. Na informação da consulta de 21/07/2017 consta que o autor relatou dor no olho esquerdo, constatando-se que se encontrava vermelho.
61. Foi realizada nova retinografia.
62. E foram retirados os pontos cirúrgicos.
63. Na observação clínica além do mais, consta “olho vermelho, dor com os pontos” (…) “retina aplicada – retirei os pontos mas com dificuldade”.
64. Pontos que eram de vicril 6.0 (pontos auto-absorventes).
65. Nessa ocasião o autor sentiu dores provocadas por aquele acto médico.
66. Bem como se sentiu muito indisposto e a perder as forças e os sentidos.
67. Tendo tido um “choque vagal”.
68. A 21/8/2017 foi realizada nova retinografia.
69. Constando na informação da consulta “sem dores Bio: segmento anterior calmo retina aplicada”.
70. Na consulta de 27/09/2017 foi dada indicação para cirurgia a 10/10/2017 para retirada do óleo de silicone.
71. Cirurgia que foi realizada a realizada a 10/10/2017.
72. A partir do momento em que lhe foi retirado o silicone o autor sentia-se a ver melhor.
73. O autor voltou para consultas de controle nos dias 11/10/20217, 16/10/2017, 24/10/2017 e 20/11/2017.
74. Na observação da consulta de 11/10/2017 consta “retina aplicada seg anterior bem”.
75. Na consulta de 16/10/2017 consta: “6 dias pos op OE a extração óleo silicone pos DR. (…) Desde sábado iniciou queixas de dor frontal e periocular esquerdas intermitente.
Biom: OE hiperemia conjuntival moderada, córnea transparente, pseufaquia bem, sem tyndall. FO OE retina aplicada em todos os QTs. (…)”.
76. Na observação da consulta de 24/10/2017 consta “15d pos vpp retirada de óleo silicone”, “Incomodo com os pontos da vpp”.
77. Na observação clínica da consulta de 20/11/2017 consta “defeito do hemicampo inferior OE desde ontem em doente com AP de DR OE (extracção do óleo de silicone dia 10/11) FOE: DR mácula off das 5 as 2h, com rasgadura nasal inferior”
78. O A. é reoperado no dia 21/11/2017 com diagnóstico de “descolamento retina oe” sendo a intervenção “por rasgadura posterior da retina junto nervo óptico nasal drenagem de líquido subretiniano endolaser e óleo de silicone 2000”.
79. Sendo suturado com “linha de seda”.
80. Voltou a consulta de controlo nos dias 27/11/2017 (data em que lhe foram retirados os pontos), 12/1/2018 e 12/02/2018 na qual teve alta clínica.
81. Naquela data de 12 de Fevereiro de 2018, a Seguradora deu alta ao autor para readaptação funcional, em regime de ITP (Incapacidade Temporária Parcial), com o coeficiente de 20% e Incapacidade Permanente Parcial (IPP), a partir de 26 de Fevereiro de 2018.
82. Em 18 de Abril de 2018, a ALM, emitiu relatório, no qual consta “No seguimento do acidente teve a última cirurgia em 21/11/2017, por proliferação retiniana, da qual resultou a reaplicação da retina, com tamponamento por óleo de silicone, não se prevê a sua retirada, dado o risco de nova recidiva de descolamento. Assim a situação não se prevê evolutiva, excepto se (houver) complicação da existência cronica do oleo de silicone. Na última observação apresentava. Acuidade visual no olho direito sem correcção 10/10. Acuidade visual no olho esquerdo com correcção 0.05.”
83. O autor mantém o óleo de silicone colocado.
84. A TRUST GIS SA é uma prestadora de serviços que promove o acompanhamento clínico dos sinistrados da L.
85. As clínicas que prestam serviços para a ré L não têm valência de urgência oftalmológica.
86. Entre os meses de Julho e Outubro de 2017, o autor não via bem.
87. Nas férias do Verão o autor falava pouco com a família, permanecia na cama ou no sofá, não mostrava alegria.
88. Depois do segundo descolamento de retina o autor deixou de conduzir, tem mais dificuldade em encontrar determinados objetos, descer e subir escadas, fazer atividade desportiva, ler.
89. E mostra-se mais triste e menos sociável.
90. Por ter perdido acuidade visual no olho esquerdo.
91. No período compreendido entre 19 de Janeiro 2016 e 8 de Março de 2016 o autor queixava-se com dores.
92. O A. sofreu dores e medo na manipulação resultante das intervenções no olho esquerdo.
93. O autor foi medicado com: Predniftalmina/Tobradex (colírio) / Oflaxacina (Gel oftálmico) / Prednisolona (Colírio) / Acetazolamida / Latanoprost + Timolol (Colírio) / Timolol + Dorzomalida (Colírio) / Fluorometolona (Colírio) / Bromofenac (Colírio) / Dexametasona + Tobramicina (Colírio) / Xalacom / Cosopt / Celluvisc / Azarga / Ibuprofeno Farmoz / Yellox / FML Liquifilm.-
94. A limitação de visão que o autor tem no olho esquerdo é irreversível.
95. O que lhe causa sofrimento e angústia e o faz sentir diminuído.
96. O olho esquerdo está fisicamente diferente do que era antes das intervenções a que o autor foi sujeito.
97. Alteração e diferença entre os dois olhos que são visíveis a terceiros.
98. Quando usa ferramentas de trabalho o autor muitas vezes magoa-se por não ver bem os objetos.
99. O autor tornou-se dependente da utilização permanente de óculos.»
3.1.2 - (...) e não provado que:
«a) Em data anterior à intervenção de catarata o autor tenha sido informado (nomeadamente na Consulta no Oculista do ____) que, fruto dos 10 meses decorridos, sem tratamento conveniente da inflamação e a trabalhar, o A. teria que ser sujeito a cirurgia urgente para remover a catarata no olho esquerdo.
b) O diagnóstico da catarata tenha sido dado ao autor em consulta de urgência no Hospital de ____ em Julho de 2016.
c) O autor tenha tido uma primeira consulta a 5 de Março de 2016 na ré ALM.
d) Na consulta de 18.3.2016 tenha sido dito ao autor que no olho esquerdo apenas apresentava uma cicatriz de nascença e nada mais.
e) Durante quase todo o período de sete meses (decorrido entre 25 de Novembro de 2016 a 25 de Junho de 2017), o A. continuava sem ver bem, com incómodo na vista e com dores.
f) O autor tenha sido medicado para a depressão.
g) Nos períodos de baixa médica, o A. tenha ficado totalmente dependente de terceiros para se deslocar para fora de casa e tenha tido de recorrer à mulher, a amigos e a taxistas para se deslocar às consultas e hospitais.
h) E que, em consequência disso, e como a mulher do A. trabalhava e os filhos estudavam, o A. acabasse por ficar sozinho e isolado em casa, sem conseguir sair, com receio de caminhar sozinho.
i) O acto de caminhar na via pública sozinho causasse receio ao autor por ter medo de cair.
j) O autor já não consiga subir a andaimes, com receio de cair.
k) O autor quando sobe degraus de moradias em construção (ainda sem corrimão) se atrapalhe e tropece.
l) A cirurgia para remoção da catarata tenha ocorrido a 25 de Novembro de 2016.
m) O autor tenha estado de baixa médica entre 25.11.2016 e 17 de Janeiro de 2017, e que tenha retomado o trabalho nesta data.
n) Tenha sido concretamente a 25 de Junho de 2017 – data indicada na petição inicial – ou concretamente a 22 de Junho de 2017 – data referida na informação clínica da ALM como tendo sido a indicada pelo autor para aquele acontecimento -, que o autor tenha deixado de ver por completo do olho esquerdo.»
*
3.2 – Fundamentação de direito:
3.2.1 – Uma nota sobre as conclusões apresentadas pelo apelante:
Conforme refere Abrantes Geraldes, «a lei exige que o recorrente condense em conclusões os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou a anulação da decisão. Com as necessárias distâncias, tal como a motivação do recurso pode ser associada à causa de pedir, também as conclusões, como proposições sintéticas, encontram paralelo na formulação do pedido que deve integrar a petição inicial. Rigorosamente, as conclusões devem (deveriam) corresponder a fundamentos que, com o objetivo de obter a revogação, alteração ou anulação da decisão recorrida, se traduzam na enunciação de verdadeiras questões de direito (ou de facto) cujas respostas interfiram com o teor da decisão recorrida e com o resultado pretendido, sem que jamais se possam confundir com argumentos de ordem jurisprudencial que não devem ultrapassar o sector da motivação.
As conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso como clara e inequivocamente resulta do art.º 635.º, n.º 3. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do Tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo. Incluindo, na parte final, o resultado procurado, as conclusões devem respeitar na sua essência cada uma das alíneas do n.º 2, integrando-se as respostas a tais premissas essenciais no encadeamento lógico da decisão pretendida. Se para atingir o resultado declarado o tribunal a quo assentou em determinada motivação, dando respostas às diversas questões, as conclusões devem elencar os passos fundamentais que, na perspetiva do recorrente, deveriam ter sido dados para atingir um resultado diverso.
Todavia, com inusitada frequência se verificam situações irregulares: alegações deficientes, obscuras, complexas ou sem as especificações referidas no n.º 2. Apesar de a lei adjetiva impor o patrocínio judiciário, são triviais as situações em que as conclusões acabam por ser mera reprodução dos argumentos anteriormente apresentados, sem qualquer preocupação de síntese, como se o volume das conclusões fosse sinal da sua qualidade ou como se houvesse necessidade de assegurar, por essa via, a delimitação do objeto do processo e a apreciação pelo tribunal ad quem de todas as questões suscitadas.
Ainda que algumas das situações exemplificadas justificassem efeitos mais gravosos, foi adotada uma solução paliativa que possibilita a supressão das deficiências através de despacho de convite ao aperfeiçoamento. Ao invés do que ocorre quando faltam pura e simplesmente as conclusões, em que o juiz a quo profere despacho de rejeição imediata do recurso, qualquer intervenção no sentido do aperfeiçoamento das irregularidades passíveis de superação foi guardada para o relator no tribunal ad quem, como se extrai, com toda a clareza, do n.º 3 do art.º 639.º e da al. a) do n.º 3 do art.º 652.º.
O relator a quem o recurso seja distribuído deve atuar por iniciativa própria, mediante sugestão de algum dos adjuntos ou, em último caso, em resultado do deliberado em conferência, nos termos do art.º 658.º. Por isso, tal como se verifica na fase do saneamento do processo, no despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões o relator deve identificar todos os vícios que, no seu entender, se verificam, por forma a permitir que, sem margem para dúvidas, o recorrente fique ciente dos mesmos e das consequências que podem decorrer da sua inércia ou do deficiente acatamento do convite.
A prolação do despacho de aperfeiçoamento fica dependente do juízo que for feito acerca da maior ou menor gravidade das irregularidades ou incorreções, em conjugação com a efectiva necessidade de uma nova peça processual que respeite os requisitos legais. Para isso pode ser conveniente tornar em consideração os efeitos que a intervenção do juiz e as subsequentes intervenções das partes determinem na celeridade. Parece adequado ainda que o juiz atente na reacção do recorrido manifestada nas contra-alegações de forma a ponderar se alguma irregularidade verificada perturbou o exercício do contraditório, designadamente quando se esteja perante conclusões obscuras[6].
As conclusões serão complexas, nomeadamente, quando não cumpram as exigências de sintetização a que se refere o n.º 1 do supramencionado artigo 639.º.
No caso dos presentes autos, estamos, manifestamente, perante conclusões complexas, prolixas e repetitivas, que não cumprem o dever de síntese advindo do mencionado n.º 1 do art.º 639.º do C.P.C.
Acresce que em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, compete ao recorrente:
a) em sede de motivação do recurso:
- especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
- indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda;
- tomar posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
b) em sede de conclusões:
- concretizar que pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto;
- especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.
Por conseguinte, versando o recurso sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nas conclusões apenas importa que o apelante proceda à indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e que se pretende ver modificados[7].
Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, as conclusões não têm, obviamente, que reproduzir todos os elementos do corpo das alegações, nem delas deve constar a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e nem mesmo as respostas pretendidas.
Nas conclusões, por evidentes razões de objetividade e de certeza, apenas devem ser indicados os concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação.
A apelante dedica vários pontos das conclusões, sem que se perceba com que objetivo ou utilidade, a indicar meios de prova.
Tal como se decidiu no Ac. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6T8MGD.P2.S1 (Tomé Gomes), in www.dgsi.pt, «enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objecto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória».
Tal como afirma ainda Abrantes Geraldes, «sem embargo do que se referiu, a experiência confirma que se entranhou na prática judiciária um verdadeiro círculo vicioso: em face do número de situações em que se mostra deficientemente cumprido o ónus de formulação de conclusões, os Tribunais Superiores acabam por deixá-las passar em claro, preferindo, por razões de celeridade (e também para que a parte recorrente não seja prejudicada), avançar para a decisão, na qual é feita a triagem do que verdadeiramente interessa em face das alegações e da sentença recorrida. Agindo deste modo, os Tribunais Superiores colocam os valores da justiça, da celeridade e da eficácia acima de aspetos de natureza formal»[8].
É exatamente por esta razão que não se determina o aperfeiçoamento das conclusões da alegação de recurso do apelante, antes se expurgando as mesmas daquilo que não é essencial, deixando-se, no entanto, claro, que constituem um texto prolixo, cuja extensão de forma alguma se justifica e que desvirtua o sentido da lei quando impõe que o recorrente conclua a sua alegação de forma sintética, indicando os fundamentos por que pede, neste caso, a revogação da sentença.
3.2.2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
O apelante impugna a decisão sobre os enunciados de facto transcritos em 3.1.2.e) a i), por entender que os mesmos devem ser considerados provados.
Em 3.2.1 deixaram-se já indicados os ónus que, à luz do dis
Dispõe o art.º 640.º:
«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) (...).
3 – (...)».
Em anotação a este artigo, tal como já referido em 3.2.1, afirma Abrantes Geraldes que «a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:
a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art.º 640.º, n.º 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.»[9].
No presente recurso, o apelante:
- indica no ponto XLIX das conclusões que pretende impugnar a decisão sobre os pontos e) a i) da matéria de facto não provada;
- indica na motivação quais os meios probatórios constantes do processo e nele registados, que em seu entender impõem decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
- indica com exatidão na motivação, as passagens da gravação em que se funda;
- considera que aquele pontos de facto devem ser considerados não provados.
Importa, no entanto, ir mais além!
Tal como é assinalado no Ac. do S.T.J. de 27.09.2018, Proc. n.º 2611/12.2TBSTS.L1.S1 (José Sousa Lameira), in www.dgsi.pt, para que o ónus impugnatório da decisão sobre a matéria de facto, que impende sobre o recorrente, e a que se reporta o art.º 640.º, seja cabalmente cumprido, impõe-se-lhe que faça, também ele, uma análise crítica da prova invocada, em confronto com o que consta da motivação da sentença, de modo a justificar a alteração da decisão proferida sobre os factos.
Na verdade, tal como é imposto ao tribunal que faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise crítica dos respetivos meios probatórios.
Ou seja, exige-se do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorretamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão aos meios de prova, no caso concreto, a documentos, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo tribunal recorrido foi declarado.
Por outras palavras, ainda, exige-se que o recorrente faça o confronto dos elementos probatórios que indica, e que em seu entender impõem, relativamente a cada ponto de facto que impugna, com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do tribunal[10].
Por conseguinte, o recorrente deverá, em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si[11].
Como é sabido, a intervenção da Relação no tocante à impugnação da decisão da matéria de facto, rege-se pelos seguintes parâmetros:
- só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
- sobre a matéria de facto impugnada tem que realizar um novo julgamento; e,
- no contexto desse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Contudo, uma vez que se mantêm vigentes e atuantes os princípios da imediação[12], da oralidade[13], da concentração[14] e da livre apreciação da prova[15], e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
De outra forma dizendo, a Relação só deve alterar a decisão sobre a matéria de facto proferida em 1.ª instância quando, depois de proceder à efetiva audição da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa ao decidido pelo tribunal recorrido, e impõem um entendimento diferente daquele que prevaleceu na 1ª Instância[16].
Retornando ao caso concreto, o tribunal a quo motivou assim a decisão sobre os pontos e) a i) do elenco dos factos não provados:
«Os factos referem-se às fragilidades que o autor sofreu, na vida do dia a dia, em consequência do acidente.
Relativamente a eles depuseram as testemunhas SL (mulher do autor), LL (cunhada do autor) FP (irmão do autor) e SF (filha do autor), pessoas estes que acompanharam o autor na vida diária ao longo de todo o período a que se referem os autos, concretamente desde a data em que ocorreu o acidente (19.1.2016) até ao presente.
No que diz respeito à alínea e):
Apesar de as testemunhas referirem ocasiões em que o autor se queixava com dores, também referiram outras em que reportam melhorias, designadamente com a retoma da actividade profissional. Não sendo as testemunhas precisas nas datas (o que é natural tendo em consideração o tempo decorrido), não havendo documentos que descrevam os referidos factos e estando mencionada pelo articulado do autor uma baliza temporal concreta, não é possível ao tribunal o apuro da matéria contida na referida alínea, para além do que que consta nos factos provados.
No que respeita à alínea f):
Não se demonstrou por qualquer meio de prova que o autor tenha sido medicado para a depressão. O que decorre, e apenas, do depoimento da testemunha SL, é que a medicação que terá sido ministrada para o problema ocular terá alterado o estado anímico do autor, deprimindo-o, circunstância que um clínico se propôs modificar com a alteração da medicação para o problema ocular.
Quanto à matéria constante na alínea g):
Não se provou que o autor tenha ficado "totalmente dependente de terceiros" para se deslocar para fora de casa ou tenha tido de recorrer "À mulher, amigo e a taxistas" para se deslocar.
Pese embora a testemunha SL se tenha referido a, pelo menos uma deslocação de táxi, não explicitou por que razão o autor optou por aquele meio de transporte naquela situação concreta.
Quanto à alínea h):
Da mesma forma, nenhuma das testemunhas fez menção que autor tivesse ficado sozinho e isolado em casa, sem conseguir sair, "com receio de caminhar sozinho", nem há outro meio de prova que o aponte. O que resultou, repete-se, é que o estado anímico do autor se alterou em razão dos problemas de visão que registava, e que estes em determinados períodos o impediram de sair de casa para trabalhar e o levaram a desinteressar-se de qualquer actividade.
Quanto á alínea i)
Nenhuma testemunha referiu também (nem outro meio de prova o expressa) que o autor passasse a ter medo de andar na rua sozinho por receio de cair. Aliás, de acordo com o depoimento da mulher do autor, o autor continuou a conduzir (pelo menos em alguns períodos) apesar de se encontrar com uma visão diminuída».
Orientados pelos antecedentes considerandos, conclui-se que nada há a alterar, nesta sede, relativamente ao que foi decidido na 1.ª instância.
Como é sabido, numa sentença, a motivação da decisão de facto visa, desde logo, tornar eficaz o sistema de justiça, através do convencimento dos destinatários, da comunidade jurídica em geral e da própria sociedade.
A motivação acima transcrita permite, sem margem para qualquer dúvida, tal desiderato.
A motivação da decisão de facto tem em vista, ainda, permitir que as partes e os tribunais de recurso procedam ao reexame lógico e racional acerca das razões pelas quais o juiz decidiu num sentido e não noutro, assim se possibilitando a reconstituição do percurso lógico seguido pelo julgador, apoiado nos elementos de prova previamente indicados e devidamente explicados no texto da sentença; em suma, o juiz deve mostrar às partes, aos tribunais de recurso e, sobretudo, aos cidadãos, o raciocínio lógico em que apoiou a decisão sobre a matéria de facto.
Também quanto a este aspeto, a descrita motivação permite tal desiderato.
A senhora juíza a quo deixou, como se viu, bem especificadas na sentença recorrida, as razões que teve como decisivas para a formação da sua convicção, de modo a considerar não provados os enunciados acima transcritos.
Socorrendo-se de provas produzidas nos autos e sujeitas à sua livre apreciação, a senhora juíza a quo indicou com toda a clareza os fundamentos para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência comum, se possa agora controlar a razoabilidade da sua convicção quanto ao julgamento, como não provados, daqueles dois enunciados.
Na apreciação de cada um dos meios de prova de que se socorreu para decidir, como provado e não provado, cada um daqueles enunciados de facto, a senhora juíza a quo demonstrou ter perfeito conhecimento do respetivo conteúdo, determinou a sua relevância e procedeu à respetiva valoração.
A senhora juíza a quo esclareceu de forma clara, lógica e razoável, a razão pela qual considerou não provados os referidos enunciados de facto, não relevando os depoimentos das testemunhas SL (mulher do autor), LL (cunhada do autor) FP (irmão do autor) e SF (filha do autor).
Por sua vez, o apelante limita-se a afirmar que «entre os minutos 2:50 e 6:43 (25-01-2023) a filha SL disse: “o pai sempre foi uma pessoa muito ativa, nunca gostou de estar parado … mesmo depois o meu pai ficou irreconhecível … perdeu a vontade de fazer as coisas, limitava-se a ficar em casa … nem se importava comigo e com o meu irmão … até mesmo hoje não consegue fazer as coisas que fazia, se isto não se tivesse dado…. Ficou com limitações … via-se pela cara e linguagem não verbal que ele não estava bem … dores … olho fechado … o olho sempre esteva mal … ainda hoje, não consegue abrir o olho começa a lacrimejar se não puser gotas…”
Aos minutos 32:26 a 35:43 a testemunha SL referiu que o A./seu marido “não queria saber de nada ... não saia; do trabalho chegava a casa stressado, porque tirava as medidas mal e as paredes ficavam tortas”.
(...)
Já a testemunha LL disse aos minutos 3:25 (25-01-2023) que o A. “Antes do acidente o cunhado era proactivo e contente. Depois do acidente queixava-se com dores na “vista” e ao longo do ano foi-se fechando em casa; nem saía para cortar o cabelo. Sentia-se bastante desmotivado. Não vê bem e ele encontra-se ainda desmotivado.”
A testemunha FR (também a trabalhar na construção civil), entre os minutos 8:34 e 14:05 disse, igualmente, que “Depois do acidente o irmão ficou muito diferente. Era activo e ficou “sem interesse pelas coisas”. Queixou-se durante muito tempo com dores. A falta de visão é uma limitação para o trabalho.”»,
O Tribunal “A quo” também parece fazer tábua rasa do Relatório pericial, que refere “Do ponto de vista laboral, e tendo como profissão trabalhador de construção civi, a diminuição de estereopsia pode limitar atividades profissionais que envolvam o manuseamento de veículos pesados ou aparelhos de alto impacto”.
O apelante não faz qualquer análise critica dessa prova em confronto com o que consta da motivação da sentença quanto à decisão daqueles enunciados.
Na verdade, tal como é imposto ao tribunal que faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise crítica dos respetivos meios probatórios, o que, no caso concreto, o apelante manifestamente não faz.
Mais não seria necessário para julgar improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Sucede que a audição dos depoimentos das identificadas testemunhas e leitura do referido relatório pericial revelam o acerto do raciocínio seguido pelo tribunal a quo para considerar não provados aqueles enunciados de facto.
Pelo exposto, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3.2.3 – Enquadramento jurídico:
O apelante, sem indicar as razões de direito que servem de fundamento à ação, assim olvidando o disposto no art.º 552.º, n.º 1, al. d), parte final[17], pede a condenação das rés a pagarem-lhe, «na proporção da responsabilidade que lhes vier a ser arbitrada, uma indemnização global de € 60.000,00 (sessenta mil euros), acrescida dos juros devidos desde a data do sinistro até integral pagamento, assim como a pagar o valor de procuradoria e demais custas e encargos do processo».
No que tange à «proporção da responsabilidade» considera o autor que «no total de € 60.000 (sessenta mil euros), a pagar pelas três RR. ao A.» a proporção do quantum a pagar por cada uma das três rés deve ser fixada pelo tribunal, indicando, no entanto «20% para a 1ª R., 30% para a 2ª R. e 50% para a 3ª R.»
Neste recurso, o apelante também não indicou as normas jurídicas que, em seu entender, foram violadas na sentença recorrida.
Convidado a dar cumprimento ao disposto no art.º 639.º, n.º 2, veio afirmar que «(...) para fundamentar a violação e apurar o nexo delimitador, os artigos 483º, 563º, 570º, 497º, 798º, 494º do CC permitirão:
a) Identificar e avaliar o nexo causal entre as ações/omissões de cada ré e os respetivos danos fundados na responsabilidade civil extracontratual (Artigos 483.º (Artigo 563.º);
b) Determinar a responsabilidade individual e/ou solidária, multiplicidade e concorrência de causas (Artigo 570.º e 497.º);
1. Quando contratual (obrigação de prestar cuidados médicos), é de aplicar os artºs 798.º a 810.º do Código Civil, que regulam o incumprimento das obrigações contratuais.
2. Quando extracontratual (erro médico ou negligência), os Artigos 483.º, 495.º e 496.º do Código Civil, que regulam a responsabilidade por ato ilícito e a culpa dos profissionais de saúde.
3. Fixar a responsabilidade com base na culpa (Artigo 483.º) ou incumprimento contratual (Artigo 798.º);
4. Estabelecer critérios de equidade e proporcionalidade para a compensação (Artigo 494.º).
(...) As normas violadas incluem os Artigos 483.º, 563.º, 570.º, 798.º, 762.º, 494.º e 497.º do Código Civil, que devem ser interpretadas em harmonia para garantir a reparação integral e justa do dano.
(...) O erro na aplicação das normas deriva, principalmente, de uma análise inadequada da causalidade e da concorrência de causas, comprometendo a justa delimitação das responsabilidades de cada uma das RR.».
Isto faz-nos lembrar, salvo o devido respeito, um “navio graneleiro” ou um “grande caldeirão”, onde, para pedir a condenação das três rés a indemnizarem-no por danos patrimoniais e não patrimoniais, coloca, além do mais, misturando-os indistintamente, os institutos:
- da responsabilidade civil extracontratual, delitual ou aquiliana; e,
- da responsabilidade civil obrigacional ou contratual,
sem esclarecer minimamente:
- a que rés imputa cada um dos referidos tipos de responsabilidade; ou até,
- se imputa ambos os tipos de responsabilidade a todas as rés.
Independentemente da forma confusa e amalgamada como o apelante apresenta a sua visão jurídica do caso, nos termos que se deixaram referidos, lidas as suas descritas afirmações, poderia parecer, à primeira vista, que esta ação assenta, afinal de contas, num concurso de responsabilidades entre:
- a responsabilidade extracontratual, delitual ou aquiliana; e,
- a responsabilidade obrigacional ou contratual.
Mas não é assim, como daqui a pouco se verá!
Neste contexto, e para melhor compreensão do que a seguir se decidirá, é útil trazer à colação dois aspetos que não podem passar despercebidos.
Nesta ação, entrada em juízo no já distante dia 11 de janeiro de 2019, nem as primitivas rés, nem as intervenientes, invocaram a questão da competência material do tribunal comum para a preparação e julgamento da causa; ou seja, ninguém considerou ser competente para o efeito o tribunal de trabalho.
Apenas a 2.ª ré, na sua contestação, se refere, ainda que a latere, a esta questão, mas em jeito de justificação da por si arguida exceção dilatória consistente na sua ilegitimidade para os termos da causa, ao afirmar o seguinte:
«81º
O Autor foi vítima de um acidente de trabalho,
82º
Sendo certo que a responsabilidade infortunística emergente de acidentes de trabalho ocorridos com o Autor se encontrava transferida para a Contestante por via do contrato de seguro supra identificado.
83º
A responsabilidade da Contestante relativamente ao acidente de trabalho sofrido pelo Autor encontra-se limitada às garantias conferidas pelo referido contrato de seguro, bem como às prestações definidas no regime jurídico dos acidentes de trabalho [Lei 98/2009].
84º
A responsabilidade da Contestante já foi judicialmente sufragada e definida, como bem reconhece o Autor na sua douta Petição Inicial.
85º
Por via do acidente de trabalho de que foi vítima, a lei não reconhece ao Autor o direito de exigir da Contestante qualquer prestação ou indemnização adicional,
86º
sendo certo que a sua discussão nos presentes autos violaria as regras de competência do tribunal em razão da matéria[18] e o seu eventual reconhecimento violaria, para além da lei, os limites do caso julgado».
Perante isto, o autor, aqui apelante, veio esclarecer o seguinte, no requerimento que atravessou nos autos no dia 28 de março de 2019:
«1. O A. identificou como RR: T, Lda. (1ª R.); L seguros (2ª R.) e ALM-OFTALMOLASER (3ª R.).
2. A 1ª R. apenas se defendeu por impugnação;
3. A 3ª R. (que o Tribunal identifica como 2ª R.) defendeu-se por impugnação e requereu a intervenção principal da Seguradora Tranquilidade, Lda, à qual o A. nada tem a opôr.
4. A 2ª R. (que o Tribunal identifica como sendo a mesma R. que requereu a intervenção provocada) defendeu-se por impugnação e por exceção de ilegitimidade, escudando-se que não se dedica à prestação de cuidados de saúde ou serviços médicos.
5. Sucede, porém, que o A. definiu, perfeitamente, no seu articulado o tipo e a medida de responsabilidade que assaca a cada uma das RR..
1. Nos artigos 51º e 52º da PI o A. conclui dizendo “Todavia, o que se discute na presente ação é a responsabilidade pela perda de visão quase total do olho esquerdo do A..; Que, para o A., não se ficou a dever exclusivamente ao acidente, outrossim, à negligência das 1ª e 2ª RR. no tratamento e agilização do processo de sinistro e à negligência médica da 3ª R. no tratamento da inflamação e na realização tardia das 1ª e 2ª intervenções cirúrgicas (25.11.2016 e 30.06.2017), assim como nas técnicas e materiais usados”.
6. Tendo, ainda, destrinçado a responsabilidade contratual da extracontratual[19].
7. Portanto, o pedido do A. não se subsume aos danos sofridos na sequência da prestação dos serviços médicos e;
8. Ao contrário do que esta R. diz, o A. invocou factos que permitam responsabilizá-la pelo sucedido.
9. O facto da 1ª R. ter transferido a responsabilidade para a 2ª R. não isenta qualquer delas pela produção do resultado e danos reclamados, assim se prove o respetivo nexo de causalidade.
10. E, se há outros prestadores de serviços ou partes interessadas no presente litígio caberá às RR. identificá-los na cadeia de responsabilidades que possa vir a ser estabelecida.
11. Por outro lado, a 2ª R. não pode querer misturar os pedidos desta ação com a responsabilidade no pagamento da indemnização pelo acidente de trabalho.
12. Fixada a incapacidade, o cálculo indemnizatório é matemático e objetivo, aplicável a qualquer sinistrado.
13. Situação diferente é a dos presentes autos, em que se previa que o A. não ficasse com incapacidade definitiva;
14. E acabou por ficar cego do olho esquerdo, fruto das diversas negligências procedimentais e médicas, conforme já plasmado na PI.
15. Termos em que entende que, tal como às outras duas RR., também à 2ª R. pode ser assacada a responsabilidade profissional na sua atividade Seguradora, por erro, omissão ou negligência».
O teor deste requerimento, à semelhança, aliás, do que já havia ocorrido na petição inicial, e veio a suceder com a alegação do recurso, torna evidente a confusão que parece bailar no espírito do apelante quanto aos institutos da responsabilidade civil contratual e da responsabilidade civil extracontratual.
Conforme pertinentemente escreve António Barroso Rodrigues, «(...) cumpre ao sistema identificar os requisitos que fundamentam dogmaticamente o limite da transferência jurídica dos danos sofridos por um sujeito para outro, ou seja, e concretizando, cumpre determinar os requisitos da obrigação de indemnizar. Para esse efeito, a abstração das normas que regem as fontes da responsabilidade condenam o intérprete a uma permanente tentativa de delimitação do seu objeto e escopo, com base no sentido e alcance da lei, mas não só.
(...)
Atendendo, assim, àquela finalidade de transferência de prejuízo, o sistema criou títulos de imputação de danos. Todavia, dada a variedade e complexidade das realidades que considerou merecedoras de fundar a responsabilidade do agente, e em obediência ao seu método, julgou-se necessário sistematizar os títulos de imputação criados, associando-os a um determinado regime. Por apelo, novamente, à ordem de maior grandeza, os títulos de imputação (de danos) foram sendo historicamente organizados a respeito de determinado critério, formando modalidades de responsabilidade civil. Não surpreende constatar que o processo de classificação do título de imputação nem sempre foi o mesmo, embora existam certas modalidades com um peso histórico de destaque.
A conclusão daquele processo de categorização transparece na atual arrumação sistemática desta matéria no nosso Código Civil de 1966: a responsabilidade por factos ilícitos (art.º 483.º e ss.) surge no capítulo II (fontes das obrigações) do livro II, já a responsabilidade dita obrigacional (art.º 798.º ss) inscreve-se no capítulo VII (cumprimento e não cumprimento das obrigações)»[20].
Segundo o mesmo Autor, «as modalidades de responsabilidade delitual e obrigacional resultam de um processo conceptual de classificação dos títulos de imputação em obediência um determinado critério, cujo valor se autolimita pela sua incontornável insuficiência. O critério subjacente a qualquer modalidade considerada é, portanto, a medida da respetiva utilidade e rigor.
Os títulos de imputação que comunguem daquela finalidade de imputação de danos são classificados por referência, em regra, a um critério reportado à sua estrutura (previsão e estatuição). Formam-se assim, modalidades de responsabilidade - as quais podem ser analisadas numa lógica de progressiva abrangência, atendendo-se à estrutura das regras em causa de um ponto de vista atomístico, i.e., desde o facto até à obrigação de indemnizar - e que permitem a criação de regimes legais distintos para as realidades que englobam.
(...) As modalidades de responsabilidade civil paradigmáticas, há muito estabilizadas na prática jurídica, são comummente designadas de tipo contratual e extracontratual. Estas modalidades têm por referência, condicionadas pelo peso etimológico do conceito, a ligação existente entre os sujeitos aquando do apuramento da responsabilidade, apelando, em concreto, à fonte da vinculação - ou seja, ao contrato ou à sua ausência - desaguando, a final, no desvalor objetivo da conduta (ilicitude). No primeiro caso, está em causa uma violação do contrato, por oposição à segunda, cuja violação escapa ao vínculo negocial. Nesta medida, e com maior rigor, identifica-se no escopo da ilicitude, na primeira modalidade, a violação de um dever específico (contratual) de fonte voluntária e, na segunda e por oposição, um dever genérico de respeito (extracontratual) - por vezes mencionado como um dever geral de abstenção, omissão ou não ingerência[21].
Segundo Menezes Leitão, «do confronto entre o art.º 483 e o art.º 798 verificamos que o campo da responsabilidade delitual é delimitada por exclusão de partes.
Enquanto o art.º 483 abrange todos os danos derivados da violação ilícita de um direito ou de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios o art.º 798 diz textualmente:
“O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.
Da conjugação destas duas disposições podemos retirar as seguintes conclusões:
a) Para haver responsabilidade obrigacional é necessário que seja violada uma obrigação em sentido técnico. Será então necessário que uma obrigação exista e se tenha validamente constituído.
b) A responsabilidade obrigacional, só existe quando a violação da obrigação é imputada ao devedor.
c) Só há responsabilidade obrigacional pelos danos causados ao credor. Os danos derivados da inexecução de uma obrigação que se verifiquem noutros sujeitos são cobertos pela responsabilidade delitual.
d) Para haver responsabilidade obrigacional é necessário um nexo de causalidade entre a violação da obrigação e os danos causados ao credor»[22].
Segundo Autor, são as seguintes «as situações onde nos leva esta delimitação:
a) A falta de cumprimento da prestação dá lugar à responsabilidade obrigacional (art.º 798 n.º 1). Mas a violação dos deveres acessórios de protecção, informação e lealdade, fundados na boa-fé e vigentes no período pré-contratual (art.º 277.º) no cumprimento da obrigação e, após a sua conclusão (art.º 762 n.º 2) dão lugar à responsabilidade delitual fundada no art.º 483 n.º 1, uma vez que são deveres impostos por lei. Pense-se na complexidade de regimes derivados desta conclusão se não se admitir o carácter unitário da responsabilidade.
b) A delimitação entre as duas responsabilidades esquece o problema da eficácia externa da obrigação, hoje amplamente admitida pela doutrina. Entende-se, por isso, que a violação do direito de crédito por outrém que não o devedor cai na previsão do art.º 483 n.º 1 e é, portanto, delitual. (...).
c) A restrição efectuada no art.º 798 que limita a tutela da responsabilidade obrigacional aos prejuízos causados ao credor, parece ignorar que em regra aproveitam da prestação terceiros que não o credor. Se nos chamados contratos com eficácia de protecção para terceiros, como o arrendamento, ainda se admite uma extensão de tutela contratual a terceiros em clara oposição ao art.º 798, que dizer em sede de responsabilidade do produtor face aos consumidores finais do produto?
d) Exigindo o art.º 798 um nexo de causalidade entre a inexecução da obrigação e os danos causados ao credor e vigorando na pendência de relação obrigacional, como vimos atrás, deveres cuja infracção dá lugar à responsabilidade delitual, a determinação do conteúdo da vinculação das partes e dos danos que forem causados pela violação da obrigação pode tomar-se muito difícil de efectuar. Pense-se na quantidade de situações de concausalidade que se podem verificar e na complexidade de regimes daí derivada»[23].
A responsabilidade contratual ou obrigacional distingue-se da extracontratual ou aquiliana por:
- naquela estar em causa a violação de direitos de crédito ou de obrigações em sentido técnico, nelas se incluindo não só os deveres primários de prestação, mas também deveres secundários;
- esta emergir da violação de deveres de ordem geral e, correlativamente, de direitos absolutos do lesado.
Ou seja, a diferença entre os dois tipos de responsabilidade assenta no seguinte:
- a responsabilidade delitual ou aquiliana surge como consequência da violação de direitos absolutos, que aparecem desligados de qualquer relação intersubjetiva previamente existente entre lesante e lesado;
- a responsabilidade contratual pressupõe a existência de uma relação intersubjetiva, que primariamente atribua ao lesado um direito à prestação, surgindo como consequência da violação de um dever emergente dessa relação específica.
À luz destes considerandos, parece evidente que a causa de pedir que serve de fundamento ao pedido formulado pelo autor não radica, não pode radicar, em relação a qualquer uma das rés, no instituto da responsabilidade contratual.
A única relação contratual que se conhece, estabelecida entre o autor/apelante e qualquer uma das rés/apeladas, é a que decorre do enunciado descrito em 1. dos factos provados[24], do qual resulta a existência, à data do sinistro, de um contrato de trabalho anteriormente celebrado entre o demandante e a 1.ª ré.
Mas não é violação desse contrato que fundamenta esta ação; por outras palavras, não é na violação desse contrato que assenta a causa de pedir que suporta o pedido formulado pelo autor contra as rés.
Caso contrário, competente para a preparação e julgamento desta ação seria o tribunal de trabalho, e não o tribunal a quo enquanto tribunal comum.
Vem a talho de foice acrescentar, ainda a propósito da competência do tribunal comum para a preparação e julgamento desta ação, que é o próprio autor quem, no supra transcrito requerimento que apresentou no dia 28 de março de 2019, ainda que, mais uma vez de uma forma que não prima pela clareza, afirma que nesta ação pretende o apuramento de responsabilidades que vão além das decorrentes do acidente de trabalho de que foi vítima.
Isso mesmo, aliás, já resultava à evidência dos arts. 51.º e 52.º da petição inicial!
É certo e sabido que é uma realidade cada vez mais frequente, a ocorrência de situações de concurso entre responsabilidade contratual ou obrigacional, e extracontratual, delitual ou aquiliana, nas quais estes dois tipos de responsabilidade se misturam e em que, por vezes, se torna até extramente difícil a delimitação do campo de aplicação de cada uma delas, ou a separação das suas fronteiras.
Não se justifica, no entanto, no caso concreto, aprofundar tal temática, pois, tal como o apelante configura, na petição inicial com que introduziu em juízo esta ação, o objeto da lide, constituído pelo pedido e pela causa de pedir que lhe subjaz, e que se reflete, naturalmente, na motivação e nas conclusões deste recurso, não assenta em qualquer vínculo contratual que se tenha estabelecido entre si e qualquer uma das rés, e que por qualquer delas tenha sido violado[25].
Concluindo-se pela inexistência de responsabilidade contratual de qualquer uma das rés perante o autor, resta-nos agora apreciar se alguma responsabilidade lhes pode ser imputada na modalidade extracontratual, delitual ou aquiliana; mais concretamente, resta-nos agora apreciar se existe, entre as rés, uma situação de concurso de responsabilidades nesta última modalidade.
Conforme refere Rui Ataíde, «a imputação de um dano a esfera diferente daquela em que se registou consubstancia o fenómeno da responsabilidade civil, significando que o autor do dano vai ser chamado a prestar contas do evento, mediante a sua responsabilização pelo cumprimento de uma prestação designada de “indemnização”, que se destina precisamente à eliminação do dano verificado»[26].
Os pressupostos da responsabilidade extracontratual, idênticos, aliás, ao da responsabilidade contratual, estão consagrados no art.º 483.º, n.º 1, do CC, e são, como é sabido, cumulativos: o facto voluntário, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Compete ao autor a alegação e prova de todos e cada um deles, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC.
O enfoque do presente recurso assenta, sobretudo na existência (ou não), de um nexo causal entre as condutas das rés e os danos sofridos pelo autor, nomeadamente a perda de acuidade visual no seu olho esquerdo.
O art.º 483.º, n.º 1, do CC, estabelece que devem ser indemnizados os danos resultantes de um facto ilícito e culposo.
Trata-se, como afirma Rui Ataíde, de um nexo causal de que se ocupa a chamada causalidade delimitadora da responsabilidade, o qual desempenha uma «dupla função no processo de imputação: além de pressuposto da responsabilidade civil, serve ainda para delimitar o quantum indemnizatório»[27].
Segundo o autor/apelante, concorreram para a verificação do dano, as seguintes causas:
a) por parte da 1.ª ré, a não participação atempada do sinistro à 2.ª ré (cfr. o art.º 55.º, 1.ª parte, da petição inicial e os pontos XXV e XXVI das conclusões do recurso;
b) por parte da 2.ª ré, o não encaminhamento atempado do processo de sinistro para os seus serviços médicos (cfr. o art.º 55.º, 2.ª parte, da petição inicial, e o ponto XVII das conclusões do recurso);
c) por parte da 3.ª ré, a «ausência de intervenção urgente e aplicação das práticas médicas pela R. ALM mais adequadas e necessárias e evitar inflamações, catarata e descolamentos de retina e/ou agravamento de qualquer das situações de molde a evitar a perda de visão» (cfr. ponto XVIII das conclusões do recurso).
Por outras palavras, segundo o autor/recorrente, o processo causal que decorre desde o sinistro até à produção do dano, é constituído por três causas, sucessivas e interligadas entre si, a saber:
i) Causa primeira: omissão, pela 1.ª ré, do dever de participação imediata do sinistro à 2.ª ré;
ii) Causa segunda: omissão, pela 2.ª ré, do dever de imediato encaminhamento do autor para os seus serviços médicos;
iii) Causa terceira: omissão, pela 3.ª ré, depois de o processo lhe ter sido enviado pela 2.ª ré:
a) do dever de imediata sujeição do autor às intervenções médicas que se impunham;
b) das práticas médicas adequadas e necessárias à situação clínica do autor.
Se é verdade que em sede de nexo de causalidade, se identifica, em regra, uma causa única, também denominada causa real ou causa operante do dano, não é menos verdade que pode «sobrevir a existência de causas múltiplas que concorrem para a verificação daquele dano, as quais, entre si, se podem completar, cumular, ser coincidentes ou alternativas para a produção daquele resultado. Neste caso, fala-se de policausalidade, concorrência de causas na produção do dano, causalidade múltipla, sobre determinação causal, ou, ainda, de concurso objetivo de responsabilidade»[28].
Como se vê, na situação sub judice, o autor aponta para uma concorrência de causas do dano.
A este propósito, escreve Antunes Varela:
«(...) a comparticipação (lato sensu) pode resultar ainda, não da colaboração na mesma causa do dano, mas da concorrência de duas ou mais causas (convergência de duas ou mais causas na direcção do mesmo dano). Dentro desta rubrica genérica da concorrência ou concurso de causas, impõe-se desde logo distinguir entre o concurso real e o concurso puramente virtual de causas do mesmo dano.
A simples contemplação da realidade mostra que o concurso real pode revestir diversas variantes:
a) Umas vezes sucede que o facto praticado por uma pessoa é a causa adequada do facto praticado por outra: o depositário ou como - datário deixa, por negligência, a coisa abandonada em local que propicia o furto cometido por outro indivíduo; um indivíduo agride outro em plena via pública, onde o deixa caído por terra, facilitando o atropelamento mortal de que ele veio a ser vítima, embora com culpa também do condutor do veículo.
b) Outras vezes, as causas são também complementares nos seus efeitos, mas nenhum nexo de causalidade adequada subsiste entre elas, quanto à sua verificação: A embate com uma viatura pesada em certa casa, deixando-a bastante abalada; logo a seguir, B, condutor de uma outra viatura do mesmo tipo, embate na mesma casa, e deita-a abaixo, dado o precário estado de segurança em que ela ficara.
c) Noutros casos, os factos praticados pelos agentes não necessitariam de somar-se um ao outro, como no exemplo precedente, para produzirem o dano, visto que qualquer deles o teria determinado, só por si, mas ambos intervieram na produção do mesmo dano concreto: A e B, criadas da mesma casa, sem prévia combinação entre si, deitam sucessivamente no líquido que a dona da casa deveria ingerir, duas doses de arsénico, qualquer delas de eficácia mortal.
d) Noutras hipóteses, por último, há uma simples coincidência de causas distintas de responsabilidade, na medida em que o dano se produz numa zona simultaneamente coberta pela sanção contra o facto ilícito de uma pessoa e pelo risco a cargo de uma outra: operário atropelado culposamente por terceiro no local onde prestava serviço no cumprimento dos deveres resultantes da relação de trabalho.
No primeiro caso, há uma causa subsequente da outra; no 2.º, há causas complementares; no 3.º, há o que muitos autores chamam causas cumulativas, enquanto outros lhes chamam, talvez com menos propriedade, causas alternativas; no 4.º, há uma simples coincidência ou simultaneidade de causas de responsabilidade.
As ideias expostas acerca do nexo de causalidade permitem, não só equacionar correctamente as várias hipóteses discriminadas, como encontrar a solução aplicável a cada uma delas.
Em face do lesado, quer haja subsequência (adequada) de causas, quer haja causas cumulativas ou mera coincidência de causas de natureza distinta, qualquer dos responsáveis é obrigado a reparar todo o dano. Nas relações internas dos vários responsáveis, o regime oscila, consoante a posição relativa destes, desde a solidariedade perfeita até à solidariedade só aparente»[29].
António Barroso Rodrigues, por sua vez, escreve o seguinte:
«(...) podemos distinguir em sede de policausalidade para a produção do prejuízo, ou seja, em sede de nexo delimitador:
a) Concorrência real, em sede de causalidade,
i) complementar;
ii) subsequente;
iii) coincidente; ou
iv) cumulativa.
b) Concorrência virtual, nomeadamente em sede de causalidade alternativa.
Vejamos cada um destes tipos de concorrência em maior detalhe.
(...) Concorrência real
(...) Em primeiro lugar, a concorrência real de causas resulta da qualificação de vários fatores no processo causal como causas operantes na produção do evento danoso, gerando-se um concurso objetivo de causas.
A concorrência real assume, por sua vez, várias modalidades, a saber:
i. Na concorrência complementar (...), o prejuízo depende em simultâneo de todas as causas para a sua verificação, embora entre as causas operantes não exista uma conexão de adequação quanto à respetiva verificação.
O devedor não forneceu os bens devidos ao restaurante, nem o empregado se apresentou ao serviço. Em resultado, o proprietário acumulou dívidas avultadas que o obrigam a trespassar o estabelecimento com prejuízo. O resultado lesivo ocorreu, nesta medida, pela concorrência complementar daquelas causas.
ii. Na concorrência subsequente, as causas concorrem para a produção do resultado, embora com estreita conexão e dependência em termos de verificação. A conexão ocorre porquanto a causa inicial é permissiva da existência da causa posterior, operante do dano causado. Ocorre paradigmaticamente perante a responsabilidade concorrente de um primeiro agente a título omissivo, embora se possa verificar por condutas ativas de vários agentes. Ponto determinante é o estabelecimento da conexão de adequação entre a causa inicial e a subsequente, rompendo com a necessidade de uma causalidade direta.
O furto do automóvel por terceiro é causa subsequente da inicial atribuível alternativamente ao (i) incumprimento da obrigação de guarda que recaia sobre o depositário, (ii) à mora do devedor (807.º/l), ou (iii) à agressão física que deixou o lesado inconsciente numa altercação no trânsito. Caso a criança agrida o seu amigo na sua festa de aniversário, são causas complementares do dano tanto a conduta da criança (ainda que se possa presumir inimputável, 488.º/2), como a conduta omissiva dos pais que não evitaram a produção deste tipo de danos (491.º).
O critério de apreciação implica também um juízo de prognose objetivo.
Por exemplo, não é relevante a invocação do depositário de que desconhecia que a coisa confiada seria furtada no dia em que a abandonou, ou da enfermeira da existência de outras doses de veneno (administradas anteriormente, em simultâneo, ou posteriormente) que vieram a provocar a morte do lesado. As condutas do depositário e da enfermeira são causa do dano considerado, respetivamente.
Porém, tal como visto em sede do nexo fundamentador, o conhecimento especial do agente também interfere nesta vertente, de conexão da sua atuação como os atos de terceiro ou fatores externos, em sentido transformativo da eventual causa única excludente de responsabilidade, para uma policausalidade de tipo subsequente.
iii. Na concorrência coincidente, o dano produz-se, segundo Antunes Varela, numa zona simultaneamente coberta pela sanção contra o facto ilícito de uma pessoa e pelo risco a cargo de uma outra. Neste caso, existem títulos omissivos puros associados à responsabilidade pelo risco, a qual assenta sobre um facto natural, de terceiro ou do próprio lesado, e nunca sobre um do responsável, o qual não o provoca culposamente.
Em caso de acidente de viação por culpa de terceiro que lesione o trabalhador, é causa exclusiva do dano o comportamento do terceiro, embora fundamente concomitantemente a responsabilidade pelo risco da entidade empregadora. Noutro exemplo, o devedor é responsável obrigacionalmente perante o credor pelo ato pelo seu representante legal (800.º/1).
A concorrência cumulativa ocorre perante a intervenção de várias causas na produção do resultado, tal como sucede na concorrência complementar, embora qualquer uma seja apta a produzir isoladamente o resultado danoso. Por este motivo, a concorrência cumulativa é por vezes designada de casualidade dupla (Doppelkausalitàt) ou concorrência alternativa real.
São causas cumulativas o atropelamento e o disparo, num caso de atropelamento mortal do lesado que se encontrava mortalmente ferido por terceiro, bem como a administração de duas doses mortais de veneno à vítima.
(...) O concurso real não afasta, nas várias vertentes que contempla, a relevância individual de cada causa para o apuramento da responsabilidade, independentemente da modalidade em apreço. A causalidade complementar, subsequente, coincidente ou cumulativa de responsabilidade, quando reportada a vários agentes, obriga todos os envolvidos a reparar os danos causados, no âmbito das responsabilidades subjetivas. Por outro lado, esta concorrência real, derivada de plurisubjectividade (incluindo a conduta do lesado e de terceiro) ou de fatores externos à conduta de qualquer agente, pode também fundar a responsabilidade objetiva de um terceiro.
Perante o lesado, cumpre apenas determinar a regra de repartição de responsabilidade perante a concorrência real de causas atribuível a vários agentes.
a. [âmbito delitual] O regime é o de solidariedade na via delitual (497.9/l). Este preceito não se restringe à causalidade no contexto da responsabilidade subjetiva, abrangendo os responsáveis pelo dano na vertente objetiva ou pelo risco a título extraobrigacional. A nível interno, na responsabilidade delitual, a repartição da responsabilidade entre os responsáveis é feita na medida da respetiva culpa (cfr. 497.º/2, 506.º, 507.º/2).
O artigo 497.º é o preceito modelar do nexo delimitador de responsabilidade no âmbito delitual. Determina a solidariedade de vários agentes por um único critério: a responsabilidade “pelos [mesmos] danos”, ainda que esta derive de vários atos ilícitos (leia-se, de várias causas). Em suma, o dano comum à atuação de vários agentes é a ratio da respetiva solidariedade. Por outro lado, a comunhão do dano advém, concretizando aquele fator de comunhão, de as atuações se situarem no âmbito do mesmo evento determinante de responsabilidade. Solucionam-se, por este critério, as dificuldades suscitadas em particular pela concorrência cumulativa, dado o afastamento do critério que preside à c.s.q.n.: qualquer causa é apta à produção do resultado, pelo que nenhuma se afigura determinante no processo causal. Aliás, os casos enunciados por Paulo Mota Pinto como de complementaridade e sobre-determinação causal (será o caso, no exemplo do A., das decisões colegiais que superem a maioria necessária, especificamente «se quatro pessoas apoiam determinada deliberação, quando teria sido suficiente o voto de três delas») também se reconduzem à regra enunciada no art.º 497.º, i.e., se a concorrência causal total responsabiliza todos os agentes, o mesmo sucede a título a parcial, por maioria de razão. Note-se que estamos no âmbito de concorrência de causas objetivas, ou seja, causas que se manifestaram, ou foram operantes na verificação ou agravamento do dano manifestado; caso contrário, seriam meramente (alternativas) virtuais, como veremos.
(...)»[30].
Pereira Coelho afirma que há «causalidade cumulativa quando a eficácia causal dos dois factos, cada um dos quais seria capaz de produzir o efeito só por si, cooperou efetivamente para o dano verificado. Pelo contrário, se a eficácia causal de um dos factos não chegou a operar efetivamente no resultado, se o dano, como concretamente se verificou, só foi produzido pela eficácia causal de outro, aquele é uma pura causa ou facto hipotético em relação a esse dano. Tal facto, com efeito, teria produzido o dano se não fosse o outro; mas realmente nada fez, não acrescentou nada; sem ele o dano ter-se-ia verificado exatamente como se verificou. Se esta diretiva não resolve o tudo (porque justamente em muitos casos o que é duvidoso é se a eficácia causal dos dois factos cooperou efectivamente para o dano concretamente verificado), facilita, pelo menos, a solução do problema[31]
Ainda segundo o mesmo Autor, fala-se em causalidade interrompida[32] «quando um facto teria provocado realmente um determinado efeito, mas a verificação deste efeito foi impedida por um outro facto que por sua parte o produziu com anterioridade. O 1.º facto não foi pois aqui senão uma causa virtual do efeito, que não chegou a causar; o 2.º facto, que provocou realmente o dano, interrompeu a 1.ª série causal. Os casos de causalidade interrompida não são, portanto, casos de causalidade cumulativa, mas de causalidade hipotética.
A doutrina empenha-se, porém, em esclarecer que não há «interrupção» em todos os casos em que a 1.ª série causal, em curso na direcção do efeito, encontrou um 2.º facto que o provocou. E com razão. Na verdade, é princípio bem assente que o facto constitutivo de responsabilidade não carece de ser a única causa do dano. Tal como não se discute que o dano bem pode ser causado só mediatamente pelo facto. Sendo assim, como é, a «interrupção» não pode ser a regra. Se o efeito só se verificou em consequência de um 2.º facto, nem por isso o 1.º deve deixar de julgar-se também, em princípio, causa (indirecta) do dano. Ora bem: em que casos é que se pode então dizer que a 1.ª série causal foi «interrompida»?
Em geral ensina-se que há interrupção sempre que o 2.º facto foi independente do 1.º Suponhamos que o facto A teria provocado o efeito B, se o facto A’ não o tivesse produzido antes. Devem-se distinguir aqui três hipóteses:
a) Entre A e A’ não há sequer uma relação de condicionalidade; A não foi mesmo conditio sine qua non (c. s. q. n.) de A’.
b) Entre A e A’, existe uma relação de condicionalidade, mas não de causalidade adequada.
c) Entre A e A’ há não só uma relação de condicionalidade como também uma relação de adequação.
Pois bem. Só nas duas primeiras hipóteses é que se poderá dizer que o nexo de causalidade (adequada) entre A e B foi interrompido, sendo o dano apenas uma consequência de A’. Pelo contrário, na última hipótese já se não poderá falar em «interrupção». É que se A’ foi dependente de A, no sentido de que foi uma sua consequência adequada, se não era improvável que A produzisse o efeito B desta maneira, por este caminho: A-A’-B, a mediação do termo A’ não significará uma interrupção, mas justamente, bem ao contrário, uma fase ou termo do processo causal A-B. Neste caso, portanto, A deve julgar-se uma causa mediata do dano e o autor do facto A deve ser responsável pelo dano indirecto que causou; A a sua causa imediata e o autor do facto A’ (se ele induziu a responsabilidade de alguém) também responsável, ao lado do autor do facto A, pelo dano. Não se tratará aqui, assim, de um caso de causalidade hipotética, mas de um caso de causalidade cumulativa. A intervenção dos dois factos foi real; o dano, como concretamente teve lugar, verificou-se em consequência da eficácia causal dos dois factos. Nem outra solução se harmonizaria, na verdade, com o princípio indiscutível de que a causalidade indirecta é suficiente e com as razoes que estão na base deste princípio. O princípio da responsabilidade por todas as consequências adequadas do facto, mesmo as indirectas, exige que a responsabilidade do autor do facto subsista sempre que o 2.º facto, que provocou o dano, possa ser considerado uma consequência adequada do 1.º facto.
Mas esta fórmula (o nexo de causalidade entre o 1.º facto e o dano é interrompido por todo o facto que não seja uma consequência adequada do 1.º) suscita alguns reparos, e carece de ser esclarecida. Suponhamos que um veículo muito pesado, por manobra imprudente do seu condutor, danificou gravemente uma casa em termos de ela passar a ameaçar ruína. Porém, poucos dias depois, a casa abateu em consequência de um ciclone ou do embate de um outro veículo. Ora não sofre dúvidas que estes factos em si mesmos são independentes do 1.º facto, que nem sequer os condicionou. Donde que haveria interrupção do nexo de causalidade, neste caso. Mas todos vêem como esta conclusão não pode estar certa quando foi justamente o estado de ruína do edifício, provocado pelo 1.º facto, que favoreceu a eficácia causal do 2.º facto para o dano. Na verdade, se foi assim, o 1.º facto cooperou efectivamente com o 2.º para o dano concretamente verificado. A sua eficácia causal, em relação a este dano, não foi, pois, só virtual, mas real. E logo não pode julgar-se interrompido o mexo de causalidade entre o 1.º facto e o dano, nestes casos, considerando-se o 1.º facto, em relação ao dano, uma pura causa hipotética. Trata-se aqui manifestamente em casos de concorrência efectiva de causas.
Se se quiser conservar a fórmula corrente de que o 2.º facto deve ser independente (não deve ser uma consequência adequada) do 1.º, ela deve entender-se no sentido de que a conexão (a relação de adequação) a indagar não é uma conexão entre o 1.º facto e o 2.º facto em si mesmo, mas entre o 1.º facto e o 2.º, encarado este na sua direcção concreta em relação ao efeito que provocou. Para nos servirmos do mesmo exemplo, o que há que perguntar não é se o ciclone ou o choque do segundo veículo são consequências adequadas do 1.º facto (é claro que, se se pergunta isso, tem que se responder que não são). Mas a pergunta a fazer é se o facto de o ciclone ou o choque do segundo veículo terem abatido a casa se pode julgar uma consequência adequada do 1.º facto. Trata-se de saber se o 1.º facto, o choque do primeiro veículo com a casa, torna mais provável ou favorece objectivamente a queda da casa em consequência de um ciclone ou do choque de outro veículo. Formulada a pergunta nestes termos, a relação de adequação já poderá em muitos casos ser afirmada.
Ou então pode dizer-se que a exigência de que o 2.º facto seja independente (não seja uma consequência adequada) do 1.º só está certa no sentido da sua necessidade, mas não no da sua suficiência. O princípio de que a responsabilidade se estende a todas as consequências adequadas do facto, mesmo as indirectas, exige que a obrigação de indemnizar do autor do 1.º facto subsista, em princípio, nestes casos. Para o autor do 1.º facto não ser responsável, terá que demonstrar-se que a 1.ª série causal, a que ele deu começo, foi interrompida pelo 2.º facto. E o que quer dizer isto? Quer dizer que ela não cooperou efectivamente para o dano verificado, que o dano teve lugar apenas em consequência da eficácia causal do facto interruptivo e, portanto, o 1.º facto não foi realmente causa do dano. Ora bem: se é assim, é claro que é necessário que o 2.º facto seja independente do 1.º Com efeito, se se mostra que o 2.º facto foi dependente do 1.º (no sentido de que foi uma sua consequência adequada) mostra-se também indirectamente que o 1.º facto cooperou efectivamente para o dano concretamente verificado. A sua eficácia causal para este dano revelou-se justamente em ele ter provocado o 2.º facto, donde resultou o dano. Porém, a prova de que o 2.º facto foi independente do 1.º não deverá julgar-se suficiente. É que pode bem acontecer (...) que o 2.º facto seja inteira mente independente do 1.º e todavia só tenha provocado o dano em cooperação com os termos já decorridos da 1.ª série causal. Donde que à exigência de que o 2.º facto seja independente do 1.°, no sentido indicado, deva acrescer ainda uma outra exigência: a de que o 2.º facto tenha provocado o efeito independentemente do 1.°, de tal maneira que a eficácia causal do 2.º facto tenha operado o dano concretamente verificado.
E tudo isto não é senão ainda uma aplicação da ideia fundamental atrás exposta acerca da delimitação da causalidade cumulativa em face da causalidade interrompida. Se são de pôr aqui todas estas exigências, é porque só cumpridas todas elas se prova que a eficácia causal do 1.° facto não foi efectiva ou real para o dano (como em princípio se deve supor que foi), mas puramente virtual ou hipotética»[33].
À luz dos considerandos que antecedem, no caso concreto, o autor parece invocar uma concorrência real complementar de causas operantes na produção do evento danoso.
Só que isso não ocorreu na situação sub judice!
Vejamos:
A) A não participação atempada do sinistro pela 1.ª ré à 2.ª ré:
Não resultou provado que:
- esta conduta por si só, fosse capaz de produzir o efeito danoso ou tivesse cooperado para o dano verificado;
- a eficácia causal desta conduta tenha chegado a operar efetivamente no resultado danoso.
Pelo contrário, a factualidade provada demonstra que o dano, tal como ele concretamente se verificou, não foi produzido pela eficácia causal daquela conduta.
Na verdade, tal como acertadamente se afirma na sentença recorrida, «como resulta dos factos apurados no dia 19.1.2026 o autor teve um acidente de trabalho: uma pedra bateu-lhe no olho. Existia a obrigação por parte da entidade patronal de comunicar o acidente à seguradora no prazo de 8 dias logo após ter sido informada, o que não fez. A comunicação veio apenas a acontecer no mês de Março, quase dois meses após o acidente.
Face às consequências do acidente e no dia seguinte, o autor dirigiu-se a um hospital público onde foi diagnosticado e medicado para o processo inflamatório que apresentava. Não há factos que demonstrem que ou autor tenha tido qualquer outro acompanhamento médico até 18.3.2016, data em que foi visto em consequência da comunicação do acidente à ré L. A 29.3.2016 o autor apresentava-se curado sem desvalorização.
Apesar de entidade patronal ter procedido à comunicação à seguradora tardiamente e, consequentemente, esta só o ter assistido cerca de dois meses depois do acidente, a verdade é que não resultou provado que, a ter sido o autor assistido na L imediatamente após o acidente, não teria suportado as dores ou o mau estar ou que tivesse sido objecto de outro tratamento. E, na verdade, o autor recebeu alta sem qualquer desvalorização.
Não houve até aquela data qualquer diminuição da acuidade visual. E nada dos elementos de prova indica que o desfecho pudesse vir a ser outro, caso a entidade patronal ou os médicos prestadores por conta da seguradora tivessem agido de outra forma».
Aliás, está até provado que:
«18. Em Julho de 2016, o autor começou a “perder a visão”.
19. A mulher do autor ligou para a seguradora, obtendo como resposta só reabririam o processo, a pedido do segurado.
20. Por causa da “perda de visão”, incómodo e dores o autor deslocou-se a 16.7.2016 ao Hospital ____.
21. Nessa instituição foi observado na consulta de urgência por queixa de corpo estranho no olho esquerdo desde o dia anterior.
22. No relato dessa consulta foi consignado que o autor apresentava hiperemia e sensação de corpo estranho a nível do OE.
23. No mesmo relatório de urgência sob o item “História da Doença actual” consignou-se: “Refere que após ter estado exposto a ventos e poeiras iniciou sensação de corpo estranho no OE. Manteve sensação até à poucos minutos…”[34] (…) “…OE francamente ruborizado”».
B) O não encaminhamento atempado do processo de sinistro pela 2.ª ré para os seus serviços médicos:
Também não resultou provada, e nem sequer se nos afigura que tenha sido alegada:
- qualquer conduta da 2.ª ré que, por si só, fosse capaz de produzir o efeito danoso ou tivesse cooperado para o dano verificado;
- a eficácia causal de qualquer conduta da 2.ª ré suscetível de operar efetivamente no resultado danoso.
C) A «ausência de intervenção urgente e aplicação das práticas médicas pela R. ALM mais adequadas e necessárias e evitar inflamações, catarata e descolamentos de retina e/ou agravamento de qualquer das situações de molde a evitar a perda de visão».
Está aqui em causa uma situação de responsabilidade civil extracontratual de um estabelecimento de saúde de direito privado, de uma pessoa coletiva de direito privado, a ALM, S.A., por danos alegadamente resultantes de ações e/ou omissões ilícitas cometidas por médicos ao seu serviço
Conforme refere Kylie Michelle Cardoso Barra, «para que se possa accionar a figura da responsabilidade civil médica necessário é que seja praticado um facto, que se consubstancia num acto humano idóneo a originar uma obrigação de indemnizar. O facto praticado tem de ser controlável pela vontade do médico e, portanto, voluntário, exteriorizando-se através de uma acção ou omissão que terá consequências jurídicas sobre o estado do paciente.
O facto é representado pela conduta do médico que, por sua vez, é representada pelo tratamento aplicado ao doente através de exames, cirurgias, exames laboratoriais, entre outros procedimentos médicos»[35].
Segundo Carolina Salgado, «podemos definir o conceito de ato médico como uma conduta por parte de pessoal médico, ou equipa de médicos, no exercício da sua profissão, e de acordo com as regras de conduta médica, que tem como finalidade a atuação direta ou indirecta sobre um organismo humano por forma a promover ou assegurar as condições de saúde humana, e para a qual tem ou têm a devida habilitação académica e profissional.
Neste sentido, podemos definir como pressupostos os seguintes: o caráter profissional do(s) sujeito(s) (existência de título habilitante e no exercício da profissão), o caráter típico e regular da conduta (legis artis) e o objectivo da conduta (atuação direta ou indirecta sobre um organismo humano por forma a promover ou assegurar as condições de saúde humana).
São incluídos, deste modo, nos atos médicos as condutas praticadas por agentes de saúde, desde que no âmbito das suas competências e especialidades.
Os atos médicos poderão ser de vários tipos: atos de prevenção (que visam tomar as medidas necessárias para evitar o surgimento da doença), os atos de diagnóstico (que visam determinar a natureza e origem da doença do paciente, através dos exames e análises), os atos de prescrição (que visam determinar o tratamento que o paciente deve seguir após o diagnóstico), os atos de tratamento (atos de execução de medidas idóneas à cura ou melhoria do paciente), os atos de reabilitação (atos dirigidos ao restabelecimento de um órgão ou membro do paciente ao seu estado saudável), e por fim outros atos médicos.
Em função do critério da qualidade do agente, mais utilizado pela doutrina francesa, os atos médicos podem ainda distinguir-se em atos médicos em sentido geral (unicamente praticados pelo pessoal médico hospitalar), atos médicos propriamente ditos (exclusivamente praticados por médicos ou sob a sua supervisão, podendo estes intervir a qualquer momento) e os atos médicos paramédicos (realizados pelo pessoal paramédico mas sob prescrição médica, podendo consistir em atos de auxílio ou em atos de manutenção de funções vitais do paciente).
Finalmente, podemos ainda distinguir os atos médicos dos atos de cuidados de saúde, em função não da qualidade do agente mas sim da maior ou menor complexidade do ato.
Deste modo, as leges artis consistem em princípios e normas de avaliação de uma certa conduta médica, valorando a conformidade dessa conduta com a técnica e padrões exigidos ou a adequação da mesma à situação concreta, não esquecendo diversos fatores como a gravidade do estado do paciente ou os fatores exógenos aos quais esteja sujeita, tendo em conta casos análogos, bem como o resultado provocado.
Neste pressuposto, existe incumprimento quando o médico comete uma falta técnica, seja por acção seja por omissão, face aos padrões exigidos e comummente aceites»[36].
O S.T.J., no seu Ac. de 03.04.2008, Proc. n.º 08A183 (Fonseca Ramos), delimitou assim o conceito de ato médico: «acto executado por um profissional de saúde que consiste numa avaliação diagnóstica, prognóstica ou de prescrição e execução de medidas terapêuticas»[37]
Roberto Pucella[38], citado por Nuno Manuel Pinto Oliveira[39] «descreve a responsabilidade civil dos médicos como uma responsabilidade situada entre dois pólos, entre os pólos da lesão da autonomia e da lesão da integridade, para distinguir duas grandes áreas da responsabilidade civil dos médicos; para distinguir a responsabilidade por defeito do consentimento e a responsabilidade por defeito do tratamento».
Ainda segundo Nuno Manuel Pinto Oliveira, «como se afirma, p. ex., no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11 de Novembro de 2014 [Jorge Arcanjo], “a acção de responsabilidade civil médica pode fundar-se no erro médico e/ou na violação do consentimento informado”. Com o termo “violação do consentimento informado” pretende-se designar o defeito do consentimento e com o termo “erro médico”, concretizado na violação das leis da arte e da ciência médica, pretende-se designar o defeito do tratamento. A primeira, a responsabilidade pelo defeito do consentimento, teria como fim salvaguardar ou tutelar o bem jurídico autonomia — ou seja, tutelar o direito à autodeterminação nos cuidados de saúde — e a segunda, a responsabilidade pelo defeito de tratamento teria como fim tutelar os bens jurídicos vida e saúde do paciente. Ora o primeiro tipo de dificuldades causado pela responsabilidade civil dos médicos prende-se com a distinção entre a tipicidade e a ilicitude na responsabilidade médica por defeitos do consentimento; o segundo tipo de dificuldades, com a distinção entre a tipicidade, a ilicitude e a culpa na responsabilidade médica por defeitos do tratamento»[40].
Está aqui em causa a responsabilidade civil por defeito de tratamento.
Ainda segundo Carolina Salgado, «a atuação do médico é uma obrigação de meios, e não de resultado, os quais devem adequar-se a um padrão de atuação tida como legis artis. Quando uma conduta médica, por acção ou omissão, não está conforme, desviando-se ou contrariando as legis artis, estaremos perante um erro médico.
Desta forma, o erro médico consistirá numa conduta profissional do médico inadequada que resulta da utilização de uma técnica médica ou terapêutica incorretas lesivas para a saúde ou vida de um paciente, podendo ter várias causas, como imperícia (insuficiência de conhecimentos, inexperiência, inconsideração ou negligência.
Neste pressuposto, e tendo presente a classificação de atos médicos referida supra, o erro médico pode ser de comissão (que ocorre quando o médico pratica uma conduta errada), de omissão (que ocorre quando o médico não pratica a conduta correta) ou de execução (que ocorre quando a conduta correta é praticada mas de forma defeituosa), podendo ainda ser de quatro tipos: erro de cuidado preventivo, erro de diagnóstico, erro de tratamento ou terapêutico e erro na relação com o paciente, nomeadamente que envolva falhas de comunicação ou de equipamentos.
O erro de cuidado preventivo dá-se quando são adotadas medidas preventivas inadequadas ou insuficientes para a situação concreta, quando existe alguma falha no aconselhamento preventivo ou na monitorização da situação.
O erro de diagnóstico, que se reporta ao momento da determinação da natureza e origem da doença do paciente, através de exames e análises, subdivide-se em erro inevitável e erro evitável. O erro inevitável resulta de limitações da ciência, da carência de recursos ou outras condições alheias à competência do médico. O erro evitável já se pode traduzir num erro de raciocínio, ou na errada utilização ou interpretação dos resultados de exames ou análises, sendo por isso imputável ao médico.
Quanto ao erro de tratamento, ocorre quando o tratamento é inadequado, ou há um erro na realização de uma intervenção ou procedimento terapêutico ou na posologia ou forma de administração de medicamentos.
Finalmente, poderão existir outros erros, relacionados nomeadamente com falhas de comunicação ou de equipamento.
Ainda assim, deve ser feita uma distinção entre o erro médico e o acidente imprevisível (ocorrência fortuita incapaz de ser prevista ou evitada), o resultado incontrolável (na medida em que nem a ciência médica nem os profissionais têm ainda resposta para a situação) e o resultado adverso (ocorre quando o médico emprega todos os meios disponíveis é adequados à situação sem obter, porém, o resultado pretendido e esperado).
Deste modo, um juízo de censura ou de reprovação baseia-se no reconhecimento, perante as circunstâncias concretas do caso, de que o médico não só devia como podia ter agido de outro modo»[41].
O ónus da prova do facto típico enquanto pressuposto da responsabilidade civil, que no caso, como referido, é extracontratual, não representa dificuldade acrescida, e recai sobre o lesado, o ora autor.
Para além da ocorrência do facto típico, é necessário, além do mais, que o mesmo seja ilícito.
Tal pressuposto significa, em sede de responsabilidade civil extracontratual, a violação:
- de um direito absoluto, como é o caso da violação do direito à vida e à integridade física e psíquica do paciente; ou,
- de uma norma destinada a proteger interesses do doente, como é o caso da violação de normas deontológicas que assumam a qualificação de normas de proteção,
conforme decorre do art.º 483.º, n.º 1, do CC, onde, tal como já referido, se encontra consagrada a regra geral de responsabilidade civil aquiliana e, concretamente, aquelas duas formas de ilicitude.
A este propósito, escreve Kylie Michelle Cardoso Barra, «um acto médico estará viciado de ilicitude na exacta medida em que se verifique, efectivamente, um resultado nefasto para a situação clínica do doente, acompanhado da preterição da legis artis. O conceito de legis artis assume notória relevância no âmbito deste pressuposto pois servirá como critério para aferir se o acto médico praticado padece ou não de ilicitude.
Em conformidade, JOÃO ÁLVARO DIAS[42] defende que o artigo 150.º do Código Penal deve constituir um critério geral para a afirmação ou não de ilicitude no caso concreto, na medida em que dispõe o seguinte:
“as intervenções e tratamento que, segundo o estado de conhecimentos e da experiência da medicina, se mostram indicados e foram levados a cabo, de acordo com as legis artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física”.
Com base neste critério, só existirá uma lesão ilícita, para efeitos do n.º 1 do artigo 483.º do C.C, se o profissional de saúde praticar um qualquer acto médico sem a observância da legis artis (conjunto de regras da arte médica, isto é, regras que a ciência médica reconhece como as adequadas para a prática de um determinado acto clínico). Ou seja, deverá ser adoptado o critério da conformidade com a legis artis para averiguar a licitude ou ilicitude da intervenção do médico.  Deverá, assim, ter-se como acto médico ilícito a violação de uma norma legal, regulamentar ou estatuária que regule a relação contraída entre o médico e o doente, na medida em que estabelece deveres concretos para o médico e elenque os comportamentos que devem ser tidos como proibidos»[43].
Bruno Miguel Marques Folgado afirma que «apurar a existência de uma falta médica pode revelar-se um desafio, seja pela contínua evolução da ciência, das técnicas e práticas médicas e pela mutabilidade das leges artis. Estas dificuldades adensam-se pelo facto de a ilicitude resultante da falta médica não originar, necessariamente, da violação da lei, das cláusulas contratuais ou até do interesse de outrem, mas sim das próprias leges artis contidas na prática médica e consagradas de modo avulso. A mesma mutabilidade pode ser observada nos protocolos para as práticas médicas, com o surgimento desenfreado de novos protocolos, directrizes, ensaios e estudos clínicos e declarações de consenso, constituindo (...) uma “dificuldade de peso” na busca por “um padrão geral e objectivamente válido para as práticas médicas”.
Igualmente criadora de dificuldades será a dispersão da responsabilidade no seio do trabalho em equipa, juntamente com a necessidade de livre decisão clínica e ética pela parte do médico, tornando difícil apurar, a posteriori, se no momento da decisão terá tomado o médico a solução mais conforme as leges artis.
Acresce que estas mesmas leges artis são estabelecidas nos mesmos contornos que as normas legais o são, no plano geral e abstracto e em ambos os casos é possível que os termos gerais que declaram a (in)admissibilidade de dada solução não se verifiquem na situação concreta»[44].
Escreve o mesmo AUTOR que «é desde logo necessária a existência de um facto voluntário do agente, sendo a nota da voluntariedade essencial, pois apenas em relação a factos que contenham esta nota se poderá falar dos conceitos de ilicitude, culpa e obrigação de reparar o dano, ideias centrais na temática da responsabilidade civil. Tal como ANTUNES VARELA adverte, “quando se alude a facto voluntário do agente, não se pretende restringir os factos humanos relevantes em matéria de responsabilidade aos actos queridos, ou seja, àqueles casos em que o agente tenha prefigurado mentalmente os efeitos do acto e tenha agido em vista deles. Há, pelo contrário, inúmeros casos (a começar pela chamada negligência inconsciente) em que não existe semelhante representação mental e, todavia, ninguém contesta a obrigação de indemnizar.”
Este facto consiste, regra geral, num facto positivo, numa acção, que se traduz no incumprimento de obrigação ou na violação de um dever geral de não ingerência no campo de acção do titular de um direito absoluto. Contudo, como já sabemos, casos haverá em que será uma omissão ou abstenção, e não uma acção, constituinte do facto voluntário e ilícito do agente, como se dispõe no art.º 486º. Conforme se retira da letra da norma, a omissão constitui a causa do dano quando exista “o dever de praticar o acto omitido”, dado que a prática desse acto teria, em princípio, evitado a consumação do dano. Em sede de responsabilidade contratual, a conduta ilícita do devedor que materializa o incumprimento resulta muitas vezes de uma omissão, da não prática de uma prestação devida.
Não é, contudo, suficiente que se verifique a prática de um facto danoso aos interesses do lesado para que surja a obrigação de o indemnizar, sobretudo quando falamos em responsabilidade médica, domínio que como temos visto, é imprevisível e em constante mutação. Assim, surge um segundo critério complementar do facto voluntário do agente: a ilicitude do referido facto. A ilicitude demonstra a reprovação da conduta do lesante.
O actual CC pretendeu plasmar precisamente o conceito da ilicitude, definindo as duas formas essenciais através das quais a ilicitude se manifesta. Por detrás desta extensiva caracterização esteve o intuito de facilitar o intérprete na tarefa de delimitar o domínio da actuação ilícita.
Destas variantes de ilicitude a referir, ambas constantes do princípio geral consignado no art.º 483º, será a ilícita violação de um “direito de outrem (1) ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios (2)”. Assim, na primeira modalidade de ilicitude (1) por direito de outrem, a lei refere-se a direitos subjectivos não abrangidos pela responsabilidade contratual, dos quais constituirão a maior parte direitos absolutos, dos quais são exemplo os direitos de personalidade, direitos familiares, entre outros. Quanto à segunda modalidade de ilicitude (2), preenchida pela violação de “qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios”, estamos perante a infracção de normas que, (a) embora procurem proteger interesses particulares, não atribuem aos seus titulares um direito subjectivo ou de normas que, (b) não obstante procurarem a defesa de interesses colectivos, atendem a subjacentes interesses particulares. Para a constatação deste segundo tipo de ilicitude, e subsequentemente para que o lesado tenha direito a ser indemnizado, é necessário o preenchimento de três requisitos:
1º Que corresponda a violação de uma disposição legal à lesão dos interesses do lesado.
2º Que a tutela desses interesses constitua uma das finalidades da norma violada.
3º Que o prejuízo se tenha verificado no domínio dos interesses particulares que a norma procura tutelar.
No domínio médico, a categoria geral das leges artis engloba todos estes elementos e nessa conformidade verificar-se-á a existência da ilicitude quando esteja em causa a violação das leges artis, cuja definição provém maioritariamente das normas do CDOM.
A par destas normas, são ainda constituintes da categoria das leges artis diversas directrizes, protocolos, reuniões de consenso e de preceitos legais dirigidos à actividade médica, para além da lei criminal, que não será englobada neste estudo. Notemos que um acréscimo à usual dificuldade de constatação da ilicitude em sede de responsabilidade civil médica decorre do facto de certo procedimento tomado pelo médico e que, a posteriori, não se revela o mais adequado, era conforme às leges artis na altura da sua prática.
O ónus da prova da ilicitude cabe sempre ao lesado. Apesar da existência de presunções de culpa, tal não significa a existência de presunções de ilicitude, nem sequer no domínio das prestações de resultado.
A adensar a problemática da constatação da ilicitude neste domínio, regressamos à ideia geral em sede da verificação da ilicitude de que “o facto de um determinado tratamento clínico não produzir os resultados desejados não significa, por si só, que tenha havido erro médico e que tenha sido este o causador das mazelas de que o Autor se queixa”.
Assim, caberá ao lesado provar que as leges artis exigiam uma conduta diferente que aquela tomada pelo médico»[45].
Nuno Manuel Pinto Oliveira escreve ainda o seguinte acerca da temática de que nos vimos ocupando:
«O tratamento por acto médico conforme com as leges artis é exigido (i) pelo art.º 4.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina; (ii) pelo art.º 150.º do Código Penal; (iii) pelo art.º 135.º, n.ºs 1, 8 e 10, do Estatuto da Ordem dos Médicos; e (iv) pelos art.º 4.º, n.º 1, 5.º, 8.º, n.º 1, e 10.º do Regulamento de Deontologia Médica.
O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Dezembro de 2015[46] desenvolve o conceito de leges artis, caracterizando-as como o “critério valorativo de um acto clínico praticado por um médico” e chamando a atenção para três características: Em primeiro lugar, para o facto de as leis da arte e da ciência médica serem constituídas por normas éticas e por normas científicas e técnicas; - por normas éticas, resultantes de códigos deontológicos ou de “pareceres de comissões de ética”; - por normas científicas e técnicas, resultantes de “normas de orientação clínica”, “de protocolos, [de] guidelines, [de] livros e [de] revistas especializadas”. Em segundo lugar, para a circunstância de serem variáveis, de “momento histórico” para “momento histórico” e, em terceiro lugar, para a circunstância de, em determinado momento histórico, serem variáveis, para se adaptarem ou ajustarem “à concreta situação individual”. Os médicos teriam o dever ético e jurídico de as conhecer e, conhecendo-as, o dever de as aplicar ou de as “utilizar”, “tendo em conta o estado da ciência e o estado concreto do doente”.
(...) O STJ sublinha que (...) o acto do médico não é um acto isolado - é sim um conjunto, um complexo ou um conjunto complexo de actos[47] - e a prestação de tratamento médico não é uma prestação isolada - é sim um conjunto, um complexo ou um conjunto complexo de prestações[48]. O aplicador do direito, ao apreciar o comportamento de um médico, deve considerar todos os actos, todo o processo[49] - estando em causa, p. ex., uma intervenção cirúrgica, deve considerar o comportamento do médico nas fases pré e pós-operatória[50]; na fase pós-operatória, o médico teria, pelo menos, um dever de vigilância do paciente[51]-[52]. Em cada uma das fases do processo, o conceito de diligência designa o padrão ou standard por que há-de apreciar-se o comportamento (positivo ou negativo) do médico.
Excluídos os casos de dolo, por serem praticamente insignificantes, os critérios da tipicidade, da ilicitude e da culpa têm como ponto de referência comum o conceito de diligência. O médico comportar-se-á com diligência desde que se conforme com os padrões ou standards de conduta do seu círculo profissional e com negligência desde que não se conforme com tais padrões ou com tais standards. Estando em causa o comportamento dos médicos, o conceito de diligência é um caso particular - e só é um caso particular - pelo facto de o conteúdo do dever de diligência ser um conteúdo de alguma forma determinado pelas leis da arte e da ciência médicas.
a) O STJ admite que a diligência é o critério da tipicidade e da ilicitude. Os acórdãos de 22 de Março de 2007 237, de 16 de Junho de 2009 238, de 15 de Outubro de 2009 239, de 15 de Dezembro de 2011 240 e de 28 de Maio de 2015 241, p. ex., pressupõem que o comportamento do médico só seja típico e ilícito, por significar o não cumprimento, na modalidade de cumprimento defeituoso, do dever de prestação, desde que haja violação das leis da arte e da ciência médica - “das regras reconhecidas pela ciência médica em geral como sendo as apropriadas à abordagem do referido caso clínico”. Em acórdão de 25 de Fevereiro de 2015, relatado pelo Conselheiro Armindo Monteiro, o Supremo representa, paradigmaticamente, a responsabilidade civil dos médicos como uma responsabilidade civil por negligência, “por violação das leges artis”. O comportamento do médico corresponderia a um tipo de responsabilidade civil (ao tipo do art.º 483.º ou ao tipo do art.º 798.º) “sempre que, por […] falta de cuidado seu, o médico deixa[sse] de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, lhe eram de exigir, em função da sua qualidade profissional”.
b) Como o STJ admite, explícita ou implicitamente, (...) a diligência exigível é o critério da tipicidade e da ilicitude do comportamento (...)[53].
(...)
O comportamento do médico preencherá os requisitos da tipicidade e da ilicitude, desde que omita a mais elevada medida de cuidado exterior - desde que, no caso concreto, o médico não preste ao paciente os cuidados ao alcance de um médico ideal, com as mais amplas capacidades e a mais completa experiência razoavelmente concebíveis.
(...)
Concordando com a apreciação da tipicidade e da ilicitude a partir do standard da mais elevada medida de cuidado exterior e com a apreciação da culpa a partir do standard da medida normal de cuidado, interior e exterior, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 29 de Junho de 2006 e de 26 de Junho de 2008, relatados pelo Desembargador Esaguy Martins dizem expressamente que “[a] ilicitude contratual […] está equiparada à omissão da mais elevada medida de cuidado exterior - ou seja dos melhores cuidados possíveis, de acordo com as leis da arte e da ciência médica”.
Em relação à responsabilidade extracontratual, os critérios enunciados para a tipicidade, para a ilicitude e para a culpa conciliam-se com alguma facilidade com a formulação intermédia por que se pretendeu superar o conflito entre a doutrina da ilicitude da conduta (Verhaltensunrecht) e a doutrina da ilicitude do resultado (Erfolgsunrecht)[54].
O acórdão de 15 de Outubro de 2009[55] dá um indício da adesão do STJ a uma formulação intermédia, ao afirmar que “[a]o médico, seja qual for a sua obrigação, esteja ou não vinculado por contrato, exige-se que cumpra as leges artis com a diligência normal de um médico médio (reasonable doctor)”. Os acórdãos do STJ de 24 de Maio de 2011[56] e de 28 de Maio de 2015[57] confirmam o indício em causa:  O primeiro - o acórdão de 24 de Maio de 2011 - diz que, “[n]o âmbito da responsabilidade civil extracontratual”, o médico tem o dever geral de cuidado, “empregando a sua ciência para a obtenção da cura do doente, mas sem assegurar que esse resultado se produza” e o segundo — o acórdão de 28 de Maio de 2015[58] .º, que, no âmbito de qualquer das duas responsabilidades, contratual e extracontratual, o médico tem uma obrigação de meios, concretizando-se a obrigação do médico no dever de adopção de “práticas médicas que, de forma diligente, respeitem as leges artis ajustadas a cada situação”»[59].
No que respeita ao ónus da prova da tipicidade e da ilicitude, escreve o mesmo Autor que «o STJ distingue as obrigações de meios e as obrigações de resultado, definindo-as nos seguintes termos: nas obrigações de meios, o médico obrigar-se-ia a menos - obrigar-se-ia a tratar o paciente[60], com a diligência exigível[61]; a proporcionar-lhe os seus “melhores esforços”[62], aplicando correctamente as leis da arte e da ciência médica[63]-[64]; nas obrigações de resultado, o médico obrigar-se-ia a mais - a curar o paciente[65]. Explicitando o critério de distinção entre os dois tipos de obrigações, o STJ alega que o aplicador do direito há-de determinar casuisticamente[66] se a obrigação do médico é de meios ou de resultado, atendendo designadamente a quatro elementos — atendendo ao fim do acto médico[67], ao conteúdo do acto médico[68], à probabilidade de o fim pretendido pelas partes ser, ou não ser, realizado[69] e à vontade das partes[70].
Entre os corolários da distinção entre as obrigações de meios e as obrigações de resultado estaria o ónus da prova da tipicidade e da ilicitude: nas (chamadas) obrigações de meios, o paciente teria o ónus de alegar e de provar que o médico não alcançou o resultado pretendido por causa da omissão da diligência exigível[71]; nas (chamadas) obrigações de resultado, não - o paciente só teria o ónus de provar que o médico não alcançou o resultado pretendido, para que ficasse provado o não cumprimento. Em todas as obrigações de resultado, a prova da tipicidade e da ilicitude ficaria facilitada. O acórdão do STJ de 17 de Dezembro de 2002[72] dizia-o a propósito de uma intervenção necessária do ponto de vista da saúde — considerada pelo STJ como uma prestação simples, cuja margem de risco seria irrelevante[73] - e o acórdão do STJ de 17 de Dezembro de 2009[74], a propósito de uma intervenção não necessária: “… a ausência de resultado ou um resultado inteiramente desajustado s[eria] a evidência de um incumprimento ou de um cumprimento defeituoso da prestação por parte do médico devedor.”
(...) Em princípio, o paciente tem o ónus da alegação e da prova de que o comportamento do médico foi típico e ilícito - a tipicidade e a ilicitude são factos constitutivos do direito à indemnização -, logo, tem o ónus da prova de que o médico lhe causou um dano, por não ter actuado com a mais elevada medida de cuidado exterior. Encontrando-se em causa obrigações de meios, o acórdão do STJ de 22 de Maio de 2003[75] refere-se ao ónus de alegar e de provar algo (um pouco) menos; de provar que o dano poderia ter sido evitado através da prática de um acto médico, ou de um acto médico diferente daquele que foi praticado[76]; os acórdãos de 18 de Setembro de 2007[77], de 22 de Novembro de 2007[78], de 15 de Outubro de 2009[79], de 13 de Setembro de 2011[80], de 22 de Setembro de 2011[81] e de 15 de Dezembro de 2011[82] referem-se ao ónus de alegar e de provar algo (um pouco) mais - ao ónus de alegar e de provar a “desconformidade objectiva entre o acto praticado e as leges artis”.
Conformando-se com os critérios enunciados pelo STJ, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Fevereiro de 2015[83] chama ao caso a distinção entre o acontecimento adverso (adverse event) e o erro médico, para colocar a cargo do autor (do lesado) o ónus da prova de que houve um erro médico.
O problema está em que a prova de que o médico não alcançou o resultado pretendido por causa da desconformidade objectiva é uma prova difícil - o doente não sabe as leis da arte e da ciência médica e, ainda que saiba quais são as leis da arte, não sabe (não está frequentemente em condições de saber) se foram ou não aplicadas. Os tribunais têm chamado a atenção para que a prova da omissão da diligência exigível é um “momento essencial do processo judicativo”[84]; para que o juiz tem o poder (tem o poder-dever) “de ordenar as diligências que considere necessárias à descoberta da verdade material”[85] e para que, ainda que o juiz não ordene diligências necessárias à descoberta da verdade material, as partes têm um dever de cooperação[86].
Entre os corolários do dever de cooperação está o dever de os médicos apresentarem ao tribunal os elementos constantes do processo clínico[87] e, entre os efeitos da omissão da cooperação devida, está (pode estar) a inversão do ónus da prova[88].
O alcance da inversão do ónus da prova por inobservância do dever de cooperação é em todo o caso relativamente reduzido - depende de que a prova de um determinado facto pela parte onerada se tenha tornado impossível[89] e de que a impossibilidade de prova seja imputável ao dolo ou à negligência da contraparte[90].
O ónus da prova só se inverteria por aplicação do art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil desde que a prova se tivesse tornado impossível[91], desde que o tribunal tivesse exigido a apresentação do processo clínico[92] e desde que o médico, a clínica ou o hospital tivessem recusado a apresentação do processo clínico exigido. Em todo o caso, a inversão do ónus da prova não é a prova do facto controvertido - “[a]inda que a recusa da contraparte torne culposamente a prova impossível ou particularmente difícil tal não significa que o facto controvertido se tenha por verdadeiro, mas apenas que passa a caber à parte recusante a prova da falta de realidade desse facto”[93].
O n.º 3 do § 630h do Código Civil alemão determina que, “[s]e o prestador de cuidados de saúde não registou no processo clínico que adoptou uma medida essencial medicamente exigível, ou o resultado da medida que adoptou, contrariando os n.ºs 1 e 2 do §630f, ou não guardou o processo clínico, contrariando o n.º 3 do § 630f, presume-se que não adoptou a medida em causa”. Entre o n.º 2 do art.º 344.º do Código Civil português e o n.º 3 do § 630h do Código Civil alemão há duas diferenças essenciais: o n.º 3 do § 630h não exige que a prova da omissão do registo da medida, ou do resultado da medida, se tenha tornado impossível e não exige que o doente alegue e prove a culpa do médico na omissão do registo[94].
Como o alcance da inversão do ónus da prova é reduzido, a facilitação da prova, pelo paciente, da omissão da diligência exigível pode fazer-se por duas formas:
Em primeiro lugar, pode admitir-se uma prova prima facie, de primeira aparência ou por justificação. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11 de Setembro de 2007[95] admite “que [se] conclua pela existência de negligência médica quando a experiência comum revelar que, no curso normal das coisas, certos acidentes não poderiam ocorrer senão devido a causa que se traduza em crassa incompetência e falta de cuidado” e o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Maio de 2014[96] justifica a admissão de uma prova prima facie, com a correlativa “diminuição no grau de exigência da prova produzida pelo paciente”, desde que “tal seja necessário para criar uma situação de igualdade entre as partes”. Em segundo lugar, a facilitação da prova da desconformidade objectiva pode fazer-se admitindo que há casos, ou grupos de casos, em que a prova da omissão da diligência exigível não é necessária — não é exigível ao doente.
(...) O STJ, ao distinguir os conceitos de obrigações de meios e de obrigações de resultado, está em última análise a distinguir casos em que a prova da desconformidade objectiva entre a diligência adoptada e a diligência exigível, em que a prova da omissão da diligência exigível é necessária e casos em que não o é: nas chamadas obrigações de meios, o paciente teria o ónus da prova da desconformidade objectiva; de que o acto praticado pelo médico não era conforme às leges artis; nas chamadas obrigações de resultado, o médico teria o ónus da prova de que o acto praticado lhes era conforme»[97].
Ainda sobre a questão do ónus da prova da ilicitude na responsabilidade civil médica, e no sentido de que tal ónus recai sobre o lesado, veja-se o recente Ac. da R.L. de 12.09.2024, Proc. n.º 4176/17.0T8LSB.L1-6 (Adeodato Brotas), in www.dgsi.pt:
«Seguindo a lição de Rui Mascarenhas Ataíde (Direito da Responsabilidade Civil, 2023, pág. 145 e segs.) a teoria da responsabilidade civil, no que respeita ao pressuposto ilicitude, tem-se dividido em duas correntes doutrinárias, uma com assento tónico no “resultado” e outra, na “conduta”.
A tese da ilicitude do resultado considera que a violação de direitos ou disposições legais é suficiente para perfazer, por si só, a ilicitude, dispensando indagações suplementares. Já a tese da ilicitude da conduta sustenta que não basta que o comportamento tenha dado causa à violação de direitos, sendo imprescindível averiguar se a produção do resultado decorreu da infracção de um dever de conduta, só havendo ilicitude se o comportamento estiver em contradição com uma proibição ou imposição legal no próprio momento da acção.
O conceito de resultado em causa não se reporta a uma alteração no mundo físico, mas, antes à criação de um estado juridicamente reprovado criado pela conduta para o bem jurídico.
O fundamento do juízo de ilicitude não pode ser a mera verificação de um resultado negativo como tal, mas apenas quando a sua produção resultar de uma infracção de uma ordem ou proibição de comportamento.” (Rui Mascarenhas Ataíde, Direito da Responsabilidade…cit., pág. 151).
Quer dizer, não age de maneira ilícita quem não viola quaisquer deveres de comportamento. Ou seja “…não se pode de facto aceitar que todas as acções que se relacionem como causa e consequência sejam qualificadas como ilícitas apenas por terem conduzido à violação de bens jurídicos…” (A e ob. cit., pág. cit.). A teoria da ilicitude da conduta enfatiza, ao contrário da orientação clássica, que a mera produção causal de um resultado proibido não chega para se afirmar a ilicitude, antes sendo imprescindível que esse evento se deva à violação da regra de conduta aplicável ao caso (A e ob. cit., pág. 153 e seg.).
E prossegue este Professor “ …do ponto de vista analítico, a estrutura da ilicitude é composta por três elementos nucleares: uma conduta orientada por vontade contrária à ordem jurídica, por se tratar de um comportamento doloso ou negligente; em segundo lugar, a produção de um resultado reprovado (…); e, em terceiro, a conexão juridicamente causal entre ambos de modo a que o evento ilícito se possa imputar em termos objectivos à conduta não cuidadosa.” (Ob. cit., pág. 154).
Numa outra perspectiva e de algum modo relacionada com o entendimento que vertemos acima acerca da ilicitude na vertente da tese da ilicitude do resultado e na da tese da ilicitude da conduta, a jurisprudência vem entendendo que o médico, enquanto prestador de serviços que apelam à sua diligência e conhecimentos profissionais, assume uma obrigação de meios. Neste tipo de obrigações, o médico não responde pelo resultado, mas pela omissão ou pela inadequação dos meios utilizados aos fins correspondentes à prestação devida em função do serviço que se propôs prestar (entre outros, veja-se o acórdão do STJ, de 16/09/2009, de 15/12/2011 (Gregório Silva Jesus); de 23/03/2017 (Tomé Gomes).
Neste último acórdão é salientado “IV. De um modo geral, tem-se entendido que o resultado correspondente ao fim visado pelo contrato de prestação de serviço de ato médico não se reconduz a uma obrigação de resultado, no sentido de garantir a cura do paciente, mas a uma obrigação de meios dirigida ao tratamento adequado da patologia em causa mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis). V. Porém, casos há em que, tratando-se de ato médico com margem de risco ínfima, a obrigação pode assumir a natureza de obrigação de resultado. VI. Para efeitos dessa qualificação, não se mostra curial adotar critérios apriorísticos em função da mera categorização do tipo de atividade médica, mas sim de forma casuística centrada no contexto e contornos de cada situação. VII. Em sede de obrigações de meios, incumbe ao credor lesado (paciente), provar a falta de cumprimento do dever objetivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente o requerido pelas leges artis, como pressuposto de ilicitude, recaindo, por seu turno, sobre o devedor o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento, a fim de ilidir a presunção da culpa, nos termos do artigo 799.º do CC.
No que toca ao ónus de prova da ilicitude, vem sendo entendido que cabe ao paciente provar o incumprimento, pelo médico, das regras profissionais que sobre ele incidem. Isto é “…A prova do incumprimento do contrato, por sua vez, é que se afigura mais difícil: não basta, pois, ao lesado provar qua não ficou em melhor estado de saúde ou que, por ventura esse estado se agravou, ou mesmo que veio a falecer; terá de provar que o médico não cumpriu os seus deveres de actuação técnica, não respeitou as leges artis.” (André Gonçalo Dias Pereira, O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente – Estudo de Direito Civil, Centro de Direito Biomédico, 9, 2004, pág. 426; no mesmo sentido, Luís Filipe Pires de Sousa, O ónus de prova na responsabilidade civil médica, Data Vénia, 8, 2018 pág. 8).
Igualmente, Pinto Monteiro, transmite este entendimento acerca da distinção entre obrigação de meios e obrigação de resultadoO efeito prático desta distinção residirá no seguinte: nas obrigações de meios, tanto a impossibilidade objectiva como a impossibilidade subjectiva não imputáveis liberam o devedor; nas obrigações de resultado, só a impossibilidade objectiva não imputável o exonera.” (Cláusula Penal e Indemnização, pág. 266).
Ou seja, “…caberá ao autor alegar e provar a desconformidade objectiva entre os actos praticados/omitidos e as leges artis (o incumprimento ou cumprimento defeituoso), bem como o nexo de causalidade entre tais actos e o dano. O lesado tem de identificar e demonstrar a diligência devida, tem de individualizar uma concreta falta de cumprimento (ilícita)” (Carneiro da Frada, apud Luís Filipe Pires de Sousa, O ónus de prova…cit., pág. 8 e seg.).
A jurisprudência do STJ vem entendendo no mesmo sentido. A título de exemplo, vejam-se, entre outros, os seguintes acórdãos:
- Ac. de 22/03/2018 (Proc. 7053/12, Maria da Graça Trigo):
“(ii) incumbe ao paciente lesado provar a ilicitude da conduta do médico, isto é a falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado, imposto pelas leges artis, dever que integra a necessidade de, no decurso da intervenção médica, tudo fazer para não afectar a integridade física daquele (ilicitude da conduta), caso em que, mesmo não se provando a violação desse dever, ainda assim, sempre se terá de averiguar se foi devidamente cumprido o dever de informar o paciente dos riscos inerentes à intervenção médica e se este os aceitou”.
- Ac. de 23/03/2017 (Proc. 296/07, Tomé Gomes): “VII. Em sede de obrigações de meios, incumbe ao credor lesado (paciente), provar a falta de cumprimento do dever objetivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente o requerido pelas leges artis, como pressuposto de ilicitude, recaindo, por seu turno, sobre o devedor o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento, a fim de ilidir a presunção da culpa, nos termos do artigo 799.º do CC.”
- Ac. de 06/01/2020 (Proc. 700/16, Rosa Ribeiro Coelho): VI - Só há violação ilícita do direito do doente se o médico executar a cirurgia à revelia das leges artis vigentes, caso em que poderia falar-se em cumprimento defeituoso da obrigação a que estava adstrito. VII - Só a alegação e ulterior demonstração, por um lado, das regras conhecidas pela ciência médica em geral como sendo as apropriadas à execução da intervenção cirúrgica em causa, considerando o estado do doente – as leges artis – e, por outro, da sua não utilização com perícia e diligência por parte do médico, permitiriam que se afirmasse a ilicitude da conduta deste. VIII - Como elemento constitutivo do direito invocado pelo doente, é a ele que cabe a demonstração da ilicitude, enquanto falta de cumprimento, por parte de quem demanda como civilmente responsável, das leges artis ajustadas à sua situação de doença, ou seja, do incumprimento dos deveres tuteladores do seu direito de saúde
À luz de todo o excurso que antecede, estamos agora em condições de, com segurança, concluir o seguinte:
- Primeiro:
Na situação sub judice, que é de responsabilidade civil extracontratual, e em que está em causa, relativamente à 3.ª ré, uma obrigação de meios, era sobre o autor que recaia o ónus da prova da prática, por qualquer agente ao serviço daquela, nomeadamente pelos médicos LC e CM, de uma conduta voluntária típica e ilícita.
- Segundo:
O autor não logrou fazer prova da prática, por qualquer agente ao serviço da 3.ª ré, nomeadamente pelos médicos LC e CM, de uma conduta voluntária típica e ilícita.
Na verdade, da matéria de facto provada não resulta demonstrada, e nem se nos afigura que tenha sido concretamente alegada, qualquer atuação ilícita, qualquer má prática clínica, em violação das já tão faladas leges artis, por parte, quer daqueles dois médicos, quer de qualquer outro agente ao serviço da 3.ª ré, provocadora dos danos sofridos pelo autor, nomeadamente a perda de acuidade visual do seu olho esquerdo.
Tal como se afirma na sentença recorrida, «face às consequências do acidente e no dia seguinte, o autor dirigiu-se a um hospital público onde foi diagnosticado e medicado para o processo inflamatório que apresentava. Não há factos que demonstrem que ou autor tenha tido qualquer outro acompanhamento médico até 18.3.2016, data em que foi visto em consequência da comunicação do acidente à ré L.
A 29.3.2016 o autor apresentava-se curado sem desvalorização[98].
(...) E, na verdade, o autor recebeu alta sem qualquer desvalorização.
Não houve até aquela data qualquer diminuição da acuidade visual.
(...)
Em Julho de 2016 o autor começa a “perder a visão”. Socorre-se novamente do serviço público de urgência queixando-se de ter um “corpo estranho” no olho esquerdo (de acordo com a testemunha mulher do autor, ter-lhe-ão entrado para o olho “umas poeiras” quando estava a trabalhar); do que resulta da ficha de urgência, o autor desloca-se ao hospital três dias depois do evento e é-lhe retirado um “corpo estranho” do olho. Apresentava nessa altura “erosão da córnea” do olho esquerdo, não havendo qualquer menção à perda de acuidade visual.
Também quanto a este incidente, nada nos elementos de prova indica que o desfecho pudesse ser outro caso o autor tivesse tido assistência médica diversa.
Três meses mais tarde (em Outubro de 2016) é diagnosticado ao autor uma catarata uniliteral não senil, apresentado o olho esquerdo sinais de inflamação antiga devida a traumatismo. Note-se que não é possível “datar” estes sinais, nem o traumatismo que lhes deu causa, relembrando que a testemunha AL, oftalmologista do H ____ que assistiu o autor, deu conta de, aquando da observação na sequência do acidente de Janeiro de 2016, o autor apresentar já sinais de lesões anteriores.
Por outras palavras: neste percurso temporal entre Janeiro 2016 e Outubro de 2016 não é possível isolar o “facto” que constitua a causa “da inflamação antiga devida a traumatismo” que dá azo à catarata (“dano”).
Consequentemente, não pode fazer-se um juízo de ilicitude e, menos, apurar o “lesante”.
O autor é então pela entidade gestora dos pacientes da L encaminhado para a ALM (10.11.2016), onde a 15.11.2016 veio a ser confirmado o diagnóstico de catarata, sendo o autor sujeito a intervenção cirúrgica a 7.2.2017, depois da realização de exames (com pedido prévio de autorização à entidade gestora).
Não resulta da matéria provada que o tempo que mediou entre a confirmação do diagnóstico e a realização da consulta e da cirurgia tenha tido qualquer influência na acuidade visual do autor, sendo que a cirurgia de catarata não reveste carácter urgente (tal como aliás é confirmado pela perícia). Na sequência da cirurgia, o autor ficou com uma acuidade visual de 10/10 no olho intervencionado com a correcção do uso de óculos. Esta necessidade é explicada, não por qualquer negligência ou acontecimento relevante na cirurgia ou no acompanhamento, mas pela natureza e diferente da lente natural e da artificial que é colocada.
Neste percurso, o autor foi sendo sempre assistido em consultas regulares, não há notícia de qualquer tratamento necessário que não tivesse sido ministrado, nem há qualquer indicação de má prática clínica, seja na cirurgia seja fora dela.
Donde novamente o alegado “dano” (perda de acuidade visual) tem como causa um “facto” (intervenção cirúrgica consequente de catarata) que não é “culposo” (por não haver indicação de más práticas).
Entre os dias 22 e 25 de Junho 2017 o autor deixou de ver quase por completo do olho esquerdo. Com a mediação da seguradora é assistido na Clínica ____ (no dia 26, 2ªfeira) com o diagnóstico de descolamento de retina e “macula off seguramente”.
A consulta da especialidade aconteceu a 28.6.2017 (4ª feira) e a intervenção cirúrgica é realizada a 30 de Junho. É sabido que a intervenção em consequência de descolamento de retina é de natureza urgente. E, no caso, a intervenção terá acontecido ou 5 dias depois do descolamento (se este se tiver verificado a 25) ou 8 dias depois (se o acidente tiver acontecido a 22). No entanto: desconhece-se por que razão o autor só foi assistido a dia 26 de Junho. Como resulta da informação nesse dia 26 lavrada pela médica, o autor estaria já em mácula off, situação que é de prognóstico reservado; contudo, e também como resulta da perícia, não pode afirmar-se que se o autor tivesse sido assistido em momento prévio, se pudesse encontrar em macula on e com um prognóstico mais favorável.
Assim, não pode inferir-se que foi o tardar na realização da cirurgia que colocou o autor numa situação pior do que seria uma outra que resultasse de assistência precoce. Por outras palavras, não há como ver o alegado “dano” como resultante de uma má prática médica, entendendo-se esta má prática como a não intervenção em momento anterior.
No que respeita à reacção que o autor teve ao vicril (material que foi usado nos pontos cirúrgicos): nada na matéria de facto permite concluir que aquele material fosse desadequado ao caso ou que fosse de prever que o organismo do autor não reagisse bem. Donde, também neste particular não aconteceu qualquer má prática.
Quanto ao choque vagal é evidentemente uma reacção física que escapa ao controlo prévio do médico perante qual se verifica. É um mecanismo de defesa do organismo e nada tem a ver uma intervenção médica desadequada ou desatenta.
No que respeita à retirada do óleo de silicone: nada se apurou que aponte no sentido de haver desconformidade temporal relativamente ao que está protocolado para a prática médica, nem nada se apurou quanto a qualquer relação causa-efeito entre a retirada do óleo e o segundo descolamento.
No que respeita ao segundo descolamento de retina:
À luz da matéria de facto provada, não se descortina outra causa para o segundo descolamento que não a verificação da probabilidade aumentada em consequência de um primeiro descolamento ou de um acontecimento traumático.
O descolamento de retina terá sido detectado nas consultas de acompanhamento prestadas pela ALM e o autor é reoperado no dia seguinte ao diagnóstico. Com o conhecimento da reaçcão ao vicril, a sutura foi feita com pontos de outro material como o impunha o cuidado.
O autor manteve-se em consultas de vigilância mantendo o óleo de silicone aplicado (diferentemente do que aconteceu na primeira intervenção). Pretende o autor que essa manutenção é nefasta, à face das complicações que a permanência do óleo de silicone pode trazer. Não obstante, não conseguiu demonstrar, novamente, que a manutenção do óleo configure uma má prática. Note-se que como resulta dos elementos de prova, o risco dessa manutenção justifica-se pelo ganho que pode representar relativamente a um doente que já sofreu dois descolamentos de retina, uma vez que a função do óleo de silicone é salvaguardar a colocação correcta da retina.
Assim, também neste particular, não se vê que tenha havido opção contrária à boa prática médica.
Quanto à medicação que ao autor foi sendo prescrita, tratou-se sempre de colírios e pomadas oftalmológia, sem demonstração de efeitos adversos, nomeadamente no que respeita a humor ou mau estar.
Todas as opções médicas foram tomadas em liberdade e não há notícia que a L (através da Trust) não tivesse autorizado qualquer intervenção ou procedimento».
Face à matéria de facto provada, não podemos deixar de concordar com o transcrito excurso do tribunal a quo, afirmativo, sem margem para quaisquer dúvidas de qualquer juízo de ilicitude da 3.ª ré.
Assim como não podemos de deixar de concordar com o seguinte remate final:
«Não se discute o sofrimento, o mau estar as limitações de que o autor padece e que esses factores resultem da grave perda de visão que sofreu.
Todavia, o autor não conseguiu demonstrar que ao longo do processo que descreve, com início no acidente de 19.1.2026 (acidente que aponta como acontecimento fortuito inicial, mas que não terá sido o único e que poderá não ter sido o original), tenha acontecido um (ou mais) facto ilícito e culposo, no sentido de ter sido violado por acção ou por omissão qualquer normativo destinado a protege-lo e que algum dos intervenientes tenha violado um qualquer dever objetivo de cuidado, conduzindo a uma lesão física (dano) irreversível».
Nada mais se nos afigura haver a razão pela qual o recurso terá de ser julgado improcedente, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida, que não merece censura.
***
IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, confirmando, em consequência, a sentença recorrida.
As custas do recurso, na vertente de custas de parte, são a cargo do apelante (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2).
Lisboa, 19 de fevereiro de 2025
José Capacete
Ana Rodrigues da Silva
Edgar Taborda Lopes
_______________________________________________________
[1] Doravante identificada como 1.ª ré.
[2] Incorporada, por fusão, na LS, S.A. – Sucursal em Portugal, e doravante identificada como 2.ª ré.
[3] Doravante identificada como 3.ª ré.
[4] Salvo o devido respeito, não é percetível o alcance desta decisão.  [5] Manual do Recurso Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 293.
[6] Recursos em Processo Civil, 7.ª Ed., Almedina, 2022, pp. 185-188.
[7] Cfr. Ac. de 03.12.2015, Proc. n.º 3217/12.1TTLSB.L1.S1 (Melo Lima), in www.dgsi.pt.
[8] Recursos em Processo Civil, 7.ª Ed., Almedina, 2022, pp. 185-188.
[9] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Ed., Almedina, 2022, pp. 200-201
[10] Cfr. Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto, in http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf
[11] Cfr. o Ac. da RP, de 17.03.2014, Proc. n.º 3785/11.5TBVFR.P1 (Alberto Ruço), in www.dgsi.pt.
[12] É o princípio segundo o qual o julgador deve ter:
- por um lado, o contacto mais próximo e direto possível com as pessoas ou com as coisas que servem de meios de prova; e,
- por outro lado, as pessoas (testemunhas, partes, peritos) devem situar-se na relação mais direta possível com os factos a prova, uma vez que são os veículos ou os instrumentos entre o julgador e a fonte da prova (a pessoa ou a coisa),
só este contacto direto permitindo captar um acervo de sinais significativos sobre a realidade dos factos (por exemplo, a mímica da testemunha ou da parte, o tom de voz, o titubear, o ruborizar da face, a frieza do depoimento ou das declarações, etc.) – Cfr. Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2009. p. 587.
[13] Constituindo um postulado do princípio da imediação, o princípio da oralidade não significa apenas que no processo civil, em particular na audiência final, se verifiquem atos que se processam sob a formal entre as partes e o tribunal. O que essencialmente releva quanto a este princípio é o estabelecimento de uma ligação psicológica entre a impressão criada no espírito do julgador pelos elementos probatórios (por exemplo, depoimentos orais das testemunhas prenhes de gestos, colocações de voz, etc.) e o julgamento dessa prova (por exemplo, considerar-se provado um facto controvertido). Ainda que os depoimentos sejam objeto de gravação, isso não afeta a expressão pura do princípio da oralidade. A oralidade, funda-se em critérios pragmáticos da comunicação e na possibilidade do esclarecimento rápido de dúvidas – Cfr. Remédio Marques, Acção Declarativa cit., pp. 209-201.
[14] Constituindo outro postulado do princípio da imediação, o princípio da imediação veicula a ideia segundo a qual a atividade instrutória, a discussão da matéria de facto e o julgamento da matéria de facto devem ser, do ponto de vista temporal, o mais concentrados possível (art.º 606.º, n.º 2), sem que haja hiatos de tempo significativos - Cfr. Remédio Marques, Acção Declarativa cit., p. 588.
[15] Segundo este princípio, os meios de prova são, em regra, apreciados livremente pelo tribunal, sem qualquer escala de hierarquização ou vinculação para o tribunal - Cfr. Remédio Marques, Acção Declarativa cit., p. 569.
[16] Cfr. Ac. da R.G. de 02.11.2017, Proc. n.º 501/12.8TBCBC.G1 (Maria João Matos), in www.dgsi.pt.
[17] «Na petição, com que propõe a ação, deve o autor (...) expor (...) as razões de direito que servem de fundamento à ação».
[18] O destacado a negrito é da nossa autoria.
[19] Não se vislumbra onde e em que termos é que o autor/apelante destrinçou, na petição inicial, «a responsabilidade contratual da extracontratual».
[20] O Concurso de Responsabilidade Civil, Almedina, 2023, pp. 41-42.
[21] O Concurso…, p. 49.
[22] Acidentes de Trabalho e Responsabilidade Civil, in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 48, n.º n.º 3 (Dez. 1988), p. 788.
[23] Acidentes…, pp. 788-790.
[24] «No dia 19 de Janeiro de 2016, e no exercício da sua actividade profissional de pedreiro por conta da ré T Lda. o autor sofreu um acidente, no qual uma pedra lhe bateu no olho esquerdo».
[25] Para mais e aprofundados desenvolvimentos sobre o tema do concurso entre os dois tipos de responsabilidade remetamos, uma vez mais, para António Barroso Rodrigues, in O Concurso de Responsabilidade Civil (Ensaio Sobre o Concurso das Modalidades Delitual e Obrigacional de Responsabilidade Civil), Almedina, 2023. Ainda sobre o tema, vejam-se, entre outros, Rui de Alarcão, Direito das Obrigações (texto elaborado por Sousa Ribeiro, Sinde Monteiro, Almeno de Sá e Brandão Proença), Coimbra, 1983; Vaz Serra, “Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extracontratual”, in BMJ n.º 85, pp. 115-239; Almeida Costa, O Concurso da Responsabilidade Contratual e da Extracontratual, in AB VNO AD OMNES – 75 anos da Coimbra Editora, pp. 555-565.
[26] Direito da Responsabilidade Civil, Gestlegal, 2023, pp. 10-11.
[27] Direito da Responsabilidade Civil …, p. 433.
[28] António Barroso Rodrigues, O Concuso…, pp. 344-345.
[29] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª Edição, Almedina, 2009, pp. 992-994
[30] O Concurso …, pp. 358-31.
[31] O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, Coimbra Editora, 1955. pp. 10-11.
[32] Em nota de rodapé (8) o Autor afirma o seguinte: «(...) Trata-se pois de saber em que casos é que a 1.ª série causal foi realmente interrompida (e é portanto só hipotética) e em que casos é que o não foi (e é portanto efectivamente causal para o dano verificado'. Aceita-se pois em tudo isto, como um dado, que o 1.° facto seria idóneo, segundo a sua natureza geral, para provocar o efeito final produzido pelo 2.º facto. É claro que o problema da delimitação do conceito de causalidade interrompida tem ainda outro lado: o da delimitação da causalidade interrompida não em face dos casos de causalidade cumulativa, mas em face dos casos de falta de causalidade (de falta de causalidade adequada do 1.º facto para o efeito final verificado). Se, por exemplo, A feriu B muito ligeiramente, mas este morreu em consequência de uma imperícia escandalosa do médico que o tratou, é claro desde logo que não se pode falar de uma interrupção do nexo de causalidade. Não há aqui um processo causal (adequado) em curso, e portanto é claro que um tal processo não pode ser interrompido porque justamente ... não existe. Não Haverá aqui, assim, causalidade cumulativa nem causalidade hipotética (interrompida): o 1.° facto não foi causa real nem causa virtual do efeito final verificado. Será um caso de pura e simples causalidade efectiva do 2.º facto. Ora justamente não se consideram no texto estes casos em que não há causalidade interrompida porque não há sequer uma relação de adequação entre o 1.º facto e o dano de que se trata. (...) pode dizer-se que a figura da causalidade interrompida pressupõe:
a) um nexo de causalidade (adequada) entre o 1.º facto e o efeito final verificado (que este fosse, se pudesse ser julgado uma consequência, uma consequência adequada do 1.º fato);
b) que o 2.º facto seja independente do 1.º, no sentido de que não seja uma sua consequência adequada;
c) que o 2.º facto tenha provocado o efeito independentemente do l.º, de tal maneira que a eficácia causal do 2.° facto tenha operado o dano verificado».
[33] O problema…, pp. 13-15.
[34] O destacado a negrito é da nossa autoria.
[35] O Ónus da Prova na Responsabilidade Civil Médica, Tese de Mestrado em Direito – Ciências Jurídico-Forenses, Faculdade de Direito - Universidade de Lisboa, 2014, acessível na internet em https://repositorio.ulisboa.pt/bitstream/10451/19872/1/ulfd130228_tese.pdf, p. 19.
[36] A Responsabilidade civil por conduta médica – Alguns subsídios, in Código Civil – Livro do Cinquentenário, Vol. I, CIDP, Faculdade de Direito – Universidade de Lisboa, Almedina, 2019, pp. 186-187.
[37] Trata-se de uma definição que veio a ser objeto de genérico acolhimento pela jurisprudência portuguesa.
[38] “L’illeceitá dell’atto medico tra lesione della salute e violazione del consenso”, in Stefano Rodotà / Paolo Zatti (coord.), Trattato di biodiritto, vol. IV — Le responsabilità in medicina, Giuffrè, Milano, 2011, págs. 185-228.
[39] Ilicitude e Culpa na Responsabilidade Médica, Centro de Direito Biomédico, Institvto Ivridico, Faculdade de Direito – Universidade de Coimbra, acessível na internet em https://www.centrodedireitobiomedico.org/data/publicacoes/PUB2024826194943.pdf, p. 43.
[40] Ilicitude e Culpa na Responsabilidade Médica…, pp. 43-44.
[41] Código Civil…, pp. 188-189.
[42] «Procriação assistida e responsabilidade médica», in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1996, p. 274.
[43] O Ónus da Prova na Responsabilidade Civil Médica…, p. 20.
[44] O elemento da culpa em sede de responsabilidade civil médica  - Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre), na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Forenses, Faculdade de Direito - Universidade de Coimbra, Coimbra, 2017, acessível na internet em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/83865/1/O%20elemento%20da%20culpa%20em%20sede%20de%20responsabilidade%20civil%20m%C3%A9dica.pdf, pp. 24-25.
[45] O elemento da culpa em sede de responsabilidade civil médica …, pp. 34-36.
[46] «Relatado pelo Desembargador Rui Gonçalves».
[47] «Cf. Ac. do S.T.J. de 15 de Março de 2013, relatado pelo Conselheiro Salazar Casanova».
[48] «O acórdão do STJ de 17 de Janeiro de 2013, relatado pela Conselheira Ana Paula Boularot, fala de um conjunto de “prestações diversas que passariam, ou poderiam passar, consoante o protocolo a seguir segundo o caso concreto, por actividades de mera observação, diagnóstico, terapêutica efectiva e vigilância”».
[49] «Cf. Ac. do S.T.J. de 15 de Março de 2013, relatado pelo Conselheiro Salazar Casanova».
[50] «Cf. Ac. do S.T.J. de 15 de Março de 2013, relatado pelo Conselheiro Salazar Casanova».
[51] «Cf. acórdão do STJ de 11 de Julho de 2006, relatado pelo Conselheiro Nuno Cameira».
[52] «O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Dezembro de 2015, relatado pelo Desembargador Rui Gonçalves, sublinha que “[o] pós-operatório é fundamental para se definir a eventual responsabilidade do médico por eventos danosos”, “[n]ão se podendo olvidar que o período posterior à cirurgia, onde o paciente está fragilizado, é fundamental para a sua recuperação”».
[53] O destacado a negrito é da nossa autoria.
[54] «Cf. designadamente Jorge Ferreira Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Livraria Almedina, Coimbra, 1990, págs. 300-307;  Manuel Carneiro da Frada, Contrato e deveres de protecção, Separata do vol. XXXVIII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito [da Universidade de Coimbra], Coimbra, 1994, especialmente nas págs. 163-164; Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Sobre o conceito de ilicitude do art.º 483.º do Código Civil”, in: Estudos em homenagem a Francisco José Velozo, Escola de Direito da Universidade do Minho/Scientia Juridica, Braga, págs. 521-544 (542-544); Manuel Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, Livraria Almedina, Coimbra, 2004, págs.235-236».
[55] «Relatado pelo Conselheiro Rodrigues dos Santos».
[56] «Relatado pelo Conselheiro Hélder Roque».
[57] «Relatado pelo Conselheiro Abrantes Geraldes».
[58] «Relatado pelo Conselheiro Abrantes Geraldes».
[59] Ilicitude e Culpa na Responsabilidade Médica …, pp. 71-81.
[60] «Cf. acórdão do STJ de 17 de Dezembro de 2002, relatado pelo Conselheiro Afonso de Melo».
[61] «Cf. acórdão do STJ de 24 de Maio de 2011, relatado pelo Conselheiro Hélder Roque».
[62] «Cf. acórdão do STJ de 18 de Maio de 2006, relatado pelo Conselheiro Ferreira de Sousa».
[63] «Cf. acórdãos do STJ de 18 de Maio de 2006, relatado pelo Conselheiro Ferreira de Sousa, de 15 de Dezembro de 2011, relatado pelo Conselheiro Gregório da Silva Jesus, e de 23 de Março de 2017, relatado pelo Conselheiro Tomé Gomes».
[64] «Em formulação mais extensa, o acórdão do STJ de 25 de Fevereiro de 2015, relatado pelo Conselheiro Armindo Monteiro, diz que “[a] obrigação de prestação de serviços médicos assume a natureza de prestação de meios não a de resultado em que o médico se obriga a prestar cuidados ao doente, minorar-lhe a dor, proporcionar-lhe bem estar, saúde, aliviá-lo do padecimento, restitui-lo à vida, se em perigo, envidar todos os esforços ao seu alcance, pôr em prática os seus conhecimentos de acordo com a ciência e a executá-los conforme os seus meios técnicos disponíveis, de acordo com as leges artis, um especial dever objectivo de cuidado, tendo como padrão um médico minimamente cuidadoso, diligente, sensível ao sofrimento alheio e aos bens jurídicos da vida e saúde, tal como suposto pela ordem jurídica, que nas condições do caso concreto agiria de forma diferente, como um bonus pater familias”».
[65] «Cf. acórdão do STJ de 17 de Dezembro de 2002, relatado pelo Conselheiro Afonso de Melo».
[66] «Cf. acórdãos do STJ de 4 de Março de 2008, relatado pelo Conselheiro Fonseca Ramos, de 15 de Dezembro de 2011, relatado pelo Conselheiro Gregório da Silva Jesus, e de 23 de Março de 2017, relatado pelo Conselheiro Tomé Gomes».
[67] «Cf. acórdão do STJ de 15 de Dezembro de 2011, relatado pelo Conselheiro Gregório da Silva Jesus».
[68] «Cf. acórdão do STJ de 15 de Dezembro de 2011, relatado pelo Conselheiro Gregório da Silva Jesus».
[69] «Cf. acórdãos do STJ de 4 de Março de 2008, relatado pelo Conselheiro Fonseca Ramos, e de 25 de Fevereiro de 2015, relatado pelo Conselheiro Armindo Monteiro — acentuando que, “na prestação de serviço podem interferir variáveis absolutamente incontroláveis e imprevisíveis, mesmo que [o médico] empregue toda a diligência”».
[70] «Cf. acórdãos do STJ de 13 de Setembro de 2011, relatado pelo Conselheiro João Camilo, de 15 de Dezembro de 2011, relatado pelo Conselheiro Gregório da Silva Jesus - considerando “inquestionável” que “a execução de um contrato de prestação de serviços médicos pode implicar para o médico uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado”».
[71] O destacado a negrito é da nossa autoria.
[72] «Relatado pelo Conselheiro Afonso de Melo».
[73] «Cf. acórdão do STJ de 17 de Dezembro de 2002 : “Se depois de uma intervenção cirúrgica simples as condições do paciente são piores do que as anteriores, presume-se que houve uma terapia inadequada ou negligente execução profissional, cabendo ao médico o ónus da prova de que a execução operatória foi diligente”».
[74] «Relatado pelo Conselheiro Pires da Rosa».
[75] «Relatado pelo Conselheiro Neves Ribeiro».
[76] «Cf. acórdão do STJ de 22 de Maio de 2003: “O doente tem que provar que um certo diagnóstico, tratamento ou intervenção foi omitido e, por assim ser, conduziu ao dano, pois se outro acto médico tivesse sido (ou não tivesse sido) praticado teria levado à cura, atenuado a doença, evitado o seu agravamento, ou mesmo a morte”».
[77] «Relatado pelo Conselheiro Alves Velho».
[78] «Relatado pelo Conselheiro Oliveira Rocha».
[79] «Relatado pelo Conselheiro Rodrigues dos Santos».
[80] «Relatado pelo Conselheiro João Camilo».
[81] «Relatado pelo Conselheiro Bettencourt Faria».
[82] «Relatado pelo Conselheiro Gregório da Silva Jesus».
[83] «Relatado pelo Desembargador Rodrigues Pires».
[84] «Expressão do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8 de Março de 2019, proferido no processo n.º 26936/15.6T8PRT.P1 e relatado pela Desembargadora Fernanda Almeida - deduzindo da circunstância de a prova da omissão da diligência exigível ser um “momento essencial do processo judicativo” a consequência de que “não pode o juiz limitar-se a afirmar que ao lesado ou suposto lesado, porque onerado com a demonstração da ilicitude (e, dependente das situações, também da culpa), cabe conformar-se com as consequências de um possível erro que não demonstra, sem que mobilize todo o conjunto de meios de prova (mormente pericial) que se vislumbre possível em cada situação”».
[85] «Cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 8 de Março de 2019, proferido no processo n.º 26936/15.6T8PRT.P1 e relatado pela Desembargadora Fernanda Almeida».
[86]  «Cf. art.º 417.º do Código de Processo Civil - sob a epígrafe Dever de cooperação para a descoberta da verdade».
[87] «Embora, como diz o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Novembro de 2018, “[o] dever do médico de registar as observações clínicas efectuadas no paciente […] não vis[e] directamente facilitar a prova em casos de responsabilização por danos ocorridos […] constitu[i] uma vantagem para esse efeito”».
[88] «Cf. arts. 344.º, n.º 2, do Código Civil e 417.º, n.º 2, do Código de Processo Civil».
[89] «Interpretando declarativamente o art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, vide o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Janeiro de 2019, relatado pela Desembargadora Maria José Mouro; interpretando-o extensivamente, de forma a estendê-lo aos casos em que a prova, ainda que não impossível, se tenha tornado excepcionalmente difícil, vide, por último, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Novembro de 2018, relatado pela Desembargadora Micaela Sousa: “A inversão do ónus da prova, sendo uma sanção civil à violação do princípio da cooperação das partes para a descoberta da verdade material (art.º 417.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), depende [de] que a prova de determinada factualidade, por acção da parte contrária, se tenha tornado impossível de fazer ou, pelo menos, se tenha tornado particularmente difícil de fazer”».
[90] «Interpretando restritivamente o art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, de forma a restringi-lo aos casos em que a impossibilidade da prova seja imputável a dolo ou a culpa grave, vide (ainda) o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Novembro de 2018, relatado pela Desembargadora Micaela Sousa: “A inversão do ónus da prova […] depende [de] que tal comportamento, da mesma parte contrária, lhe seja imputável a título de culpa, não bastando a mera negligência”».
[91] «O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Janeiro de 2019, relatado pela Desembargadora Maria José Mouro, diz que “[h]averá inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado” e que, em consequência, não haverá inversão quando não tiver sido demonstrada “a efectiva impossibilidade da prova (e não a maior dificuldade na sua produção)” ou quando, ainda que tenha sido demonstrada a efectiva impossibilidade, não tenha sido provado que a impossibilidade é imputável a culpa da contraparte».
[92] «O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Novembro de 2018, relatado pela Desembargadora Micaela Sousa, diz que, “[n]ão tendo tais registos sido solicitados ao próprio médico ou ao estabelecimento hospitalar onde as intervenções cirúrgicas/internamentos tiveram lugar, nem tendo o Tribunal diligenciado nesse sentido, não se pode afirmar a sua inexistência ou falta de apresentação, o que inviabiliza a inversão do ónus da prova”».
[93] Cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Novembro de 2018, relatado pela Desembargadora Micaela Sousa.
[94] «André Dias Pereira propõe-se, em todo o caso, afirmar um princípio de inversão do ónus da prova por falta de documentação, para alcançar critérios semelhantes ao n.º 3 do § 630f do Código Civil alemão (cf. Direitos dos pacientes e responsabilidade médica, cit., págs. 784-785)».
[95] «Relatado pela então Desembargadora, hoje Conselheira Rosa Ribeiro Coelho».
[96] «Relatado pela Desembargadora Maria José Mouro».
[97] Ilicitude e Culpa na Responsabilidade Médica …, pp. 81-88.
[98] O destacado a negrito é da nossa autoria.