CONCURSO DE INFRAÇÕES
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
CÚMULO JURÍDICO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
PENA ÚNICA
PERDÃO
Sumário


I. Na determinação da pena conjunta, em conhecimento superveniente do concurso, a decisão recorrida levou em conta as circunstâncias relevantes seguindo os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal) e o critério especial fixado na segunda parte do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, em que se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita.
II. Sendo muito elevadas as necessidades de prevenção geral, em particular no que respeita aos crimes de tráfico, atendendo à sua frequência e dimensão e aos graves efeitos de corrosão social e de potencial lesão da integridade física, da vida dos consumidores e na saúde pública, não se mostra que estas tenham sido ponderadas em violação dos limites impostos pela medida da culpa (artigo 40.º do CP).
III. Não se verifica que a pena única, de 8 anos e 10 meses de prisão, tendo em conta a moldura abstrata de 6 anos e 2 meses a 13 anos e 5 meses de prisão, correspondente aos quatro crimes em concurso, tenha sido fixada em violação do critério de proporcionalidade que se impõe na sua determinação (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição), pelo que não se justifica intervenção corretiva na determinação da medida da pena.
IV. Para efeitos do perdão de pena concedido pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, haveria que, na linha do decidido em acórdãos anteriores, distinguir entre os crimes de tráfico de estupefacientes, excluídos da aplicação do perdão, e os crimes de condução ilegal, beneficiando do perdão, com reformulação do cúmulo jurídico, tendo em atenção o disposto no artigo 7.º, n.º 3, de acordo com o qual a exclusão do perdão – que incide sobre a pena única (artigo 3.º, n.º 4) – não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º relativamente a outros crimes cometidos.
V. Sucede, porém, que o arguido, que tinha completado 30 anos de idade em data anterior à da prática dos crimes de condução ilegal, não poderia beneficiar do perdão, atento o disposto no artigo 2.º, n.º 1, segundo o qual estão abrangidas por esta lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados por «pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto».
VI. De acordo com o elemento histórico e teleológico de interpretação, não contrariado por qualquer outro, extraído da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª, que esteve na origem da Lei n.º 38-A/2023, o perdão dirigiu-se «especificamente» a «jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos».
VII. Termos em que o recurso, embora com fundamento diverso, é julgado improcedente.

Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, arguido, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso do acórdão proferido nestes pelo Juízo Central Criminal de ... – Juiz ... –, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em 21.03.2024, que, em conhecimento superveniente do concurso de crimes, efetuando o cúmulo jurídico das seguintes penas:

- 6 (seis) anos e 2 (dois) meses de prisão, aplicada no processo n.º 217/22. PULSB – Juízo Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – J..., pela prática, como coautor material, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, al. h), ambos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro;

- 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão, aplicada no processo n.º 182/22.0... – Juízo Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de LN - ... - J..., pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p., pelo nº 1 do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro;

- 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão efetiva, em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância e com a obrigação de frequência de programas relacionados com a segurança rodoviária, aplicada no processo n.º 94/20.2... – Juízo Local de Pequena Criminalidade – J... - do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, J..., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p., pelos artigos 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de janeiro, 121.º, n.º1 e 4 do Código da Estrada e 14.º, n.º1 e 26.º, ambos do Código Penal;

- 14 (catorze) meses de prisão, aplicada no processo n.º 268/20.6...– Juízo Local de Pequena Criminalidade – J... - do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, o condenou na pena única de 8 (oito) anos e 10 (dez) meses de prisão.

2. Discordando do decidido quanto à medida da pena e à não aplicação do perdão de pena concedido pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, apresenta recurso com motivação de que extrai as seguintes conclusões (transcrição):

«A. O arguido foi condenado na pena única de 8 (oito) anos e 10 (dez) meses de prisão.

B. A pena aplicada pelo Tribunal é desproporcional, excessiva e injusta, violando o disposto nos artigos 40º, 50º, 71º, todos do Código Penal.

C. O Tribunal a quo deu como provados os factos, contudo não atendeu aos princípios e critérios orientadores na escolha e dosimetria da pena, não valorando na justa medida todos os aspetos indispensáveis a uma justa e adequada punição.

D. O tribunal coletivo bastou-se com a convicção que formou, com base no princípio da livre apreciação da prova, não considerando na aplicação da medida da pena, as circunstâncias que poderiam beneficiar o arguido.

E. O recorrente, em contexto prisional, tem referências de episódios de ansiedade, principalmente em fases de aproximação de diligências judiciais e situações de preocupações familiares, nomeadamente, morte de um tio e distanciamento dos filhos.

F. O recorrente solicitou no Estabelecimento Prisional, apoio especializado, destacando a importância do apoio psicológico para a sua estabilidade emocional, mantendo-se assíduo e motivado.

G. O recorrente denota consciência das consequências penalizantes que o seu percurso criminal promoveu, mais concretamente ao nível pessoal e familiar, sobretudo pela ausência na participação da educação dos seus filhos.

H. “ (...)avaliou o tempo de reclusão, como uma período de reflexão, adoptando um discurso mais assertivo e evidenciando uma conduta, no geral adequada no cumprimento dos normativos institucionais(...)”.

I. Refere ainda o relatório social do aqui recorrente que: “O arguido mostrou-se arrependido dos factos por si praticados. No exterior beneficia de apoio dos familiares, principalmente por banda da companheira, com quem pretende retomar a vida em meio livre, a qual o visita regularmente no EP de ..., embora não usufrua de medidas de flexibilização da pena.”

J. O recorrente prestou declarações, identificando o desvalor das suas condutas e mostrando-se arrependido dos factos por si praticados.

K. Adequado e justo seria condenar o arguido a uma pena de prisão não superior a cinco anos, a cumprir de forma efetiva.

L. Com estes fundamentos, afirmamos que a escolha da pena infligida ao arguido se afigura desadequada e desproporcional, pelas suas consequências, as suas circunstâncias pessoais, e até mesmo perante as necessidades de prevenção geral, prevenção especial e de justiça que o caso de per si reclama, devendo, pois, ser alterada em conformidade.

M. O Tribunal violou assim os critérios contidos nas disposições conjugadas dos art. 40º, 70º, 71º, todos do Código Penal.

N. “A Lei do perdão, Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto prevê um perdão de penas de um ano de prisão a todos os crimes cometidos até as 00h do dia 19 de Junho de 2023, por pessoas com idades entre 16 anos e 30 anos, cujas penas não ultrapassem os 8 anos de prisão.

O. Ora, o aqui recorrente, a nosso ver, preenche todos os requisitos.

P. Ainda que o mesmo haja sido condenado em cúmulo jurídico a uma pena única de 8 (oito) anos e 10 (meses), que tal circunstância não prejudica o perdão relativamente a outros crimes, não fazendo qualquer diferenciação.

Q. Conforme decidido pelo Tribunal de..., no proc.º 379/18.8....., pese embora o arguido tenha sido condenado em cúmulo, por um crime de trafico nos termos do art.º 21º (que se encontra previsto na exceção do art.º 7º daquele diploma legal) e por um crime que é passível de ser abrangido como o de tráfico de menor gravidade, o Tribunal ali decidiu aplicar na pena parcelar o perdão, uma vez que quanto àquele crime, se encontram preenchidos os requisitos.

R. E assim se deveria ter decidido no caso dos presentes autos, isto porque a Lei não discrimina em caso de cúmulo ou computo das penas.

S. Assim, dever-se-ia ter decidido de forma mais favorável para o arguido.

T. Ao invés, dever-se-á aplicar o perdão nas penas parcelares que preencham os requisitos, como é o caso, das penas parcelares aplicadas no âmbito dos processos n.º 94/20.2... e 268/20.6..., por se encontrarem cumulativamente preenchidos os requisitos para a aplicação do perdão da pena.

Termos em que e nos melhores de direito, (…) deve ser julgado totalmente procedente o presente recurso e por via disso deverá ser revogado e substituído o Acórdão em crise, por outro que altere a medida da pena única de prisão, aplicada ao arguido, tendo em conta o perdão das penas ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023 (…)».

3. O Ministério Público, pela Senhora Procuradora da República no tribunal recorrido, apresentou resposta no sentido da improcedência dos recursos, dizendo, em conclusões:

«I. AA recorre do acórdão cumulatório com dois fundamentos:

a) A pena concreta é muito elevada, devendo ser inferior a cinco anos, tendo o Tribunal desconsiderado:

a. Problemas de ansiedade de que padece estando neste momento a receber apoio especializado;

b. O seu arrependimento e preocupação pela sua situação jurídico-penal, em especial pela ausência no acompanhamento dos filhos;

c. O apoio de familiares, em especial da sua companheira

b) Deverá ser aplicado o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto

II. Sem prejuízo do que se dirá infra quanto à adequação da pena concreta aplicada, é legalmente impossível aplicar uma pena única de cinco anos de prisão uma vez que, sendo a pena mais elevada das penas concretamente aplicadas de seis anos e dois meses de prisão (neste processo n.º 217/22.7 PULSB), a pena nunca poderá situar-se abaixo desse limite, nos termos do artigo 77º, 2, do Código Penal.

III. Situando-se a moldura penal do cúmulo jurídico a efetuar nos presentes autos, nos termos do n.º 2 do artigo 77º do CP, entre um mínimo de 6 anos e 2 meses de prisão e um máximo de 13 anos e 5 meses de prisão, a pena concreta aplicada – 8 anos e 10 meses de prisão – situa-se perto do limite mínimo da moldura penal, tendo acrescido apenas 2 anos e 8 meses –, perto de 1/3 da amplitude da moldura penal (a diferença entre o mínimo e o máximo da pena é de 7 anos e 3 meses de prisão).

IV. Relevante para ter sido aplicada uma pena única situada perto do limite mínimo da moldura do cúmulo foi precisamente, conforme consta do acórdão, ter sido considerado que o recorrente:

a) identifica, agora, o desvalor das suas condutas;

b) mostra-se arrependido dos factos por si praticados;

c) mostra-se familiarmente inserido com uma relação afetiva estável e dois filhos menores de idade que contribuem para o motivar para passar a levar uma vida conforme ao Direito;

d) possuir visitas frequentes da sua companheira no EP a qual o apoia.

V. Salvo a questão da ansiedade, estas são exatamente a circunstâncias que o recorrente pretende que sejam valorizadas, como o foram.

VI. A pena não poderia ser inferior ao estabelecido tendo em conta a imagem global do facto e da personalidade do agente decorrente de estarem em causa dois crimes graves da mesma natureza –tráfico de estupefacientes – e porque, como refere o acórdão, o recorrente:

a) não exerceu qualquer atividade laboral ou frequentou curso de formação em meio prisional o que espelha o desinteresse daquele no seu investimento pessoal;

b) ter praticado duas infrações disciplinares em meio prisional respeitantes à posse de produtos estupefacientes o que espelha que o mesmo ainda não interiorizou o desvalor das suas condutas e mantém-se dependente do consumo de substâncias estupefacientes;

c) ter praticado os factos respeitantes ao processo nº 217/22.7 PULSB enquanto se encontrava preso preventivamente à ordem do processo nº 182/22.0... e no interior de EPrisional”.

VII. No que se refere à aplicação do perdão, e tal como consta do acórdão recorrido com profunda fundamentação para a qual se remete, incidindo ele sobre a pena única, nos termos do n.º 4, do artigo 3º, da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto, e sendo esta superior a 8 anos de prisão, está expressamente excluída do âmbito do perdão, nos termos do n.º 1 do mesmo diploma legal.

Pelo exposto, deverá ser julgado improcedente o recurso interposto pelo arguido e ser confirmada a decisão recorrida.»

4. O processo foi remetido ao Tribunal da Relação de Lisboa, tendo o Senhor Juiz Desembargador relator proferido despacho pelo qual julgou esse tribunal incompetente, por o recurso ter por objeto um acórdão da 1.ª instância que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos e se limitar a matéria de direito, o que constitui matéria da competência do Supremo Tribunal de Justiça [artigos 432.º, n.º 1, al. c), do CPP].

5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, em concordância com o Ministério Público no tribunal recorrido, emitido parecer nos termos do artigo 416.º do CPP, no sentido da improcedência do recurso (transcrição parcial, na parte relevante):

«(…)

A. Medida da pena única.

(…)

4. Contrapõe, contudo, o Ministério Público, que as concretas circunstâncias da prática dos crimes, com relevância ao nível da formulação dos juízos de ilicitude e de culpa (que constam dos factos-provados e são ponderadas na douta fundamentação) – valoradas, pois, à luz dos critérios tipológicos previstos nas disposições dos arts. 71º e 77º/1 do Código Penal para a determinação da pena –, permitem a conclusão de que a pena única concretamente aplicada não se mostra, adentro da moldura abstracta do concurso (06 anos e 02 meses a 13 anos e 05 meses de prisão) desproporcionada e excessiva, dando, com todo o respeito, a expressão necessária às exigências do princípio da culpa e da prevenção geral e especial – sempre na consideração da globalidade dos factos e da personalidade do arguido (necessidade, adequação e proporcionalidade).

5 Nomeadamente:

A circunstância de o Tribunal “a quo” já ter valorado a seu favor as atenuantes alegadas;

A relativa expressividade da amplitude da moldura penal do concurso;

Não ter exercido qualquer actividade laboral ou formativa meio prisional, espelhando o arguido o seu desinteresse no seu investimento pessoal;

Ter cometido duas infracções disciplinares em meio prisional atinentes à posse de produtos estupefacientes, denotando que não interiorizou o desvalor das suas condutas;

Ter cometido crime estando preso preventivamente por crime da mesma natureza (“tráfico de estupefacientes”);

A idade do arguido (nascido em 1990) – sendo já um adulto maduro à data da prática dos factos –, ter-lhe-ia permitido (assim o quisesse) procurar abraçar uma vivência no respeito pelos bens jurídico-penais, especialmente o património alheio.

6. De todo o modo, constitui pura quimera pugnar por uma pena única em medida inferior à pena parcelar em concreto mais elevada – 06 anos e 02 meses de prisão – que integrou a punição do cúmulo jurídico superveniente (cfr, arts. 77º/2 e 78º/1 do Código Penal).

Não violou a douta decisão recorrida o disposto nos arts. 71º e 77º do Código Penal.

B) - Perdão da L-38-A/2023, de 02/08.

7. Também a pretendida aplicação do perdão da L-38-A/2023, de 02/08, constitui uma impossibilidade legal (cfr, art. 3º/1 e 4).

III. Em síntese:

É justa e criteriosa a pena única aplicada ao arguido, ora recorrente, não podendo, aliás, ser inferior à pena parcelar em concreto mais elevada.

Não é aplicável o perdão da L-38-A/2023, de 02/08, a pena única superior a 08 anos de prisão.

Em conclusão:

IV. Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:

- Deverá o presente recurso ser julgado não provido e improcedente.»

6. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse em resposta.

7. No requerimento de interposição de recurso requereu o arguido, «ao abrigo do disposto no art.º 411º, n.º 5, do mesmo diploma legal, a realização de audiência, por forma a expor os factos (…) impugnados».

O requerimento foi indeferido por despacho do relator, por o recurso não comportar julgamento de «factos», o requerente não especificar os pontos da motivação que pretendia ver debatidos em audiência e não haver lugar à renovação da prova (artigos 419.º, n.º 3, al. c), e 430.º do CPP).

Em consequência, e não havendo reclamação do despacho, seguiu o recurso para julgamento em conferência (artigos 417.º, n.º 9, 410.º e 419.º do CPP).

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. Fundamentação

Factos provados

8. Consta do acórdão recorrido:

«3.1. Resumo dos factos:

3.1.1. P.C.Colectivo n.º 217/22. PULSB – Juízo Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – J...:

Em data não concretamente apurada, anterior a ... .03.2022, os arguidos congeminaram um plano que se traduzia na introdução concertada de cocaína e canábis no Estabelecimento Prisional de ..., a troco do recebimento de quantias monetárias;

No dia ... .03.2022 o arguido AA estava preso no Estabelecimento Prisional de ...;

Nessa data, cerca das 15 horas e 15 minutos, o arguido BB deslocou-se ao Estabelecimento Prisional de ... e, uma vez aí, visitou o arguido AA;

No decurso da visita a que se alude em 3. o arguido BB levantou-se da cadeira em que se encontrava sentado e arremessou um pacote por cima da divisória acrílica que o separava do arguido AA;

O pacote a que se alude em 4. foi atirado na direcção do arguido AA;

Acto contínuo, o arguido AA apanhou o pacote a que se alude em 4. e dissimulou-o junto à zona da cintura;

Seguidamente, o arguido AA foi interceptado pelos guardas prisionais do Estabelecimento Prisional de ...;

O pacote a que se alude em 4. foi apreendido e continha no seu interior:

- duas embalagens de canábis (resina), com o peso líquido de 287,308g;

- uma embalagem de cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 22,096g;

Os arguidos actuaram em conjugação de vontades e esforços e na prossecução de um plano por ambos previamente arquitectado, com o fito alcançado de receber, ter consigo e introduzir no Estabelecimento Prisional de ... os produtos estupefacientes a que se alude em 8., cujas características, natureza e quantidade conheciam, a troco do recebimento de quantias monetárias;

Em toda a actuação supra descrita os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;

Mais se provou que:

O arguido AA, na data a que se alude em 2., era consumidor de produtos estupefaciente, a saber, haxixe;

Sujeitos a exame pericial os produtos estupefacientes a que se alude em 8. veio a apurar-se que:

- a canabis (resina) apresentava um grau de pureza de 34,7% (THC) e sendo equivalente a 1993 doses de consumo;

- a cocaína apresentava um grau e pureza de 57,2% e sendo equivalente a 63 doses de consumo;

3.1.2. P.C.Colectivo n.º 182/22.0... – Juízo Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de LN - ... - J...:

No dia .../.../2022, os arguidos CC, DD e EE deslocaram-se a ... e combinaram encontrar-se com o arguido AA junto ao parque de estacionamento do Metro de ..., sito na Rua ..., em ....

Na sequência dessa combinação, o arguido AA deslocou-se para o aludido local no veículo da marca Ford, modelo C-Max, de cor preta, com a matrícula ..-NB-.., propriedade da sua companheira FF.

Instantes depois, pelas 11h40m, os arguidos AA, CC, DD e EE dirigiram-se para o veículo acima mencionado olhando para todos os lados.

Ao entrarem para o dito veículo, o arguido AA tomou o lugar do condutor, enquanto o arguido DD se sentou no banco do passageiro da frente e os arguidos CC e EE sentaram-se no banco traseiro da viatura, do lado esquerdo e direito respectivamente.

Contudo, naquele local encontravam-se agentes da Polícia de Segurança Pública que ao se aperceberem das suas movimentações procederam à sua abordagem, altura em que os arguidos iniciaram fuga apeada, embora sem sucesso.

Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido AA tinha na sua posse o produto estupefaciente e os objectos infra descritos:

- 4 (quatro) placas de canábis (resina) com o peso líquido 387,94 gramas e o grau de pureza de 25,8%THC, o que permitia obter 2001 (duas mil e uma) doses diárias;

- 2 (duas) embalagens de canábis (resina) com o peso líquido 45,102 gramas e o grau de pureza de 21,8%THC, o que permitia obter 196 (cento e noventa e seis) doses diárias;

- 6 (seis) embalagens de cocaína com o peso líquido 3,246 gramas e o grau de pureza de 58,1%, o que permitia obter 9 (nove) doses diárias;

- 8 (oito) embalagens de heroína com o peso líquido 1,984 gramas e o grau de pureza de 16,1%, o que permitia obter 3 (três) doses diárias;

- 1 (uma) faca de cozinha, marca “Cortex – Inox”, com cabo de madeira com comprimento total de 20,00cm e comprimento de lâmina de 10,00cm;

- € 618,00 (seiscentos e dezoito euros) em numerário;

- 1 (uma) balança digital de pequenas dimensões;

- 1 (um) bloco A5;

- 1 (uma) bolsa tira colo, da marca “Fila”, de cor cinzenta.

O arguido DD tinha na sua posse os objectos infra descritos:

- 1 (uma) faca de marca “Owim”, com cabo castanho

- 1 (uma) balança de precisão de pequenas dimensões, da marca “Sanda”;

- € 422,00 (quatrocentos e vinte e dois euros) em numerário;

No interior do veículo identificado encontrava-se ainda:

- 1 (um) taco de baseball, da marca “Jian – Wu”;

- 1 (um) X-acto, de cor laranja;

- 1 (um) X-acto, da marca “Dexter”, de cor azul;

- 1 (uma) faca de cozinha, da marca “Ciol”, com cabo branco com o comprimento total de 19 cm e comprimento de lâmina de 9,00cm;

- 1 (uma) placa de canábis (resina) com o peso líquido 96,870 gramas e o grau de pureza de 26,8%THC, o que permitia obter 519 (quinhentas e dezanove) doses diárias;

- 1 (uma) saqueta contendo canábis (resina) com o peso líquido 48,120 gramas e o grau de pureza de 22,9%THC, o que permitia obter 220 (duzentas e vinte) doses diárias;

- 1 (uma) embalagem de heroína com o peso líquido 2,710 gramas e o grau de pureza de 15,1%, o que permitia obter 4 (quatro) doses diárias;

- 2 (duas) embalagens de cocaína com o peso líquido 2,062 gramas e o grau de pureza de 42,0%, o que permitia obter 4 (quatro) doses diárias;

- 6 (seis) embalagens de cocaína com o peso líquido 1,186 gramas e o grau de pureza de 93,5%, o que permitia obter 36 (trinta e seis) doses diárias;

- 11 (onze) embalagens de heroína com o peso líquido 2,042 gramas e o grau de pureza de 13,8%, o que permitia obter 2 (duas) doses diárias;

- 1 (uma) faca de cozinha, com cabo de cor castanha;

- 1 (uma) balança digital de médias dimensões, de cor cinzenta.

Os arguidos AA e DD destinavam as referidas substâncias psicotrópicas/estupefacientes supra descritas à entrega/venda a terceiros e o dinheiro era proveniente dessa actividade e os demais objectos eram por si destinados a serem usados na actividade de cedência das mencionadas substâncias.

Os arguidos AA e DD actuavam, por forma a alcançar proveitos económicos de modo a sustentarem-se e aos seus agregados familiares, e não possuem actividade profissional nem rendimentos de origem lícitos.

Os arguidos AA e DD conheciam os efeitos nefastos e as características estupefacientes/psicotrópicas dos produtos por si transaccionados, quer daqueles que, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar acima descritas, adquiriram para revenda e/ou detinham para entrega a terceiro, quer daqueles que venderam, detiveram ou guardaram para venda.

Os arguidos AA e DD sabiam que é penalmente proibido guardar, adquirir, transportar, vender, ceder ou entregar a terceiros, como fizeram, ou por qualquer modo deter como detinham, nas circunstâncias referidas e para o efeito a que os destinavam, produtos estupefacientes/psicotrópicos da natureza e com as características dos supra descritos e, não obstante, não se eximiram, de actuar do modo descrito de modo a obter vantagens económicas, como obtiveram, que sabiam não lhes serem devidas.

Os arguidos AA e DD agiram sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei como crime, não se coibindo, de mesmo assim, as adoptarem.

3.1.3. P.E.Abreviado n.º 94/20.2... – Juízo Local de Pequena Criminalidade – J... - do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa:

No dia ... de ... de 2020, pelas 05h00, o arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula ..-NI-.., na Avenida ..., em ..., sem que fosse titular de carta de condução ou de qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir tal veículo.

O arguido sabia que não podia conduzir o veículo suprarreferido por não ser titular de carta de condução ou de qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir tal veículo, e ainda assim quis conduzir o referido veículo na via pública, tal como fez.

O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

3.1.4. P.E.Abreviado n.º 268/20.6... – Juízo Local de Pequena Criminalidade – J... - do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa:

No dia ... de ... de 2020, pelas 23h30, o arguido conduziu o veículo automóvel de matrícula ..-NB-.., na Rua ..., em ..., sem que fosse titular de licença de condução válida ou de qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir tal veículo.

O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, ciente de que não era titular de carta de condução, bem sabendo que só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito.

Não obstante, o arguido quis e levou a cabo tal conduta, bem sabendo que a mesma não era permitida e era punida por lei penal.

3.1.5. Antecedentes criminais registados (para além dos processos referidos em 3.1.1. a 3.1.4.):

- Por Acórdão de 06.05.2009, proferido no âmbito do PCC nº 2455/07.2..., o qual correu termos na...VC de Lisboa foi o arguido condenado pela prática, em 17.07.2007, de 6 crimes de roubo, na pena única de 2 anos de prisão cuja execução foi declarada suspensa por igual período de tempo. Por despacho de 03.06.2011 foi revogada a suspensão da execução de tal pena e por despacho de 12.02.2016 foi aquela declarada extinta;

- Por Acórdão de 02.07.2010, proferido no âmbito do PCC nº 94/09.3..., o qual correu termos na ... VC de Lisboa foi o arguido condenado pela prática, em 07.2007, de 1 crime de roubo, na pena de 4 anos de prisão. Por despacho 16.02.2016 foi-lhe concedida a liberdade definitiva;

- Por sentença de 06.04.2016, proferida no âmbito do PES nº 205/16.2..., o qual correu termos no JLPC – J... de Lisboa foi o arguido condenado pela prática, em 19.03.2016, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa, à razão diária de € 5. Por despacho de 04.05.2018 foi tal pena substituída pela prestação de 119 horas de trabalho a favor da comunidade e, por despacho de 03.12.2019, foi tal pena declarada extinta, pelo cumprimento;

- Por sentença de 22.04.2016, proferida no âmbito do PES nº 264/16.8..., o qual correu termos no JLPC – J... de Lisboa foi o arguido condenado pela prática, em 07.04.2016 e 12.04.2016, de dois crimes de condução sem habilitação legal, na pena única de 140 dias de multa, à razão diária de € 5. Por despacho de 18.04.2017 foi tal pena substituída pela prestação de 138 horas de trabalho a favor da comunidade e, por despacho de 19.0.2018, foi tal pena declarada extinta pelo cumprimento;

- Por sentença de 01.02.2018, proferida no âmbito do PCS nº 1016/16.0..., o qual correu termos no JLC – J... de Lisboa foi o arguido condenado pela prática, em 26.10.2016, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, cuja execução foi declarada suspensa por igual período de tempo. Tal pena foi declarada extinta em 23.10.2019;

- Por sentença de 25.10.2016, proferida no âmbito do PES nº 181/16.1..., o qual correu termos no JLPC – J... de Lisboa foi o arguido condenado pela prática, em 07.10.2016, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 meses de prisão, cuja execução foi declarada suspensa pelo período de 1 ano. Tal pena foi declarada extinta em 04.07.2018;

- Por sentença de 28.11.2016, proferida no âmbito do PES nº 107/16.2..., o qual correu termos no JLPC – J... de Lisboa foi o arguido condenado pela prática, em 09.03.2016, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa, à razão diária de € 5. Por despacho de 27.04.2017 foi tal pena substituída pela prestação de 119 horas de trabalho a favor da comunidade e, por despacho de 20.02.2018, foi tal pena declarada extinta pelo cumprimento;

- Por sentença de 21.04.2017, proferida no âmbito do PEA nº 60/16.2..., o qual correu termos no JLPC – J... de Lisboa foi o arguido condenado pela prática, em 27.02.2016, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 meses de prisão, substituídos por 180 horas de trabalho a favor da comunidade. Tal pena foi declarada extinta pelo cumprimento em 13.07.2018;

- Por sentença de 06.11.2018, proferida no âmbito do PES nº 1981/18.3..., o qual correu termos no JLPC – J... de Lisboa foi o arguido condenado pela prática, em 18.10.2018, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 1 ano de prisão, cuja execução foi declarada suspensa pelo período de 3 anos. Por despacho de 30.09.2022 revogou-se a suspensão de tal pena;

3.1.6. Condições pessoais, sociais e económicas do arguido:

AA residia com a sua companheira, FF, com quem iniciou relação e passou a coabitar desde 2009, num apartamento de tipologia T3, propriedade da Câmara Municipal de ..., gerido pela Empresa Municipal ......, possuindo o mesmo condições de habitabilidade e conforto, embora situado em zona urbana conotada com problemáticas sociais/criminais. Actualmente, em tal habitação residem a companheira do arguido com os dois filhos, de seis e três anos de idade.

Descrevem uma boa relação afectiva no contexto familiar do casal, constituindo-se como referências os familiares da companheira, os pais, irmãos e tios do arguido.

No entanto, salienta o seu afastamento no período infantojuvenil dos seus três irmãos devido à incapacidade dos pais em assumirem adequadamente a função parental.

Cresceu num ambiente com dificuldades ao nível da supervisão das suas rotinas e imposição de regras o que facilitou a adopção de comportamentos desviantes e o contacto com o Sistema de Justiça Tutelar Educativa.

Em liberdade refere que mantinha um estilo de vida assente nas rotinas laborais irregulares e no convívio com a família nuclear e alargada, assegurando algumas tarefas na organização e gestão do agregado, privilegiando a proximidade a pares com o mesmo estilo de vida.

Aquando da instauração do processo nº 182/22.0..., AA trabalhava como operário da construção civil, sem contrato laboral e com fraca estabilidade/regularidade e a sua companheira era funcionária numa grande superfície comercial.

Aquando dos factos objecto do processo nº 217/22.7 PULSB o arguido encontrava-se preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de ..., estando inactivo laboralmente, assinalando dificuldades económicas uma vez que as despesas do seu agregado familiar eram apenas asseguradas pelo vencimento da sua companheira.

Actualmente, a sua companheira trabalha como operadora de supermercado, há cerca de 15 anos, auferindo a quantia mensal de € 950, acrescendo ao rendimento os abonos de família dos menores, no valor de € 130.

Para além das despesas de manutenção da habitação e do agregado acresce a despesa relativa à renda do imóvel onde habitam, no valor mensal de € 61.

Em meio prisional o arguido encontra-se inactivo e, por força de tal, não recebe qualquer remuneração.

No âmbito profissional, o arguido exerceu atividade laboral com maior regularidade desde a sua libertação no ano de 2016 mantendo, anteriormente, um quotidiano desorganizado, sem motivação para desenvolver atividades estruturadas a nível laboral e/ou formativas o que o aproximou de um estilo de vida ocioso, espoletando vários contactos com o Sistema de Justiça Penal, os quais dificultaram a aquisição de competências laborais, assim como, habilitações escolares/formativas.

Apresenta um percurso caraterizado pelo desinvestimento na aprendizagem, pelo absentismo e reprovações escolares, privilegiando o convívio com pares problemáticos, tendo concluído o 6º ano de escolaridade.

Ainda que tivesse iniciado a frequência de um curso profissional, durante o período de cumprimento de medida de internamento em centro educativo, não o concluiu, por progressiva desadaptação ao contexto de internamento e várias ausências não autorizadas que levou a cabo em tal período.

Em contexto prisional, há referências a episódios de ansiedade, principalmente em fases de aproximação de diligências judiciais e situações de preocupações familiares, nomeadamente, morte de um tio e distanciamento dos filhos, recorrendo pontualmente a terapêutica medicamentosa a que acresce a referência a consumos pontuais de haxixe, tendo o arguido solicitado apoio especializado, destacando a importância do apoio psicológico para a sua estabilidade emocional, mantendo-se assíduo e motivado.

O arguido iniciou o consumo de estupefaciente (haxixe) aos 13 anos de idade, durante o período escolar, num contexto de pares, evoluindo para consumos diários a partir dos 18 anos de idade.

O arguido demonstra preocupação pela sua situação jurídico-penal, essencialmente pelos seus antecedentes criminais, assim como pelo processo que tem a decorrer em Tribunal, denotando consciência das consequências penalizantes que o seu percurso criminal promoveu, nomeadamente, ao nível pessoal e familiar, sobretudo pela ausência na participação da educação dos seus filhos.

Pese embora avalie o tempo de reclusão como um período de reflexão, adoptando um discurso mais assertivo e evidenciando uma conduta, no geral, adequada no cumprimento dos normativos institucionais, veio a incorrer em duas infrações disciplinares, por posse de substâncias tóxicas, dificultando a sua evolução no percurso prisional e a sua integração laboral/formativa.

O arguido mostrou-se arrependido dos factos por si praticados.

No exterior, beneficia de apoio dos familiares, principalmente por banda da companheira, com quem pretende retomar vida em meio livre, a qual o visita regularmente no EP de ..., embora não usufrua de medidas de flexibilização da pena.

No domínio judicial, AA cumpriu medida de internamento, em centro educativo, pelo período de dois anos, entre os 16 e os 18 anos de idade.

O arguido, face ao seu percurso criminal, denota a necessidade de interiorização do desvalor das suas condutas e da noção dos danos decorrentes, apresentando deficit ao nível do pensamento consequencial, da descentração, autocontrolo e resolução de problemas.

São visíveis no arguido fragilidades nas competências pessoais, sociais, escolares e laborais e ao nível do pensamento crítico, descentração, pensamento consequencial, fraca capacidade de autocontrolo e na resolução dos seus problemas, as quais têm dificultado a sua evolução pessoal durante o percurso prisional.

Não obstante, AA parece evidenciar, agora, maior consciência de algumas lacunas, nomeadamente, da sua condição aditiva, tendo solicitado apoio técnico especializado, aderindo ao acompanhamento psicológico regular.

Manifesta a intenção de solicitar a sua ocupação laboral/formativa, assim como, apresenta uma relação familiar disponível para o continuar a apoiar.»

Objeto e âmbito do recurso

9. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo da 1.ª instância que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos, diretamente recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça [artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP].

Limita-se ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), não vindo invocado qualquer dos vícios ou nulidades a que se referem os n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro.

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo, se for caso disso, em vista da boa decisão de direito, dos poderes de conhecimento oficioso dos vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro), que, neste caso, não se verificam.

10. Em síntese, tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, este Tribunal é chamado a apreciar a adequação e proporcionalidade da pena única aplicada aos crimes em concurso, que o recorrente pretende ver reduzida, com intervenção corretiva do decidido, se for caso disso, e a não aplicação do perdão da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

Quanto à pena única

11. A decisão de determinação da medida da pena encontra-se fundamentada nos seguintes termos:

«Os factos pelos quais o arguido foi condenado nos identificados processos estão entre si numa relação de concurso uma vez que foram praticados antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles.

De harmonia com o disposto no art.º 77.º, n.º 1, 1.ª parte do C. Penal quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única.

Há, pois, lugar à efectivação de cúmulo (art.º 77.º, n.º 1 “ex vi” art. 78.º, ambos do C. Penal) sendo este o Tribunal competente para o efeito (art.º 471.º, n.ºs 1 e 2 do C.P. Penal).

Conforme dispõe o art.º 77.º, n.º 2 do C .Penal, a pena aplicável – ou seja, a moldura abstracta do concurso de crimes – tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, acrescentando o seu nº 3 que se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.

É a seguinte a moldura abstrata do cúmulo jurídico de penas a efectuar nos presentes autos (art.º 77.º, n.º 2 do CPenal):

- mínimo de 6 anos e 2 meses de prisão (correspondente à pena parcelar mais grave aplicada) a um máximo de 13 anos e 5 meses de prisão (somatório das penas parcelares em concurso).

Para a determinação da pena única há que considerar os factos apurados constantes das decisões condenatórias supra enunciadas, a personalidade do arguido, bem como as circunstâncias em que tais factos ocorreram, a gravidade dos ilícitos e/ou a sua natureza e espaço de tempo em que aqueles se verificaram e os antecedentes criminais do arguido.

Como refere o Professor Figueiredo Dias in Direito Penal Português – Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 291 e 292) “(…) tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente revelará, entretanto, a questão de se saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade dos crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (…)”.

Aqui chegados cumpre salientar:

a) Em favor do arguido milita:

- o identificar, agora, o desvalor das suas condutas;

- o mostrar-se arrependido dos factos por si praticados;

- o mostrar-se familiarmente inserido com uma relação afectiva estável e dois filhos menores de idade que contribuem para o motivar para passar a levar uma vida conforme ao Direito;

- o possuir visitas frequentes da sua companheira no EP a qual o apoia;

b) Milita em desfavor do arguido:

- as elevadas razões de prevenção geral que se impõem atendendo aos ilícitos criminais pelos quais foi condenado no âmbito dos processos cujas penas ora se cumulam e que espelham;

- a elevada ilicitude dos factos por si praticados, designadamente, no que aos crimes de tráfico de produtos estupefacientes diz respeito;

- a sua baixa escolaridade e inexistência de formação profissional que não facilitam a sua inserção no mercado laboral;

- o não exercer qualquer actividade laboral ou frequentar curso de formação em meio prisional o que espelha o desinteresse daquele no seu investimento pessoal;

- o ter praticado duas infracções disciplinares em meio prisional respeitantes à posse de produtos estupefacientes o que espelha que o mesmo ainda não interiorizou o desvalor das suas condutas e mantém-se dependente do consumo de substâncias estupefacientes;

- o ter praticado os factos respeitantes ao processo nº 217/22.7 PULSB praticou os factos enquanto se encontrava preso preventivamente à ordem do processo nº 182/22.0... e no interior de EPrisional;

- os seus concretos antecedentes criminais relativos à prática de crimes de roubo; de condução sem habilitação legal e tráfico de estupefacientes de menor gravidade tendo já cumprido penas de prisão.

Tendo presente todos os factores enunciados não olvidemos que a pena única encontrada impõe que se repercutam os sentimentos da comunidade relativos ao tipo de criminalidade em causa - razões de prevenção geral - e traduza a efectiva responsabilização do arguido relativamente aos actos por si praticados e consequências destes e que as razões de prevenção especial se fazem sentir com particular acuidade tendo em conta o percurso do arguido espelhado nas condenações por si anteriormente sofridas.

Do exposto, tudo ponderado temos por ajustado, na realização do cúmulo jurídico das penas parcelares em concurso e pelas quais o arguido foi condenado (artºs. 77º e 78º do CPenal), fixar-se a pena unitária em 8 (anos) anos e 10 (dez) meses de prisão.»

12. Como resulta do texto acabado de transcrever, mostram-se devidamente identificados os critérios de determinação da pena.

Na apreciação da adequação e proporcionalidade da pena aplicada na decisão decorrida importa considerar as circunstâncias que, constituindo o respetivo substrato, a justificam, convocando o que repetidamente se tem afirmado em acórdãos anteriores e tendo presente que o recurso não se destina a proceder a uma nova determinação da pena, mas, apenas, a verificar o respeito pelos critérios que presidem à sua determinação, com eventual correção da medida da pena aplicada se o caso a justificar (assim, por todos, o acórdão de 17.12.2024, Proc. 77/12.6GTCSC.L2.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele citada).

13. Relembrando os critérios gerais e os fatores de determinação da pena importa considerar o que se segue.

A pena única corresponde a uma pena conjunta resultante das penas aplicadas aos crimes em concurso segundo um princípio de cúmulo jurídico, seguindo-se, na sua fixação, o procedimento normal de determinação e escolha das penas, a partir das quais se obtém a moldura penal do concurso (pena aplicável), que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal). Em caso de conhecimento superveniente do concurso, como o dos autos, este processo, quanto às penas aplicadas a cada um dos crimes que o integram, encerrou-se definitivamente com o trânsito em julgado da decisão respetiva, havendo que, se for caso disso, anular cúmulos jurídicos anteriores que tenham sido efetuados relativamente a penas que devem concorrer para a formação da pena única, como também ocorreu neste caso.

Assim definida a moldura do concurso, o tribunal determina a pena conjunta, seguindo os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal) e o critério especial fixado na segunda parte do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, segundo o qual na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente manifestada no facto, em que se incluem, designadamente, as circunstâncias relacionadas com as condições económicas e sociais deste, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita.

O substrato da medida da pena compreende, assim, as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de ilícito ou do tipo de culpa, possam depor a favor do agente ou contra ele, nos termos do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal (como, a título exemplificativo, se afirmou, entre outros, no acórdão de 25.10.2023, Proc. 3761/20.7T9LSB.S1, em www.dgsi.pt, e na jurisprudência nele mencionada).

14. Recordando jurisprudência constante, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento. É o conjunto dos factos descritos na sentença que evidencia a gravidade do ilícito perpetrado (o “grande facto”), sendo decisiva, para a sua avaliação, a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos que constituem os tipos de crime em concurso.

Há que atender ao conjunto de todos os factos e ao fio condutor presente na repetição criminosa, estabelecendo uma relação desses factos com a personalidade do agente neles projetada, levando-se em consideração a natureza dos crimes e a identidade ou não dos bens jurídicos violados, tendo em vista verificar se os factos praticados, no seu conjunto, são expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significarão já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, caso em que lhe deverá ser atribuído um efeito de agravação dentro da moldura da pena conjunta, ou se, diversamente, a repetição resulta de fatores meramente ocasionais» [assim, o citado acórdão de 25.10.2023 e jurisprudência nele citada, retomando-se o que se afirmou em anteriores acórdãos].

15. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito, em observância do critério de proporcionalidade com fundamento no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos»1.

Para a medida da gravidade da culpa, de acordo com o artigo 71.º, há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências e intensidade do dolo ou da negligência), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram e o grau de violação dos deveres impostos ao agente [als. a), b) e c)], bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade (condições pessoais e situação económica, conduta anterior e posterior ao facto, e falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [als. d), e), f)].

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Aqui se incluem as consequências não culposas do facto (v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves, comportamento anterior e posterior ao crime (com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [als. a) e) e f)]. O comportamento do agente [als. e) e f)] adquire particular relevo em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.

Como se tem sublinhado, é na consideração destes fatores, determinados na averiguação do «grande facto» caraterizado pelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, constituem o substrato da determinação da pena, que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os critérios de adequação e proporcionalidade constitucionalmente impostos (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição), que devem pautar a sua aplicação2 . Não se podendo fundar em considerações de ordem geral pressupostas na definição dos crimes e das molduras abstratas das penas em vista da adequada proteção dos bens jurídicos postos em causa, sob pena de violação da proibição da dupla valoração, a determinação da pena dentro da moldura penal correspondente ao crime praticado há de comportar-se no quadro e nos limites da gravidade dos factos concretos, nas suas próprias circunstâncias concorrentes por via da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal), tendo em conta as finalidades de prevenção especial de ressocialização3.

16. Em síntese, limita-se o arguido a afirmar a sua discordância fundada em considerações genéricas, dizendo que o tribunal a quo «não atendeu aos princípios e critérios orientadores na escolha e dosimetria da pena, não valorando na justa medida todos os aspetos indispensáveis a uma justa e adequada punição», «não considerando na aplicação da medida da pena, as circunstâncias que poderiam beneficiar o arguido», e acrescentando alegada desconsideração pelos problemas de ansiedade que o afetam, pelo arrependimento manifestado e pela preocupação pelo não acompanhamento dos filhos e pelo apoio dos seus familiares, em especial da sua companheira.

17. Como se extrai da fundamentação, todas estas circunstâncias foram levados em conta na decisão recorrida.

Para além delas, foram considerados os demais fatores de determinação da pena, nos termos dos artigos 71.º e 77.º do CPP (supra, 12 a 15), relevando por via da culpa e da prevenção, em particular o grau de ilicitude e do dolo, as condições pessoais e socioeconómicas e o comportamento anterior (antecedentes criminais) e posterior aos factos.

A conjugação destes fatores, em particular a sucessão de atos criminosos, não meramente ocasionais, que anteriormente determinaram a aplicação, sem êxito, de uma medida tutelar educativa e de penas, posteriormente, pela prática de crimes contra o património, de tráfico e de condução de veículos sem habilitação legal – estes últimos de idêntica natureza aos que agora impõem a condenação – revela indicações de uma personalidade desvaliosa projetada nos factos, vistos no seu conjunto, dificuldade em ser influenciado pelas penas e falta de preparação para manter uma conduta ilícita, o que, aliado às condições pessoais pouco favoráveis à reintegração, evidencia elevadas necessidades de intervenção de prevenção especial.

Para além disso, como se tem salientado, são muito elevadas as necessidades de prevenção geral, a ponderar nos limites impostos pela medida da culpa (artigo 40.º do CP), em particular no que respeita aos crimes de tráfico, dada a sua frequência e dimensão e os nefastos efeitos de corrosão social, na integridade física e na vida dos consumidores e na saúde pública (assim, por todos, o recente acórdão de 5.2.2025, Proc. n.º 542/22.7T9CHV, em www.dgsi.pt, com citação do relatório de 2023 do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência sublinhando os elevados riscos para a saúde e para a vida dos consumidores e a dimensão dos mercados internacionais e nacionais das drogas ilícitas (https://www.emcdda.europa.eu/publications/european-drug-report/2023/cocaine_en).

As circunstâncias consideradas a favor do arguido e por ele invocadas não contêm densidade para, na apreciação, em conjunto, da gravidade dos factos e da personalidade do agente, constituírem base suficiente para diminuição da medida da pena aplicada em função da moldura correspondente aos crimes em concurso (de 6 anos e 2 meses a 13 anos e 5 meses), a qual não se mostra fixada em violação dos critérios de proporcionalidade que presidem á sua determinação.

Pelo que, não se justificando intervenção corretiva na determinação da medida da pena, é negado provimento ao recurso.

Quanto ao perdão de pena (Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto)

18. A não aplicação do perdão de penas decretado pela Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto vem fundamentada, com convocação e longa transcrição do acórdão de 23.1.2024, Proc. n.º 1161/20.8..., do Tribunal da Relação de Lisboa, de que se extraem os seguintes segmentos diretamente relevantes para a apreciação do recurso:

«Aquando da prática dos factos a que se alude em 3.1.3 e 3.1.4 o arguido tinha 30 anos de idade.

Através da Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto, foi estabelecido um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (artigo 1º), abrangendo as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (artigo 2º, nº 1). (…)

No caso dos autos, todos os factos pelos quais o arguido foi condenado foram praticados antes de 19.06.2023, sendo que em dois deles, os praticados nos processos a que se alude em 3.1.3. e 3.1.4, contava o arguido 30 anos de idade, pelo que, poderia o mesmo considerar-se abrangido pela medida de clemência decretada pela referida Lei.

Porém, cumpre assinalar que de acordo com o artigo 3º, nº 2, al. ix) da referida Lei nº 38-A/2023 estão excluídos do aludido perdão os crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que aprova o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas e, bem assim, as penas de prisão superiores a 8 anos, sendo verdade que nenhuma das penas parcelares em que o arguido foi condenado é superior a 8 anos de prisão, importa ter em conta que o nº 4 do artigo 3º o qual dispõe que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única. (…)

Ora, a pena única ora vinda de aplicar ao arguido é de 8 anos e 10 meses de prisão e ali foram cumuladas as penas a que se alude em 3.1.1. e 3.1.2. respeitantes à prática de crimes de tráfico de produtos estupefacientes e, bem assim, as penas a que se alude em 3.1.3. e 3.1.4. respeitantes à prática de crimes de condução sem habilitação legal.

As medidas de clemência, atenta a sua natureza de providências excepcionais, devem ser interpretadas nos precisos termos em que estão redigidas, sem ampliações nem restrições, não comportando aplicação analógica - cfr. artº 11º do Código Civil – embora, sempre, com a salvaguarda dos princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade. (…)

De notar que constitui jurisprudência reiterada do TC que cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas – o quantum do perdão, quer, em princípio, as espécies de crimes ou infracções a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstracta, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis.

Assim, atentos os termos em que se mostra redigida a disposição em questão, não podem considerar-se postos em causa os mencionados princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade pois que a norma aplica-se a todos os que se encontrem da situação visada (mostrando-se, por isso, de aplicação geral) e é, nos termos em que se deixou exposto, de considerar contida na discricionariedade constitucionalmente reconhecida ao legislador ordinário a possibilidade de estabelecer um limite máximo para as penas suscetíveis de beneficiar de tal perdão – com o natural e óbvio propósito de excluir de tal medida de graça situações punidas com penas severas, que tendencialmente se referirão a factos especialmente gravosos, relativamente aos quais a sociedade teria dificuldade em compreender o recuo do ius puniendi do Estado.

Atenta a pena única ora vinda de aplicar ao arguido citamos o Ac. do TRL de 23.01.2024, relatado pelo Desembargador Manuel Ramos da Fonseca, disponível in www.dgsi.pt onde se pode ler

“(…) é admissível a medida de perdão, no âmbito da Lei 38-A/2023-2agosto, numa pena única superior a 8 anos de prisão? (…)

Estão abrangidas pela referida Lei (…), no que agora releva, as sanções penais relativas aos ilícitos que, reunidos os demais pressupostos por ela estabelecido, tenham sido praticados até ao final do dia 18junho2023, ou seja, até à meia-noite de 18junho2023 (art.º 2.º/1).

Por outro lado, o agente, à data dos factos, tem de ter entre 16 e 30 anos de idade, inclusive (art.º 2.º/1). (…)

O art.º 3.º/1 estabelece que “é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos” (…).

O art.º 3º/4 estabelece que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”.

O art.º 7.º/3 estabelece que “a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3º e da amnistia prevista no artigo 4º relativamente a outros crimes cometidos”.

Cientes que cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas - o quantum do perdão - , quer, em princípio, as espécies de crimes ou infrações a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstrata, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis, perante o conteúdo normativo (na concreta formulação dada pelo legislador), surge a questão da sua interpretação, certo que toda a fonte necessita de interpretação, para que revele a regra que encerra.

É dizer, a amplitude do perdão é dada pelo diploma que o concede, o qual define os seus contornos, não podendo deixar de se reconhecer ao legislador, na concretização da política criminal referente à efetivação das penas aplicadas pela prática dos crimes definidos na lei, uma “discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo” (embora não ilimitada).

E, neste ponto, desde já se estabelece que é princípio geral de interpretação, não exclusivo da análise jurídica, que a conclusão a retirar não seja suscetível de conduzir a um resultado absurdo ou inadequado. Quadro este que assume particular relevo quando se está perante a necessidade de ponderação duma faceta da dimensão pro libertate (como principio geral no domínio dos direitos fundamentais que nos inculca a regra de que, na dúvida, se deve optar pela solução que, em termos reais, seja menos restritiva ou menos onerosa para a esfera de livre atuação dos indivíduos – cfr. José Carlos Vieira de Andrade, in Os Direitos Fundamentais – Na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 1983, 9 131), mas sempre com os limites muito próprios que impõe estabelecer ao nível da interpretação das “leis de clemência” como leis de excecionalidade.

A propósito dos problemas de interpretação e consequente aplicação que, ao longo dos tempos, as Leis de amnistia e perdão têm levantado, a jurisprudência, desde há décadas a esta parte, sempre afirmou e vem afirmando que as normas de tais leis devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas.

Neste sentido, cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, relatados por Avelino da Costa Ferreira (de 16março1977, in BMJ 265.º, p. 145), (…); por José Saraiva (de 21julho1987, in BMJ 369.º, p. 381), e por Vaz dos Santos (de 29março1995, in BMJ 445.º, p. 146) (…).

Daí a razão de se poder afirmar, conforme se referiu no Assento do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça 2/2001, de 25 outubro 2001 (…), em termos aqui convocáveis, que “com a institucionalização do Estado de direito social e democrático, todos os actos de graça são actos que se movem no mundo do direito, desde logo no do direito constitucional, pelo que estão sujeitos ao seu império, portanto ao controlo jurisdicional. (…) Sucede ainda que o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe. Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam. É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 (…), de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 (…), de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 (…), de 26 de Junho de 1997, processo n.º 284/97, 3.ª Secção (…), de 15 de Maio de 1997, processo n.º 36/97, 3.ª Secção (…), de 13 de Outubro de 1999, processo n.º 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo n.º121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo n.º2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes). Sendo, assim, insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» - Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1978, p. 147. Na interpretação declarativa «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo» - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 185.”. (sublinhados nossos) (cfr, ainda, o referido por Maia Gonçalves, in Código Penal Português, Anotado, 16.ª ed., p. 439).

Neste sentido, igualmente, o Acórdão do Pleno das Secção Criminais do Supremo Tribunal de Justiça 2/2023, de 15dezembro2022 (…) onde se pode ler “[p]or outro lado, tratando-se de medidas de exceção, a interpretação e aplicação da lei que as consagra deve ser feita nos seus precisos termos, sem extensões, nem restrições que nela não venham expressas. Ou seja, a interpretação deve, no caso, ser feita de forma muito próxima da literalidade (interpretação dita declarativa), qua tale, trait pour trait, Zug um Zug, numa afloração do princípio da especialidade. O qual, nas palavras impressivas e algo metaforicamente exuberantes do Prof. Fernando Capez, explicitando o quid que especifica esse tipo de norma não meramente geral, refere: "a caixa com um laço de fita vermelho prevalece sobre a caixa sem tal adereço" (Apud CUNHA LIMA, Ronaldo/LIMA DE OLIVEIRA, Leonardo Cunha, Princípios e Teorias Criminais (Verbetes), Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 17). (…) Ademais, devemos ter presente que, como se referiu, as leis de perdão não admitem qualquer tipo de interpretação moduladora (tal como a extensiva, restritiva ou analógica), as palavras de tais leis mantêm o chamado "código forte", ou seja, denotativo e não conotativo.”

Nos termos do art.º 9.ºCC: 1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Assim, em conformidade com tal normativo, a letra é não só o ponto de partida da interpretação, mas, também, o seu limite (n.º 2).

Nos casos em que o elemento literal (o exame literal do texto da norma) se mostra ambíguo, impõe-se o recurso aos demais elementos de interpretação previstos no art.º 9.º do Código Civil: partindo do teor verbal, como elemento literal/gramatical (tendo em conta o uso corrente da linguagem e os modos de expressão técnico-jurídica), acrescenta-se o elemento lógico-sistemático (a coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas relações com outros preceitos), o elemento histórico (a situação que se verificava anteriormente à lei e toda a evolução histórica, bem assim a história da génese do preceito, que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios) e, finalmente, o elemento teleológico (o fim particular da lei ou do preceito em singular).

Retomando o caso dos autos, comecemos pela delimitação de interpretação que merece a norma do art.º 7.º/3 (…) a qual nos diz que “[a] exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos”

Esta norma regula a situação em que coexistem, no mesmo processo, crimes excludentes do perdão e da amnistia com crimes deles não excludentes.

É o caso dos autos, na relação do crime de homicídio qualificado (excluído pelo art.º 7.º/1 a) - i)] com o crime de crime de detenção de arma proibida (o qual não o faz parte do catálogo dos crimes excecionado).

Na interpretação que se entende ser a adequada, tal preceito tão só esclarece que, “estando em causa vários crimes, a exclusão da amnistia e do perdão quanto a um ou alguns deles não prejudica a aplicação da amnistia e do perdão relativamente a algum ou alguns dos outros, verificados que estejam os necessários requisitos.”(cfr. Pedro José Esteves de Brito in “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, Revista Julgar, online, agosto2023)

E dai que a leitura que aqui deva ser feita tenha que reportar, essencialmente, a uma confrontação histórica, de específica ligação à antecedente Lei de Graça, a Lei 9/2020-10abril, onde se estabeleceu um “Regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID -19”, Lei na qual, ao nível do art.º 2.º/6 se determinava que, “ainda que também tenham sido condenados pela prática de outros crimes, não podem ser beneficiários do perdão” os condenados pela prática de qualquer um dos crimes elencados nas várias alíneas subsequentes.

Ou seja, face a esta cláusula de “contaminação”, decorria dessa norma que não podia ser aplicado qualquer perdão no caso de o recluso [que à data de 11abril2020 o fosse e cuja(s) condenação(ões) tenha(m) transitado em julgado em data anterior à referida, ou seja, até 10abril2020, pois só a este se aplicava, como veio a esclarecer o já referido Acórdão do Pleno das Secção Criminais do Supremo Tribunal de Justiça 2/2023] ter sido condenado a prisão pela prática de qualquer um desses crimes, quer estivessem em causa apenas crimes dessas naturezas ou tipos, quer eles coexistissem com outros não abrangidos pelas apontadas exclusões legais, quer estivesse em causa apenas uma pena, singular ou única, quer estivesse em presença, no momento da ponderação, mais penas determinantes de prisão, singulares ou únicas, neste último caso quer as penas estivessem já cumpridas, total (caso em que operava ultra-actividade dos efeitos da condenação, como sucede, por exemplo, no caso do instituto da reincidência) ou parcialmente, quer estivesse a decorrer a sua execução, quer esta não se tivesse ainda iniciado. (sobre o conceito de contaminação ou comunicabilidade, cfr. José Quaresma, in Regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19 - Estado de Emergência - COVID-19 Implicações na Justiça, ebook CEJ p. 426)

Assim, para o caso de condenação em cúmulo jurídico, à luz da Lei 9/2020-10abril não haveria que aplicar qualquer perdão à pena única quando aí tivesse sido englobada pelo menos uma pena parcelar aplicada pela prática de um crime excludente do perdão (mesmo que também englobasse outras penas parcelares aplicadas pela prática de outros crimes que não determinavam a sua exclusão).

Não é esta, porém, a solução que se mostra comtemplada na Lei 38-A/2023.

É dizer, continuando a seguir as palavras de Pedro José Esteves de Brito, que “em caso de cúmulo jurídico, haverá sempre que ter em conta que o perdão incide sobre a pena única aplicada (cfr. art.º 3.º, n.º 4, da Lei em análise) determinada de acordo com as regras estabelecidas nos art.ºs 77.º e 78.º do C.P. e, assim, mesmo que englobando penas parcelares aplicadas por crimes excluídos do perdão e penas parcelares aplicadas por crimes dele não excluídos. Deste modo, nesses casos, o perdão não é afastado pela circunstância de no cúmulo jurídico estarem englobadas, para além de penas parcelares aplicadas por crimes dele não excluídos, pelo menos outra pena parcelar aplicada por crime dele excluído.

Saliente-se que não foi essa a solução implementada pela Lei n.º 9/2020, de 10 de abril, que, nos casos de condenação em cúmulo jurídico, determinou que não havia que aplicar qualquer perdão à pena única desde que naquele estivesse englobada pelo menos uma pena parcelar aplicada pela prática de um crime excludente do perdão e, assim, mesmo que também englobasse outras penas parcelares aplicadas pela prática de outros crimes que não determinavam a sua exclusão (cfr. art.º 2.º, n.ºs 3 e 6).”

Esclarecida a interpretação que temos como correta para a norma do art.º 7.º/3, dir-se-á, então, que não é a dita norma que soluciona o caso em presença. A fonte de solução está, então, na norma do art.º 3.º/1/4, a qual, relembre-se, estabelece que “é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos” sendo que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”.

Forçosa, de imediato, é a conclusão de que a literalidade do texto da norma não serve de solução ao problema de interpretação colocado para decisão, visto que a expressão legal “todas as penas de prisão até 8 anos” tanto pode significar as penas singulares, como as penas parcelares de prisão em caso de cúmulo jurídico (ambas até 8 anos), como igualmente significar as penas singulares e as penas únicas de prisão em caso de cúmulo jurídico (ambas até 8 anos). Neste último caso, não será aplicado o perdão caso a pena única de prisão resultante de cúmulo jurídico ultrapassasse os 8 anos, ainda que houvesse pena ou penas parcelares inferiores a 8 anos que, abstratamente, beneficiariam do perdão.

Logo, o recurso aos demais elementos de interpretação, acima referidos, revela-se determinante.

Como é salientado no Assento 2/2001 (tal qual no Acórdão que aí figura como acórdão recorrido – TRPorto, de 21junho2000 – Processo 575/00), a ponderação do elemento histórico na interpretação de normas das leis de amnistia e perdão deve ter em devida conta os precedentes legislativos em matéria de leis de clemência.

No caso dos presentes autos, tais precedentes são os que estabelecem o perdão de penas em função de um limite de gravidade das concretas penas de prisão aplicadas. É dizer, vem-se atendendo à medida da pena de prisão aplicada para estabelecer uma diferenciação para a medida do perdão.

A consideração da medida da pena (de prisão) como critério para a aplicação do perdão [e também para determinar a medida do perdão, por ex., 1/6 da pena)] é habitual nas leis de clemência:

Na Lei 3/81-13março, o art.º 2.º/1 (…)

Na Lei 17/82-2julho, o art.º 5.º/1 (…)

Na Lei 16/86-11junho, o art.º 13.º/1b) (…)

Na Lei 15/94-11maio, o art.º 8.º/1d) (…)

Na Lei 29/99-12maio, o art.º 1.º/1 (…)

Na Lei 17/82-2julho, o art.º 6.º (…)

Na Lei 16/86-11junho, o art.º 13.º/2 (…)

Na Lei 15/94-11maio, o art.º 8.º/4 (…)

Na Lei 29/99-12maio, o art.º 1.º/4 (…)

A Lei 3/81-13março, não previa norma para o caso de haver concurso de infrações e inerente cúmulo jurídico, o que provocou divergência jurisprudencial, dando origem ao Assento 5/83, de 21outubro1983 (in DR, 1.ª Série, de 11novembro1983, p. 3798 e 3799), com o seguinte teor: “No caso de concurso real de infracções em que, nos termos do artigo 102.º do Código Penal de 1886, tem de aplicar-se ao réu uma pena única, é sobre esta, e não sobre as penas parcelares que o § 2.º do mesmo artigo manda também indicar, que deve incidir o perdão previsto pelo artigo 2.º da Lei nº 3/81, de 13 de Março.”

Aqui chegados logo nos confrontamos com especificidades na presente Lei 38-A/2023 com relação à “normalidade” das antecedentes.

É que, não obstante haver sintonia de aplicação da medida de perdão sobre a pena única, não só o modo de tal aplicação operar, como a dosimetria do perdão, diferem. (…)

Já quanto à segunda questão, a Lei 38-A/2023 em absoluto difere das antecedentes, pois ao contrário das mesmas não estabelece escalões de medida de perdão em função da dosimetria concreta de pena aplicada, sim fixa um padrão único de 1 ano.

Continuamos, porém, sem solução para a questão em apreço.

Recorrendo ao teor da Proposta de Lei 97/XV/1.ª, constatamos que o teor do então art.º 3.º/1 é aquele que veio a ser consagrado na Lei (com exceção da referência do valor da medida, então por extenso). Quanto ao teor do então art.º 3.º/3 este passou a constar do art.º 3.º/4 da Lei, sem qualquer alteração de teor.

Aqui chegados, para efeitos de interpretação, não podemos olvidar que tendo sido propósito do legislador afastar a aplicação desta medida de clemência, quer às situações de criminalidade grave – aquela usualmente sentida na sociedade como já integrante do patamar de criminalidade hedionda, e por isso mesmo em certos casos, tais quais os das condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública, tratada ao nível do art.º 1.º l) CPP como integrante do conceito de “criminalidade especialmente violenta” - (cfr. art.º 7.º, a contrario sensu), quer às penas de prisão de grande duração, a única interpretação que parece ser consentânea com esse espírito, sob pena de beneficio do Arguido que pratica crimes em acumulação, é a de que apenas são objeto do perdão de 1 ano de prisão as penas únicas fixadas em medida não superior a 8 anos, o que aqui se não verifica.

Ou seja, o legislador estabeleceu aqui um outro nível de exclusão, consubstanciado na gravidade da conduta ou na multiplicidade de condutas determinantes de uma pena de prisão superior ao limite fixado no art.º 3.º/1, independentemente do tipo de ilícito praticado, sendo que este evidenciado alargamento do campo de exclusões constante da Lei 38-A/2023 não consubstancia uma qualquer novidade, antes se inscreve numa tendência de vontade do Legislador que se vem desenhando desde a Lei 29/99, com a introdução de concretas exclusões que vão além da tipologia dos crimes, antes se focam especificadamente nos agentes, como sejam os delinquentes condenados como reincidentes, agora mantida na lei em análise, ou na posição funcional das vítimas, como é o caso dos membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, como consta da Lei 9/2020 e agora limitadamente se mantém na lei em análise (dada a exceção da menção “guardas dos serviços prisionais”, ali justificada face à inerência de os beneficiários serem, em exclusividade, os reclusos).

E de facto, também à luz da letra da Lei assim parece resultar inequívoca a opção do legislador, porquanto fosse intenção de que tal medida de perdão incidisse não sobre a pena única, mas sim sobre o quantum das penas parcelares que estão quantificadas no cúmulo, bastaria para tal não manter este n.º 4 do art.º 3.º na redação que lhe deu.

Pronunciando-se sobre aquela que, ab initio, parecia ser uma linear interpretação, Pedro José Esteves de Brito, no estudo em referência já nos dizia, em comentário a este art.º 3.º, que “[a]s penas de prisão aplicadas em medida superior a 8 anos não beneficiam de perdão.”

Contudo, face às interpretações que vieram a terreiro – dentre as quais a invocada pelo Arguido recorrente em NUIPC que reporta - afirma Pedro José Esteves de Brito (agora in “Mais algumas notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, Revista Julgar, online, janeiro2024) que “só as penas de prisão inferiores ou iguais a 8 anos são suscetíveis de beneficiar do perdão (cfr. art.º 3.º, n.º 1, da dita Lei), sejam elas parcelares, em caso de diferentes condenações sucessivas, ou únicas, no caso de condenação em cúmulo jurídico, conclusão a que se chega com base nos seguintes elementos:

É novamente utilizada a preposição “até”, expressão inclusiva; e

A lei fala em “todas as penas de prisão até 8 anos” (cfr. art.º 3.º, n.º 1 da dita Lei), esclarecendo que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (cfr. art.º 3.º, n.º 4, da dita Lei).

Assim, no caso de diferentes condenações em penas de prisão de cumprimento sucessivo terá que se atender à medida de cada pena de prisão aplicada em cada decisão e, em caso de condenação em cúmulo jurídico, à pena única, independentemente da medida fixada para as penas parcelares, dado que, neste caso, o perdão incide não sobre as penas parcelares, mas sobre a pena única.

Dos trabalhos preparatórios resulta que, de resto, foi assim que a norma foi interpretada, ou seja, que em caso de condenação em cúmulo jurídico, para beneficiar do perdão de penas, a pena única de prisão não pode exceder 8 anos. Na verdade, consta do parecer do Conselho Superior da Magistratura: “Nestes casos, a aplicação da lei não suscita dificuldades: o perdão incidirá sobre a pena única, sendo perdoado um ano, com o limite previsto no n.º 1 do art.º 3.º (a pena não exceda 8 anos de prisão)”.

Em bom rigor, trata-se de uma opção legislativa de apenas considerar merecedores do perdão aqueles que, nas demais condições previstas, tenham sido condenados numa pena de prisão não superior a 8 anos.

Ora, não se pode dizer que a limitação seja política - criminalmente infundada. Na verdade, uma vez que uma pena de prisão de 8 anos é uma pena grave, não se afigura arbitrário considerar que um agente condenado numa pena de prisão de duração superior a 8 anos não é merecedor de qualquer medida de graça, tenha tal pena sido aplicada apenas por um crime ou se trate de uma pena única em cúmulo jurídico de várias penas parcelares porventura, cada uma delas, de medida inferior.

Por outro lado, no passado, já se atendeu à medida da pena de prisão aplicada para estabelecer uma diferenciação para a medida do perdão (cfr. arts. 1.º, n.º 1, da Lei n.º 29/99, de 12 de maio, 8.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 15/94, de 11 de maio, 14.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 23/91, de 4 de julho, 13.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 16/86, de 11 de junho).”

No mesmo sentido, ainda que em abordagem lateral à questão, se pronuncia Ema Vasconcelos (in “Amnistia e perdão – Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto”, Revista Julgar, online, janeiro2024) quando nos diz que“[v]ale isto por dizer que, ainda que uma pena parcelar seja objecto de perdão, caso a mesma venha, posteriormente, a integrar um cúmulo jurídico de conhecimento superveniente, tal perdão poderá deixar de ser aplicável, por força da pena única que venha a ser aplicada [p. ex: superior a 8 anos, no caso da actual Lei n.º 38-A/2023, de 2.8], ou passar a ser aplicável em diferente medida [vide, artigo 1.º, n.º 1 da Lei n.º 29/99, de 12.05].”

Cabe então responder à subsequente vertente da pergunta dos autos, no sentido de perceber se é razoável cogitar se qualquer pena superior a 8 anos, que não excluída pela tipologia de crime, de especificidade de agente ou de qualidade de vítima, possa ainda assim ser objeto de perdão.

A resposta deve ser, evidentemente, negativa, não só porque perfilhamos integralmente a posição supra exposta, o que fazemos por ser a única que à luz da globalidade dos elementos de interpretação chamados à colação permite o cumprimento da regra supra enunciada de respeito pelos princípios gerais inerentes, como também porque pensar solução diferenciada – tal qual a da tese propugnada pelo Arguido recorrente - somente conduziria a resultado inadequado e absurdo à luz de qualquer olhar, jurídico ou não.

Consequentemente, não obstante, verificada a delimitação subjetiva de idade do agente e a delimitação objetiva do tempo do ilícito, in casu a aplicação da medida de perdão sempre se mostra excluída pelo quantum da pena única aplicada, porquanto manifestamente superior a 8 anos.

Resta, face à alegação do Arguido por reporte ao art.º 412.º/2 a) CPP, afirmar que não se vislumbra qualquer afronta aos princípios de equidade e igualdade, em especial na vertente constitucional, decorrente da não aplicação ao caso concreto da medida de perdão.

Trata-se, como se disse, duma opção do legislador, no âmbito do seu poder de discricionariedade normativa, na certeza de que qualquer lei de amnistia e perdão, ao menos por força do seu âmbito temporal de aplicabilidade, conduz necessariamente a situações de injustiça relativa.

Diga-se, ainda e por último, que neste sentido vai igualmente a jurisprudência por ora conhecida, como são os casos dos relatos de José António Rodrigues da Cunha e de Maria dos Prazeres Silva, em Acórdãos do TRPorto, datados de 10janeiro2024, respetivamente nos NUIPC 996/04.3JAPRT.P2 e 441/07.2JAPRT-E.P1 (necessariamente ainda inéditos).(…)”.

À guisa de conclusão, atenta a pena única aplicada ao arguido – de 8 anos e 10 meses de prisão - não pode o mesmo beneficiar do perdão de pena decretado pela referida Lei.»

19. Importa, antes de mais, convocar as disposições legais relevantes da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto. Assim:

Artigo 1.º (Objeto)

«A presente lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.»

Artigo 2.º (Âmbito)

«1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º

(…)»

Artigo 3.º (Perdão de penas)

«1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.

(…)

4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.

(…)»

Artigo 7.º (Exceções)

«1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:

(…)

f) No âmbito dos crimes previstos em legislação avulsa, os condenados por:

(…)

ix) Crimes de tráfico de estupefacientes, previstos nos artigos 21.º, 22.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que aprova o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;

(…)

3 - A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.»

20. Em casos, como o dos autos, em que está em causa a aplicação do perdão em situações de concurso de crimes a que é aplicada uma pena única têm-se verificado divergências de interpretação das disposições conjugadas dos artigos 3.º, n.ºs 1 e 4, e 7.º, n.º 3, quanto à questão de saber se, estando em causa crimes e penas “perdoáveis” e “não perdoáveis” (isto é, incluídos ou, por exceção, excluídos do âmbito do perdão), se deve ou não refletir esta distinção na formulação do cúmulo dado que a exclusão do perdão quanto a alguns deles não prejudica a aplicação de perdão a outros crimes e penas que dele beneficiem (artigo 7.º, n.º 3).

Este Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou sobre esta questão, em situações idênticas à destes autos, nomeadamente nos acórdãos de 20.03.2024 (Ana Barata Brito), no processo n.º 21/14.6PELRA.C3.S1, e de 04.06.2024 (Ana Barata Brito), no processo n.º 890/22.6PFAMD.L1.S1 (em www.dgsi.pt e em Sumários de Acórdãos das Secções Criminais, junho de 2024, em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2024/09/criminal-junho-2024.pdf).

Disse-se no processo n.º 21/14.6PELRA.C3.S1 (sumário): «I - Quando se diz, no n.º 4 do art. 3.º Lei 38-A/2023, que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”, está-se a considerar a pena única correspondente a crimes que beneficiam (todos eles) de perdão. II. Com esta disposição quer-se esclarecer que, nos casos de concurso efectivo de crimes – de crimes que beneficiem, todos eles, de perdão -, o perdão se aplica uma única vez, à pena única, e não várias vezes, a cada uma das parcelares que a compõem. Ou seja, só concluído todo o processo de determinação da pena e encontrada e aplicada a pena “final”, então sim, há lugar a aplicação do perdão da Lei n.º 38-A/2023. III. Mas há que compatibilizar o n.º 4 do art. 3.º com o art. 7.º da mesma lei, que determina as excepções ao perdão. Compatibilização que se realiza aplicando-se primeiramente o perdão à pena parcelar que dele beneficia, procedendo-se seguidamente a cúmulo jurídico do remanescente dessa parcelar com a outra pena parcelar, excluída do perdão.»

Idêntica conclusão (também em sumário) se obteve no acórdão do processo 890/22.6PFAMD.L1.S1 (em que o agora relator foi adjunto): «VIII - No n.º 4 do art. 3.º da Lei n.º 38-A/2023, quando se diz que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”, está-se necessariamente a considerar a pena única correspondente a crimes que beneficiam todos eles de perdão. IX - Com esta disposição pretendeu-se apenas esclarecer que, nos casos de concurso efectivo de crimes – de crimes que beneficiem, todos ele, de perdão, entenda-se –, o perdão se aplica uma única vez, à pena única, e não várias vezes, a cada uma das parcelares que a compõem. Ou seja, em caso de concurso efectivo de crimes que beneficiem todos eles de perdão só concluído o processo de determinação da pena e encontrada e aplicada a pena “final”, então sim, há lugar a aplicação do perdão da Lei n.º 38-A/2023. X - Necessariamente, tem sempre de se compatibilizar o n.º 4 do art. 3.º com o art. 7.º da mesma lei, preceito que determina as excepções ao perdão. XI - Esta compatibilização, na decisão sobre as penas constante do acórdão recorrido, realizar-se-ia aplicando primeiramente o perdão à pena parcelar que deste beneficiava, procedendo-se seguidamente a cúmulo jurídico do remanescente dessa parcelar (caso sobrasse remanescente) com a outra pena parcelar, excluída do perdão - a pena correspondente ao homicídio, crime que está excluído do perdão.»

Nesta linha jurisprudencial haveria, pois, que distinguir entre os crimes de tráfico de estupefacientes, excluídos da aplicação do perdão, e os crimes de condução ilegal, beneficiando do perdão, tendo em atenção o disposto no artigo 7.º, n.º 3, de acordo com o qual a exclusão do perdão não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º relativamente a outros crimes cometidos.

21. Sucede, porém, que, diversamente do assumido pelo tribunal a quo, se suscita a questão de saber se o arguido, dada a sua idade à data da prática dos crimes de condução ilegal (em 27.8.2020 e 30.11.2020 – supra, matéria de facto, 313. e 3.1.4), poderia beneficiar do perdão.

Como verificou o acórdão recorrido, tinha o arguido 30 anos de idade, que havia completado em 21.6.2020 (data de nascimento: 21.6.1990).

22. Como se viu, estão abrangidas pela lei do perdão as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por «pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto» (artigo 2.º, n.º 1).

Esta disposição reproduz, nos seus precisos termos, o artigo 2.º, n.º 1, da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª (em DAR II Série-A, n.º 245, de 19.6.2023, p. 348), a que apenas foi aditada, nos trabalhos parlamentares, a expressão «nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º», que consta da parte final.

A Exposição de Motivos desta Proposta de Lei fornece um elemento histórico de interpretação decisivo à definição do sentido desta disposição, da ratio, da finalidade e do âmbito desta medida de clemência. Nela se lê que:

«A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é um evento marcante a nível mundial (…). Com enfoque na vertente cultural, na presença e na unidade entre inúmeras nações e culturas diferentes, a JMJ tem como principais protagonistas os jovens.

Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.

Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.

Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação. (…)».

A clareza dos trabalhos preparatórios, não perturbada ou contrariada por qualquer outro elemento e refletida na formulação literal da norma pelo uso da preposição «entre» – a expressar a ideia de uma situação definida pelos limites de 16 e de 30 anos – exprime a anunciada intencionalidade do seu âmbito: um regime de perdão de penas e de amnistia dirigida «especificamente» a «jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos». Idênticas formulações textuais se encontram, por exemplo, no Código Penal, na definição das idades das vítimas de crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável (artigo 172.º: «menor entre 14 e 18 anos»), de atos sexuais com adolescentes (artigo 173.º: «menor entre 14 e 16 anos»), ou de recurso à prostituição de menores (artigo 174.º: «menor entre 14 e 18 anos»).

Uma interpretação conforme aos critérios de interpretação (artigo 9.º do Código Civil), reconstituindo «o pensamento legislativo», adequadamente expresso com «correspondência verbal na letra da lei», tendo em conta «as circunstâncias em que a lei foi elaborada», conduz, pois, necessariamente à conclusão de que as pessoas que tenham completado 30 anos de idade em data anterior à da prática do facto não se compreendem no âmbito de aplicação subjetiva do perdão de penas estabelecido na Lei n.º 38-A/2023.

23. Assim sendo, se conclui que, tendo o recorrente a idade de 30 anos quando praticou os crimes de condução ilegal de veículo e estando os crimes de tráfico de estupefacientes excluídos do benefício do perdão, não lhe assiste razão, devendo o recurso ser, nesta parte, também julgado improcedente.

Quanto a custas

24. De acordo com o disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

III. Decisão

25. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 19 de fevereiro de 2025.

José Luís Lopes da Mota (relator)

José A. Vaz Carreto

António Augusto Manso

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1. Sobre estes pontos, que seguidamente se desenvolvem, na determinação do sentido e alcance do artigo 71.º do Código Penal, segue-se, em particular, como em acórdãos anteriores, Anabela M. Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678, em especial, e Figueiredo Dias, Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, pp. 232-357 – cfr., de entre muitos outros, o acórdão de 15.1.2019, Proc. 4123/16.6JAPRT.G1.S1, e, de entre os mais recentes, o acórdão de 25.9.2024, Proc. 3808/21.0JAPRT.S1, em www.dgsi.pt.

2. Assim, entre outros, os acórdãos de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1, de 26.06.2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt.

3. Salientando este ponto, entre muitos outros, o acórdão de 29.4.2020, Proc. 16/05.0GGVNG.S1, em www.dgsi.pt.