RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA AUTO-INCRIMINAÇÃO
REJEIÇÃO PARCIAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
IMPROCEDÊNCIA
Sumário

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., por acórdão de 17 de Abril de 2024, foram condenados:

AA, condenado na pena de 9 anos e 6 meses de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p.p. pelo art.º 21º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-B anexa ao referido diploma;

BB, condenado na pena de 6 anos e 3 meses de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p.p. pelo art.º 21º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-B anexa ao referido diploma.

2. Inconformados os arguidos interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Évora o qual, por acórdão de 15 de Outubro de 2024, julgou os mesmos improcedentes e confirmou a decisão recorrida.

3. Inconformado com tal acórdão, o arguido AA interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões: (transcrição)

1º O presente recurso vem interposto da decisão proferida em 2ª Instância pelo Tribunal da Relação de Évora, que manteve a decisão de 1ª Instância quanto à condenação dos recorrentes pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo art.º 21º do DL 15/93 de 22/01.

2º O presente recurso versa apenas sobre matéria de direito, pretendendo os recorrentes ver reanalisada a seguinte matéria: nulidade do inquérito, nulidade por omissão de pronúncia quanto à incompetência territorial dos tribunais portugueses, nulidade por condenação por factos diversos dos descritos na acusação, nulidade por falta de fundamentação, valoração de prova proibida (violação da cadeia de custódia da prova, invalidade da prova obtida através de DEI e violação dos arts. 138º, nº 1 e 2 e 384º, n.º 2 e 3 do CPP) e violação do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo.

3º Acresce ainda como objeto do presente recurso a omissão de pronúncia do Tribunal de 2ª Instância quanto ao enquadramento jurídico-penal da conduta dos recorrentes e quanto à medida concreta de cada pena aplicada, insurgindo-se ainda o recorrente AA quanto à omissão de pronúncia sobre a invocada violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare.

4º Os recorrentes não se conformam com a Decisão a quo e reiteram a nulidade do inquérito, nos termos do artigo 119.º, alínea d) do Código de Processo Penal (CPP), pois a acusação foi deduzida de forma imprecisa, sem a concretização dos factos, especialmente no que se refere à identificação do produto estupefaciente e dos agentes envolvidos.

5º A acusação foi deduzida em 19/07/2023 com falhas graves, designadamente, quanto à pureza do produto estupefaciente e à omissão das datas e identidade dos "terceiros" envolvidos, o que compromete a validade da mesma, violando o disposto no artigo 262.º do CPP, que exige a realização de diligências de investigação para a apuração dos factos.

6º O Ministério Público, ao deduzir acusação sem realizar as diligências necessárias, violou os artigos 276.º e 283.º do CPP, já que o inquérito não estava devidamente encerrado quando a acusação foi formalizada, sendo esta, portanto, inválida.

7º A acusação foi fundamentada em factos vagos e imprecisos, violando os princípios da tipicidade (art. 118.º, n.º 1 do CPP) e da fundamentação das decisões (art. 374.º do CPP), o que constitui nulidade insanável.

8º A prova obtida após o encerramento do inquérito, como as interceções telefónicas, é ilegal e deve ser excluída, conforme o disposto no artigo 283.º do CPP, que impede a realização de diligências de investigação após o encerramento do inquérito.

9º O Tribunal a quo, ao confirmar a Decisão Condenatória, não levou em boa consideração a nulidade do inquérito invocada pelos recorrentes em sede própria, devendo agora decretar-se, finalmente a respetiva nulidade, conforme os artigos 119.º e 120.º, n.º 1, alínea d) do CPP

10º Os recorrentes não concordam também com a decisão do Tribunal Recorrido no que respeita à suscitada matéria da incompetência territorial dos tribunais portugueses, considerando existir verdadeira omissão de pronúncia.

11º Embora o Tribunal de 1ª instância tenha feito menção à competência territorial no seu relatório, a sua pronúncia é formalista e genérica, sem uma apreciação substancial da matéria da incompetência territorial tal como suscitada pela defesa em Julgamento, o que configura uma omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal (CPP).

12º A falta de fundamentação adequada sobre a competência territorial da jurisdição portuguesa deveria ainda ter sido corrigida pela decisão de 2ª Instância, com a declaração da nulidade do acórdão e o reenvio do processo para a 1ª Instância para que fosse especificada a fundamentação de facto e de direito que justificasse a competência dos tribunais portugueses, conforme o artigo 379.º, n.º 1, alínea a) do CPP.

13º A decisão recorrida, ao afirmar que a competência territorial portuguesa é justificada pela apreensão de parte do produto estupefaciente em território, nacional não reflete toda a realidade dos factos, dado que o produto foi detetado e apreendido maioritariamente em Espanha, onde foi totalmente extraído do alçapão do contentor e onde se realizaram as diligências principais da investigação.

14º A conduta dos recorrentes em território nacional só ocorreu após pedido de cooperação judiciária por parte do Estado Espanhol, e o Estado Português limitou-se a autorizar a recolha de prova para o processo iniciado em Espanha, o que significa que a competência para a investigação e julgamento pertence aos tribunais espanhóis, conforme os artigos 33.º, n.º 4 e 19.º, n.º 1 do CPP.

15º A jurisprudência consolidada, incluindo decisões do Supremo Tribunal de Justiça, aponta para o entendimento de que o tráfico de estupefacientes é um crime exaurido, consumado no primeiro ato de execução, o que implica a competência dos tribunais espanhóis para julgar o caso.

16º Assim, deve ser declarada a incompetência territorial do Tribunal Português e ordenado o arquivamento do processo, com base no artigo 33.º, n.º 4 do CPP, uma vez que a competência territorial pertence aos tribunais espanhóis, conforme os princípios da justiça penal internacional e da soberania judicial.

17º Por outro lado, e sempre sem descurar, os recorrentes não se conformam com a condenação sobre factos distintos dos descritos na acusação, por isso pugnaram em sede recursória pela nulidade do acórdão condenatório, nos termos previstos na alínea b) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal (CPP)

18º O recorrente AA, considera que a decisão condenatória acrescentou factos novos e relevantes, como a quantia de 300.000 dólares (aproximadamente 270.000 euros) e 45.000 dólares (cerca de 42.300 euros) para despesas, elementos que não constavam da acusação e que alteraram a natureza e a gravidade da sua conduta, configurando um aumento significativo da ilicitude.

19º O recorrente BB, por sua fez, entende também que a alteração de factos na decisão condenatória, como a atribuição de uma contrapartida monetária de 100.000 reais (cerca de 18.600 euros) não indicada na acusação implica uma condenação por factos distintos daqueles inicialmente imputados.

20º O Tribunal da Relação de Évora, ao considerar que as alterações factuais não descaracterizam o quadro essencial da acusação, desconsiderou o impacto que tais mudanças tiveram na avaliação da ilicitude das condutas e na determinação das penas, uma vez que tais factos alterados contribuíram para o agravamento das penas aplicadas.

21º A imputação de factos diferentes dos descritos na acusação implica uma violação do princípio da segurança jurídica, que exige que o arguido seja julgado pelos factos que lhe são claramente imputados, conforme o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 379º, nº 1, alínea b) do CPP.

22º Nesse sentido, reiteram os recorrentes que a alteração dos factos e a condenação com base em factos diferentes dos descritos na acusação são passíveis de nulidade, conforme disposto no artigo 379º, nº 1, alínea b) do CPP, requerendo, por isso, a revogação dos acórdãos antecedentemente proferidos.

23º Acresce ainda a nulidade nos termos do art.º 379º, n.º 1, al. a) do CPP, uma vez que a condenação não se encontra fundamentada em provas que demonstrem que ambos os arguidos tinham consciência de que estavam a praticar um crime, ou que sabiam que o produto dissimulado no contentor era estupefaciente.

24º Os recorrentes não se conformam com o entendimento do Tribunal Recorrido de que a prova do dolo pode ser extraída de forma indireta, das regras da experiência comum e de presunções naturais, uma vez que o recurso a essas regras e presunções se mostra ilegal no caso dos autos, por se ter bastado com prova indireta.

25º O Tribunal de condenação não fundamentou adequadamente as conclusões que levaram à convicção de que os recorrentes tinham a consciência da ilicitude e a intenção de cometer o crime, sendo que o elemento subjetivo do crime de tráfico de estupefacientes exige a demonstração do dolo genérico: a vontade de realizar a atividade ilícita e o conhecimento da natureza estupefaciente do produto.

26º O dolo não foi demonstrado no caso dos recorrentes, uma vez que não existe nenhuma prova concreta que aponte para a sua intenção de praticar tráfico ou que tenha conhecimento sobre as substâncias ilícitas no contentor.

27º O Tribunal de 1ª Instância, ao concluir que os recorrentes sabiam da natureza ilícita do produto, baseou-se em interpretações subjetivas e presunções, sem apresentar provas concretas ou explicações claras para essa conclusão.

28º Ora, a imputação do dolo, com base numa análise subjetiva dos factos, sem uma fundamentação clara e objetiva, fere o direito dos recorrentes a um julgamento justo e fundado, violando o artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal, que exige uma motivação clara e adequada das decisões judiciais.

29º Quanto à valoração da prova proibida, entendem os recorrentes que a apreciação do Tribunal a quo nesta matéria tão importante se mostra manifestamente conclusiva, quando a verdade é que continuamos sem saber se os vestígios recolhidos em Espanha foram selados ou como o foram, pois não existem registos de quem manuseou e em que momento cada um dos vestígios.

30º Os autos apresentam falhas graves na manutenção da cadeia de custódia da prova, nomeadamente no que respeita ao acondicionamento e transporte do produto estupefaciente apreendido em Espanha, e sua posterior entrega controlada a Portugal. A cadeia de custódia, enquanto procedimento contínuo, exige um rigor absoluto no registo e controlo de todas as fases de manipulação, transporte e armazenamento das evidências, o que não se verificou no caso em apreço.

31º A documentação constante dos autos é manifestamente insuficiente e não permite garantir que a integridade do produto estupefaciente apreendido em ... não foi violada até à sua entrega à Polícia Judiciária em Portugal, já que nada nos diz que a prova (produto estupefaciente) foi devidamente lacrada, etiquetada e isolada durante todo o trânsito.

32º Não existem registos detalhados de quem manuseou os vestígios e em que momento, nem de como foram armazenados e transportados até ao laboratório pericial. Por isso, entendem os recorrentes que não foi possível garantir a integridade da prova, uma vez que, durante as operações de apreensão e transporte em Espanha não foram utilizadas as técnicas adequadas, como o uso de luvas, lacres ou etiquetas de identificação. Este procedimento inadequado resultou numa contaminação da prova e comprometeu a sua autenticidade.

33º Acresce que a prova foi destruída antes de ser submetida a uma análise completa e sem que os recorrentes tivessem oportunidade de contraditar os resultados ou pedir novas análises. Isto prejudica ainda mais a fiabilidade da cadeia de custódia e impede a realização de um exame laboratorial detalhado que pudesse validar a pureza do produto estupefaciente apreendido.

34º A falta de um registo adequado da cadeia de custódia impede os recorrentes de exercerem plenamente o seu direito de defesa, nomeadamente no que respeita ao contraditório e à possibilidade de realizar uma contra-análise da substância apreendida. A ausência de garantias sobre a integridade da prova viola os direitos fundamentais dos recorrentes, em especial o direito a um julgamento justo, consagrado no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

35º Por tudo isso, entendem os recorrentes que a prova recolhida em Espanha consubstancia prova proibida, não podendo ser valorada para efeitos de condenação, tal como o foi, devendo, por isso, ser revogados os Acórdãos proferidos nos autos, devendo V. Exas. Colendos Juízes Conselheiros, garantir um princípio de constitucionalidade da prova que, enquanto fonte epistemológica, axiológica, teológica de limitação do poder – saber/poder – exige a negação da vontade real, a negação da mera ritualidade da prova, a negação da admissibilidade da prova ilegítima, a negação da violação do devido processo legal, que se impõe que seja justo e equitativo, sob pena de se negar, ao contrário, a pessoa humana e a sua dignidade (cfr. art.º 1º da CRP e da CDFUE).

36º Acresce ainda que entendem os recorrentes que, em geral, a prova obtida através da Decisão Europeia de Investigação (DEI) não pode ser valorada, devido à violação da cadeia de custódia e ao não cumprimento das formalidades legais.

37º Na verdade, os recorrentes nunca viram os 284,50kg de cocaína que levaram à sua condenação, nem puderam pedir, quanto a esses kg, diligências probatórias, porque as autoridades espanholas destruíram a prova mesmo antes de remeterem ao Tribunal Português os autos de diligência probatória.

38º Deste modo, andou mal o Tribunal a quo por nem sequer se debruçar de forma atenta sobre esta matéria, devendo agora, em última instância, ser declarada a proibição de valoração da prova recolhida em Espanha, revogando-se os acórdãos antecedentes e considerando-se somente a quantidade de 1002,4gr de cocaína apreendida em Portugal.

39º A última proibição de valoração da prova invocada pelos recorrentes refere-se à violação dos 138º, n.º 1 e 2 e 384º n.º 2 e 3 do CPP, não podendo concordar-se com o entendimento do Tribunal a quo de que o invocado quanto a esta matéria constitui mera irregularidade já sanada.

40ºAo permitirem que as testemunhas, agentes da Guardia Civil se identificassem apenas pelos seus números de carteira profissional, os Tribunais Portugueses violam expressamente o disposto nos artigos 138º, n.º 1 e 2 e 384º n.º 2 e 3 do CPP, porquanto, ainda que a legislação espanhola consinta que os agentes das forças de segurança se identifiquem apenas pelo número de registo pessoal e pela unidade administrativa a que pertencem, a tramitação do processo em Portugal implica a aplicação do Código de Processo Penal português

41º As testemunhas deveriam ter sido identificadas de acordo com os requisitos do CPP, nomeadamente pelo seu nome completo, como exige o artigo 138º, n.º 3 e o artigo 348º, n.º 3, pois só assim se garante a necessária transparência e autenticidade dos depoimentos, pois que, afinal, foram essas testemunhas que manusearam a prova que levou à condenação dos recorrentes.

42º Além da evidente violação do n.º 3 do art.º 138º e do n.º 3 do art.º 348º, ambos do CPP, foram também violadas as normas ínsitas no n.º 2 do art.º 348º e no n.º 1 do art.º 138º, ambos do CPP, uma vez que as testemunhas espanholas não foram inquiridas uma após a outra, mas praticamente em simultâneo, já que foi notório que todas as testemunhas se encontravam na mesma sala, sendo chamadas por uma pessoa que permanecia sempre na sala e a testemunha que era chamada simplesmente se levantava e mudava de lugar para frente da câmara, o que obviamente influencia o depoimento umas das outras e abala a natureza pessoal do depoimento, o que novamente se invoca a e requer para todos os efeitos legais.

43º Entendem também os recorrentes que é premente a violação do princípio da presunção de inocência e do in dúbio pro reo, na verdade, a dúvida do Tribunal de 1ª Instância é, no entendimento dos recorrentes, evidente, pois se não existisse não teria esse Tribunal recorrido à prova indiciária e, especialmente, às presunções a que recorreu ao longo de toda a decisão condenatória.

44º Sucede que o Tribunal a quo não nega, na sua apreciação dos recursos, a total ausência de prova direta capaz de imputar aos recorrentes uma conduta típica, fazendo, mais uma vez, valer a “prova indiciária”, quando, no entendimento dos recorrentes, essa prova indiciária serviu uma incorreta aplicação do princípio consignado no art.º 127º do Código de Processo Penal.

45º No modesto entendimento dos recorrentes, o princípio da presunção da inocência do arguido e o seu corolário in dubio pro reo demandavam uma decisão diversa daquela que foi proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, ainda para mais quando é o próprio acórdão que afirma que existem diversos pontos que não foi possível apurar – “os terceiros não identificados”,...

46º A motivação assentou em indícios consequências que foram extraídos dos factos indícios e o Tribunal da Relação, em 2ª Instância, não apreciou corretamente, nesta matéria, o recurso interposto pelos recorrentes, pois que se lhe impunha a revogação da decisão condenatória.

47º É ilegal e inconstitucional a condenação de indivíduos sem que se tenha a certeza da respetiva culpa, pois sem essa certeza não tem qualquer sentido a aplicação de uma pena, já que não existe certeza jurídica da verificação concreta dos pressupostos de aplicação de uma pena.

48ºA interpretação da prova indiciária e a prova por presunção judicial que levou à condenação e à manutenção da condenação dos recorrentes nas decisões antecedentes é inconstitucional, por violação do disposto no art. 32º, n.º 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade esta que se invoca e requer para todos os efeitos legais

49º Sendo ainda inconstitucional o uso indiscriminado do disposto no art.º 127º do Código de Processo Penal, bem como a interpretação deste no sentido que a prova indiciária é suficiente à aplicação do princípio da livre apreciação da prova, por violação também da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo penal (art.º 32º, n.º 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa), inconstitucionalidade que também se invoca e requer para todos os efeitos legais.

50º Por fim, no que concerne à omissão de pronúncia do Acórdão a quo, entende o recorrente AA que a sua invocação, em sede de recurso para a 2ª Instância, da violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare pelo Tribunal de Condenação não foi apreciada, resultando a omissão de pronúncia do Tribunal de 2ª Instância, que configura nulidade, nos termos do art.º 379º, n.º 1, al. c) ex vi art.º 425º, n.º 4, ambos do Código de Processo Penal, a qual se invoca para todos os efeitos legais.

51º E a verdade é que a matéria suscitada em recurso para a 2ª Instância é de grande importância, visto que o arguido tem o direito de não contribuir para a sua autoincriminação e o que entende que ocorreu no seu julgamento é que as suas declarações prestadas em sede de 1º Interrogatório foram deturpadas através da interpretação do julgador para levarem à sua condenação.

52º No que concerne ao enquadramento jurídico-penal da conduta dos recorrentes, importa referir desde já que o Acórdão a quo incorre novamente em omissão de pronúncia, nos termos nos termos do art.º 379º, n.º 1, al. c) ex vi art.º 425º, n.º 4, ambos do Código de Processo Penal, por não se ter pronunciado em concreto sobre a forma como a conduta de cada um dos arguidos preenche o tipo de ilícito.

53º Nesse sentido, renova-se o entendimento de que, ao julgar os recorrentes na qualidade de co-autores de um crime previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, violou-se este preceito, porquanto dos factos provados não resulta uma narração quanto ao momento temporal, ao local e à quantidade e qualidade do produto estupefaciente, pelo contrário, resulta uma descrição de factos que imputa a compra e venda de estupefacientes a terceiros cuja identidade não foi possível apurar.

54º O Acórdão Condenatório aplicou uma sanção aos recorrentes por terem praticado atos atípicos. O AA porque assegurou um transporte; o BB, porque viajou do seu país para Portugal para cortar um estrado metálico do contentor e depois voltar a soldá-lo.

55º Na “Fundamentação de Direito”, o Acórdão de 1ª Instância afirma expressamente que “Resultou demonstrado que os arguidos desenvolveram actividades tipicamente previstas para a consumação do crime nomeadamente o transporte e detenção de produto estupefaciente.” Sucede que, da leitura do mesmo Acórdão não se retira nenhum facto referente a uma atividade de transporte e detenção de produto estupefaciente, o que também se compreende do plasmado no Acórdão a quo.

56º O Tribunal de 1ª Instância deu como provados uns factos e condenou por outros, sendo que não existe um único facto provado que descreva uma conduta de detenção de produto estupefaciente pelos recorrentes, assim como nenhum deles faz crer que foram os recorrentes que transportaram o produto estupefaciente apreendido nos presentes autos.

57º Se fosse suficiente afirmar a consumação do crime pela prática de transporte e detenção de produto estupefaciente, então estaria também condenado o condutor do camião que transportou o contentor de Espanha até Portugal, este que não foi sequer detido nem submetido a julgamento e foi quem efetivamente transportou e esteve na posse do produto!

58º Por fim, o Acórdão Recorrido incorre ainda em nulidade nos termos do art.º 379º, n.º 1, al. c) ex vi art.º 425º, n.º 4, ambos do Código de Processo Penal, por virtude do facto de ter apreciado a suscitada matéria da medida concreta da pena aplicada a cada um dos arguidos conjuntamente, em relação a ambos os arguidos, como se de um só se tratassem.

59º Os recorrentes não são a mesma pessoa. As condutas que restaram provadas nem sequer são idênticas, a função que a cada um foi imputada é distinta e apenas têm em comum o facto de serem “elos” de uma cadeia, sujeitos à subordinação de terceiros não identificados.

60º É comum ainda a ambos os recorrentes o entendimento de que a medida da pena concretamente aplicada é desproporcional e que o Tribunal de 1ª Instância se socorre simplesmente das elevadíssimas necessidades de prevenção geral e do sentimento de insegurança gerado na comunidade pela prática deste tipo de criminalidade.

61º Ambos os recorrentes foram condenados por um crime de tráfico de estupefacientes, que tem uma moldura penal abstrata de 4 a 12 anos de prisão, mas a atribuição de culpa deve ser individualizada e, por isso, sempre deveriam ter sido identificados de forma cabal os concretos elementos de individualização na escolha da medida concreta da pena

62º Quanto ao recorrente AA, a pena de 9 anos e 6 meses que lhe foi aplicada é manifestamente desproporcional, considerando a sua vida sem antecedentes criminais, a sua inserção profissional e o facto de não ter motivação criminosa, contando com mais de 20 anos de sucesso no ramo comercial marítimo!

63º Por isso, entende o recorrente que a pena que lhe foi aplicada surge mais como uma resposta à pressão social contra o tráfico de estupefacientes em vez de refletir a sua real culpabilidade pela factualidade.

64º A pena aplicada ao recorrente AA é desproporcional à própria conduta provada pelo Tribunal de 1ª Instância, de “elo”, de quem não traçou o plano de introdução do produto estupefaciente na Europa, mas simplesmente assegurou o seu transporte, numa clara posição de subalternidade que não permite a imputação de um grau de ilicitude tão elevado quanto a dos elementos hierarquicamente superiores a quem o Recorrente supostamente deve obediência.

65º Independentemente de tudo o que antes ficou exposto e requerido, para que o recorrente AA cumpra uma pena justa, adequada e proporcional, a qual não exceda o seu grau de culpa e a suposta participação nos factos, supostamente de mero “assegurador do transporte”, sem qualquer poder sobre os demais envolvidos na rede, não poderá manter-se a pena aplicada, na medida determinada pelo Tribunal de Condenação.

66º Assim, e por todo o exposto, e independentemente da decisão de absolvição que o recorrente AA reclama, os artigos 71º e 40º do Código Penal impõem a revogação dos Acórdãos Proferidos e a sua substituição por uma decisão justa, com uma nova medida da pena, atenta a excessividade plasmada no Acórdão Condenatório.

67º Do mesmo modo, pugna o recorrente BB pela aplicação de uma pena justa, adequada e proporcional, que não exceda o seu grau de culpa e a sua suposta participação nos factos, de alguém sem qualquer poder e sem conhecer os demais envolvidos na rede.

68º Também o recorrente BB nunca teve qualquer outra sanção penal, mas diferentemente do recorrente AA, a sua posição na pirâmide do tráfico de estupefacientes em causa, conforme provado pela Decisão Condenatória, situa-se muito mais abaixo.

69º A ligação deste recorrente à factualidade típica foi exclusivamente através do recorrente AA, que o contratou para uma tarefa muito limitada e concreta de soldadura. Não foi, demonstradamente, o recorrente BB que projetou ou planeou uma atividade de tráfico de estupefacientes, refletindo uma franca posição de subalternidade.

70º O Recorrente BB está bem inserido pessoal, familiar e laboralmente, com trabalho certo na empresa familiar do pai e ainda uma carteira de clientes pessoais que lhe proporcionavam rendimentos suficientes para não atravessar as menores dificuldades financeiras.

71º O seu profissionalismo é a imagem de marca perante clientes, não se compreendendo nenhuma motivação obscura para enveredar numa atividade ilícita.

72º Por tudo isto, a pena de 6 anos e 3 meses que lhe foi aplicada mostra-se manifestamente desproporcional, sendo um “elo da cadeia”, devendo agora, V. Exas. Colendos Juízes Conselheiros, fixar uma pena muito próxima do mínimo, atenta a excessividade plasmada no Acórdão de 1ª Instância e o cumprimento do disposto nos artigos 71º e 40º do Código Penal.

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, devem ser julgadas procedentes todas as nulidades invocadas, designadamente, a nulidade do inquérito, nos termos do art.º 119º, al. d) do CPP e as nulidades dos Acórdãos, nos suscitados termos das alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 379º do CPP, devendo ser ainda declarada a incompetência territorial dos Tribunais Portugueses para julgamento dos factos, ao abrigo do art.º19º, n.º 1 do CPP, ordenando-se o arquivamento do processo, nos termos art.º 33º, n.º 4 do CPP.

Caso assim não se entenda, sempre deverá ser declarada a PROIBIÇÃO DE VALORAÇÃO da prova produzida em Espanha e remetida a Portugal através de DEI, devendo, por isso, proceder-se à REVOGAÇÃO DOS ACÓRDÃOS ANTECEDENTES e à prolação de um outro que considere somente a quantidade de 1002,4gr de cocaína apreendida em Portugal e ABSOLVA os recorrentes dos factos, atenta a falta de prova e o não preenchimentos dos elementos objetivo e subjetivo do tipo.

Sem conceder,

A DESPROPORCIONALIDADE E EXCESSIVIDADE DAS PENAS SEMPRE IMPORÃO A PROLAÇÃO DE UMA NOVA DECISÃO, em conformidade com os artigos 71º e 40º do Código Penal. (fim de transcrição)

Nota: Ainda que as conclusões se refiram a ambos os arguidos, apenas foi admitido, e bem, o recurso do arguido AA.

3. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora, respondeu ao recurso sem apresentar conclusões, mas manifestando-se pela improcedência do mesmo.

4. Neste Supremo Tribunal o Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitiu o seu douto parecer e após rebater os argumentos expendidos pelo recorrente, aderindo à resposta ao recurso já elaborada, concluiu pela rejeição do recurso “na parte já conhecida e confirmada pelo Tribunal da Relação, por haver dupla conforme, e julgado improcedente no demais”.

5. Notificado o recorrente, o mesmo respondeu defendo a apreciação do recurso e reiterando a sua procedência.

Realizado o exame preliminar, colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. Fundamentação

6. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3

Da leitura dessas conclusões o recorrente coloca a este Supremo Tribunal, as seguintes questões:

Nulidade do inquérito, nulidade por omissão de pronúncia quanto à incompetência territorial dos tribunais portugueses, nulidade por condenação por factos diversos dos descritos na acusação, nulidade por falta de fundamentação, valoração de prova proibida (violação da cadeia de custódia da prova, invalidade da prova obtida através de DEI, violação dos artigos 138º, nº 1 e 2 e 384º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal) e violação do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo;

Omissão de pronúncia sobre a invocada violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare;

Omissão de pronúncia do Tribunal de 2ª Instância quanto ao enquadramento jurídico-penal da conduta do recorrente;

Medida da pena.

6.1. Resultaram provados, os seguintes factos: (transcrição parcial)

1. A sociedade M..., Lda., com o NIPC ...10, e sede em ..., foi constituída em 04.08.2022, tendo por objecto social a importação e exportação e comercialização em geral, tanto a nível nacional ou internacional de frutas, legumes, cereais e outros produtos de origem animal

2. AA é o único sócio-gerente da sociedade referida em 1. desde a sua constituição.

3. Nessa qualidade, em 27.09.2022, AA arrendou, pelo prazo de 1 ano, com início em 01.10.2022, um armazém sito em ....

4. Era um local amplo e vazio, sem qualquer tipo de controlo atmosférico e sem quaisquer estruturas para armazenamento de materiais ou produtos, designadamente estrutura de frio, o que era do conhecimento de AA.

5. AA apenas recebeu a chave do referido armazém em data que, em concreto, não foi possível apurar, situada entre o final de Dezembro de 2022 e início de Janeiro de 2023.

6. Em data não concretamente apurada, mas seguramente anterior a 13.12.2022, AA acordou com indivíduos cuja identidade, em concreto, não foi possível apurar, e mediante o recebimento de contrapartida monetária de, pelo menos, 300.000 dólares (cerca de € 270.000), a que acresciam 45.000 mil dólares (cerca de € 42,300) para despesas de material e logística, assegurar o transporte de produto estupefaciente desde o Brasil até ao continente europeu.

7. Para o efeito, aproveitando o objecto social da sociedade referida em 1., por si constituída, importou do Brasil um contentor de mangas, exportado pela empresa brasileira P...LTDA, ao qual foi atribuído o nº ...15.

8. Com o seu conhecimento e por sua ordem, dissimuladas entre o estrado metálico e a estrutura do referido contentor, foram acondicionadas, e assim transportadas, 260 embalagens de cocaína, com o peso total global de cerca de 284,50 kg., e um grau de pureza de 83,5%.

9. O contentor referido em 8 chegou ao porto marítimo de ..., em Espanha, no dia 23 de Dezembro de 2022

10. No dia 23 de Dezembro de 2022, no porto de ..., a Guardia Civil espanhola - Grupo Central Antidrogas -, procedeu à fiscalização física do contentor marítimo ...15, tendo detectado, debaixo das caixas de mangas, dissimuladas entre o estrado metálico e a estrutura do contentor, as 260 embalagens de produto estupefaciente referidas em 8.

11. Devidamente autorizadas pelas autoridades judiciárias de ambos os países, as autoridades espanholas retiraram da estrutura do contentor 259 embalagens do produto estupefaciente referido em 8, ali deixando apenas uma, que permaneceu no mesmo local onde foi encontrada, tendo o piso voltado a ser fechado e a carga lícita recolocada no interior do contentor.

12. Em 28.12.2022, BB, especialista em soldadura no Brasil, viajou do seu país para Portugal para, em conjugação de esforços e intentos com AA, e também ele mediante contrapartida monetária de valor concreto que não se logrou apurar, mas pelo menos de 100.000 reais (cerca de € 18.600 euros), assegurar a retirada do produto estupefaciente que vinha dissimulado por debaixo do estrado do contentor, o que importava o corte do estrado metálico por baixo do qual o produto estupefaciente se mostrava acondicionado, e posterior soldadura do mesmo.

13. Em Portugal, BB e AA adquiriram as ferramentas e materiais necessários para executar a tarefa descrita em 12., nomeadamente máquina de soldar, rola de solda, escovas de aço, máscaras e óculos de solda, diversa ferramenta, discos de aço para corte, lixas de desbaste de solda, entre outros.

14. Os mencionados objectos e materiais foram adquiridos entre 30.12.2022 e 12.01.2023, sendo o custo total de € 3.720,68 suportado por AA.

15. Para efectuar o transporte o contentor referido em 7 e 8., AA contratou a empresa A..., sendo a morada de destino do armazém identificado em 3, situado em ..., onde seria descarregado.

16. No dia 18.01.2023, pelas 14:00 horas, o camião da A... com a matrícula ....LSW recolheu o contentor no porto de ..., tendo o seu percurso sido acompanhado pelas autoridades espanholas desde a sua saída daquele local até ao momento em que cruzou a fronteira com Portugal, pelas 20:30 horas.

17. Nesse momento, a Polícia Judiciária passou a realizar o seguimento do camião e respectivo contentor, desde a fronteira até ao seu destino final, o armazém localizado na Rua ..., em ..., onde chegou já na madrugada do dia 19.01.2023, pelas 01:15 horas.

18. O condutor do camião permaneceu no interior do veículo durante toda a noite, tendo-se mantido o dispositivo de vigilância.

19. No dia 19.01.2023, pelas 07:30 horas, ambos os arguidos dirigiram-se ao camião e respectivo contentor, o qual foi aberto, iniciando-se a respectiva descarga.

20. Depois de terem sido retiradas algumas paletes do interior do contentor, AA acercou-se do mesmo enquanto tirava fotografias ao respectivo chão.

21. Após, AA permaneceu junto do contentor alguns minutos enquanto falava ao telemóvel com “CC” e com um contacto que tinha gravado no seu telefone com a imagem de uma bola de futebol, aos quais enviou fotografias do contentor aberto, referindo que acreditava que tinha havido problemas, porque o piso chegou cortado.

22. Nesse momento, e sem que os arguidos tenham logrado finalizar a descarga integral do contentor, foram abordados pelos inspectores da Polícia Judiciária que ali se encontravam.

23. Debaixo do estrado do contentor marítimo ...15 foi retirada 1 (uma) embalagem, com o logotipo “TESLA”, contendo 1002,4 gr. (mil e duas gramas e quatro decigramas) de cocaína/cloridrato.

24. No armazém referido em 3 e 4 foram encontrados e apreendidos os seguintes objectos:

a. uma máquina de soldadura,

b. uma botija de gás (CO2 puro);

c. uma máquina de corte;

d. duas caixas com as inscrições “SOUDAL – Professional Construction Foams”, contendo, cada uma, doze latas de soudafoam – polyurethane foam de 750 ml cada;

e. diversas ferramentas;

f. óculos e máscaras de protecção para soldar;

g. um casaco de couro para protecção de soldadura;

h. rebarbadoras;

i. vários discos de corte,

j. outros objectos ligados à soldadura de alumínio;

k. vários pedaços de solda e de metal cortados e soldados.

25. Para além dos objectos ali apreendidos, o armazém mantinha as mesmas características descritas em 4.

26. Os arguidos sabiam que por debaixo do estrado no contentor ...15 tinham sido acondicionadas, e assim transportadas do Brasil até ao continente europeu, diversas embalagens de cocaína, as quais pretendiam dali retirar, manter na sua posse e, posteriormente dar-lhes destino que, em concreto, não foi possível apurar mas que culminaria com a sua posterior venda a consumidores, bem sabendo que se tratava de substância estupefaciente cuja detenção e transporte é proibida

27. Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, em conjugação de esforços e intentos, ambos visando a obtenção de compensações monetárias pelo menos nos valores referidos em 6 e 12 que, para cada um deles, adviriam da sua intervenção no transporte, retirada e guarda do produto estupefaciente do contentor TRLU 1693015.

28. Sabiam que a sua conduta é proibida e punida por lei.

29. O produto estupefaciente referido em 8 tinha o valor de mercado de, pelo menos, €7.100.000,00.

30. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

31. À data dos factos, AA residia com a mulher em casa própria.

32. A mulher é ... reformada auferindo pensão de reforma de valor de € 1340 reais mensais

33. Tem dois filhos com 33 e 20 anos de idade.

34. O filho mais novo era estudante e dependia economicamente dos pais.

35. Suporta o pagamento da escola de 2 netos.

36. Exerce actividade como ... na área marítima, auferindo rendimento mensal de 20 a 25 mil reais mensais.

37. O seu processo de desenvolvimento decorreu junto da mãe, padrasto e um irmão mais novo.

38. Concluiu o ensino secundário com 17 anos de idade, idade com que começou a exercer actividade de contabilista juntamente com o padrasto, o que fez até aos 21 anos.

39. Após, residiu 2 anos em Barcelona onde exerceu actividade como técnico de panificação industrial.

40. De regresso ao Brasil, casou com a primeira mulher, relação que durou 2 anos.

41. Desempenhou funções com representante comercial em empresa do ramo da logística e, mais tarde, frequentou curso de operador portuário findo o qual foi trabalhar para a M..., o que fez entre 1999 e 2006, afecto ao ramo da vistoria de contentores, vindo a especializar-se em contentores frigoríficos.

42. Em 2003 casou com a actual mulher.

43. Após trabalhar na M... começou a trabalhar por conta própria acabando por, em 2011, constituir uma sociedade no ramo da preparação de contentores, empresa que vendeu e, 2016.

44. Entre 2016 e 2019 voltou a trabalhar na M..., de onde saiu para trabalhar por conta própria como ... no ramo da exportação marítima.

45. Devido à sua reclusão, que determinou a ausência do seu rendimento como fonte de suporte dos encargos da vida familiar, o filho mais novo deixou de estudar, por não ter condições económicas para suportar os custos da faculdade e alojamento.

46. Em contexto prisional cumpre as regras e normas estabelecidas mantendo actividade laboral como faxina desde 07.09.2023.

47. É reputado de bom pai, dedicado à família e trabalhador.

48. Mantém contactos regulares com a mulher e filhos.

49. (...)

(…)

60. (…) (fim de transcrição parcial)

7. Apreciando

7.1 Rejeição parcial do recurso.

Como resulta das questões a decidir, o recorrente suscita, para além da medida da pena, as seguintes matérias:

- nulidade do inquérito,

- nulidade por omissão de pronúncia quanto à incompetência territorial dos tribunais portugueses,

- nulidade por condenação por factos diversos dos descritos na acusação,

- nulidade por falta de fundamentação,

- valoração de prova proibida (violação da cadeia de custódia da prova, invalidade da prova obtida através de DEI, violação dos artigos 138º, nº 1 e 2 e 384º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal),

- violação do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo;

- omissão de pronúncia sobre a invocada violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare;

O Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça, veio no seu parecer, invocando jurisprudência pertinente deste Supremo Tribunal de Justiça, requerer a rejeição do recurso, excepto na parte que respeita à pena única em que o recorrente foi condenado, por haver dupla conforme na parte restante, concluindo “ (…) não poderem os recorrentes pretender uma terceira apreciação de questões colocadas em recurso e resolvidas em acórdão confirmatório, como sejam as que se relacionam com a reapreciação da respetiva matéria de facto, erro na apreciação da prova, errada avaliação da prova, violação da livre apreciação da prova, violação do princípio in dubio pro reo, omissão de diligências de prova que consideradas essenciais, falta ou deficiente fundamentação, erro na condenação, erro na qualificação jurídica” (…) “o recurso conjunto dos recorrentes deve ser rejeitado na parte já conhecida e confirmada pelo Tribunal da Relação, por haver dupla conforme”.

Vejamos.

Nos termos do artigo 434º do Código de Processo Penal, “O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”.

O artigo 432º do Código de Processo Penal, estatui que “Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410.º;

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

Por sua vez o artigo 400º do Código de Processo Penal, entre as várias decisões que não admitem recurso, estatui, na sua alínea f), que não cabe recurso dos “acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.

Perante este enquadramento legal e analisado o acórdão do Tribunal da Relação de Évora sob recurso, constata-se que o mesmo apreciou as questões aqui suscitadas, de novo, pelo recorrente, como ele próprio reconhece na sua motivação de recurso e em parte nas conclusões, considerando, contudo, que tal apreciação é insuficiente e, por isso, não concorda com a mesma.

Ora, a discordância com o decidido, em recurso, pela Relação é irrelevante para efeitos de recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, já que a mesma não abala ou extingue a dupla conforme estabelecida, a qual tem como consequência a irrecorribilidade da decisão proferida em relação às matérias abrangidas pela mesma.

O Tribunal da Relação de Évora no seu douto acórdão, apreciou igualmente a questão da pretensa violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare que o recorrente materializa no facto de “(…) as suas declarações prestadas em sede de 1º Interrogatório foram deturpadas através da interpretação do julgador para levarem à sua condenação”.

Na verdade, ao analisar as várias questões suscitadas pelo recorrente em matéria de erro de julgamento, vícios da decisão recorrida e especialmente em sede valoração das provas e da alegada violação do princípio da presunção da inocência, o Tribunal da Relação de Évora no seu acórdão está a apreciar, indirectamente, a questão do direito do arguido à não autoincriminação. A circunstância de o tribunal recorrido ter considerado como adequada e correcta a valoração da prova efectuada pelo tribunal de 1ª instância, nela se incluindo as declarações do arguido em 1º interrogatório judicial, não se traduz na violação do princípio “nemo tenetur se ipsum accusare”, porquanto tais declarações são livremente apreciadas pelo tribunal.

Escreveu-se no douto acórdão recorrido “Ora, percorrendo a motivação da decisão recorrida, verifica-se que contém a especificação dos factos provados, a menção dos não provados, a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento, mormente aqueles em que assentou a convicção do tribunal e, de forma até bem desenvolvida, o exame crítico desses meios de prova, com explicitação da sua credibilidade, concretamente no que tange aos depoimentos e declarações (dos arguidos, em sede de 1º interrogatório judicial de arguido detido, que foram dadas como reproduzidas em audiência, com assentimento do Ministério Público e da defesa, como resulta da acta de 28/02/2024) prestados e demais prova, quer documental, quer pericial”, acrescentando “(…) O tribunal recorrido dá-nos a conhecer, como transcrito se mostra, o percurso de formação da sua convicção quanto à factualidade dada como provada colocada em causa e, também, as razões da valoração que fez relativamente aos documentos e prova pericial juntos aos autos (desde logo, as perícias efectuadas em Portugal e em Espanha ao produto estupefaciente apreendido nos respectivos países, sendo certo que em Espanha se apurou também o grau de pureza da cocaína, a saber: 83,5%; e em Espanha foi autorizada pelo Juiz do Tribunal de Instrução nº ... de ... a destruição de parte da cocaína apreendida, ficando amostras para garantir ulteriores comprovações e investigações ), à não credibilidade da versão apresentada pelos arguidos em sede de 1º interrogatório judicial de arguido detido quanto ao desconhecimento de que junto com a carga de mangas o contentor continha também o produto estupefaciente apreendido em Espanha e Portugal e credibilidade dos depoimentos das testemunhas agentes da Guardia Civil espanhola com as carteiras profissionais ...9D, ...3K e ...2S e DD, EE e FF, funcionários do Serviço de Vigilância Aduaneira Espanhola, bem como de GG, inspector-chefe da Polícia Judiciária, resultando dessa exposição que a prova foi valorada com razoabilidade e os elementos apontados no acórdão como relevantes para a decisão de facto foram coerentemente explanados e valorados de acordo com um raciocínio lógico-dedutivo que não fere as regras da experiência comum” e concluindo “ (…) cumpre concluir que a factualidade considerada provada objecto de impugnação se apresenta sustentada por prova suficiente, adequada e legalmente permitida, sem margem para dúvidas razoáveis, não se registando obliteração das regras da experiência comum, não havendo, por isso, fundamento para a pretendida alteração da matéria de facto, não podendo proceder a pretensão dos recorrentes de impor a sua convicção pessoal face à prova produzida em audiência em detrimento da do julgador, pois a decisão sobre esta está devidamente fundamentada, tendo sido proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção - artigo 127º, do CPP.”.

Como se pode ver do que acaba de ser transcrito, é manifesto inexistir omissão de pronúncia sobre a reclamada violação do princípio de não autoincriminação do arguido. O tribunal recorrido apenas não autonomizou a questão e não estava obrigado a fazê-lo, como fez com outras, mas, nem por isso deixou de apreciar a questão suscitada. Ao considerar a apreciação da prova consentânea com os princípios legais está, de forma directa, a indeferir a pretensa violação do princípio “nemo tenetur se ipsum accusare”.

Os Tribunais no cumprimento do dever legal de pronúncia, não têm de apreciar as razões, argumentos e as opiniões dos sujeitos processuais a propósito das questões suscitadas, mas, apenas, decidir as mesmas de forma fundamentada. Foi isso que se verificou no caso sub judice.

O recorrente suscita ainda, tal como já tinha efectuado no recurso da decisão da 1ª instância, a questão do “enquadramento jurídico-penal da conduta do recorrente e quanto à medida concreta da pena aplicada”, defendendo, uma vez mais, que os factos provados não integram o crime de tráfico de estupefacientes e, no que que respeita ao acórdão do Tribunal da Relação de Évora, a sua nulidade por omissão de pronúncia sobre a questão específica.

Não se percebe a reclamada omissão de pronúncia, atento o teor do texto da decisão recorrida.

Escreveu-se no douto acórdão recorrido: (transcrição)

Discordam ainda os recorrentes do enquadramento jurídico-penal dos factos provados realizado pela 1ª instância, articulando que “assegurar o transporte” de produto estupefaciente não se integra na previsão do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01.

Analisemos então.

Foram os arguidos condenados pela prática (em comunhão de esforços e desígnios) de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência à tabela I-B anexa.

Estabelece-se na norma referenciada, que “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido (…)”.

Os bens jurídicos protegidos com a incriminação pelo tráfico de estupefacientes são, como se lê no Ac. do STJ de 09/12/2010, Proc. nº 59/07.0PEBRG.S2, disponível em www.dgsi.pt, “a protecção da saúde individual e a liberdade individual do consumidor, no plano do interesse particular da sua prática. Já no aspecto público, o tráfico de estupefacientes repercute-se na economia do Estado, na medida em que propicia economias paralelas, representando um negócio temível e comunitariamente repugnante, fundamentalmente pela devastação física e psíquica do consumidor, e com particular afectação das camadas mais jovens do tecido social e na maior parte dos casos, a desgraça total do seu agregado familiar, censurável em alto grau no plano ético-jurídico, pelos custos sociais a que conduz, relacionados com o absentismo laboral, contracção de doenças transmissíveis e destruição progressiva da pessoa humana”.

O artigo 21º, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, contém a matriz do crime de tráfico de estupefacientes, caracterizada por uma estrutura que abrange uma tipicidade de comportamentos em que a actividade ilícita se pode traduzir.

Provado se encontra que AA acordou com indivíduos cuja identidade, em concreto, não foi possível apurar, mediante o recebimento de contrapartida monetária, assegurar o transporte de produto estupefaciente desde o Brasil até ao continente europeu.

Dando execução a esse desiderato, importou do Brasil um contentor de mangas, exportado pela empresa brasileira “P...LTDA”.

Com o seu conhecimento e por sua ordem, dissimuladas entre o estrado metálico e a estrutura do referido contentor, foram acondicionadas, e deste modo transportadas para a Europa, 260 embalagens de cocaína, com o peso total global de cerca de 284,50 kg e um grau de pureza de 83,5%.

Em 28/12/2022, BB, especialista em soldadura no Brasil, viajou do seu país para Portugal para, em conjugação de esforços e intentos com AA, e também ele mediante contrapartida monetária, assegurar a retirada do produto estupefaciente que vinha dissimulado por debaixo do estrado do contentor, o que importava o corte do estrado metálico por baixo do qual o produto estupefaciente se mostrava acondicionado e posterior soldadura do mesmo, para o que adquiriram as ferramentas e materiais necessários para executar a tarefa.

Mais se provou que:

Os arguidos tinham conhecimento que, por debaixo do estrado no contentor tinham sido acondicionadas e assim transportadas do Brasil até ao continente europeu, diversas embalagens de cocaína, as quais pretendiam dali retirar, manter na sua posse e, posteriormente dar-lhes destino que, em concreto, não foi possível apurar, mas que culminaria com a sua posterior venda a consumidores, bem sabendo que se tratava de substância estupefaciente cuja detenção e transporte é proibida.

Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, em conjugação de esforços e intentos, ambos visando a obtenção de compensações monetárias que, para cada um deles, adviriam da sua intervenção no transporte, retirada e guarda do produto estupefaciente do contentor.

Sabiam ser a sua conduta proibida e punida por lei.

Como elucida o Ac. do STJ de 18/03/2004, Proc. nº 03P3566, que pode ser lido em www.dgsi.pt, para haver condenação pelo crime de tráfico de estupefacientes, p. p. no artigo 21º, do Decreto-Lei nº 15/93, não é necessário que o agente tenha consigo alguma das substâncias a que se reportam as tabelas I a III anexas àquele diploma, bastando que se demonstre por qualquer meio legal, a prática de acto ou actos que se insiram no referido preceito.

Ora, face a esta factualidade, forçoso é concluir que os arguidos/recorrentes (que actuaram mancomunados nos esforços e intenções) fizeram transitar e importaram do Brasil para a Europa a cocaína tendo, por via deste seu comportamento, consumado o crime, apresentando-se como irrelevante que não tivessem conseguido dar-lhe o destino preconizado devido à intervenção dos elementos das autoridades espanholas e Polícia Judiciária portuguesa.

Preenchidos estão, destarte, os elementos objectivos e subjectivos do crime de tráfico de estupefacientes por que foram condenados.” (fim de transcrição)

É, pois, manifesto que houve pronúncia expressa sobre a questão suscitada, inexistindo qualquer omissão. O recorrente não concorda, está no seu direito, com o decidido, mas isso não se traduz em omissão de pronúncia.

Ora, tendo o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, confirmado a decisão da 1ª instância, da mesma não cabe recurso das questões já apreciadas, ao abrigo das normais legais elencadas e da verificada dupla conforme, conforme jurisprudência unânime deste Supremo Tribunal de Justiça.

A este propósito e a título meramente exemplificativo, veja-se, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de janeiro de 2023, no qual se considerou “ O propósito do legislador, nas alterações introduzidas no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, pela Lei n.º 20/2013, de 21-02, substituindo no texto da lei a referência a pena aplicável, por pena aplicada, foi reduzir a admissibilidade de recurso para o STJ dos acórdãos proferidos, em recurso pela Relação, em caso de “dupla conforme, acolhendo a jurisprudência o entendimento de que ocorrendo “dupla conforme” e tendo sido aplicadas várias penas por diversos crimes em concurso que nos termos do art. 77.º do CP, devam ser aglutinadas numa única pena, só quanto à pena única superior a 8 anos de prisão e aos crimes punidos também com penas de tal dimensão, é admissível recurso para o STJ. Constitui jurisprudência sedimentada do STJ, que o recurso para este tribunal não só não é admissível quanto às penas propriamente ditas não superiores a 8 anos de prisão, como também em relação a todas as questões processuais e de substância com elas conexas colocadas a montante que digam respeito a essa decisão, tais como, as relativas às nulidades, vícios indicados no art. 410.º do CPP, à apreciação da prova, incluindo o respeito da livre apreciação da prova e do princípio in dúbio pro reo, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da medida da pena (...).4

Este entendimento jurisprudencial tem tido respaldo nas decisões do Tribunal Constitucional, porquanto legislador constitucional não exige um duplo grau de recurso.5

Assim, seguindo a jurisprudência reiterada e uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça, quando haja dupla conforme, o recurso apenas pode abranger a discussão sobre a pena unitária aplicada se superior a 8 anos de prisão, sem prejuízo do conhecimento oficioso de vícios ou nulidades, o que não é manifestamente o caso.

Tendo em conta que a admissão do recurso pela Relação não vincula este Supremo Tribunal de Justiça (artigo 414.º, n.º 3) e nos termos dos artigos 400º, n.º 1, alínea f), 432º, n.º 1, alínea b), 420º, n.º 1, alínea b), e 414º, n.ºs 2 e 3), todos do Código de Processo Penal rejeita-se o recurso, nesta parte (nulidade do inquérito; nulidade por omissão de pronúncia quanto à incompetência territorial dos tribunais portugueses; nulidade por condenação por factos diversos dos descritos na acusação; nulidade por falta de fundamentação; valoração de prova proibida (violação da cadeia de custódia da prova, invalidade da prova obtida através de DEI, violação dos artigos 138º, nº 1 e 2 e 384º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal); violação do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo; omissão de pronúncia sobre a invocada violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare e enquadramento jurídico-penal da conduta do recorrente), por inadmissibilidade legal.

7.2 Medida da pena.

O recorrente reclama também da pena em que foi condenado, a qual considera excessiva e desproporcional, a que associa uma nulidade que explicita em, “ao não diferenciar os critérios a aplicar na dosimetria da pena aplicada a cada um dos recorrentes, o Acórdão Recorrido incorre em nulidade, nos termos do art.º 379º, n.º 1, al. c) ex vi art.º 425º, n.º 4, ambos do Código de Processo Penal, a qual se invoca para todos os efeitos legais”.

Vejamos, antes de mais, o decidido no Tribunal da Relação de Évora, a propósito da pena aplicada, considerou-se no acórdão: (transcrição parcial)

«Ao crime de tráfico de estupefacientes em causa corresponde moldura penal abstracta de 4 a 12 anos de prisão.

Conforme resulta do estabelecido no artigo 40º, do Código Penal, toda a pena tem como finalidades “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” – nº 1, sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” – nº 2.

Nos termos do artigo 71º, do Código Penal, para a determinação da medida da pena cumpre atender à culpa do agente, às exigências de prevenção e bem assim às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele.

De acordo com estes princípios, o limite superior da pena é o da culpa do agente.

O limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios de prevenção geral positiva, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor.

A pena tem de corresponder às expectativas da comunidade.

Daí para cima, a medida exacta da pena é a que resulta das regras de prevenção especial de socialização. É a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade – cfr. Ac. do STJ de 23/10/1996, in BMJ, 460, 407 e Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, págs. 227 e segs.

Ou, dito de outra forma, opera através da “neutralização-afastamento” do delinquente para que fique impedido fisicamente de cometer mais crimes, como intimidação do autor do crime para que não reincida e, sobretudo, para que sejam fornecidos ao arguido os meios de modificação de uma personalidade revelada desviada, assim este queira colaborar em tal tarefa - Claus Roxin, Derecho Penal-Parte Geral, I, Madrid, Civitas, 1997, pág. 86.

Assim, do exposto resulta que a pena concreta, numa primeira fase, é encontrada em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento, quer resultem a favor ou contra o agente.

Destarte, daquela primeira aproximação decorrem duas regras basilares: a primeira, explícita, consiste em que a culpa é o fundamento para a concretização da pena, devendo esta proteger eficazmente os bens jurídicos violados; a segunda, que está implícita, é que se impõe ter em conta os efeitos da pena na vida futura do arguido no seio da comunidade e da necessidade desta dele se defender, mantendo a confiança na tutela da correspondente norma jurídica que foi violada.

Percorrendo o acórdão recorrido, como enunciado se mostra, verifica-se que, para a determinação da medida concreta da pena de cada recorrente, foi ponderado (mondadas as referências legais, doutrinárias e jurisprudenciais):

As necessidades de prevenção geral são elevadíssimas como se sabe, não apenas em face da proliferação deste tipo de condutas, mas também do sentimento de insegurança gerado na comunidade pela prática deste tipo de criminalidade infelizmente associado, demasiadas vezes, a outros ilícitos que protegem bens iminentemente pessoais mas também o património e a propriedade alheias, a que acresce a degradação pessoal, pelo que se exige uma reacção enérgica para restabelecer a confiança da sociedade na validade e vigência da norma violada.

Em 2022, uma vez mais o transporte marítimo (via preferencial no transporte de grandes quantidades) surgiu com as maiores quantidades apreendidas de haxixe e de cocaína, seguido do terrestre no caso do haxixe e do aéreo no da cocaína (via central no tráfico transcontinental de quantidades médias de cocaína). A via terrestre registou o maior número de apreensões de haxixe e de cocaína. Nos últimos anos, o tráfico de cocaína através de portos marítimos e de aeroportos tem sido uma ameaça adicional, com as estruturas criminosas a infiltrarem-se naqueles através do recrutamento de funcionários para a entrada de grandes quantidades de cocaína.

(…)

Em relação às principais rotas das drogas mais apreendidas em território nacional em 2022, destacaram-se como os principais países de origem da cocaína apreendida, em termos de quantidades, a Colômbia e o Brasil (este com o maior número de apreensões), seguidos de São Vicente e Granadinas e do Suriname (cfr. Relatório Anual 2022, SICAD, págs 121 e 130).

Esta é a realidade de Portugal neste momento e os tribunais não podem ficar à margem dela, cumprindo-lhe ter uma reacção enérgica e veemente no sentido da repressão da conduta criminosa em si, mas também associada à utilização do país como porta de entrada para o continente europeu.

Embora os arguidos não tenham antecedentes criminais registados e estivessem social, familiar e profissionalmente inseridos, a verdade é que nenhum destes factores, muitas vezes demovedores de práticas criminosas, por potenciadores do cumprimento do dever ser jurídico penal, se revelou suficientemente forte para obstar à prática do crime isto é, apesar de as necessidades de prevenção especial positiva, de ressocialização, não serem elevadas, e apesar da ausência de antecedentes criminais, a verdade é que este tipo de criminalidade, pelo dinheiro que envolve, como os autos demonstram, exponencia as necessidades de prevenção especial negativa, de prevenção da reincidência.

Com efeito, nos presentes autos não estamos a falar do pequeno tráfico, que envolve um lucro de centenas de euros, ou do suficiente para viver e sustentar o consumo. Aqui estamos a falar de uma estrutura com dimensão e capacidade financeira suficiente para adquirir a quantidade e qualidade de produto estupefaciente que aqui está em causa; uma estrutura com capacidade financeira para suportar os custos que a dissimulação dos 260 pacotes de cocaína num contentor de manga envolveram, a que acrescem os custos relativos ao pagamento de elos da cadeia como os aqui arguidos, cujos proveitos económicos demonstrados se aproximam em muito do valor consideravelmente elevado no caso de BB e muito o ultrapassam no caso de AA.

(…)

Importa, assim, ponderar que a culpa é muito intensa, o impulso criminoso que moveu os arguidos revelou-se em mais do que uma conduta apta ao fim desejado, atento todo cenário criado para fazer chegar o produto estupefaciente à Europa, a forma como vinha dissimulada e a necessidade que os arguidos tiveram de se deslocar desde o seu país de origem e residência habitual.

A ilicitude é elevadíssima, seja pela qualidade do produto estupefaciente que aqui esta em causa, cocaína, seja pela sua quantidade, seja, ainda, pelo valor da mesma pelo menos, como supra se deixou dito e resultou provado, € 7.100.000.

Como se deixou dito, dentro do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21º do Decreto-Lei 15/93, de 22.01, seja pela qualidade do produto estupefaciente – cocaína – comummente denominada droga dura, seja pela quantidade e valor da mesma, o crime dos autos situa-se num elevadíssimo grau de ilicitude e de culpa.

Não podemos igualmente olvidar que o produto estupefaciente aqui apreendido renderia, estamos certos, bem mais do que o valor que acima se adiantou, porque resulta das regras de experiência, tendo em conta o grau de pureza do mesmo, que a cocaína apreendida ainda seria “cortado”, termos em que acabaria por permitir a venda de ainda mais doses (de acordo com o Relatório Anual 2022 – A situação do país em matéria de drogas e toxicodependência, elaborado pelo SICAD, disponível para consulta in www.sicad.pt, o grau de pureza média do cloridrato de cocaína no ano de 2022 era de 55,8%. O grau de pureza da cocaína dos autos era de 83,5%)

Como se viu, este tipo de criminalidade envolve muito mais do que transportadores/facilitadores de transporte: o arguido BB viajou do Brasil até Portugal para por ao serviço deste ilícito a sua experiência e conhecimento profissional, no sentido de permitir o corte do estrado do contentor, a sua abertura, a retirada dos pacotes, o preenchimento do espaço onde aos pacotes “viajaram” com espuma própria, a recolocação e soldadura do estrado, tudo em moldes tais que, por um lado, não comprometesse o produto estupefaciente dissimulado entre o estrado e a estrutura do contentor e, por outro, que não fosse posteriormente detectado ou seja, de forma a que não fosse perceptível a existência de corte e soldadura.

O facto de não se ter demonstrado que a cocaína era propriedade dos arguidos, ou seja, não se ter demonstrado que o lucro final da venda mesma seria auferido directamente por eles, não pode ser sobrevalorizado, por um lado porque sem transportadores/facilitadores e outros colaboradores a movimentação de produto estupefacientes entre continentes não existiria na mesma medida e à mesma escala e, por outro, porque evidentemente estes elos da cadeia, cientes também do valor final, do lucro final daquilo que transportam/facilitam o transporte, fazem preço à sua colaboração e bem assim ao seu silêncio, preço que, é evidente, será tanto maior quanto maior a quantidade de produto estupefaciente que estiver em causa, porque maior o risco ou seja, em caso de detecção, maior o grau de ilicitude da conduta e, portanto, maior a pena.

A favor dos arguidos milita a sua inserção e a ausência de antecedentes criminais sendo que, esta última circunstância, não pode deixar de ter reduzido valor atenuativo porquanto o cumprimento da lei mais não é do que a conduta que se espera da generalidade dos cidadãos.

Face ao que supra ficou transcrito, é patente que a decisão revidenda levou em linha de conta os factores relevantes para a determinação concreta das penas individuais, nos termos estabelecidos no artigo 71º, nºs 1 e 2, do Código Penal, em termos que não merecem crítica, atentos os factos que provados se encontram.

Importa apenas realçar que não revelou qualquer dos recorrentes interiorização do desvalor da sua conduta delituosa, o que contra si fortemente milita e, no que tange à ausência de antecedentes criminais, como já se salientava no Ac. do STJ de 30/10/2003, Proc. nº 2031/03 - 5.ª Secção, “a primariedade criminal não releva em termos decisivos e determinantes em sede de medida da pena, porque, além do mais, o bom comportamento é um estado indissociável de todo o bom cidadão (ou, pelo menos, deve sê-lo)”, sendo que, alumia mais recentemente o Ac. do mesmo Tribunal de 11/10/2023, Proc. nº 1077/22.3JAPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt: “a ausência de antecedentes criminais (…) valerá pelo facto de ser factor que deverá ser inerente e comum a qualquer pessoa adulta”.

Mas, aduzem os recorrentes que “para determinação da medida concreta da pena sempre teriam de se considerar os elementos de individualização que não foram correctamente apreciados, havendo também a este respeito erro notório (cfr. art.º 410º, nº 2, al. c) do CPP), uma vez que o Tribunal considerou provada a ausência de antecedentes criminais e a sua plena e harmoniosa inserção social, familiar e laboral”.

Como se deixou retro exposto, o tribunal a quo teve em conta estas circunstâncias quando apurou qual a pena ajustada à culpa individual dos recorrentes.

Pelo exposto, efectuado juízo de ponderação sobre a culpa, como medida da pena e considerando as exigências de prevenção e as demais circunstâncias previstas no artigo 71º, do Código Penal, não se mostra que a pena concretamente aplicada a cada um dos recorrentes extravase a medida da respectiva culpa e também não ultrapassa os limites dentro dos quais a justiça relativa havia de ser encontrada, não se evidenciando como desajustada por excesso.

Em conclusão, inexiste fundamento para alterar a medida em que a pena de cada recorrente foi fixada.» (fim de transcrição parcial)

Vejamos.

Como se alcança da transcrição efectuada o Tribunal da Relação de Évora começa, por fazer uma análise dos princípios e pressupostos da aplicação da pena, a que se segue a citação do acórdão da 1ª instância, sobre a matéria para concluir pela concordância da argumentação expendida e com a pena aplicada.

Ora, tendo o acórdão aderido, além do mais, à fundamentação do decidido em 1ª instância e constando do mesmo a individualização da culpa de cada um dos agentes, como, aliás, resulta, desde logo, da diferente dosimetria das penas, não logramos descortinar a reclamada nulidade por ausência de individualização da pena.

Na verdade, para além do que ficou transcrito no acórdão recorrido, em sede de decisão de 1ª instância foi considerado expressamente, no que respeita ao recorrente, “considerando as necessidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir, a elevadíssima ilicitude dos factos, o intenso grau de culpa, a inserção social, familiar e profissional, a ausência de antecedentes criminais, e o maior envolvimento de AA nos factos, tem-se por adequada a condenação de AA na pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão”.

Perante tudo isto nada mais se impunha individualizar, para cumprir o princípio básico em matéria penal de que a culpa deve ser apreciada individualmente em relação a cada um dos agentes do facto criminoso, mesmo nas situações de comparticipação, como se alcança dos artigos 29º, 71º do Código Penal.

Inexiste, assim, qualquer nulidade.

Vejamos agora a questão da proporcionalidade e adequação da pena aplicada.

Em sede de medida da pena, o legislador estatui como parâmetros de determinação da mesma que deve ser fixada - “(…) dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” visando a aplicação das penas “(…) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” e levando ainda em conta “(…) todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (…)” considerando, nomeadamente, os factores de determinação da pena a que se referem as várias alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal (artigos 71º, nº1 e nº2 e 40º, nº1 e nº2) do mesmo código.

A densificação jurisprudencial destes critérios tem sido feita, por este Supremo Tribunal de Justiça, de modo a considerar e ponderar o equilíbrio entre “exigências de prevenção geral”, a “tutela dos respectivos bens jurídicos”, a “socialização do agente” e o seu grau de culpa, enquanto limite ético da pena.

Como refere este Supremo Tribunal de Justiça, ponderando os referidos equilíbrios, “(...) Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente”,6 ou “(...) a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todo exigível”7.

Ao nível doutrinal, refere Figueiredo Dias que a medida da pena "(...) há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto (...) a protecção de bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida".8

No mesmo sentido, Fernanda Palma considera que, “(…) A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos – prevenção geral negativa, incentivar a convicção de que as normais penais violadas são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos – prevenção geral positiva. A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral”.9

Ainda, no mesmo sentido, Anabela Rodrigues considera também que a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada (…)”. Acrescenta a autora, que a prevenção especial se traduz na “(…) necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto, mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes”, sendo certo que ambas são balizadas pela culpa “ (…) a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (…) Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado”.10

Neste mesmo sentido, Figueiredo Dias considera, “(…) culpa e prevenção são assim dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena ( em sentido estrito ou de determinação concreta da pena”)11, acrescentando, “ (…) comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida ótima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente».12

Ora, tendo em conta os grandes princípios jurisprudenciais e doutrinais em matéria de medida da pena, o que ficou transcrito do acórdão recorrido, é manifesto que a ponderação efectuada foi prudente, equilibrada e proporcional com a culpa do arguido recorrente.

Na verdade, o Tribunal da Relação de Évora ponderou o dolo directo com que o arguido actuou no âmbito da comparticipação criminosa, o elevadíssimo grau de culpa e de ilicitude, manifestado no tipo de estupefacientes traficados, quantidades e valor, bem como a sua maior intervenção na prática dos factos, bem como as condições pessoais do arguido e ausência de antecedentes criminais.

Importa ainda salientar as fortes exigências de prevenção geral neste tipo de crime, dado o seu elevado número13 e a importância que o tráfico internacional tem no consumo e disseminação de estupefacientes.

Alega o recorrente, como circunstância atenuante para a redução da pena, a ausência de antecedentes criminais, boa inserção e ser um “mero “assegurador do transporte”, sem qualquer poder sobre os demais envolvidos na rede”.

Se é verdade que o recorrente não tem antecedentes criminais conhecidos, o mesmo já não se pode dizer sobre ser “mero assegurador do transporte”.

A análise dos factos provados revela que o arguido tem, ao contrário do alegado, alguma relevância na organização, porquanto entre 4 de Agosto de 2022 (data em que criou e empresa em Portugal) e 23 de Dezembro de 2022 (data em que importou o contentor do Brasil), arrendou um armazém em ... (27 de Setembro de 2022) e ao mesmo tempo procedeu à compra da máquina de soldadura e materiais necessários para o corte do contentor, à contratação de uma empresa para o transporte do contentor desde ... até ..., pretendendo ainda pagar ao coarguido a quantia de €18.600,00. Todos estes factos, associados à relação próxima que o arguido demonstrou na troca de mensagens com alguém da rede, ao momento da abertura do contentor, desmonta a categoria subalterna de “mero assegurador de transporte”.

Foi toda esta acção que o Tribunal recorrido valorou e materializou como “maior envolvimento nos factos” e também um maior grau de culpa.

Importa, por último, acrescentar, no que respeita á intervenção correctiva do Supremo Tribunal de Justiça em matéria de medida da pena, que a mesma deve ser encarada como remédio jurídico, cabendo–lhe, por força disso, identificar incorreções, omissões ou erros evidentes atinentes ao raciocínio hermenêutico que operacionaliza os fatores legais relevantes na determinação concreta da pena, nomeadamente violação dos princípios da adequação e proporcionalidade.

Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 2009, “A intervenção do STJ em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, sendo entendido de modo uniforme e reiterado que «no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras de experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada.14

Perante a factualidade dada como provada e tendo em conta o que fica referido a pena aplicada afigura-se proporcional à gravidade dos factos e à culpa do recorrente, e mostra-se necessária para satisfazer as acentuadas necessidades de prevenção geral acima assinaladas, só assim se protegendo de forma eficaz e bastante as expectativas da comunidade quanto à revalidação das normas jurídico-penais violadas.

Consequentemente, não merece intervenção corretiva a pena de 9 anos e 6 meses de prisão, imposta ao arguido no acórdão recorrido.

Em resumo, rejeita-se parcialmente o recurso e no mais confirma-se o acórdão recorrido.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, em:

a. Rejeitar o recurso na parte referentes à nulidade do inquérito, nulidade por omissão de pronúncia quanto à incompetência territorial dos tribunais portugueses, nulidade por condenação por factos diversos dos descritos na acusação, nulidade por falta de fundamentação, valoração de prova proibida (violação da cadeia de custódia da prova, invalidade da prova obtida através de DEI, violação dos artigos 138º, nº 1 e 2 e 384º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal), violação do princípio da presunção de inocência e do in dubio pro reo, omissão de pronúncia sobre a violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare e enquadramento jurídico-penal da conduta do recorrente, por inadmissibilidade legal;

b. No mais julgar improcedente o recurso e em consequência, confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC’s - artigo 513.º, n. º1 do Código de Processo Penal e artigo 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).

Lisboa, 15 de Janeiro de 2025

Antero Luís (Relator)

Horácio Correia Pinto (1º Adjunto)

Jorge Raposo (2º Adjunto)

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1. Neste sentido e por todos, ac. do STJ de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267.

2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.

3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR/I 28/12/1995.

4. Proc. n.º 757/20.2PGALM.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt

5. Acórdão do Plenário n.º 186/2013, de 4 de Abril de 2013, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130186.htm

6. Sumário do acórdão de 31-01-2012, Proc. Nº 8/11.0PBRGR.L1.S

7. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 22-09-2004, Proc. n.º 1636/04 - 3.ª ambos in www.dgsi.pt

  No mesmo sentido, Prof. Figueiredo Dias (“O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fasc. 2-4, Dezembro de 1993, págs. 186-187).

8. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime - Noticias Editorial, pág. 227).

9. As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva” in “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, 1998, AAFDL, pág. 25-51 e in “Casos e Materiais de Direito Penal”, 2000, Almedina, pág. 31-51.

10. A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade", Coimbra Editora, pág. 570 e seguintes).

11. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág. 214.

12. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, 2.º a 4.º, Abril-Dezembro de 1993, pág. 186 e 187,

13. Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) 2023, verificou-se, nesse ano, um aumento de 19,4% na criminalidade conexa com tráfico e consumo de estupefacientes, correspondente a 9276 crimes, e o disponível em https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.

14. Processo nº 19/08.3PSPRT, disponível em www.dgsi.pt