I - No contexto da ação de impugnação pauliana, um ato oneroso pressupõe atribuições patrimoniais de ambas as partes, ligadas por um nexo de correspetividade, segundo a sua vontade, enquanto um ato gratuito cria, para uma só, uma vantagem patrimonial sem nenhum equivalente.
II - A impugnação pauliana de ato oneroso só procede quando o autor faz prova da existência da má fé do devedor e do terceiro, entendida como a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor (art. 612º do C.Civil).
III - Assume especial relevância no âmbito da ação pauliana, nomeadamente na prova da existência de má-fé, a prova indireta mediante o recurso a presunções judiciais, previstas nos artigos 349º e 351º do Código Civil, isso é, a ilações que são extraídas de um determinado facto conhecido para afirmar-se um outro determinado facto, dando-o por presumido, fazendo uso das regras da experiência de vida, da lógica, da racionalidade, dos padrões habituais e da normalidade do comércio, das obrigações e dos aspetos gerais da vida.
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 3
Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Juízes Desembargadores Adjuntos:
Rui Moreira
Alberto Eduardo Paiva Taveira
SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:
I-RELATÓRIO
1 – A..., SA intentou ação declarativa de condenação em processo comum contra B.... SA, Banco 1... SA e C..., LDA, alegando em suma que a autora é titular de um crédito sobre a sociedade comercial D... Unipessoal Lda, do valor global, de capital, de 595.960,58 €, crédito este proveniente de fornecimentos de combustíveis efetuados à referida sociedade D... entre 29/12/2014 e 27/05/2015.
Que o único sócio desta era AA e a sua atividade comercial desenvolvia-se através da exploração de um posto de combustível, com loja de apoio, estabelecimento de restauração e bebidas e oficina de reparação e manutenção de automóveis.
A sociedade comercial D... foi declarada insolvente por sentença proferida a 10/07/2017, processo onde a Autora viu reconhecido o seu crédito.
No momento da insolvência corria já ação judicial, distribuída em 06 de janeiro de 2017 e onde se discutia o crédito da Autora.
Na pendência daquela ação judicial a sociedade comercial D... cedeu à sociedade comercial “B.... SA” a sua posição contratual no âmbito do contrato de locação financeira imobiliária sobre os imóveis onde está instalado o posto de combustíveis (estação de serviço), explorado por aquela devedora, que era o seu único e valioso ativo.
Com a dita cedência ficou a D... impossibilitada de satisfazer os seus credores, designadamente a Autora
Logo após essa cessão da posição contratual a favor da B..., esta sociedade celebrou com a sociedade comercial C..., Ldª, que é detida e gerida pelo mesmo sócio e gerente da D..., Unipessoal Lda, um contrato denominado contrato de prestação de serviços
Esse contrato teve por objeto, precisamente, o posto de combustível, a loja de conveniência, a oficina de reparação e manutenção de automóveis implementados no prédio alvo da locação financeira imobiliária.
Esses serviços traduzem-se, na realidade, em assegurar e garantir o funcionamento pleno, diário e contínuo daquele estabelecimento comercial.
As Rés tinham conhecimento do crédito da Autora sobre a D... e tinham consciência do prejuízo que resultaria para a autora da celebração dos negócios jurídicos promovidos, agindo de modo intencional.
Conclui pedindo que a presente ação seja julgada procedente, por provada, e por via dela:
a) Declarar-se ineficaz em relação à autora o documento particular de cessão de posição contratual celebrado em 15 de Março de 2017 entre as sociedades comerciais “D..., Unipessoal, Lda”; “B..., SA” e “Banco 1..., SA”, tendo por objeto as frações autónomas, designadas pelas letras “a”, “b” e “c” do prédio urbano sito no Lugar ..., da freguesia e concelho de Águeda, e do prédio urbano, sito naquele lugar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o nº ..., da freguesia ..., e inscrito na matriz predial urbana sob artigo ..., nele implantado o posto de combustível (estação de serviço), incluindo loja de apoio (conveniência), estabelecimento de restauração e bebidas (comércio/serviços) e oficina de reparação e manutenção de automóveis, com posto de venda de gás de garrafa e lavagem auto;
b) Declarar-se, consequentemente, nulo e ineficaz em relação à autora o documento particular intitulado “contrato de prestação de serviços” celebrado em 28 de Abril de 2017 entre as sociedades comerciais; “B..., SA” e “C..., Lda”;
c) Reconhecer o direito da autora à restituição dos bens e direitos da sociedade comercial “D..., Lda”, nomeadamente, o posto de combustível (estação de serviço), com loja de apoio, estabelecimento de restauração e bebidas e oficina de reparação e manutenção de imóveis, melhor descritos nos artigos 12º e 13º do presente articulado;
d) Ordenar-se, consequentemente, o cancelamento de todas inscrições e registos que hajam sido feitos decorrentes de tais atos, ou que venham a fazer-se, sobre os bens e direitos em apreço.
Citadas, as rés, B..., SA e C..., Ldª, apresentaram contestação.
O Banco 1..., SA não contestou.
A Ré B..., SA veio invocar a exceção de caso julgado face à posição do senhor Administrador de Insolvência de não se verificarem os pressupostos legais de resolução do negócio do contrato de cessão da posição contratual, posição homologada pelo juiz da insolvência.
Mais alegou em resumo que:
- Em Março de 2017, a D... tinha deixado de pagar as rendas da locação financeira, encontrando-se em dívida 17 rendas mensais.
- A Ré teve conhecimento destas dificuldades e da situação de risco de despejo em que a D... se encontrava.
- Assim, sendo fornecedora desta e tendo interesse em que o posto continuasse em funcionamento, negociou com o Banco 1..., com a anuência do gerente da D..., a cessão da posição contratual, assumindo a responsabilidade do pagamento das rendas em dívida e desonerando a D... dessas responsabilidades.
Alega que a autora age de má fé.
Conclui pedindo a improcedência da ação e a condenação da Autora a pagar à Ré B... uma indemnização a título de despesas e honorários num valor nunca inferior a 25.000,00 €.
Quanto à Ré C..., Ldª, invoca na contestação que deduziu, nos mesmos termos a exceção de caso julgado e a sua ilegitimidade passiva.
- Impugna a matéria vertida na petição inicial, com particular enfoque no que se refere ao contrato de prestação de serviços em que figura como contraente a C....
Conclui pedindo a procedência das exceções e, caso assim não se entenda, a absolvição da Ré do pedido.
A Autora veio responder à matéria de exceção e ao pedido de condenação como litigante de má fé, pugnando pela sua improcedência.
Foi dispensada a realização da audiência prévia e elaborado despacho saneador que determinou a improcedência das exceções, fixando-se, em seguida o objeto do litígio e os temas de prova.
Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, e no final foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu as Rés dos pedidos contra elas formulados.
Interposto recurso pela Autora A..., SA, para este Tribunal da Relação, veio a ser proferido acórdão que anulou aquela sentença, por se entender ser indispensável à decisão, a ampliação da matéria de facto, que se entendeu necessária para aferir a onerosidade/gratuitidade do negócio objeto da impugnação pauliana.
Remetido o processo à primeira instancia, veio a ser reaberta a audiência de julgamento, onde foi produzida prova e no final foi proferida nova sentença, com o seguinte dispositivo:
“ Declara-se a acção procedente por provada e, em consequência:
a) Declara-se ineficaz em relação à autora o documento particular de cessão de posição contratual celebrado em 15 de Março de 2017 entre as sociedades comerciais “D..., Unipessoal, Lda”; “B..., SA” e “Banco 1..., SA”, tendo por objeto as frações autónomas, designadas pelas letras “a”, “b” e “c” do prédio urbano sito no Lugar ..., da freguesia e concelho de Águeda, e do prédio urbano, sito naquele lugar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o nº ..., da freguesia ..., e inscrito na matriz predial urbana sob artigo ..., nele implantado o posto de combustível (estação de serviço), incluindo loja de apoio (conveniência), estabelecimento de restauração e bebidas (comércio/serviços) e oficina de reparação e manutenção de automóveis, com posto de venda de gás de garrafa e lavagem auto;
b) Declara-se, consequentemente, nulo e ineficaz em relação à autora o documento particular intitulado “contrato de prestação de serviços” celebrado em 28 de Abril de 2017 entre as sociedades comerciais; “B..., SA” e “C..., Lda”;
c) Reconhece-se o direito da autora à restituição dos bens e direitos da sociedade comercial “D..., Lda”, nomeadamente, o posto de combustível (estação de serviço), com loja de apoio, estabelecimento de restauração e bebidas e oficina de reparação e manutenção de imóveis, melhor descritos no pontos 6 e 7 dos factos provados
d) Ordenar-se, consequentemente, o cancelamento de todas inscrições e registos que hajam sido feitos decorrentes de tais atos, ou que venham a fazer-se, sobre os bens e direitos em apreço.”
Inconformada, veio agora a Ré B..., S.A., apresentar o presente recurso de APELAÇÃO, tendo formulado as seguintes conclusões:
(…)
O Réu Banco 1..., S.A., veio igualmente interpor recurso da Sentença, pugnando pela sua revogação, apresentando as seguintes conclusões:
(…)
Foram admitidos os recursos como apelação (art. 644º n.º 1 a) do CPC), com subida imediata, e nos próprios autos (art. 645º n.º 1 a) do CPC) e efeito meramente devolutivo (647º n.º 1 do CPC).
A Ampliação do objeto do recurso, mostra-se igualmente admissível.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II-OBJETO DOS RECURSOS:
Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.
As questões decidendas são as seguintes:
Recurso da Ré B..., SA:
-modificabilidade da decisão de facto por reapreciação das provas produzidas e eventual alteração da decisão de direito em consequência de tal modificação.
Recurso do Réu Banco 1..., SA:
- modificabilidade da decisão de facto por reapreciação das provas produzidas e eventual alteração da decisão de direito em consequência de tal modificação.
Ampliação do objeto do recurso da Autora A..., SA:
-Na procedência do Recurso dos RR, a modificabilidade da matéria de facto tendo em vista a alteração da decisão.
III-MODIFICABILIDADE DA MATÉRIA DE FACTO:
3.1.Questão Prévia:
Quer os Réus B..., SA, (a seguir designado por facilidade de expressão, B...), quer o Réu Banco 1..., SA, (a seguir, designado Banco 1...), quer a Autora, A..., SA (a seguir A...), esta, na ampliação do objeto do recurso que fez, viram impugnar pontos concretos da matéria de facto julgada provada e não provada na sentença, tendo em vista a eventual alteração da decisão de direito em consequência de tal modificação.
Nos termos do disposto no art. 662.º, n.º 1 do CPCivil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
À luz deste preceito, “fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.
O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância, nos termos consagrados pelo art. 607.º, n.º 5, do CPCivil, sem olvidar, porém, os princípios da oralidade e da imediação.
Isto posto, o impugnante da matéria de facto, que pretenda a reapreciação da matéria de facto, está sujeito aos ónus que lhe são impostos pelo art. 640º do CPC.
Ora, relativamente ao recurso apresentado pelo Réu Banco 1..., constata-se que com o mesmo baseia a sua pretensão recursiva, na alteração da matéria de facto, pretendendo ver reapreciada a mesma, defendendo que deva ser dado como não provado que o banco réu tinha conhecimento da dívida do locatário à autora, alterando-se também em consequência, a alínea B) dos Factos não Provados.
A função das conclusões de recurso consiste em apontar, sob enumeração, as concretas questões que o recorrente entende que determinam uma solução diferente daquela a que chegou o tribunal recorrido, de forma a garantir que o tribunal de recurso entenda, com clareza e precisão, quais os efetivos fundamentos da discordância.
Sendo esta a finalidade das conclusões, naturalmente que por elas passa o cumprimento, quer do dever de lealdade processual para com os demais sujeitos processuais, quer do dever de colaboração com o tribunal de recurso. Não sendo função dos tribunais de recurso descortinar todos e quaisquer fundamentos pelos quais as decisões recorridas possam ser revogadas, é exigível às partes, que desencadeiam a atuação recursiva, apontar os precisos fundamentos pelos quais entendem devida essa revogação, o que aliás funciona como garantia de que o tribunal de recurso apreenderá e apreciará todos e cada um desses fundamentos.
E a lei impõe ao recorrente que pretende impugnar a matéria de facto os ónus plasmados no art. 640º do CPC, que se traduzem na indicação dos concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados; na indicação da decisão diversa que aos mesmos deva caber, devendo ainda especificar os meios de prova constantes do processo que no seu entender determinem uma decisão diversa quanto a cada um dos factos (nº 1 do art. 640º).
De acordo com o referido no nº 2 do mesmo preceito legal, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas que tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Nos objetivos previstos pelo legislador, quando introduziu um efetivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto, através do DL 39/95 de 15.2, deixou consignado no respetivo preâmbulo, o seguinte: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.
Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respetiva fundamentação.
Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redação do artigo 712.º) - e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1.ª instância - possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correta.
Daí que se estabeleça, no artigo 690.º-A,[1] que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto.”
Como refere Abrantes Geraldes,[2] “os aspetos fundamentais a assegurar neste campo são os relacionados com a definição clara do objeto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de factos em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova que são indicados ou em meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado produzido.
Haverá que encontrar o justo equilíbrio, dentro dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, entre por um lado, o critério de rigor que se impõe no cumprimento das exigências legais, que são afinal “decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” e por outro lado, uma exponenciação dos requisitos formais “a tal ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espirito do legislador”.
Afirma também Abrantes Geraldes,[3]que “as referidas exigências devem ser apreciadas á luz de um critério de rigor. Trata-se afinal de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto, s transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
No caso em apreço, da leitura das conclusões de recurso apresentadas pelo Banco 1..., as mesmas são totalmente omissas na indicação dos concretos meios probatórios que pretende ver reapreciados por este tribunal de recurso.
Não cumpre dessa forma este Recorrente, com ónus para si decorrente de fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa.
Não se encontra assim o recurso apresentado por este Réu em moldes de ser apreciado, impondo-se a sua rejeição, por força do que dispõe o 640º nº 1 al b) do CPC, o que se determina, ficando assim prejudicado o seu conhecimento.
Sem embargo, o tribunal irá proceder à reapreciação da matéria de facto indicada pelo Banco 1..., porquanto no recurso interposto pela co-ré B... (recurso onde se mostram observados os ónus constantes do art. 640º do CPC,) aquela factualidade foi objeto de impugnação, nos mesmos moldes preconizados pelo Banco 1..., SA.
3.2. Impugnação da matéria de facto no recurso da Ré Recurso da Ré B..., SA:
Como vimos já, nos termos do disposto no art. 662.º, n.º 1 do CPCivil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos dados como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Porém, a possibilidade que o legislador conferiu ao Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto não é absoluta pois tal só é admissível quando os meios de prova reanalisados não deixem outra alternativa, ou seja, em situações que, manifestamente, apontam em sentido contrário ao decidido pelo tribunal a quo, melhor dizendo, “imponham decisão diversa”.
O Tribunal da Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos consagrados pelo n.º 5 do art.º 607.º do CP Civil, sem olvidar porém, o princípio da oralidade e da imediação.
Com efeito, há que ponderar que o tribunal de recurso não possui uma perceção tão próxima como a do tribunal de 1ª instância ao nível da oralidade e sobretudo da imediação com a prova produzida na audiência de julgamento. Na verdade, a atividade do julgador na valoração da prova pessoal deve atender a vários fatores, alguns dos quais – como a espontaneidade, a seriedade, as hesitações, a postura, a atitude, o à-vontade, a linguagem gestual dos depoentes – não são facilmente ou de todo apreensíveis pelo tribunal de recurso, mormente quando este está limitado a gravações meramente sonoras relativamente aos depoimentos prestados.
Dito isto, e tendo presente estes elementos, cumpre conhecer, em termos autónomos e numa perspetiva crítica, à luz das regras da experiência e da lógica, da factualidade impugnada e, em particular, se a convicção firmada no tribunal recorrido merece ser por nós secundada por se mostrar conforme às ditas regras de avaliação crítica da prova, caso em que improcede a impugnação deduzida pelos apelantes, ou não o merece, caso em que, ao abrigo dos poderes que lhe estão cometidos ao nível da reapreciação da decisão de facto e enquanto tribunal de instância, se impõe que este tribunal introduza as alterações que julgue devidas a tal factualidade, sendo certo que, na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
Dentro destes parâmetros, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição[4], está em posição de proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo recorrente, pelo que neste âmbito a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de primeira Instância, apenas cedendo nos fatores da imediação e da oralidade.
No sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”[5].
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPC).
Haverá ainda que ter presente que não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma certeza absoluta raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança.
Como refere Manuel de Andrade,[6] a prova não é certeza lógica, mas tão só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida”.
À luz dos destas considerações e princípios, cumpre reanalisar a decisão proferida sobre os pontos da matéria de facto que se mostram impugnados.
A Recorrente B..., apresenta-se a impugnar a seguinte matéria de facto:
O ponto 8, dos factos provados, (apenas quanto à data), facto que tem a seguinte redação:
8 – Esse prédio era objeto de um contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre o Banco 1... e a sociedade comercial “E..., Lda", em 26/06/2006.
Esta questão suscitada em sede de impugnação da matéria de facto, reveste simplicidade, uma vez que estamos perante um mero lapso de escrita.
A cópia do contrato de locação financeira junto com a p.i, não tem a indicação da data.
Porém, do documento 8 da p.i – contrato de cessão da posição contratual, que teve por objeto esse mesmo contrato de locação – os outorgantes referem-se ao contrato de locação financeira imobiliária “registado nos livros do banco sob o nº ...”, que foi celebrado pelo banco enquanto Locador e pela Cedente, enquanto locatária, em 26.4.2006.
Desta forma, impõe-se retificar a imprecisão constante no facto 8, quanto ao mês, ao abrigo do disposto no art. 613º do CPC, ficando nela a constar a data de 26/04/2006, em que o contrato de locação financeira que foi objeto do contrato de cessão da posição contratual foi celebrado.
Quanto à concreta impugnação da matéria de facto feita pela recorrente, pretende a alteração do ponto 32 dos factos provados, que tem a seguinte redação:
32 – Os Réus Banco 1... SA e C... tinham conhecimento, quer do crédito da autora sobre a referida D..., quer do facto de que se essa sociedade não tivesse mais o prédio aqui em causa e respetivo estabelecimento comercial não tinha meios para ressarcir qualquer montante à autora.
Trata-se de um facto essencial à procedência ou à improcedência da ação, pois o mesmo versa sobre a questão da consciência ou inconsciência dos outorgantes no contrato de cessão da posição contratual, do prejuízo causado a terceiros, nomeadamente à aqui autora/apelada, atento o requisito da má-fé exigido no artigo 612º do Código Civil.
Defende a Apelante que não foi feita prova que o Banco 1... tivesse conhecimento do crédito da autora sobre a D... UNIPESSOAL, LDA (a seguir designada por D...), devendo pois ser eliminada a referência àquele banco que é feita no facto 32 e consequentemente, ser aditado ao facto B) dos factos não provados que, para além da Ré B..., também não emergiu provado que Banco 1... tivesse conhecimento do crédito da autora sobre a D....
Vejamos.
Os meios de prova indicados pela Apelante para sustentar a ocorrência de erro de julgamento são os seguintes:
Segundo a apelante mostra-se incongruente a conclusão tirada na sentença, no que diz respeito ao eventual conhecimento que o Banco 1... possa ter tido dessa dívida aquando da outorga da cessão da posição contratual de locação.
Que, em face da mora das 17 rendas mensais em atraso por parte da locatária, bastaria ao Banco 1..., para acautelar qualquer atuação danosa que afetasse a sua posição de proprietário, resolver o contrato de locação por uma simples comunicação e pedir a entrega dos bens locados.
Que a sentença, para dar por provado o conhecimento do Banco 1... da dívida da D... à A..., baseia-se no depoimento do então legal representante da D..., AA que afirmou que falou dessa dívida ao Banco.
Porém, percorrendo todo o depoimento gravado daquela testemunha, apenas uma vez, de modo sincopado e não imediatamente explicito faz uma breve referência a este tema.
Assim, conclui, por mais liberdade de apreciação que o imediatismo da audiência possa justificar, que é forçada a conclusão retirada pelo tribunal a quo, constante desse ponto 32, a partir de um depoimento que, mais à frente e a propósito de um assunto mais relevante, em que ele se mostra muito mais repetitivo e assertivo, é desvalorizado pela própria sentença por não merecer credibilidade.
Vejamos.
O tribunal formou a sua convicção, quanto a este facto, com base na seguinte análise crítica da prova, constante da sentença: “Quanto ao conhecimento por parte do Banco 1... tal resulta do depoimento do então legal representante da D..., AA que afirmou que falou dessa dívida ao Banco que, aliás, sendo Réu nos presentes autos, não contestou.”
A ora Apelante, que reconhece que tal afirmação foi feita pelo então legal representante da D..., AA, apenas discorda da convicção formada pelo tribunal a quo, face a tal depoimento, sendo que o tribunal ponderou ainda o facto do banco não ter sequer contestado a ação.
Não indica qualquer meio de prova concreto, que mereça ser por nós reapreciado e que imponha uma diferente decisão.
O facto de se encontrarem em mora 17 rendas mensais, em atraso por parte da locatária D..., que permitiriam ao Banco 1..., resolver o contrato de locação por uma simples comunicação e pedir a entrega dos bens locados, como alega a apelante, não invalida o interesse do banco na manutenção do contrato de locação (mediante a cedência da posição contratual do locatário a terceiro, o que veio a ser feita, com a anuência do banco).
É que, se nos contratos de locação financeira, a principal obrigação do locatário é a de pagar as rendas, isto é, a remuneração acordada como contrapartida para a cedência do gozo da coisa, as rendas acordadas devem permitir a recuperação, ao longo do período de vigência do contrato, de mais de metade do capital correspondente ao valor do bem locado e cobrir todos os encargos e a margem de lucro do locador.
Como refere BB[7], a renda destina-se a cobrir a amortização financeira global do custo do investimento, abrangendo assim quer a amortização do bem locado, quer a retribuição pela utilização deste e até o risco suportado pela empresa locadora.
A recuperação do equipamento pelo banco, em consequência da resolução fundada no incumprimento da obrigação de pagamento das rendas pela D... não permitia ao banco recuperar o investimento feito, sendo que a D... veio a ser declarada insolvente, três meses após, tendo o processo sido encerrado por falta ou insuficiência de bens, o que não permitiria ao banco recuperar o investimento através do pagamento coercivo das rendas e da indemnização acordada e devida pela resolução do contrato.
Aliás é por essa razão, que a lei (no art. 11º do n.º 149/95, de 24 de Junho) prevê a possibilidade do locador poder opor-se à transmissão da posição contratual, provando não oferecer o cessionário garantias bastantes à execução do contrato.
Assim, sob pena de violação do principio da livre apreciação da prova entendemos não ser de acolher a pretensão da apelante de ver alterado o facto 32, na parte respeitante ao Banco 1....
Impugna por último o facto C) dos factos não provados, que é o seguinte:
C) O empréstimo referido em 36 e 42 a 47 e 50 tenha sido contraído para fazer face a dívidas pessoais dos gerentes da E....
Pretende que seja julgado provado, ao invés que,
– O empréstimo referido em 36 e 42 a 47 e 50 foi contraído para fazer face a dívidas pessoais dos gerentes da E..., nomeadamente as relacionadas com a sua casa de habitação.
Curiosamente, a Apelada, veio em sede da ampliação do objeto de recurso, pugnar pela alteração do mesmo facto e no mesmo sentido preconizado pela Apelante.
Ambas estão de acordo, no sentido que foi feita prova suficiente que o contrato de mútuo celebrado na mesma data que o contrato de locação financeira, (ambos pelos mesmos outorgantes, entre a sociedade E..., cujos sócios CC e DD são pais do sócio único da D... e o Banco 1...) serviu propósitos pessoais daqueles sócios gerentes, relacionados com a aquisição da sua casa de habitação e não o que ficou a constar da escritura, como tendo sido concedido para apoio à tesouraria da sociedade E....
As partes divergem é na interpretação que fazem desse facto, relacionado com a posterior assunção dessa mesma dívida decorrente desse contrato de mutuo pela Ré B..., aquando da cessão da posição de locatária no contrato de locação financeira mencionado, questão que se discute nestes autos relacionada com aqueloutra de saber se a cessão da posição contratual no contrato de locação financeira (negócio impugnado nesta ação) consistiu num negócio gratuito ou oneroso.
Recorde-se que primitiva sentença veio a ser anulada por este tribunal de recurso, tendo em vista precisamente a ampliação da matéria de facto, de molde a permitir aquilatar-se a eventual existência de ligação entre o contrato de locação financeira a que se referem os autos e o contrato de mútuo, que aparentemente nenhuma ligação tinha com o contrato de locação financeira, por se ter constatado, não obstante, uma ligação entre ambos.
Com efeito, o contrato de locação financeira, foi celebrado inicialmente entre a sociedade E... e o Banco 1... em 26.4.2006.
Nessa mesma data foi celebrada entre as mesmas partes o mencionado contrato de mútuo entre os mesmos outorgantes, a sociedade E... e o Banco 1...
A E... cede a sua posição contratual no contrato de locação financeira à D..., em 12.3.2009 e nessa mesma data a D... assume perante o Banco 1... o pagamento da dívida da E... decorrente daquele mútuo.
Finalmente, o negócio impugnado através desta ação – cedência da posição contratual no contrato de locação financeira entre a D... e a ré B... ocorre em 15.3.2017, e cerca de uma semana após, a Ré B... assume o pagamento da dívida da D... ao banco com origem naquele mesmo contrato de mútuo.
Pretendia clarificar-se a razão destes contratos, desde a sua génese, terem andado sempre “lado a lado”, de molde a esclarecer-se a questão que se impõe apreciar na ação, que é a de saber se a cessão da posição contratual no contrato de locação financeira foi um negócio gratuito ou oneroso, no sentido de poder apurar se a assunção daquela dívida constituiu ou não uma contraprestação à cedência da posição contratual.
É certo que colocada diretamente a pergunta ao legal representante da B..., “Quanto é que os senhores pagaram à D... por conta desta cessão da posição contratual? aquele administrador respondeu: “Nada”.
Porém, se nada foi pago diretamente, aquela sociedade, tal como se provou documentalmente, assumiu quase simultaneamente o pagamento duma dívida da D... decorrente dum contrato de mútuo celebrado com o Banco 1..., O locador dos bens, objeto do contrato dos autos.
Importava assim apurar se a assunção da dívida da D... naquele contrato de mútuo poderia ser ou não considerada como contrapartida económica, ou remuneração pela cedência da posição contratual no contrato de locação financeira, ou se, ao invés e tal como entendeu este tribunal de recurso no que respeitava às rendas em dívida do contrato de locação, no valor de €59.298,42, euros, (relativamente ao qual se entendeu que o pagamento dessa responsabilidade da cedente pela cessionária não se considera atribuição patrimonial feita pela cessionária à cedente, por aquela obrigação integrar a posição contratual de locatária financeira objeto do negócio), a assunção da dívida no contrato de mútuo, dada a ligação daqueles dois contratos supra assinalada, faria parte, desde a génese de ambos, dum acordo global relativo ao contrato de locação financeira, que não permitiria a transmissão dum sem o outro.
Produzidos novos meios de prova, que incidiram sobre a génese do contrato de mútuo, de molde a perceber-se a sua ligação ao contrato de locação financeira, o tribunal deu como provado no facto 44, apenas o fim que consta da escritura pública inicial do contrato de mútuo, onde consta que o mesmo foi concedido e integralmente utilizado para apoio da tesouraria da sociedade mutuária, entendimento que é contestado simultaneamente pela Ré e pela Autora (esta na ampliação do objeto do recurso).
Afigura-se-nos, em face da prova produzida, que não obstante ter sido essa a finalidade que ficou a constar da escritura pública, que foi feita prova suficiente que a quantia mutuada de 350.000,00 euros serviu interesses pessoais dos sócios da E..., que não foram concretamente apurados, mas relacionados com a casa de habitação daqueles sócios, nada tendo a ver com o contrato de locação financeira celebrado pela mesma sociedade com o mesmo banco, na mesma data.
É o que resulta da conjugação do depoimento prestado por AA, o sócio único da D... e filho dos sócios da mutuária E..., e que assumira o pagamento de tal dívida em 12.3.2009, com os depoimentos do legal representante da Autora (“que lhe terá sido transmitido que a D... se debatia com problemas não só por causa do leasing, mas também porque estaria a pagar empréstimos de âmbito particular”) e dos legais representantes da Ré B... (EE: “Desconhece a proveniência dessa dívida, pensando que será de ordem pessoal” e FF: “Acha que o Sr. GG lhe disse que o empréstimo foi feito para pagar dívidas do pai”).
Ou seja, a perceção comum de todos os que constataram a existência desse contrato de mútuo, apontava num mesmo sentido, ou seja de que o mutuo serviu interesses pessoais dos mutuários.
E AA ouvido uma vez mais, reafirmou que a quantia mutuada não foi utilizada para fins relacionados com o contrato de locação financeira, nomeadamente ligados à exploração do posto de combustíveis,
Aliás é significativa a afirmação de HH, administrador da Autora, quando afirma que “a única coisa que nós dizíamos, era nós não vamos pagar também a casa da sua mãe. Portanto nós assumimos a responsabilidade do crédito que diz respeito ao posto e exploramos e abatemos um valor de exploração à divida. Agora, a casa tem de ser dissociada…”;
Impõe-se assim alterar o facto 44, que passará a ter a seguinte redação:
44 - Nos termos da cláusula primeira do documento complementar ficou a constar que o empréstimo foi concedido para apoio de tesouraria da sociedade mutuária, mas não obstante, o empréstimo serviu interesses pessoais dos sócios daquela sociedade.
Consequentemente terá de ser eliminada a alínea c) dos factos não provados.
III-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Com interesse para a decisão, foram julgados provados os seguintes factos:
1 - A autora, anteriormente designada “A..., SA”, é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização, transporte, e venda de combustíveis e lubrificantes, sendo revendedora oficial dos produtos F.../G....
2 - Por contrato tripartido denominado “Contrato de Distribuição Tripartido Retalho Co-Branded”, datado de 01/04/2009, a sociedade comercial denominada “D..., Unipessoal Lda” obrigou-se a comprar à autora os produtos petrolíferos da G... (F...), nos termos, modos e condições nele melhor previstos.
3 - No exercício da sua atividade comercial e no cumprimento do contrato celebrado, a autora forneceu àquela sociedade comercial “D..., Unipessoal Lda”, a pedido desta, produtos (combustíveis) do seu comércio.
4 - A sociedade comercial “D..., Unipessoal Lda” dedicava-se, enquanto objeto comercial, à revenda ou comércio de combustíveis líquidos e gasosos, lubrificantes, lavagens de viaturas, mudanças de óleos, manutenção e reparação de veículos automóveis.
5 - O seu capital social era do valor de 40.000,00€, cuja única quota social, de igual valor nominal, era titulada por AA, seu sócio e gerente.
6 - A sua atividade comercial, de escopo lucrativo, desenvolvia-se através da exploração do posto de combustível (estação de serviço), com loja de apoio, estabelecimento de restauração e bebidas e oficina de reparação e manutenção de automóveis.
7 - Situado no Lugar ..., da freguesia e concelho de Águeda, e implementado nas frações autónomas designadas pelas letras “a”, “b” e “c” do prédio urbano, sito naquele lugar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda sob o nº ..., da freguesia ..., e inscrito na matriz predial urbana sob artigo ....
8 – Esse prédio era objeto de um contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre o Banco 1... e a sociedade comercial “E..., Lda", em 26/04/2006.
9 - Por contrato de cessão de posição contratual datado de 12 de Março de 2009, a referida E... Lda cedeu à D..., Unipessoal Lda a posição contratual de locatária que detinha nesse contrato.
10 - A sociedade comercial “D..., Unipessoal Lda” foi declarada insolvente por douta sentença proferida em 10-07-2017, transitada em julgado, no âmbito do processo de insolvência de pessoa coletiva número 2636/17.1T8AVR, do Juiz 3 do Juízo de Comércio da Anadia, da Comarca de Aveiro.
11 - A autora viu reconhecido, no aludido processo de insolvência, um direito de crédito do valor global de 759.483.19€, correspondente ao valor, de capital, de 595.960,58€, acrescido dos inerentes juros, incluindo os vincendos após a prolação da declaração de insolvência.
12 - O direito de crédito reconhecido à autora deriva de fornecimentos de produtos (combustíveis) do seu comércio à sociedade declarada insolvente, vencidos e não pagos, expressos nas faturas vencidas, e não pagas, deduzidas as notas de crédito pelo rappel contratualizado,
13 - Tais fornecimentos de produtos (combustíveis) feitos pela autora à sociedade comercial “D..., Unipessoal Lda” e que não foram pagos correspondem a um período de tempo compreendido entre 29/12/2014, data da fatura mais antiga vencida, e 27/05/2015, data da fatura vencida mais recente, conforme reclamação de créditos apresentada em juízo.
14 - No âmbito do processo de insolvência da sociedade comercial “D..., Unipessoal, Lda, não houve lugar a liquidação dado o encerramento do processo por falta ou insuficiência de bens, de modo que nenhum credor foi ressarcido, ainda que parcialmente, dos seus créditos.
15 - Em virtude da falta de pagamento voluntário dos valores em dívida, a A. intentara acção judicial contra aquela sociedade comercial “D... Unipessoal Lda”, peticionando-lhe a quantia inicial de 691.050,54€, acção distribuída em 6 de Fevereiro de 2017 e que correu termos no Juiz 3 do Juízo Central Cível de Aveiro
16 - Tal ação judicial, veio a ficar suspensa e, posteriormente, prejudicada na lide em função da declaração de insolvência da devedora.
17 – Mediante contrato de cessão de posição contratual datado de 15 de Março de 2017, a sociedade comercial “D..., Unipessoal Lda” cedeu à sociedade comercial “B..., Sa”, ora 1º ré, a sua posição contratual no âmbito do contrato de locação financeira imobiliária referido em 8.
18 - Contrato que teve por objeto os imóveis onde se encontra implementado o posto de combustível (estação de serviço) – que, com tal cessão, foi igualmente cedido.
19 - A sociedade comercial “B..., Sa”, ora 1º ré, é uma conhecida revendedora de combustíveis que explora, por si ou outrem, postos de combustíveis, sendo uma das principais concorrentes da autora no sector.
20 - Celebrara com a sociedade comercial “D..., SA”, em 1 de Outubro de 2015, um contrato de fornecimento de combustíveis líquidos para veículos, em regime de exclusividade e mediante o fornecimento à consignação – com as responsabilidades daquela sociedade garantidas pessoal e solidariamente pelo sócio e gerente AA – nos demais termos, modos e condições nele melhor previstos.
21 - À data da cessão de exploração, a “D..., Lda” devia àquela sociedade cedente, ora 1º ré, a quantia, de capital, de 39.049,20€, em conta corrente por combustíveis fornecidos em regime de consignação cuja sociedade fornecedora não reclamou no processo de insolvência daquela sociedade cessionária.
22 - A 28/04/2017 foi celebrado pela “B..., Sa” um contrato denominado “Contrato de Prestação de Serviços” com a sociedade comercial “C..., Lda”.
23 - Tendo por objeto o posto de abastecimento de combustível, loja de conveniência, posto de venda de gás de garrafa e lavagem auto, implementado na fração A do prédio objeto da locação financeira imobiliária, referido nos pontos 8 e 17 dos factos provados.
24 - Os serviços acordados, encontram-se previstos nas cláusulas segunda e terceira desse contrato competindo à C...:
- garantir o funcionamento diário do posto de combustível, fazendo-o com recurso a pessoal (trabalhadores) próprio, dotada de autonomia jurídica e técnica,
- conferir turnos, elaborar mapas de caixa e garantir a entrega de valores obtidos, efetuar inventários, lançar faturas, guias de remessa, entre outros documentos no sistema informático, conferir encomendas, implementar promoções coordenadas pela equipa de ... da B..., repor produtos, controlar a validade dos mesmos,
- limpar, zelar pelo bom funcionamento dos equipamentos, reparando-os se necessário, zelando pela imagem dos abastecedores de serviço e pela imagem do posto,
- Garantir o cumprimento de normas de segurança, providenciar a compra de produtos, participar às autoridades locais no que se revelar necessário,
25 - Como contrapartida ficou prevista uma comissão a ser devida em função dos m3 de combustíveis que são vendidos naquele estabelecimento comercial, acrescido de IVA.
26 – À 1º Ré compete determinar os preços de venda dos produtos comercializados, suportar os custos inerentes ao bom funcionamento do estabelecimento, nomeadamente eletricidade, água, comunicações, entre outros bem como suportar os custos relacionados com a manutenção das licenças do estabelecimento, incluindo as obras ou benfeitorias que forem necessárias para o efeito, bem como a obtenção de todas e quaisquer licenças administrativas ou outras que se mostrem necessárias para a realização das mesmas, e o pagamento das taxas que por elas sejam devidas
27 - Esta sociedade comercial denominada “C..., Lda” possui o capital social do valor de 500,00€, repartido em duas quotas sociais, sendo uma quota do valor nominal de 490,00€ e outra quota do valor nominal de 10,00€.
28 - Ambas as quotas sociais são tituladas por AA, o qual titula a quota principal e maioritária desde a sua constituição e, posteriormente, adquiriu a DD a quota social de menor valor nominal.
29 - O seu objeto social é a revenda ou comércio de combustíveis líquidos e gasosos, lubrificantes, lavagens de viaturas, mudança de óleos, manutenção e reparação de veículos, café e snack bar.
30 - A sua gerência encontra-se, desde a sua constituição, atribuída ao seu principal sócio, AA, obrigando-se com a intervenção deste.
31 – O negócio referido em 17 levou a que a sociedade comercial “D..., Unipessoal, Lda” - com a dimensão da dívida à Autora - ficasse sem o seu único ativo e incapaz de prosseguir a sua atividade comercial.
32 – Os Réus Banco 1... SA e C... tinham conhecimento, quer do crédito da autora sobre a referida D..., quer do facto de que se essa sociedade não tivesse mais o prédio aqui em causa e respetivo estabelecimento comercial não tinha meios para ressarcir qualquer montante à autora.
33 – O capital em dívida no contrato de locação financeira referido em 8 no seu início, isto, é em 26/04/2006, era de 601.750,00 mais juros, sendo que no momento referido no ponto 17 dos factos provados o capital em dívida era de 425.986,04 €.
34 - Em março de 2017, fruto das suas dificuldades económicas, a D... tinha deixado de pagar rendas, encontrando-se em incumprimento 17 rendas mensais no valor global de 59.298,42 euros.
35 – Relativamente a esse valor, no contrato referido em 17 foi inserida cláusula com a seguinte redação:
“No seguimento de pedido da Cessionária, ter-lhe sido concedido pelo Banco um financiamento adicional no valor de 59.298,42 € (cinquenta e nove mil duzentos e noventa e oito euros e quarenta e dois cêntimos), o qual será integralmente utilizado, na presente data para regularização de responsabilidades vencidas da Cedente assumidas nesta data junto do Banco, passando em consequência as responsabilidades de capital a ser na presente data de 485.284,46 €”.
36 - Ao mesmo tempo em 12/03/2009, a Ré D... tinha assumido perante o Banco 1... o pagamento de um empréstimo no valor global de 332.872,40 mais juros.
37 - Fruto das mesmas dificuldades económicas a D... tinha deixado de pagar em março de 2017, esse empréstimo, estando em mora 17 dessas prestações mensais no valor global de €16.806,15.
38 - O gerente da Ré D..., GG, deu conta aos responsáveis da Ré B..., das suas dificuldades económicas e da situação de risco de despejo em que a sociedade se encontrava, em virtude do incumprimento do contrato de locação financeira o qual iria ser promovido através da denuncia do contrato de locação financeira que já lhe tinha sido anunciado pelo Banco 1....
39 - Interessada que estava em manter aberto e em funcionamento o posto de combustíveis em causa neste processo, a Ré B..., perante a incapacidade da Ré D... mas com a sua anuência, teve por bem tentar negociar com o Banco 1... a cessão da posição contratual de locatária no contrato de locação financeira imobiliária, assumindo as responsabilidades do pagamento das respetivas rendas, nomeadamente os montantes das mesmas já vencidas.
40 - O R. Banco 1... anuiu a essa pretensão mas colocou como condição a exigência de a B..., ao mesmo tempo, assumir também a obrigação de liquidar ao Banco a totalidade do empréstimo concedido à Ré D..., referido em 36 e 37..
41 - Perante este cenário e para atingir os seus objetivos de controlo do posto de abastecimento de combustíveis, a Ré B... assumiu perante o Banco 1... a totalidade das responsabilidades do contrato de locação financeira e assumiu a dívida da Ré D..., no empréstimo concedido a esta sociedade, referido em 36 e 37 e a qual se computava, em 21/3/2017, em €119.715,54.
42 - O empréstimo a que se refere o ponto 36 dos factos provados fora concedido através de escritura pública de mútuo com hipoteca celebra a 26 de Abril de 2006 e em que foram outorgantes:
- 1ºs outorgantes CC e mulher DD na qualidade de únicos sócios e gerentes em representação da sociedade comercial por quotas E... Lda.- 3º outorgante - Banco 1... SA
43 - Nessa escritura, foi dito que pela presente escritura o Banco e a sociedade mutuária representada pelos 1ºs outorgantes acordam em celebrar um empréstimo no montante de trezentos e cinquenta mil euros, quantia de que a sociedade mutuária, representada pelos primeiros outorgantes se confessa desde já devedora perante o banco, quantia acrescida dos juros contratuais e demais despesas que forem devidas.
44 - Nos termos da cláusula primeira do documento complementar ficou a constar que o empréstimo foi concedido para apoio de tesouraria da sociedade mutuária, mas não obstante, o empréstimo serviu interesses pessoais dos sócios daquela sociedade. (facto ora alterado).
45 - Em garantia do cumprimento dessa obrigação foi constituída hipoteca sobre os seguintes imóveis pertencentes aos 1ºs outorgantes:
a)- Prédio urbano destinado a habitação composto de casa de rés-do-chão, com entrada pelo n.º ... da Rua ..., na freguesia ..., concelho de Santa Maria da Feira, inscrito na respetiva matriz sob o art. ... e descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o número ... da referida freguesia ..., encontrando-se registada a favor dos Primeiros Outorgantes pela inscrição G- ....
b) - Fração autónoma designada pela letra C, correspondente a rés-do-chão –estabelecimento comercial, com entrada pelo n.º ... da Rua ..., a qual faz parte integrante do Prédio urbano sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho de Santa Maria da Feira, inscrito na respetiva matriz sob o art. ...... e descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o número ... da referida freguesia ..., encontrando-se registada a favor dos Primeiros Outorgantes pela inscrição G- ...
46 – Foi ainda constituída hipoteca sobre o seguinte imóvel pertencente à 2ºs outorgante II:
Prédio Urbano – Pavilhão destinada a armazém e logradouro, sito na Rua ..., na freguesia ..., Concelho de Santa Maria da Feira, inscrito na respetiva matriz sob o n.º ... e descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira, sob o n.º ... da referida freguesia ..., encontrando-se registada a favor da Segunda Outorgante pela inscrição G- Dois
47 – Por escritura de assunção de dívida de 12 de março de 2009, a sociedade D... Unipessoal Lda, representada por GG assumiu a obrigação de liquidar ao banco a quantia mutuada ainda em dívida, no montante de 332.872,40 €, respetivos juros e demais obrigações emergentes do citado empréstimo, mantendo-se a hipoteca dos prédios pertencentes a CC e mulher.
48 - O prédio urbano descrito em 44 a) foi adquirido por CC e DD, através de gestor de negócios (JJ) por contrato de compra e venda, formalizado por escritura pública de 23 de Setembro de 1968, ainda como terreno para construção.
49 – A gestão de negócios foi ratificada pelo gestor CC, em 14 de março de 2006.
50 – A B... encontra-se a pagar a dívida referida no ponto 41 dos factos provados.
Não se provou que:
A) O contrato referido de 22 a 25 tivesse por objeto o estabelecimento de restauração e bebidas (comércio/serviços) e oficina de reparação e manutenção de automóveis.
B) A Ré B... tivesse conhecimento do crédito da autora sobre a D....
C) eliminado.
V-APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS:
A impugnação pauliana, instituto muito antigo na História do Direito que visa a salvaguarda do património do devedor para proteção dos interesses do credor contra os riscos da sua dissipação, tem o seu regime jurídico regulado nos arts. 610º e ss do Código Civil.
A procedência deste meio de conservação da garantia patrimonial implica a atribuição ao impugnante do direito à restituição na medida do seu interesse, a prática de atos de conservação da garantia e à execução no património do obrigado à restituição (artigo 616º nº 1, do Código Civil).
São seus requisitos os atos de natureza não pessoal que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do crédito, a anterioridade deste em relação àqueles, o nexo de causalidade entre o ato e a impossibilidade de satisfação integral do direito de crédito verificada na altura da sua prática e a má fé dos respetivos sujeitos no caso de se tratar de atos onerosos (artigos 610º e 612º do Código Civil).
No que concerne ao ónus de prova, ocorre a especialidade de o credor dever provar o seu direito de crédito, incluindo a respetiva quantificação, e o devedor ou o terceiro interessado na manutenção do ato a existência no património do obrigado de bens penhoráveis de igual ou maior valor no confronto com o valor do referido ato (artigo 611º do Código Civil).
Isso significa, em termos práticos, que, provada pelo impugnante a existência e a quantidade do direito de crédito e a sua anterioridade em relação ao ato impugnado, se presume a impossibilidade da sua realização ou o seu agravamento.
O que foi pedido nesta ação foi a declaração de ineficácia perante a Autora do contrato de cessão de posição contratual celebrado em 15 de Março de 2017 entre as sociedades comerciais D..., Unipessoal, Lda, B..., SA e Banco 1..., SA e do contrato de prestação de serviços celebrado em 28 de Abril de 2017 entre as sociedades comerciais; “B..., SA” e “C..., Lda”, sendo a primeira, a sociedade D... devedora à Autora/apelada de um credito no valor de €595.960,58€ proveniente do fornecimento de combustíveis, no período compreendido entre 29.12.2014 e 27-05.2015, no âmbito dum contrato de distribuição com exclusividade.
Em consequência destes negócios, a sociedade D... ficou sem qualquer património, e sem poder exercer qualquer atividade comercial que lhe permitisse satisfazer os seus credores.
Isto porque, a sociedade comercial “D..., Unipessoal Lda” dedicava-se à revenda ou comércio de combustíveis líquidos e gasosos, lubrificantes, lavagens de viaturas, mudanças de óleos, manutenção e reparação de veículos automóveis, sendo tal atividade comercial, desenvolvida através da exploração do posto de combustível (estação de serviço), com loja de apoio, estabelecimento de restauração e bebidas e oficina de reparação e manutenção de automóveis.
O seu estabelecimento comercial, constituído por posto de revenda de combustíveis, oficina automóvel e loja, encontrava-se instalado no prédio objeto de um contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre o Banco 1... e a sociedade E..., que em 12.3.2009, sociedade que cedera a sua posição contratual à D..., que aí passou a exercer exclusivamente a sua atividade comercial.
Mediante o contrato ora impugnado de cessão de posição contratual datado de 15 de Março de 2017, a sociedade comercial “D..., Unipessoal Lda” cedeu à sociedade comercial “B..., SA”, ora 1ª Ré, a sua posição contratual no âmbito do contrato de locação financeira imobiliária, contrato que teve por objeto os imóveis onde se encontra implantados o posto de combustível (estação de serviço) – que, com tal cessão, foi igualmente cedido.
A D... veio a ser declarada insolvente, a escassos 3/4 meses da realização daqueles negócios, em 10.7.2017 no processo 2636/17.1AVR do J3 Comércio de Anadia, onde a Autora/Apelada viu reconhecido o seu crédito no montante de €.759.483,19 (o capital em dívida acrescido de juros), tendo sido confrontada com o encerramento do processo de insolvência por falta de bens, não tendo nenhum credor sido ressarcido, ainda que parcialmente dos seus créditos.
Ao ceder a sua posição contratual no contrato de locação financeira à Ré B..., a D... ficou impedida de desenvolver a sua atividade “esfumando-se qualquer possibilidade de negociar o pagamento da dívida á autora”.
Isto mesmo é comprovado no processo de insolvência, que foi encerrado, sem dar lugar à liquidação, por insuficiência de bens, tendo-se provado que nenhum credor da insolvência foi ressarcido (cfr. facto 14).
Daí que se mostrem verificados os requisitos estabelecidos no art. 610º do Código Civil, entendimento que não é posto em causa neste recurso, não se apresentando como questão controvertida.
O que verdadeiramente opõe as partes e se mostra controvertida é apenas a questão do preenchimento dos requisitos subjetivos de impugnação pauliana, estabelecidos no art. 612.º do C.Civil.
Dispõe esta norma o seguinte, sob o título “Requisito da má fé”:
1. O ato oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; se o ato for gratuito, a impugnação procede, ainda que um e outro agissem de boa fé.
2. Entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor.
Distingue a lei conforme os atos em causa sejam onerosos ou gratuitos e, quanto aos primeiros, exige que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé, que caracteriza como consciência do prejuízo que eles causem ao credor (artigo 612º do Código Civil).
O referido conceito de prejuízo tem a ver com diminuição da garantia patrimonial e a impossibilidade de obtenção da satisfação do seu crédito.
A exigência da má fé de ambas as partes deriva da ideia de que à prestação do devedor corresponde a prestação equivalente de terceiro e este ficar em situação de grave afetação da sua esfera patrimonial.
A má fé a que a lei se reporta envolve a representação pelos respetivos outorgantes de que o ato praticado afetará negativamente a realização do direito de crédito do credor no confronto do devedor; mas não exige, porém, que os contratantes atuem com intenção de lhe causar prejuízo.
A propósito deste requisito, afirmamos no anterior acórdão acolhendo a jurisprudência do acórdão do STJ de 16 de junho de 2020, o seguinte, quanto às rendas em dívida do contrato de locação financeira, cujo pagamento foi feito pela cessionária, que considerarmos não constituir contraprestação, para efeito da demonstração da onerosidade do negócio:
“O contrato de cessão da posição contratual e o contrato de locação financeira são, na verdade, instrumentos negociais distintos e é importante atentar nessa distinção, para aferir da gratuitidade ou onerosidade da cessão da posição contratual que importa apreciar.
Trata-se com efeito de determinar o caráter gratuito ou oneroso do negócio de cessão da posição contratual – contrato-instrumento - celebrado pela D... e pelas 1.ª e 2.º Réus, e não, naturalmente, do contrato de locação financeira – contrato-base - que tem, tipicamente, caráter oneroso.
A cessão da posição contratual consiste na transmissão a um terceiro, por via negocial, por umas partes num contrato bilateral, com o consentimento do outro contraente, do acervo de posições jurídicas ativas e passivas para si decorrentes desse contrato.
O que caracteriza esta figura é a transmissão, voluntária, da qualidade de parte num contrato com a correspondente modificação subjetiva da relação contratual que, no resto, se mantém inalterada.
A cessão em apreço acarretou a substituição da D... – cedente – pela 1.ª Ré B... – cessionária - no contrato de locação financeira celebrado com o 2.º Réu, o Banco 1..., ficando aquela sociedade D... sem os direitos locatício-finaceiros – designadamente o direito de adquirir o imóvel no termo da locação financeira – e, também, exonerada das respetivas obrigações contratuais – nomeadamente daquela de pagamento das rendas.
Foi nestes moldes que a 1.ª Ré, B...,SA ingressou na titularidade de todos os efeitos jurídicos que do contrato de locação financeira decorriam para a D... .
O locatário financeiro, em lugar de remunerar a sucessiva utilização do bem locado, reembolsa uma única dívida de capital. Na verdade, a locação financeira, do ponto de vista funcional, equivale ao mútuo: as rendas são muito semelhantes às prestações mediante as quais o mutuário reembolsa e, simultaneamente, remunera o capital.
A questão que se coloca é a seguinte: Se a posição contratual da D... foi cedida à 1.ª Ré, B... sem qualquer contrapartida, parece-nos evidente que o património da D... sofreu uma diminuição, na medida em que esta deixou de ser titular da posição de locatária financeira, sem, contudo, receber qualquer contraprestação.
Nesta situação inexistem atribuições patrimoniais correspetivas ou equivalentes de ambas as partes.
Porém, não se pode afirmar que o facto da D... ter ficado desobrigada do pagamento das prestações vencidas e vincendas ao 2.º Réu Banco 1... permite conferir caráter oneroso à cessão da posição contratual.
Com efeito, como contrapartida da cedência do gozo da coisa, o locatário financeiro obriga-se a pagar uma retribuição que assume a forma de renda ou de aluguer (art. 10º, n.º 1, al a) do DL n.º 149/95), e que se traduz na contrapartida financeira que garante ao locador o reembolso do investimento feito, o pagamento do juro calculado sobre o capital investido, o pagamento do custo de amortização do bem adquirido e da margem de lucro da operação.
A 1.ª Ré B... ficou obrigada ao pagamento das rendas a partir da data em que adquiriu a posição de locatária financeira, mas passou igualmente a deter o gozo da coisa.
Atento o teor do contrato junto aos autos, aquela Ré passou a ter o gozo do imóvel com as licenças de utilização, e assumiu a obrigação de proceder ao pagamento de um valor de €485.284,46 euros (ver cláusula 5º nº 8), valor do financiamento que ainda se encontrava em dívida na data da cessão, quanto no início o valor do investimento é de 601.750,00 euros, tendo ainda ficado acordado que o valor residual (de aquisição do imóvel a final) passava dos “atuais 150.437,50” para os 14.558,53 euros.
As rendas em dívida na altura da cessão totalizavam a quantia de € 59.298,42, euros correspondente a 17 rendas em dívida ao tempo da cessão.
Ora, relativamente ao valor dessas rendas, as mesmas respeitam ainda à obrigação unitária que recai sobre o locatário financeiro e que as partes tiveram em vista a transmissão, para a 1.ª Ré, da obrigação de realizar as prestações já vencidas ao tempo da cessão.”
Entendemos então e agora que, o pagamento da aludida quantia de 59.298,42 euros pela cessionária, para pagar aquela responsabilidade da cedente, não consubstancia qualquer atribuição patrimonial feita pela cessionária à cedente, porquanto aquela obrigação integra a posição contratual de locatária financeira objeto do negócio em apreço tal como este foi conformado pelas partes. É uma obrigação que integra o contrato-base – locação financeira - e não o contrato-instrumento – cessão da posição contratual. ´
Porém, se não houve nenhum pagamento à cedente como contrapartida pela cedência da posição contratual no contrato de locação financeira, tal como reconheceu o legal representante da ora Apelante[8], provou-se que a B..., sensivelmente na mesma data (uma semana após a celebração da cessão da posição contratual) assume, por exigência do locador, o Banco 1... o pagamento da quantia em dívida relativa a um contrato de mútuo concedido inicialmente no valor global de 332.872,40€ à sociedade dos pais do sócio único da D..., no valor de 119.715,54 euros, mais juros desvinculando a D... do pagamento dessa quantia ao Banco 1....
Provou-se que foi o R. Banco 1... quem, para anuir à cedência da posição contratual da cessionária à B..., colocou como condição a exigência da sociedade B..., ao mesmo tempo, assumir também a obrigação de liquidar ao Banco a totalidade desse empréstimo.
Tendo-se procurado, aferir da conexão entre estes dois contratos – de locação financeira e de mútuo –uma vez que, desde a sua génese, sempre que havia alteração da titularidade dos sujeitos contratantes num, essa mudança ocorria no outro, o que aconteceu também no negócio em apreço, em que a a ré B..., ao assumir a posição de locatária assume em simultâneo o pagamento da dívida do contrato de mútuo, constatou-se que não existe ligação intrínseca entre ambos os contratos, tendo ficado esclarecido que o contrato de mútuo foi concedido pelo Banco locador aos sócios gerentes da primitiva sociedade locatária para fins pessoais daqueles.
Temos assim que, através da escritura pública celebrada em 21.3.2017 (documento junto no PP a fls. 266), que as partes denominaram de “Assunção de Dívida” a Ré B... declarou assumir “a obrigação de liquidar ao Banco a totalidade da quantia mutuada em dívida, no valor de €119.715,54 respetivos juros e obrigações emergentes do citado empréstimo, considerando transmitidas para a sociedade B... as responsabilidades em dívida.
Para além da obrigação principal, como consta da escritura “transmitem-se igualmente para a dita sociedade B... as obrigações acessórias da citada sociedade D..., que não sejam inseparáveis da pessoa deste.
A assunção de dívida (quanto aos seus efeitos) pode revestir duas modalidades: assunção de dívida liberatória – a vinculação do novo devedor (assuntor) importa a exoneração do antigo devedor -, e assunção cumulativa – a vinculação pelo novo devedor não implica a libertação do antigo devedor, passando ambos a responder, indistintamente, pela dívida perante o credor, só sendo liberatória se houver declaração expressa do credor nesse sentido.
No caso em apreço, a sociedade D... ficou desvinculada do pagamento daquela dívida.
Ora, a assunção de dívida também pode ser também ela própria onerosa, ou gratuita, definindo-se as relações entre o antigo e o novo devedor, se o contrato foi celebrado entre eles, pelos termos do mesmo.
Tem-se entendido que os atos onerosos pressupõem atribuições patrimoniais de ambas as partes, ligadas por um nexo de correspetividade, segundo a sua vontade, pois que, “se alguém obtém uma vantagem patrimonial, paga-a com um sacrifício correspondente”.
Ao invés, os negócios gratuitos caracterizam-se pela intervenção de uma intenção liberal (animus donandi).
Um ato oneroso pressupõe atribuições patrimoniais de ambas as partes, ligadas por um nexo de correspetividade, segundo a sua vontade, enquanto um ato gratuito cria, para uma só, uma vantagem patrimonial sem nenhum equivalente.
Não constituindo a assunção de dívida uma contrapartida com repercussão no património da D..., pois implicou apenas uma diminuição do seu passivo, não pode deixar de ser entendida como um custo patrimonial suportado pela cessionária.
E se a correspetividade entre as prestações - cedência da posição contratual no contrato de locação financeira, por um lado, e assunção de dívida no contrato de mútuo concedido para fins pessoais de terceiros, por outro, - parece não existir, o facto é que se provou que, tal contraprestação foi exigida pelo Banco 1..., como condição para a realização do negócio.
O devedor (D...) diminuiu o seu património, e o terceiro beneficiado por essa diminuição (B...) prestou uma contrapartida, que lhe foi exigida pelo Banco, ao assumir o pagamento duma dívida da D... perante aquele banco.
Nessa perspetiva, em que é exigida uma contrapartida económica- assunção de dívida da locatária – como condição para a celebração da cedência da posição contratual no contrato de locação financeira, estaremos perante um contrato oneroso.
Ora, quando o ato é gratuito, a impugnação procede ainda que o devedor e o terceiro ajam de boa-fé.
Mas se o ato é oneroso, exige-se a má-fé, sendo que a diversidade de regime do art. 612º do Código Civil, decorre da consideração de que, sendo o ato gratuito, há sempre prejuízo injustificável para o credor.
Uma vez que ato oneroso só está sujeito à impugnação pauliana, se o devedor e o terceiro tiverem agido de má-fé. (art.º 612º n.º 1, 1ª parte C. Civil), porque da matéria de facto provada, não consta o conhecimento daquela sociedade do prejuízo causado à credora Apelada, terá que conclui-se pela procedência do recurso da Apelante e pela revogação da sentença, por falta de verificação do requisito estabelecido no art. 612º do C.Civil, uma vez que no artigo 32 dos factos provados e alínea b) dos não provados, mostra-se afastado o conhecimento pela Ré B... do prejuízo causado.
VI- AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Procedendo o recurso, haverá agora que apreciar o pedido de AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO, formulado ao abrigo do artigo 636.º n.ºs 1 e 2,
A Apelada e Autora, a sociedade A... que teve vencimento de causa, estava impedida de recorrer. Não obstante, veio subsidiariamente pedir a alteração da matéria de facto, para o caso do recurso dos apelantes vir a proceder, o que aconteceu, uma vez que ficou afastada a gratuidade do negócio em que a sentença da primeira instância fundou a procedência da impugnação pauliana.
O artigo 636.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, é claro a este propósito: “No caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação”. Além disso, “[p]ode ainda o recorrido, na respetiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas”.
Prevenindo a hipótese de o recurso interposto pelo recorrente poder ser julgado procedente, cabe a ampliação do objeto daquele, nos termos do artigo 636.º
Usando desta faculdade, a Apelada impugnou os seguintes factos:
Deverá ser alterado e dado por provado 18 passando a refletir tal gratuitidade:“18 – Contrato que e teve por objeto os imóveis onde se encontra implementado o posto de combustível (estação de serviço) – que com tal cessão foi igualmente cedido, cuja cessão de posição contratual e transmissão do posto de combustível (estação de serviço) foi não onerosa, não havendo ligação ao mútuo formalmente assumido”.
Invocou ainda que se verifica-se uma errada decisão em relação aos pontos 44º e 50º do rol de factos dados por provados e da alínea c) do rol de factos dados por não provados, devendo dar-se como provado a alínea c) do rol de factos dados por não provados, passando a constar, em novo ponto da matéria de facto dada por provada: “O empréstimo referido em 36 e 42 a 47 foi contraído para fazer face a dívidas pessoais dos gerentes da E..., nomeadamente as relacionadas com a sua casa de habitação.”
Quanto ao primeiro, dir-se-á tão só que a questão da gratuitidade/onerosidade do negócio constitui manifestamente uma questão e direito e como tal deve constar do fundamentação de facto da sentença.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa,[9] o que está em causa não é determinar se ocorreu ou não um concreto facto, ou seja, “sindicar a convicção formada pelo tribunal com base nas provas produzidas e de livre apreciação, mas avaliar se matéria considerada como um facto provado reflete, indevidamente, uma apreciação de direito por envolver uma “qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica”.
A fundamentação de facto de uma sentença deve conter unicamente factos materiais.
Referiu-se no Ac. do STJ de 1.10.2019,[10] in www.dgsi.pt que a nossa jurisprudência tem vindo a entender “que são de afastar expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam suscetíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, que invadam o domínio de uma questão de direito essencial”.
Desta forma não se conhece da peticionada alteração do facto 18 dos factos provados.
Em face da reapreciação da matéria de facto feita no recurso, mostra-se prejudicada a apreciação dos factos constantes do facto provado 44 e da alínea c) dos factos não provados.
Assim é que a nossa atenção deva ser dirigida para a impugnação feita do facto 32, dos factos provados e da alínea b) dos factos não provados, “caso venha a ser decretada por onerosa a cessão de posição contratual objeto dos autos, mal andou a o douto Tribunal “a quo” ao não dar por provada a má fé das rés, prevista artigo 612º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil, ora por via do conhecimento do direito de crédito da autora e a consciência do prejuízo provocado à credora ora mediante a valoração de uma atuação pautada pela existência de negligência consciente na realização do ato em causa”.
Diz a Apelada que a redação do ponto 32 que foi incorretamente julgada deva passar a ser seguinte:
Ponto 32: “Os réus Banco 1... Sa, C... e B... tinham conhecimento, quer do crédito da autora sobre a referida D..., quer do facto de que se essa sociedade não tivesse mais o prédio aqui em causa e respetivo estabelecimento comercial não tinha meios para ressarcir qualquer montante à autora”.
De salientar que se este mesmo facto – 32 – foi objeto de impugnação pela Apelante B.... Porém, o facto concreto ora impugnado pela apelada em ampliação do objeto do recurso, incluído naquele facto 32, respeita apenas e tão só o conhecimento do prejuízo causado à credora pela B..., pelo que nessa parte não foi aquela facto objeto de impugnação e nessa medida é sindicável nos termos previstos pelo nº 2 do art. 636º do C.P.C.
Feito este esclarecimento, alega a Apelada que os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, globalmente considerados, só poderão conduzir à conclusão do conhecimento do crédito da autora e da consciência do prejuízo causado à Autora A....
Indicou os seguintes meios de prova, como impondo decisão diversa: o depoimento de parte de KK, que transcreveu parcialmente nas partes que entendeu relevantes; o depoimento de FF, administrador do grupo B..., a testemunha LL e MM e HH, tendo procedido à transcrição parcial destes depoimentos na parte julgadas relevantes.
Vejamos.
Do depoimento de parte de KK, administrador da recorrida “B... SA”, apesar de dizer desconhecer a situação financeira da D..., reconheceu, que a sua empresa, sempre que inicia relacionamento com um novo cliente procede a estudos da situação económica e financeira do cliente, tendo reconhecido saber da existência apenas dum posto de combustíveis a ser explorado pela D....
Não logrou esclarecer porque é que, tendo-lhe sido entregue a exploração do posto, com a cessão da posição contratual no contrato de locação financeira, não pretendendo explorar o mesmo diretamente não tenha celebrado o contrato de prestação de serviços (com a finalidade de exploração do posto de combustíveis, da loja e da oficina) com a própria D..., mas sim com uma outra empresa do mesmo sócio AA, a C....
Também, do depoimento de FF, administrador do grupo “B...”, com responsabilidade pelo departamento de área de investimentos e expansão resulta a confirmação que a empresa tem um departamento de análise de risco de crédito, que analisa os clientes para se fazer negócio, para fornecerem combustível para revenda no posto, dizendo mesmo que “os clientes são todos analisados um a um, quer seja um de cinco milhões ou um cinco euros”.
Reconheceu que sabiam que a D... não tinha seguro de crédito e que por essa razão forneciam o combustível à D..., à consignação, com contagem diária ou semanal.
E disse mais, relativamente ao contrato de fornecimento de combustível celebrado com a D...: “o negócio da compra foi diretamente comigo (…) o grupo B... nunca em caso algum antes de ter um contrato sequer terá fornecido um litro sem ao posto sem … sem … sem … perguntar às pessoas cuidado há algum tipo de contrato… também não gostamos que fizessem isso connosco logicamente.”
A testemunha LL referiu por sua vez que, sendo o meio dos combustíveis um meio pequeno, em que as empresas se conhecem todas umas às outras, eram publicamente conhecidas as dificuldades financeiras da D....
HH, referiu que, o gerente da D..., AA contou-lhe que entretanto tinha feito contrato com a B... E que esta lhe tinha dito que o ajudava, a resolver as coisas, desde que ele não tivesse o contrato com a A....
Afirmou: “Repare, a B... sabia da dívida pelo menos desde 2013 quando começou a fornecer a D... no tal interregno em que lhes cortamos o crédito pela primeira vez (…) eles sabem da situação, eles não me dão mais crédito porque sabem da situação com vocês.”
Estes depoimentos tem de ser analisados no contexto global do negócio que veio a ser efetuado.
Aqui salientamos os seguintes factos que foram julgados provados (não impugnados no recurso):
38 - O gerente da Ré D..., GG, deu conta aos responsáveis da Ré B..., das suas dificuldades económicas e da situação de risco de despejo em que a sociedade se encontrava, em virtude do incumprimento do contrato de locação financeira o qual iria ser promovido através da denúncia do contrato de locação financeira que já lhe tinha sido anunciado pelo Banco 1....
39 - Interessada que estava em manter aberto e em funcionamento o posto de combustíveis em causa neste processo, a Ré B..., perante a incapacidade da Ré D... mas com a sua anuência, teve por bem tentar negociar com o Banco 1... a cessão da posição contratual de locatária no contrato de locação financeira imobiliária, assumindo as responsabilidades do pagamento das respetivas rendas, nomeadamente os montantes das mesmas já vencidas.
41 - Perante este cenário e para atingir os seus objetivos de controlo do posto de abastecimento de combustíveis, a Ré B... assumiu perante o Banco 1... a totalidade das responsabilidades do contrato de locação financeira e assumiu a dívida da Ré D..., no empréstimo concedido a esta sociedade, referido em 36 e 37 e a qual se computava, em 21/3/2017, em €119.715,54.
Ora, o negócio celebrado pela B... com a D..., de cessão da posição contratual no contrato de locação financeira, foi seguido da celebração dum contrato de prestação de serviços pela B... com uma empresa do mesmo sócio único da D... (a C...).
Isto permitiu que o sócio único da sociedade D..., UNIPESSOAL, LDA, sociedade que foi declarada insolvente em 10.7.2017, AA, fizesse subtrair do ativo daquela empresa D..., o único direito com expressão patrimonial – contrato de locação financeira celebrado com o Banco 1..., relativo aos imóveis onde explorava um posto de combustíveis, uma loja e uma oficina, cedendo a sua posição contratual de locatária à ora apelante B..., e continuar a explorar o posto de abastecimento de combustíveis, a oficina e a loja, agora através duma nova empresa do mesmo AA, a sociedade C....
Como vimos, o legal representante da B... não forneceu justificação cabal para o facto de ter afastado a D... da exploração do posto (na altura ainda não declarada insolvente), mas ter permitido ao sócio único dessa sociedade continuar a exploração, sob a veste duma outra sociedade.
Ao afastar a D... da exploração do posto – assumindo a sua posição contratual no contrato de locação financeira e ao colocar a exploração do mesmo nas mãos do mesmo sócio da D..., “encoberto” por uma outra sociedade comercial, afastou qualquer possibilidade da D... pagar à credora A..., SA, a quantia de 595.960,00 na data em dívida.
Como escreve o Prof. A. Varela, [11] é aqui essencial que o devedor e terceiro tenham consciência do prejuízo que a operação causa aos credores.
A consciência do prejuízo causado ao credor é uma conclusão que há-de basear-se em factos concretos alegados e provados.
Porém, a consciência do prejuízo não é em regra suscetível de prova direta.
Assim é que, no particular contexto de ação de impugnação pauliana, assume especial relevância a prova indireta mediante o recurso a presunções judiciais, previstas nos artigos 349º e 351º do Código Civil, isso é, a ilações que são extraídas de um determinado facto conhecido para afirmar-se um outro determinado facto, dando-o por presumido, fazendo uso das regras da experiência de vida, da lógica, da racionalidade, dos padrões habituais e da normalidade do comércio, das obrigações e dos aspetos gerais da vida.
Tal como refere Luís Filipe de Sousa,[12] “a prova da consciência do prejuízo causado ao credor, constitui uma conclusão a extrair do factos que a patenteiam, respeitando á descoberta da real intenção ou estado de espirito das partes ao emitir a declaração negocial (animus contrahendi).Incumbe ao autor alegar a intenção ou consciência real dos contraentes de modo a apurar, perante a concreta fisionomia e enquadramento do negócio, designadamente se o adquirente representou, de um ponto de vista psicológico, o prejuízo causado ao credor.”
Tendo-se provado o conhecimento do prejuízo causado à credora, aqui Apelada, por parte da C... (sociedade do mesmo sócio da D...) e do Banco 1..., estranhava-se que a B..., ao contrário daqueles nada se tivesse apercebido, quanto ao prejuízo que a subtração do único bem/direito com valor patrimonial evidente da D... – posição contratual na locação financeira – quando é a mesma quem, após assumir a posição contratual da D..., na locação financeira, interessada em manter aberto e em funcionamento o posto, como se provou (facto 38), entregou a exploração do mesmo não à D..., que o explorava desde 2009, mas a uma outra sociedade do mesmo sócio.
Para além dessa situação, que não deixa de ser reveladora da existência de “conluio” entre as partes envolvidas no negócio – a B... interessada em manter aberto e em funcionamento o posto, para continuar a fornecer combustível; o Banco 1..., interessado em manter o contrato de locação financeira, para lhe permitir o retorno do investimento/financiamento feito e o interesse do sócio da D..., de continuar a explorar o posto e nada pagar aos credores, entendemos que existem ainda outros fortes indícios que apontam também para o conhecimento da Ré B... do prejuízo causado, com tais negócios.
Como resulta do facto 38, provou-se que, “o gerente da Ré D..., GG, deu conta aos responsáveis da Ré B..., das suas dificuldades económicas e da situação de risco de despejo em que a sociedade se encontrava”, pelo que a mesma tinha conhecimento das dificuldades financeiras.
Está em causa um elevado valor da dívida da D... à Autora, na data de cerca de 600.000,00 euros, que dificilmente seria desconhecido naquele meio.
Acresce que se trata de uma dívida com origem no fornecimento de combustíveis feito pela Autora à D... relativa a fornecimentos que aquela lhe fez e que não foram pagos no período temporal de 29.12.2014 a 27.5.2015.
Ora, tendo sido a B..., quem substituiu a Autora no fornecimento de combustível à D..., no posto de combustíveis dos autos, (mediante contrato de fornecimento celebrado em 1 de outubro de 2015), não é crível que desconhecesse a existência da dívida, para mais de valor tão elevado ao anterior fornecedor.
Tal como referido pelos administradores da B..., esta empresa antes de iniciar qualquer relacionamento comercial, procede a um exaustivo estudo da situação económica e financeira, do futuro cliente, que no caso passaria certamente pelo apuramento das razões por que cessou o contrato anterior de fornecimento, sendo a nosso ver significativo que a B... tenha aceite apenas fornecer combustíveis à consignação, certamente com receio de lhe acontecer o que acontecera ao fornecedor anterior, a ora Autora que ficou com fornecimentos por pagar na ordem dos 600.000,00 euros.
Repare-se ainda que a B..., aquando da celebração do negócio impugnado, sabia que estavam também por pagar 17 rendas do contrato de locação financeira ao banco, no valor de 52.298,00 euros.
Tal como se provou (facto 37), fruto das mesmas dificuldades, sabia que a D... deixara igualmente de pagar as prestações do contrato de mútuo com o mesmo Banco 1..., estando então em diva 17 prestações no valor de e 16.806,15 euros.
É neste contexto que são celebrados os contratos dos autos, que conduziram a que o processo de insolvência da D... terminasse de modo a que nenhum credor fosse ressarcido, por insuficiência de bens, beneficiando a B..., a qual, pela contrapartida de ter assumido uma dívida da D... de €119.715,54, (mas com garantias prestadas por terceiros), lhe viu ser transmitida a posição contratual no contrato de locação de financeira, o único bem de indiscutível valor financeiro (não obstante a existência de rendas em dívida no valor de 59.298,42 euros), existente no património da D..., pois a mesma permitia a exploração do posto de combustíveis naquele local, permitindo-lhe ainda continuar a fornecer os combustíveis necessários ao funcionamento daquele posto, agora não através da D..., mas duma outra sociedade do mesmo sócio gerente.
Concordamos assim com a Apelada quando afirma que “é totalmente contrário às regras da lógica e da vida como poderiam ser conhecidas dificuldades financeiras económicas sem conhecer-se o crédito da recorrente, como poderia o gerente da devedora “D...”, que agiu com notório conserto (e interesse) com a recorrida “B...”, dar a conhecer umas dificuldades mas não outras, como é contrário, ainda, proceder a uma negociação com a Banca ignorando tal crédito, tal situação financeira e sem que a informação, quer do crédito significativo da recorrente quer da ação judicial, de natureza pública, seja conhecida e partilhada entre os intervenientes.”
Estamos assim em crer, fazendo uso das regras da experiência de vida, da lógica, da racionalidade, dos padrões habituais e da normalidade do comércio, das obrigações e dos aspetos gerais da vida, que o negócio efetuado nos moldes em que foi, acabados de descrever, implicava o conhecimento da situação patrimonial extremamente deficitária da D..., por parte da B... e da dívida pré-existente à anterior fornecedora do combustível à D..., aqui Autora, sendo tal conhecimento reforçado pelo facto desta sociedade ter substituído a Autora no fornecimento dos combustíveis, o que implicou da sua parte que se inteirasse da situação financeira anterior, não podendo desconhecer uma divida na ordem dos 600 mil euros ao anterior fornecedor, o que se mostra ainda compatível com o facto de lhe fornecer combustível apenas à consignação.
Desta forma, entendemos que se mostra feita prova com o recurso a presunções judiciais, previstas nos artigos 349º e 351º do Código Civil, do facto impugnado pela apelada.
Desta forma, impõe-se a alteração do facto 32, que passará a ter a seguinte redação:
32 – Os Réus Banco 1... SA, C... e B... tinham conhecimento, quer do crédito da autora sobre a referida D..., quer do facto de que se essa sociedade não tivesse mais o prédio aqui em causa e respetivo estabelecimento comercial não tinha meios para ressarcir qualquer montante à autora.
E impõe-se a eliminação da alínea b) dos factos não provados.
Resta agora aplicar o direito.
Em face da prova da má-fé de todos os intervenientes no negócio, impõe-se, face ao já supra exposto, com fundamento no art. 612º do C.Civil, a procedência da impugnação pauliana, por ter ficado demonstrado o requisito da má-fé.
Assim, embora com diversa fundamentação, impõe-se a confirmação da sentença recorrida.
VII- Pelo exposto e em conclusão, acordam os juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedentes os recursos, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelas Recorrentes.
Porto, 11 de fevereiro de 2025.
Alexandra Pelayo
Rui Moreira
Alberto Taveira
______________
[1] Ora correspondente ao artº 640º do CPC.
[2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, pg. 175.
[3] Obra citada, pg. 169.
[4] Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, pág. 266 “A Relação atua como Tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal de primeira Instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova. Confrontada com os mesmos elementos com que o Tribunal a quo se defrontou, ainda que em circunstâncias não totalmente coincidentes, está em posição de formular sobre os mesmos um juízo valorativo de confirmação ou alteração da decisão recorrida…”;
[5] Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, p. 348.
[6] Noções Elementares de Processo Civil, pág. 191.
[7] in Leasing e Locação Financeira, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 558.
[8] Confissão vertida na ata do dia 18.11.2021.
[9] In “Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil”, pág. 312
[10] In www.dgsi.pt
[11] Das Obrigações em Geral, II, pag. 440,
[12] In Prova por presunção no Direito Civil, 3º edição, Almedina, pg. 280.