O segmento final n.º 1 do artigo 1096.º do Código Civil, na redacção da Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, deve considerar-se norma imperativa, no sentido de não permitir que o contrato de arrendamento se renove por um período inferior a três anos
Recorrido: AA
I. — RELATÓRIO
1. Lispaisagem, SA, instaurou junto do Balcão Nacional de Arrendamento procedimento especial de despejo contra AA, pedindo o seu despejo, alegando a “cessação [do arrendamento] por oposição à renovação pelo senhorio”.
2. AA deduziu oposição, alegando, em síntese, que o prazo de renovação previsto no artigo 1096.º do Código Civil tinha sido alterado pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro.
3. O Tribunal de 1.ª instância proferiu sentença, absolvendo o Requerido AA do pedido formulado pela Requerente Lispaisagem, SA.
4. O dispositivo da sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância é do seguinte teor:
Pelo exposto e decidindo, o Tribunal julga o presente procedimento especial de despejo improcedente por não provado, e em consequência ABSOL VE a Requerida do pedido.
Custas pela Requerente .
5. Inconformada, a Requerente Lispaisagem, SA, interpôs recurso de apelação.
6. O Tribunal da Relação, por unanimidade, julgou improcedente o recurso de apelação.
7. Inconformada, a Requerente Lispaisagem, SA, interpôs recurso de revista excepcional.
8. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. O acórdão recorrido incorreu em erro de interpretação ao aplicar a Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, ao considerar que o contrato de arrendamento dos autos não cessou a 30.4.2024, ignorando dessa forma o princípio da autonomia contratual consagrado no artigo 405º do C.C.
2. O que resulta da redação do art.º 1096º/1 do C. C. dada pela Lei 13/2019, de 12 de fevereiro, é que, inexistindo no contrato qualquer cláusula em sentido contrário, o mesmo renovar-se-á por período igual ao estipulado para a sua duração inicial e, se este for superior a três anos, a renovação será, apenas, por três anos.
3. O teor literal do art.º 1096º/1 do C.C. constitui uma concessão aos interesses dos senhorios, embora o preâmbulo da Lei 13/2019, de 12 de fevereiro, mencione apenas que o mesmo visa “(…) corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, privilegiando a posição dos primeiros”, nos termos reproduzidos no sumário do acórdão recorrido.
4. A salvaguarda do direito à habitação do arrendatário, motivação expressa da Lei 13/2019, de 12 de fevereiro, resulta da limitação imposta pelo art.º 1097º/3 do C.C., e não de qualquer interpretação restritiva do disposto no art.º 1096º/1 do C.C.
5. É contraditório, nomeadamente face aos propósitos que o legislador visou com a Lei 13/2019, de 12 de fevereiro, dizer-se que o previsto no art.º 1096º/1 do C.C. permite a pura e simples ausência de renovação automática do contrato de arrendamento, mas, tendo um locador admitido essa mesma renovação, impor-lhe duração mínima desse prolongamento contratual, face, ainda, ao previsto no art.º 1095º/2 do C.C.
6. A supletividade do art.º 1096º/1 do C.C. resulta da sua própria letra, primeiro elemento interpretativo de qualquer norma legal, e incide sobre toda a sua previsão, não se limitando à questão da existência, ou não, de renovação automática in totum.
7. O art.º 1096º/1 do C.C. não regula a resolução, a caducidade ou a denúncia do contrato de arrendamento, constituindo antes uma norma relativa à sua renovação automática, pelo que não lhe é aplicável a imperatividade imposta pelo art.º 1080º do C.C.
8. A interpretação do art.º 1096º/1 do C.C. deve respeitar a autonomia contratual das partes, permitindo-lhes fixar livremente os termos e condições dos seus contratos dentro dos limites legais.
9. A confiança e expectativas legítimas são um corolário do princípio da boa-fé e exigem que as partes possam confiar na estabilidade e na segurança jurídica dos contratos celebrados.
10. Esta liberdade de estipulação contratual é essencial para garantir a segurança jurídica e a previsibilidade nas relações contratuais, devendo o art.º 1096º/1 do C.C. ser interpretado por forma a não frustrar a consumação destes princípios.
11. A vontade das partes, manifestada no contrato ao abrigo do disposto no art.º 405º do C.C., deveria ter sido respeitada e considerada válida, uma vez que foi acordada de forma livre e esclarecida pelos intervenientes contratuais.
12. Sendo as alterações introduzidas pela Lei 13/2019, de 12 de fevereiro, aplicáveis, imediatamente, aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor, como o diploma expressamenteconsagra, a interpretação resultante da modificação do art.º 1096º/1 do C.C. não pode senão ser aquela que a Recorrente agora sustenta (supletividade da regra legal), sob pena de violação dos princípios da confiança e da segurança jurídica.
13. Ao decidir nos termos do acórdão recorrido, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 1096º/1, 1097º/3, 1095º/2 e 405º, todos do C.C.
14. Nos termos expostos, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão de 26.9.2024 e substituindo-se o mesmo por decisão que reconheça a caducidade do contrato de arrendamento habitacional dos autos à data de 30.4.2024, em conformidade com a oposição à renovação comunicada pela Recorrente, nos termos acordados entre as partes.
9. A Formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil admitiu o recurso de revista excepcional.
10. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigo 608.º, n.º 2, por remissão do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), a única questão a decidir, in casu, é a seguinte: — se o n.º 1 do artigo 1096.º do Código Civil consagra uma norma imperativa, no sentido de não permitir que o contrato de arrendamento se renove por um período inferior a três anos.
II. — FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
11. O acórdão recorrido deu como provados os factos seguintes:
1. Em 09.03.2018 por intermédio de documento particular denominado "contrato de arrendamento para fins habitacionais com prazo certo" , Lispaisagem, SA, na qualidade de senhoria e AA, na qualidade de inquilina, celebraram entre si o contrato de arrendamento de fração destinada a habitação, pelo prazo de cinco anos, com início a 01.05.2018, convencionando-se que o contrato se renovaria automaticamente no fim do prazo, por períodos iguais e sucessivos de um ano, salvo denúncia de qualquer das partes, com a antecedência mínima de 90 dias em relação ao prazo da renovação.
2. Por intermédio de carta datada de 18.12.2023, a senhoria Lispaisagem, SA comunicou à inquilina a oposição à renovação do contrato de arrendamento, considerando que o mesmo cessaria os seus efeitos no dia 30.04.2023.
3. Pese embora por lapso, na carta aludida em 2) a data referida para a produção de efeitos seja anterior à data da própria carta, veio a confirmar-se que a Requerente pretendia fazer cessar o contrato com efeitos a 30.04.2024.
O DIREITO
12. Os artigos 1096.º e 1097.º do Código Civil, na redacção da Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, são do seguinte teor:
Artigo 1096.º — Renovação automática
1. — Salvo estipulação em contrário, o contrato celebrado com prazo certo renova-se automaticamente no seu termo e por períodos sucessivos de igual duração ou de três anos se esta for inferior, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2. — Salvo estipulação em contrário, não há lugar a renovação automática nos contratos previstos n.º 3 do artigo anterior.
3. — Qualquer das partes pode opor-se à renovação, nos termos dos artigos seguintes.
Artigo 1097.º — Oposição à renovação deduzida pelo senhorio
1. — O senhorio pode impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação ao arrendatário com a antecedência mínima seguinte:
a) 240 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis anos;
b) 120 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a um ano e inferior a seis anos;
c) 60 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis meses e inferior a um ano;
d) Um terço do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação, tratando-se de prazo inferior a seis meses.
2. — A antecedência a que se refere o número anterior reporta-se ao termo do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação.
3. — A oposição à primeira renovação do contrato, por parte do senhorio, apenas produz efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo, mantendo-se o contrato em vigor até essa data, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
4. — Excetua-se do número anterior a necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1.º grau, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 1102.º e nos n.ºs 1, 5 e 9 do artigo 1103.º
13. O contrato de arrendamento entre a Lispaisagem, SA, e AA foi concluído em Março de 2018 para produzir efeitos pelo prazo de 5 anos, a partir de 1 de Maio de 2018.
14. O problema está em averiguar qual o prazo por que foi renovado em 1 de Maio de 2023:
I. — Caso devesse considerar-se que o segmento final do n.º 1 do artigo 1096.º do Código Civil consagrava uma norma dispositiva, a cláusula de renovação automática por períodos sucessivos de um ano contida no contrato de arrendamento seria válida. O contrato ter-se-ia renovado pelo período de um ano, pelo que o arrendamento terminaria em 30 de Abril de 2024. II. — Caso deva considerar-se que o segmento final do n.º 1 do artigo 1096.º do Código Civil consagra uma norma imperativa, a cláusula de renovação automática por períodos sucessivos de um ano contida no contrato de arrendamento será inválida e, dentro das cláusulas inválidas, será nula 1. O contrato de arrendamento ter-se-á renovado pelo período de três anos, pelo que o arrendamento só terminará em 30 de Abril de 2026.
15. O critério adoptado pelo Supremo Tribunal de Justiça para a decisão de casos comparáveis correspondeu sempre à segunda tese — à tese de que o segmento final n.º 1 do artigo 1096.º do Código Civil consagra uma norma imperativa 2:
I. — As partes podem convencionar que o contrato celebrado com prazo certo não se renove automaticamente — assim se explicando que o n.º 1 do artigo 1096.º do Código Civio comece com as palavras Salvo estipulação em contrário 3.
II. — Caso o contrato celebrado com prazo certo se renove automaticamente, das duas uma: Ou bem que o prazo inicial é inferior a três anos — hipótese em que o contrato se renovará por períodos sucessivos de três anos 4. Ou bem que o prazo inicial é superior a três anos — hipótese em que o contrato se renovará por períodos sucessivos de igual duração 5 6:
“a liberdade das partes só terá autónomo alcance normativo se o prazo de renovação estipulado for superior a 3 anos” 7.
16. Em consonância com os critérios consolidados na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, deve responder-se à unica questão suscitada dizendo-se que o segmento final do n.º 1 do artigo 1096.º do Código Civil consagra uma norma imperativa, no sentido de não permitir que o contrato de arrendamento se renove por um período inferior a três anos.
III. — DECISÃO
Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido.
Custas pela Recorrente Lispaisagem, SA.
Lisboa, 13 de Fevereiro de 2025
Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)
Maria de Deus Correia (vencida conforme declaração que segue)
Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura
Voto vencida pois, contrariamente à tese seguida no acórdão, entendo que o prazo de renovação automática do contrato de arrendamento, previsto no art.º 1096.º n.º1 do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13/2019 de 12-02 é supletivo, encontrando-se abrangido pela ressalva da norma “salvo estipulação em contrário”.
Com efeito, tal como escrevemos no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-04-20231- “não distinguindo a lei, não vemos por que motivo a ressalva da estipulação em contrário, se haveria de aplicar apenas à faculdade de as partes estipularem a renovação automática. Por outro lado, seria incongruente que as partes pudessem afastar a possibilidade de renovação automática, num contrato que, nos termos do disposto no art.º 1095.º n.º2 poderá ter a duração de um ano, mas caso o quisessem renovar, já o teriam de fazer, imperativamente, por três anos”.
Acompanho, assim, o entendimento manifestado no voto de vencido constante do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2023 2.
Lisboa, 13 de fevereiro de 2025
Maria de Deus Correia
Notas de rodapé do acórdão:
1. Cf. artigo 294.º do Código Civil: “Os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei”.
2. Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 2023 — processo n.º 7135/20.1T8LSB.L1.S1 —, de 20 de Setembro de 2023 — processo n.º 3966/21.3T8GDM.P1.S1 — e de 12 de Dezembro de 2024 — processo n.º 138/20.8T8MDL.G1.S1.
3. Cf. designadamente Maria Olinda Garcia, “Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019”, in: Julgar online — 2019, pág. 11: “Parece-nos que […] as partes poderão convencionar que o contrato não se renova no final do prazo inicial […]. O contrato caducará, assim, verificado esse termo”.
4. Cf. artigo 1096.º, n.º 1, segunda parte, segunda alternativa.
5. Cf. artigo 1096.º, n.º 1, segunda parte, primeira alternativa.
6. Sobre a articulação entre as duas alternativas, vide por todos Rui Mascarenhas de Ataíde / António Barroso Rodrigues, “Denúncia e oposição á renovação do contrato de arrendamento urbano”, in: Revista de direito civil, ano 4 (2019), págs. 297-311 (302-303), ou Maria Olinda Garcia, “Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019”, cit., págs. 11-12.
7. Maria Olinda Garcia, “Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei n.º 12/2019 e pela Lei n.º 13/2019”, cit., pág. 12.
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Notas de rodapé do voto vencido:
1. Processo n.º 1390/22.0YLPRT.L1-6, disponível em www.dgsi.pt