ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
REJEIÇÃO
Sumário

Deve ser rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação particular deduzida pelo assistente que não contenha a descrição clara e completa dos factos que preencham todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime cuja prática é imputada ao arguido, assim como a indicação das normas legais que punem o crime em causa.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1-Relatório

No processo nº 113/22.8GAVVC que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo de Competência Genérica de …, foi proferido despacho, datado de 14/06/2024, no qual se rejeitou a acusação particular deduzida pelo assistente CC contra os arguidos AA e BB, por manifestamente infundada, nos termos dos arts.º 283º, nº 3, 285º, nº 3 e 311º, nº 3, alínea d) do Cód. Proc. Penal.

Inconformado com esta decisão, veio o assistente interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões: “ I - O presente recurso tem por objeto a matéria de facto e de direito do despacho proferido nos presentes autos, no qual o tribunal ad quo, rejeitou a acusação particular, alegando que, “ nada se diz quanto à vontade da arguida em praticar aqueles factos com a consciência de que aquelas expressões são ofensivas da honra do assistente, nem quanto ao conhecimento da sua conduta – somente que quis aquele resultado “.

II –.Deste entendimento não partilha o Assistente, já que na acusação, além da narração dos factos, lugar, dia e hora, também no artigo 17º, o Assistente refere que, «… Conseguiram os arguidos com a sua conduta, molestar física e psicológicamente o assistente, diminuindo a sua autoestima e consideração».

III- E, no artigo 18º, « Os arguidos quiseram o resultado da sua conduta».

IV – Assim como, também, no artº 14º o Assistente refere que, « … sentiu-se e sente-se ainda hoje humilhado e ofendido na sua pessoa, honra, consideração e perssonalidade, sem nada poder fazer para além de pedir que seja feita justiça».

V – Analisando o sentido e significado das palavras contidas na acusação, nela se verifica que a palavra quiseram, é um verbo transitivo, significando, “ Ter a vontade ou intensão de” , enquanto que a palavra conseguiram, significa, “ chegar a um objetivo, ou chegar a um resultado”.

VI – Ligando as palavras e o sentido nelas contido, pode-se afirmar que, os arguidos, ao chamarem pedófilo ao Assistente, com aquela conduta ofensiva, “ tiveram a vontade ou intensão de lhe chamar pedófilo, assim como, chegaram ao objetivo ou ao resultado que foi, molestar psicológicamente o assistente, ferindo a sua honra consideração e personalidade” pois eles quiseram o resultado da sua conduta.

VII - A acusação particular foi acompanhada pelo Ministério Público.

VII - Não se concordando assim, que uma acusação, na qual são narrados os factos, seu decurso, dia, hora, local e a identificação das testemunhas que presenciaram os factos, seja rejeitada, pois entende que os elementos subjetivos estão contidos na acusação.

IX - Devendo assim, o despacho ora recorrido ser substituído por outro, que receba a acusação, sujeitando-a ao debate público e contraditório em julgamento, resolvendo-se oportunamente, e livremente, a questão de facto e a questão de direito, na sentença.

X - Até porque, é entendimento que a acusação deve ser devolvida ao Ministério Público, para que o Assistente ou o Ministério Público possa suprir a invocada deficiência e deduzir nova acusação, permitindo que a JUSTIÇA seja feita, sem prejuizo para o Assistente, que, com a continuação do despacho recorrido, acabaria por acontecer.

XI - Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido por violação do artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d) do Código de Processo Penal e consequentemente deverá ser substituído por outro que receba a acusação.

XII - Ou ainda assim, caso V. Exas., Veneranos Juizes Desembargadores, se entenda por forma diferente, deverá ser concedido prazo para (Ministério Público e Assistente) suprimirem as alegadas insuficiências através da dedução de novo libelo acusatório.”

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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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O Ministério Público apresentou resposta, defendendo que deve o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que receba a acusação particular, para o que formulou as seguintes conclusões:

“ 1. No âmbito dos presentes autos, em fase de Inquérito, por despacho datado de 29/02/2024, cfr. fls. 140 e 142, foi o Assistente CC notificado, para, querendo, deduzir acusação particular, por factos suscetíveis de integrar a prática de 1 (um) crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal, por parte de cada um dos arguidos AA e BB, nos termos do artigo 285.º do Código de Processo Penal.

2. O Assistente juntou aos autos a acusação particular que deduzira.

3. Por despacho datado de 14/06/2024, fls. 182 e ss., pronunciou-se a Mm.ª Juiz no sentido da nulidade da acusação particular, rejeitando-a, por manifestamente infundada, tudo nos termos dos artigos 283.º, n.º 3, 285.º, n.º 3, 122.º, 311.º, n.º 3, alínea d) e n.º 2, alínea a), todos do Código de Processo Penal.

4. Notificado de tal decisão, o Assistente, não se conformando com a mesma, dela interpôs recurso, no dia 17/07/2024 alegando, em síntese, que o elemento intelectual do tipo subjetivo está presente na acusação particular.

5. O Acórdão de Fixação de Jurisprudência invocado pela Mm.ª Juiz não se prende, pelo menos diretamente com a questão em apreço, conclusão defendida pelo relator Moreira das Neves, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05/12/2023, disponível em www.dgsi.pt, “Deveras, para bem se compreender a conclusão tirada nesse aresto uniformizador deverá atentar-se na globalidade da sua, aliás proficiente, fundamentação. Mormente no que se refere no § 6.º do seu ponto 10.2.3.1, sobre a consciência da ilicitude, ali se afirmando que ela se coloca no plano dogmático a um nível diferente da avaliação do dolo na realização do facto típico, porque tem a ver com a questão da relevância do erro sobre a ilicitude ou sobre a proibição. Acrescentando-se ainda que, não se tratando de caso em que se possa afastar a censurabilidade do ato, o facto praticado sem consciência da ilicitude é equiparável ao praticado com essa consciência. E para ilustrar essa exata ideia faz-se uma menção expressa à excelente síntese tirada noutro acórdão do mesmo Supremo Tribunal (7), no qual se faz luz sobre a controvérsia aqui instalada, na circunstância a propósito (dir-se-ia, enfaticamente) do crime de homicídio, do seguinte modo: «a consciência da ilicitude está implícita no conhecimento do próprio facto, sendo impensável que alguém, provido de razão, desconheça que a lei proíbe e pune o homicídio.» Ora, o mesmo se dirá (como já se afirmou supra), pela igualdade de razão, dos crimes aqui em referência. A acusação tem alguns outros defeitos (8) – que de resto o recorrente reconhece – mas não padece daquele que o despacho recorrido lhe assaca.”

6. O acórdão em causa, se nos é permitido sintetizar uma conclusão, consiste na impossibilidade de integrar, em sede de julgamento, a omissão (na acusação) dos elementos subjetivos, com recurso ao artigo 358.º do Código de Processo Penal. Porém, a questão nuclear do presente Recurso é a de saber se a acusação particular, redigida naqueles termos, deve ou não ser rejeitada.

7. Na acusação particular, constam os seguintes pontos:

Ponto 1.º - “No dia 18 de agosto de 2022, por cerca das 21H45 (…) a arguida (…) em … (…) começou a chamar-lhe [ao Assistente] “palhaço, pedófilo, vai para o caralho”.

Ponto 3.º – “…disse para a assistente (…) és um pedófilo; bruto”.

Ponto15.º - “Conseguiram os arguidos com a sua conduta, molestar psicologicamente o assistente, diminuindo a sua autoestima e consideração.”

Ponto 16.º - “Os arguidos quiseram o resultado da sua conduta”.

8. Os elementos objetivos de um tipo de ilícito constituem a materialidade do crime e emergem da descrição da ação empreendida ou omitida, produtora de uma modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos.

9. Por seu turno as dimensões do elemento subjetivo traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material. O dolo consiste no conhecimento e vontade de praticar o facto ilícito com consciência da sua censurabilidade.

10. Traduzindo o seu elemento intelectual a representação da realização do facto ilícito (a consciência psicológica, ou consciência intencional); e indicando o elemento volitivo a posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento, implicando uma decisão de vontade de realização do ilícito-típico (por via de ação ou da omissão do comportamento devido). Mas consciência e vontade não podem ser vistos isoladamente, pois, só se pode querer aquilo que se conhece.

11. Em geral o sentido da ilicitude do facto ressalta da realização da factualidade típica, agindo o agente com o dolo requerido pelo tipo. Nestes casos carecerá de sentido questionar se a atuação foi conscientemente, se o agente tinha pleno conhecimento da proibição e representou todas as circunstâncias do facto, querendo mesmo assim realizá-lo. Porque se não tinha essa consciência isso terá necessariamente de lhe ser censurável (exceto se a carga axiológica do ilícito o não exigir).

12. Não é manifestamente infundada a acusação na qual se não impute expressamente o conhecimento do caráter ilícito do comportamento quando este não seja axiologicamente neutro.”

13. Em alguns casos, a descrição da conduta, encerra em si, por parte do agente, o conhecimento (penal) da sua conduta, o conhecimento do carácter ilícito da conduta, o conhecimento dos elementos subjetivos da conduta. Não se afigura possível, perante a afirmação “...disse para o Assistente (…) és um pedófilo…”, defender, que o agente desconhece o carácter ilícito das expressões proferidas, e portanto o potencial lesivo da honra do visado. Se o agente chamou (apelidou) com o epíteto “pedófilo”, sabe, necessariamente, do carácter desonroso de tal expressão.

14. Convém, por fim recordar que nos encontramos perante o direito penal clássico, aquela área do direito penal que tipifica comportamentos que o membro da sociedade, devido à sua socialização, e aculturação, sabe necessariamente tratarem-se de comportamentos proibidos e punidos por lei penal.

15. De acordo com o disposto no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 19/06/2024, relatora Maria do Rosário Martins, disponível em www.dgsi.pt, “A consciência da ilicitude não é elemento constitutivo do tipo legal nos chamados crimes de direito penal clássico. Nos crimes de direito penal clássico não se mostra necessário fazer constar da acusação a expressão tabelar “o arguido sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei”

16. Na verdade, nos chamados crimes de direito penal clássico (também chamados de “crimes naturais” ou “crimes em si”), ou seja, nos crimes cuja existência se presume conhecida da normalidade dos cidadãos e aos quais se reporta o artigo

17º do CP, a consciência da ilicitude decorre da própria representação e vontade de praticar os factos que preenchem objectivamente o tipo penal. Nesses casos, como bem se compreende, inexiste necessidade de expressamente se articular na acusação e de autonomamente se provar em julgamento que o arguido estava consciente da ilicitude da sua conduta.”

17. Em suma, a acusação particular não foi executada de forma tecnicamente exímia. Faltam, literalmente, os elementos subjetivos do tipo de ilícito. Porém, e sem contrariar diretamente o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015, perante um exemplo do direito penal clássico, a descrição da ação humana, (nuclearmente falando, o agente dirigiu-se à vítima e proferiu a expressão…), viabiliza em tese uma acusação por crime de injúria, porque suficiente e adequadamente descritiva da conduta penalmente ilícita, axiologicamente carregada.

18. Assim, a acusação particular deduzida, ainda que com insuficiências, de uma perspetiva meramente literal, não deve ser rejeitada, com base nos artigos 283.º, n.º 3, 285.º, n.º 3, 122.º, 311.º, n.º 3, alínea d) e n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal.

19. Por tudo o exposto, deve o despacho recorrido ser revogado, e substituído por outro que receba a acusação particular.”

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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância.

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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.

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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.

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2 – Objecto do Recurso

Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, in Sumários do STJ, www.stj.pt).

A questão a decidir neste recurso consiste, assim, em saber se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que receba a acusação particular do assistente, por a mesma não ser manifestamente infundada.

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3- Fundamentação:

3.1. – Fundamentação de Facto

É a seguinte a decisão recorrida:

“(…) Questão prévia

Acusa o Ministério Público a arguida AA por factos suscetíveis de integrar a prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.

Por sua vez, o Assistente, CC, acusa particularmente a arguida AA e o arguido BB, por factos suscetíveis de integrar a prática, em autoria material, de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal – acusação esta acompanhada pelo Ministério Público a fls. 150v dos autos.

Aplica-se à acusação particular a disciplina legal da acusação deduzida pelo Ministério Público, ex vi do n.º 3 do artigo 285.º do Código de Processo Penal.

Nos elementos do tipo subjetivo de qualquer ilícito incluem-se os que se prendem com o dolo ou a negligência.

O dolo é composto por vários elementos, habitualmente designados de forma sintética como “o conhecimento e a vontade de realização do tipo objetivo de ilícito”.

Segundo a doutrina tradicional do crime, sufragada por Eduardo Correia, o dolo desdobra-se num elemento intelectual e num elemento volitivo ou emocional, ao passo que para uma nova corrente, defendida por Figueiredo Dias, este elemento emocional constitui um terceiro e autónomo elemento.

O Supremo Tribunal de Justiça, através do acórdão n.º 1/2015 (in Diário da República, 1ª Série, n.º 18, de 27 de janeiro de 2015), fixou jurisprudência no sentido de a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime não poder ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal, tendo, necessariamente, de ser alegados na acusação.

Quanto ao tipo subjetivo do crime de injúria, admite-se qualquer modalidade de dolo. Como supra se disse, o dolo consiste no conhecimento e na vontade de realização do facto típico, sendo então constituído por dois elementos: o elemento intelectual ou cognitivo (o arguido representa o facto típico) e o elemento volitivo (o arguido tem vontade de realizar o facto típico). No caso do crime de injúria, o elemento subjetivo traduz-se na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração de terceiro.

O dolo específico - animus injuriandi vel diffamandi - isto é, a intenção concreta de ofender determinada pessoa não integra o tipo subjetivo, enquanto parte do tipo de ilícito.

Compulsado o teor da “acusação particular e pedido de indemnização civil” de fls. 144 a 145v, constata-se que a única (breve) referência aos elementos subjetivos está nos factos 15.º e 16.º daquele articulado, que refere que “conseguiram os arguidos com a sua conduta molestar psicologicamente o assistente, diminuindo a sua autoestima e consideração” e “os arguidos quiseram o resultado da sua conduta”, verifica-se uma completa omissão em relação aos elemento intelectual ou cognitivo do tipo subjetivo. Nada se diz quanto à vontade da arguida em praticar aqueles factos com a consciência de que aquelas expressões são ofensivas da honra do assistente, nem quanto ao conhecimento da proibição da sua conduta – somente que quis aquele resultado.

Ora, as omissões assinaladas acarretam a nulidade da acusação particular, como prescreve o n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, igualmente aplicável à acusação particular por força do n.º 3, do artigo 285.º do mesmo diploma legal, o que, nos termos previstos no artigo 122.º do Código de Processo Penal, tem como consequência a invalidade dos atos em que a mesma se verifica, que não se mostram passíveis sanação, por a Lei a não prever.

E, neste caso específico, a lei determina que a consequência jurídica de os factos constantes numa acusação serem insuscetíveis de integrarem um crime, como aqui sucede (pois ainda que se provassem todos os factos articulados na acusação particular, os mesmos seriam insuficientes para condenar os arguidos pela prática daquele crime, uma vez que faltariam sempre parte dos elementos subjetivos, é a de tal acusação se ter de entender como manifestamente infundada (artigo 311.º, n.º 3, alínea d) do Código de Processo Penal).

Ora, uma acusação manifestamente infundada deve ser rejeitada, como impõe o n.º 2, alínea a) do artigo 311.º do Código de Processo Penal.

Por tudo quanto antecede, rejeita-se a acusação particular deduzida nos autos pelo Assistente CC contra os arguidos AA e BB.

Custas criminais a cargo do Assistente - cfr. artigo 515.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal - pelo mínimo legal, atenta a simplicidade.

Registe e notifique.(…)” *

3.2.- Mérito do recurso

Vem o presente recurso interposto da decisão do Tribunal a quo que rejeitou a acusação particular deduzida nestes autos pelo assistente, por a considerar manifestamente infundada, face à ausência de factos relativos ao elemento intelectual ou cognitivo do tipo subjetivo do crime de injúria, em conformidade com o disposto no art.º 311º, nº 3, alínea d) do Cód. Proc. Penal, com referência aos arts.º 285º, nº 3 e 283º, nº 3 do mesmo diploma.

Prevê-se no art.º 283º, nº 3 do Cód. Proc. Penal que:

“ 3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:

(…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;(…)

d) A indicação das disposições legais aplicáveis; (…)”.

Os requisitos legais relativos ao conteúdo da acusação pública são aplicáveis à acusação particular por remissão do art.º 285º, nº 3 do mesmo diploma.

Ora, em obediência aos princípios do acusatório e do contraditório que regem o processo penal, a acusação tem que conter a descrição clara e ordenada, ainda que sintética, de todos os factos susceptíveis de responsabilizarem criminalmente o arguido, ou seja, dos factos que preencham todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime e que permitam conduzir a uma decisão de condenação, assim como a indicação das normas legais incriminatórias, por forma a que não subsistam quaisquer dúvidas quanto ao tipo legal de crime cuja prática se imputa ao arguido.

É a acusação que delimita o thema probandum da fase processual seguinte, determinando o âmbito e o limite da intervenção do juiz em sede de instrução ou de julgamento.

A vinculação do Tribunal aos factos alegados na acusação decorre não só da estrutura acusatória do processo penal e das garantias de defesa do arguido, consagradas no art.º 32º, nºs 1 e 5 da CRP, mas funciona também como mecanismo de salvaguarda do arguido contra o alargamento arbitrário do objecto do processo, permitindo-lhe a preparação da defesa e o respeito do princípio do contraditório.

Relacionado com estas exigências está também o regime de nulidades previsto nos arts.º 309º, nº 1 e 379º, nº 1, alínea b) do Cód. Proc. Penal, os quais cominam com a nulidade a decisão instrutória “na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam uma alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução” e a sentença que “condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º”.

De tudo o exposto decorre que o legislador quis que a acusação contivesse todos os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, impondo que a mesma tenha o seu objecto definido de uma forma clara e suficientemente rigorosa, a fim de permitir ao acusado a organização da sua defesa.

No caso dos autos o assistente pretende imputar aos arguidos a prática de um crime de injúria.

Prevê-se no art.º 181º, nº 1 do Cód. Penal que:

“Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”.

O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra, enquanto bem jurídico complexo, no qual se inclui a reputação e o bom nome de que qualquer pessoa goza na comunidade, bem como a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social, decorrendo a tutela penal da honra directamente da dignidade da pessoa humana, prevista no art.º 1º da CRP, e merecendo tutela constitucional no art.º 26º também da CRP.

O crime de injúria é um crime de dano, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido, e de mera actividade, quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção.

O tipo objectivo inclui a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo, sempre dirigido ao ofendido.

O tipo subjectivo, por seu turno, admite qualquer modalidade de dolo, incluindo o dolo eventual.

( quanto à qualificação do crime, cf. Paulo Pinto de Albuquerque, in “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ”, 5ª edição atualizada, UCP, pág. 819 e 820 )

De acordo com o disposto no art.º 14º do Cód. Penal, o dolo pode assumir uma das seguintes modalidades:

“1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.

2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.

3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.”

Analisada a acusação particular deduzida nos autos, verifica-se que, relativamente a este crime, o assistente apenas refere que:

“1º No dia 18 de agosto de 2022, por cerca das 21H45, quando o assistente se encontrava a passear o seu cão na via pública em …, a arguida sem nada o prever, em tom de voz alterado, começou a dizer para o assistente que não necessitava de camaras para filmar e de imediato, sem nada o prever também, começou a chamar-lhe “palhaço; pedófilo; vai para o caralho" e, seguidamente chamou a sua filha.

3º Enquanto a filha da arguida foi buscar a vassoura, o arguido, que se encontrava na sua casa - que fica junto da casa da arguida - em tom de voz alterado, disse para o assistente " vai esperando que o teu dia está próximo; és um pedófilo; bruto; o que vens para aqui a fazer com o cão?

5º No entanto, devido a este episódio, o assistente ficou bastante nervoso e perplexo com a atitude dos arguidos.

12º O assistente que é um homem casado, pai de familia, tem uma filha de … anos de idade, ao ser apelidado de pedófilo, sentiu-se e sente-se ainda hoje, humilhado e ofendido na sua pessoa, honra, consideração e perssonalidade, sem nada poder fazer para além de pedir que seja feita justiça.

13º Desde essa data que o assistente se sente envergonhado carregando uma fama que não é proveniente da sua atitude diária e que o tem limitado em termos da sua vida social.

15º Conseguiram os arguidos com a sua conduta, molestar psicológicamente o assistente, diminuindo a sua autoestima e consideração.

16º Os arguidos quizeram o resultado da sua conduta.”

Ora, constata-se que falta na acusação em apreço a descrição de todos os factos idóneos ao preenchimento de todos os elementos subjectivos deste crime pelos arguidos, pois em lado nenhum é dito que ao proferirem determinadas expressões, ambos os arguidos sabiam que as mesmas eram lesivas da honra do assistente.

A ausência da descrição destes factos constitui motivo para a rejeição da acusação particular deduzida, conforme jurisprudência fixada pelo STJ no seu Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2015, publicado no D.R. nº 18/2015, Série I de 2015-01-27, nos seguintes termos: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»

Por outro lado, constata-se que o assistente também não indicou as normas legais que punem o crime cuja prática imputa aos arguidos, indicação esta que é imposta pelo art.º 283º, nº 3, alínea d) do Cód. Proc. Penal e que é imprescindível para a organização da defesa e para o exercício do contraditório.

Ora, não tendo sido articulados na acusação em apreço todos os factos necessários a uma eventual decisão de condenação, nem indicadas as normas incriminatórias, impõe-se concluir que o assistente não cumpriu o ónus previsto no art.º 283º, nº 3, alíneas b) e d) do Cód. Proc. Penal, aplicável por remissão do art.º 285º, nº 3, o que importa a rejeição da acusação particular, por manifestamente infundada, nos termos do art.º 311º, nºs 2, al. a), e 3, al. c) do mesmo diploma, não estando legalmente previsto qualquer convite ao aperfeiçoamento da acusação por parte do juiz de julgamento, como pretendido pelo recorrente.

Em face de tudo o exposto, verifica-se que a decisão recorrida não merece censura, não se considerando violados os preceitos legais invocados pelo recorrente, pelo que se impõe julgar improcedente o presente recurso.

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4 – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s.

Évora, 11 de Fevereiro de 2025

(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)

Carla Francisco

(Relatora)

Artur Vargues

Laura Goulart Maurício

(Adjuntos)