LICENÇA DE SAÍDA JURISDICIONAL
RECUSA
RECORRIBILIDADE DA DECISÃO
Sumário

Afastando a aplicabilidade do artigo 32.º da CRP, o parâmetro constitucionalmente relevante para a conformação do direito ao recurso de decisões judiciais proferidas em matéria de execução de penas deve, assim, ser o artigo 20.º da CRP, com o alcance que lhe vem sendo dado pela doutrina e pela jurisprudência, ou seja, o que releva como parâmetro é o entendimento segundo o qual deve garantir-se o direito ao recurso das decisões, incluindo judiciais, que, por si mesmas, sejam aptas a lesar diretamente direitos fundamentais.
E tal ocorre na decisão que aprecie o pedido de concessão de licença de saída jurisdicional, negando-a, traduzindo-se num distinto modo de execução da pena privativa da liberdade, ao não facultar o gozo da mesma em regime transitório de contacto com o exterior, de aproximação à concessão da liberdade condicional e de reforço dos laços sociais e familiares. Não esquecendo, de igual modo, que a decisão que conceda o gozo de licença jurisdicional se reflete na concessão de futuras licenças e na apreciação da liberdade condicional.
Entende-se, por isso, que o disposto nos arts. 235.º, n.º 1 e 196.º, n.º 2 do CEPMPL, na interpretação segundo a qual está vedado ao recluso recorrer da decisão que lhe negue a concessão da licença de saída jurisdicional que haja requerido padece de inconstitucionalidade material, por violação do art. 20.º da CRP.

Texto Integral

Acórdão deliberado em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – RELATÓRIO

No processo nº 1323/16.2TXLSB-T do Juízo de Execução das Penas de … (Juiz …), foi proferida decisão, em 11/09/2024, não concedendo a AA, melhor identificado nos autos, atualmente recluso no Estabelecimento Prisional de …, a licença de saída jurisdicional que o mesmo havia peticionado.

Inconformado, veio o recluso interpor recurso daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:

«1.ª Nos termos do n.º 2 do art. 76.º do CEPMPL, as licenças de saída jurisdicionais visam a manutenção e promoção dos laços familiares e sociais e a preparação para a vida em liberdade.

2.ª Assiste ao requerente o direito de requerer e obter licenças de saída jurisdicional uma vez que satisfaz os requisitos cumulativos prescritos no art. 79.º, n.º 2, da Lei n.º 115/2009, pois acha-se ininterruptamente preso desde 23.06.2016, isto é há quase 8 anos, tendo ultrapassado a fasquia dos 2/3 da pena; cumpre a execução da pena actualmente em regime aberto no exterior RAE), depois de ter cumprido em regime aberto no interior (RAI) e em regime comum; inexiste qualquer outro processo pendente contra o requerente, seja criminal ou disciplinar.

3.ª Além disso já beneficiou de 5 (cinco) licenças de saída jurisdicional, perfazendo 27 dias, e de 4 saídas de curta duração (12 dias) ao longo do longo período de reclusão que cumpre, tendo estado assim no exterior 39 dias tendo isso resultado de sucessivas avaliações positivas feitas pelos conselhos técnicos nos pareceres que foram sendo elaborados, conforme consta dos processos relativos a cada saída jurisdicional e que tramitaram no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, dando-se aqui por reproduzidos tais pareceres.

4.ª Paradigmático disso é a colocação do requerente em regime aberto ao exterior, o que, nos termos do art. 14.º, n. 8 do CEPMPL, resulta de uma decisão do director-geral dos Serviços Prisionais, submetida a homologação prévia pelo tribunal de execução das penas, nos termos do artigo 172.º-A.

5.ª Os pedidos formulados visaram satisfazer os propósitos do legislador, ou seja, a manutenção dos laços familiares e a preparação para a vida em liberdade, tendo optado por reiniciar a sua vida na …, terra de origem da sua progenitora e onde ainda tem familiares, e por ser um local distante do concelho de ….

6.ª Durante as saídas jurisdicionais o requerente ocupou-se da revalidação da carta de condução, que já obteve, na medida em que a habilitação com esse título constitui um instrumento indispensável para, em liberdade, desenvolver qualquer uma das actividades profissionais que integram a sua experiência profissional pregressa, assim como as que possa vir a desenvolver com base nas ferramentas que entretanto adquiriu no âmbito das acções de educação e formação profissional promovidas no estabelecimento prisional.

7.ª Falha-se o objectivo quanto ao processo de reinserção social se não se facultar ao requerente a oportunidade de preparar o desenvolvimento da sua vida em liberdade.

8.ª Por outro lado, compromete-se a manutenção e incremento das ligações familiares se se recusar ao requerente a possibilidade de conviver com a sua filha, genro e neto, e compadres, no espaço familiar.

9.ª O requerente não tem quaisquer antecedentes disciplinares e integrou-se em pleno no regime prisional, cumprindo todas as instruções, socializando com todos os funcionários e com os demais reclusos, e procurando colmatar alguns défices de ensino munindo-se de novas ferramentas profissionais no estabelecimento prisional da ….

10.ª O requerente satisfaz pois todos os requisitos exigíveis para que lhe seja concedida a licença de saída jurisdicional, à semelhança do que vinha sendo praticado.

11.ª Nenhuma alteração ocorreu no seu comportamento, nem foi alvo da mínima censura, nem tal é alegado na sentença.

12.ª E isso até ao momento em que foi transferido para o EP de ….

13.ª Nenhuma razão válida e actual existe que fundamente a recusa da licença, contrariamente ao decidido pela Mma. Juíza “a quo”.

14.ª O Conselho Técnico pronunciou-se por unanimidade favoravelmente à concessão da licença de saída jurisdicional.

15.ª Nos termos do art. 146.º, n. 1 do CEPMPL, “... os actos decisórios do juiz de execução das penas são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão...” – um preceito que está em consonância com a exigência consignada no art. 97.º, n. 5 do CPP.

16.ª Ora, a sentença não fundamenta minimamente a decisão, não bastando para tanto colocar uma cruzinha nos espaços vazios, como se se tratasse dos designados testes à americana, e exarar num dos espaços o seguinte: “Não revela consciência crítica sobre o crime; sequer percebendo a razão de desvalor do crime que se lhe imputa”.

17.ª Se é certo que esse foi o fundamento usado inicialmente para não conceder as licenças de saída ao requerente, todavia foi abandonado a partir de julho de 2022,pois passou a beneficiar de sucessivas autorizações de saídas jurisdicionais e de curta duração.

18.ª O requerente não reconhece os crimes que lhe são imputados, mas exprimiu a sua abominação em relação a tais cometimentos e frequentou o programa destinado às pessoas condenadas por esses crimes, sendo que, ultrapassados os 2/3 da pena, e atenta a idade do recluso e ao apoio familiar, estão mitigados os riscos de qualquer reincidência.

19.ª Perante o patamar de evolução do requerente, o tribunal estava vinculado a justificar a alteração do critério, identificando qual o facto superveniente que determinou essa alteração.

20.ª Mas a verdade é que a sentença não apresenta qualquer fundamento, limitando-se a juízos conclusivos; nada motiva; nenhum exame crítico faz aos elementos do processo e nada aduz em justificação das razões que levaram a alterar os critérios anteriormente fixados e que avaliavam positivamente a conduta do requerente e anotavam como positivas todas as saídas de que beneficiou.

21.ª Verifica-se pois uma falta de exame crítico das provas existentes e uma omissão de pronúncia, além de uma falta de fundamentação.

22.ª Além disso depois de todas as saídas positivas que a ficha biográfica do requerente regista e que aqui se dá por integralmente reproduzida, e do parecer favorável e por unanimidade do Conselho Técnico, concluir-se em suma por uma evolução negativa da execução da medida privativa da liberdade e que tal não permite uma fundada expectativa de que o recluso se comporte, em liberdade, de modo socialmente responsável, é do mesmo modo uma rematada contradição entre a decisão e os fundamentos.

23.ª Além das nulidades suscitadas, a sentença do tribunal “a quo” viola a lei.

24.ª Viola o art. 79.º/2 do CEPMPL, na medida em que preenchendo o requerente os requisitos cumulativos nele prescritos, o que determinou a concessão de saídas anteriores, o tribunal ignorou, sem fundamento, a previsão e a teleologia dessa disposição.

25.ª Viola também o disposto nos arts. 40.º e 42.º/1 do CP (e o art. 76.º/2 do CEPMPL, que caminha no mesmo sentido) que estatui que a execução da pena de prisão deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo responsável.

26.ª E viola garantias fundamentais insertas na Constituição da República Portuguesa, designadamente o art. 27.º, n. 1, uma vez que sendo a pena de prisão uma restrição a um direito fundamental, essa restrição deve operar segundo os princípios da necessidade, da proibição do excesso ou o da proporcionalidade, valores que a sentença sob censura sacrifica.»

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Rejeitada a admissão do recurso pelo TEP, veio aquele a ser admitido, na sequência de decisão do Senhor Vice-Presidente deste Tribunal, de 8/11/2024, na reclamação apresentada, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

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O Ministério Público apresentou resposta, pugnando pela rejeição do recurso, concluindo:

«1 – A decisão recorrida não é subsumível a nenhuma das situações previstas no artigo 335 º n ºs 1 e 2 do CEPMPL, pelo que o recurso interposto pelo recluso da decisão judicial de 11-9-2024 que não lhe concedeu uma licença de saída jurisdicional, não é legalmente admissível.

2 – O artigo 196 º n º 2 do CEPMPL, ao não permitir ao recluso não recorrer de tal decisão, não é materialmente inconstitucional, não violando nem o princípio da igualdade nem o princípio do segundo grau de jurisdição, porquanto não estamos já no âmbito de um processo criminal mas sim de um processo de execução da pena.

3 – Caso assim não se entenda, sempre se dirá que o recurso não merece provimento.

4 – O recluso AA cumpre a pena única de 10 anos e 6 meses de prisão, que lhe foi aplicada no processo n º 1113/16.2… da Instância Central Criminal de … (J…), pela prática de treze crimes de abuso sexual de criança agravado.

5 – Tendo o mencionado recluso requerido em setembro de 2024 uma licença de saída jurisdicional, esta não lhe foi concedida.

6 – A decisão judicial denegatória baseou-se no facto do condenado não apresentar consciência crítica relativamente à prática dos crimes e suas consequências.

7 – Atentas as circunstâncias dos ilícitos criminais praticados e bem assim a indiferença ou ausência de consciência crítica manifestada pelo recorrente, tem de concluir-se por uma dúvida séria quanto à expectativa de que este se comporte de modo socialmente responsável e normativo durante o gozo da licença, sendo a sua concessão também incompatível com a defesa da ordem jurídica.

8 – Pelo que não se encontra preenchida a previsão normativa do artigo 78 º n º 1 als. a) e b) do CEPMPL.

9 – A decisão recorrida assenta num prognóstico fundado numa adequada consideração dos factos ilícitos e seu circunstancialismo e numa correcta valoração do seu significado à luz das regras da experiência comum, tudo perspectivado no âmbito do princípio da livre apreciação da prova.

10 – A mesma decisão mostra-se devidamente fundamentada, dela constando de forma sintética a razão objectiva e racional pela qual a licença de saída jurisdicional foi negada, encontrando-se assim assegurada a eventual sindicância da sua legalidade e do seu mérito.»

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Nesta Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, sustentado que «…parece resultar que o legislador não quis prever a possibilidade, para o recluso, de recorrer, para o Tribunal da Relação, da decisão que recusasse a concessão da licença de saída jurisdicional, mas apenas previu tal possibilidade para o Ministério Público, dando seguimento à mesma preocupação de permitir, a esta magistratura, intervir, em caso de necessidade, em defesa da legalidade.

Ao contrário, por exemplo, do que decidiu em matéria de concessão ou revogação de liberdade condicional, em que previu a possibilidade de recurso por parte do recluso (cfr. arts. 179.º, n.º 2 e 186.º, n.ºs 1 e 2 do CEP).

Assim sendo pode-se, legitimamente, concluir que a decisão de rejeição da pretensão do recluso, de concessão de licença de saída jurisdicional, tomada por um magistrado judicial (o juiz de execução de penas, que goza das devidas características de independência e imparcialidade), se afigura irrecorrível – artigo 235.º, n.º 1, do CEP2.

Não obstante, o Tribunal Constitucional perante questão essencialmente idêntica, pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade das referidas normas legais.

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Porém, sempre se dirá, no nosso modesto parecer que a licença de saída jurisdicional não comporta alteração substancial do estatuto jurídico do recluso e não assume a natureza de “incidente da execução”, no sentido restrito e técnico de lhe cabe, isto é, de questão que tem como objeto “dúvidas de caráter contencioso acerca da interpretação, aplicação ou eficácia da sentença condenatória” (cfr. Beleza dos Santos, Os Tribunais de Execução das Penas em Portugal, B.F.U.C., Separata, 1953, p. 12).

Nesta conformidade, a saída jurisdicional, pela sua condição transitória e duração de dias – não colide, em circunstância alguma, com o estatuto jurídico penal do visado que se mantém, na sua génese, inalterado.

Pode, desta forma concluir-se como resulta do Ac. do T.C. 560/2014 de 15.07.2014, relator Fernando Vaz Ventura, “Em suma, não se encontra na decisão judicial denegatória da sua saída por um período de dias do estabelecimento prisional em que o condenado se encontre a cumprir reação criminal privativa da liberdade, cujo recurso é regulado pela normação questionada, afetação do bem jurídico essencial que é o direito à liberdade, em termos de fundar a imposição constitucional do direito ao recurso por parte do recluso…”.

Na esteira do atrás referido sempre se dirá que a licença de saída jurisdicional não comporta nem afecta uma alteração substancial do estatuto jurídico do arguido / recluso, trata-se de uma “etapa”, no processo progressivo de preparação para a (almejada) liberdade.

Como decorre da lei, obedecendo a diversos pressupostos.

Vale isto por dizer que tendo em atenção o seu carácter transitório e delimitado no tempo não carece a decisão judicial de ser profusamente sustentada.

Compreende-se a “resistência” intelectual e não só a uma sentença escrita baseada no preenchimento de “cruzes” que, de facto, é exígua nos fundamentos.

Porém, vislumbra-se e cumpre-se, pelo mínimo, a lei aplicável.

Com efeito, tendo em atenção o tipo de crime praticado (abuso sexual de criança agravado), a apontada “falta de consciência crítica relativamente à prática dos crimes e as suas consequências”, apresenta-se, de “per si”, com um obstáculo de monta à concessão da pretendida “licença de saída jurisdicional”.

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Nesta conformidade, somos de parecer que não deve ser dado provimento ao recurso apresentado pelo arguido / recluso AA e manter a douta sentença proferida.»

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Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo o recorrente apresentado resposta, reiterando, em síntese, a posição já sustentada nas alegações, acrescentando: « 7 (…) em primeiro lugar, ao confirmar que o iter prisional é uma etapa de preparação para a liberdade, reconhece razão ao recorrente, porquanto depois de todas as etapas anteriores superadas, não é aceitável, e muito menos sem a adução de qualquer fundamento, que a pouco tempo dos 5/6 da pena cumprida se anula essa reta final do período preparatório; em segundo lugar, que se justifica plenamente o Acórdão que declarou inconstitucionais as normas recursivas, porque se os reclusos estiverem dependentes da reacção do MP em relação a qualquer recusa de saída jurisdicional, poderão continuar a “gozar” inalteradamente o seu estatuto de reclusão, privados de direitos preparatórios para a liberdade. 8. Posições desta natureza justificam plenamente as inconstitucionalidades declaradas, porque, indefeso, só o arguido pode reagir a decisões que profundamente afectam a sua dignidade e o projeto da sua reintegração.»

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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.

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II – OBJETO DO RECURSO

Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (artigos 403.º, 410.º e 412.º, nº 1, do Código de Processo Penal e AUJ de 19/10/1995, D.R. 28/12/1995)

No caso, está em questão:

- A recorribilidade da decisão que não concedeu ao recorrente a licença de saída jurisdicional;

- Vícios da decisão;

- A verificação dos pressupostos para a concessão da licença de saída jurisdicional ao recorrente.

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III – FUNDAMENTAÇÃO

A) DA RECORRIBILIDADE DA DECISÃO

O Ministério Público (junto do Tribunal de Execução de Penas de … e junto desta Relação) sustentam a irrecorribilidade da decisão que denega a concessão da licença de saída jurisdicional solicitada pelo recorrente.

Está em causa o disposto nas seguintes normas do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), com a seguinte redação:

Artigo 235.º

Decisões recorríveis

1 - Das decisões do tribunal de execução das penas cabe recurso para a Relação nos casos expressamente previstos na lei.

2 - São ainda recorríveis as seguintes decisões do tribunal de execução das penas:

a) Extinção da pena e da medida de segurança privativas da liberdade;

b) Concessão, recusa e revogação do cancelamento provisório do registo criminal;

c) As proferidas em processo supletivo.

Artigo 196.º

Recurso

1 - O Ministério Público pode recorrer da decisão que conceda, recuse ou revogue a licença de saída jurisdicional.

2 - O recluso apenas pode recorrer da decisão que revogue a licença de saída jurisdicional.

3 - O recurso interposto da decisão que conceda ou revogue a licença de saída jurisdicional tem efeito suspensivo.

Em matéria de execução de penas, a opção legislativa arreda a recorribilidade regra, que orienta o processo penal declarativo, tendo fixado um regime específico no que concerne à recorribilidade das decisões proferidas no processo de licença de saída jurisdicional.

A concessão da licença de saída jurisdicional tem sido entendida como um incidente da fase de execução da pena, cuja concessão depende de pedido do recluso (arts. 76.º, n.º 2, 79.º, 189.º do CEPMPL), tendo por escopo a manutenção e promoção dos laços familiares e sociais e a preparação para a vida em liberdade.

O período de saída é considerado tempo de execução da pena, exceto se a respetiva licença for revogada (art. 77.º do CEPMPL).

Os requisitos para a concessão de licenças de saída vêm enunciados no art. 78.º, do CEPMPL:

- fundada expetativa de que o recluso se comportará de modo socialmente responsável, sem cometer crimes;

- compatibilidade da saída com a defesa da ordem e da paz social, e

- fundada expetativa de que o recluso não se subtrairá à execução da pena ou medida privativa da liberdade.

Ponderam-se, na concessão de licenças, que podem ficar sujeitas a condições adequadas ao caso:

- A evolução da execução da pena ou medida privativa da liberdade;

- As necessidades de proteção da vítima;

- O ambiente social ou familiar em que o recluso se vai integrar;

- As circunstâncias do caso; e

- os antecedentes conhecidos da vida do recluso.

As licenças de saída jurisdicional podem ser concedidas quando cumulativamente se verifique (art. 79.º CEPMPL):

- O cumprimento de um sexto da pena e no mínimo seis meses, tratando-se de pena não superior a cinco anos, ou o cumprimento de um quarto da pena, tratando de pena superior a cinco anos;

- A execução da pena em regime aberto ou comum;

- A inexistência de outro processo pendente em que esteja determinada prisão preventiva;

- A inexistência de evasão, ausência ilegítima ou revogação da liberdade condicional nos 12 meses que antecederem o pedido.

Cada licença não pode ultrapassar o limite máximo de cinco ou sete dias seguidos, consoante a execução da pena decorra em regime comum ou aberto, a gozar de quatro em quatro meses.

Em caso de não concessão de licença de saída jurisdicional ou de curta duração (estas da competência do diretor do estabelecimento prisional), o recluso não pode apresentar novo pedido antes de decorridos quatro ou três meses, respetivamente, a contar da respetiva decisão e salvo se esta fixar prazo inferior.

Entendeu-se, para arredar a admissibilidade de recurso por parte do recluso no caso de não concessão da licença de saída jurisdicional, não estarmos perante um direito subjetivo daquele1. Este direito apenas se constituiria com a concessão da licença, motivo pelo qual se justifica a concessão da faculdade de recorrer da decisão de revogação da licença anteriormente concedida.

Refere-se, ainda, não comportar a concessão da licença de saída jurisdicional uma alteração substancial do estatuto jurídico do recluso, traduzindo apenas uma pontual interrupção da privação da liberdade pelo contacto com o ambiente externo.

A saída jurisdicional, pela sua condição transitória e período limitado de duração – é insuscetível de fundar por si só um novo sentido de orientação social –, não extravasa a condição de medida de flexibilização do cumprimento da pena privativa da liberdade, que se reconduz à compatibilização da modelação da vida do recluso em ambiente prisional com a manutenção e promoção dos laços familiares e sociais e à sua preparação para conduzir a vida em ambiente livre de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.

E mais se tem justificado a faculdade de recorrer da decisão que não concede a licença de saída jurisdicional apenas ao Ministério Público pela competência atribuída a esta magistratura de defesa da legalidade.

Por estas razões, o Tribunal Constitucional (TC), no Acórdão n.º 560/2014, decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 196.º, n.os 1 e 2, do CEPMPL, aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro, na medida em que confere ao Ministério Público a possibilidade de recorrer da decisão que conceda, recuse ou revogue a licença de saída jurisdicional, enquanto o recluso apenas pode recorrer da decisão que revogue a licença de saída jurisdicional.

Está em causa à exata qualificação dos processos de execução das penas, para o efeito da sua subsunção na noção de “processo criminal utilizada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição”, entendendo então o TC que a normação relativa à licença de saída jurisdicional não reveste as características de regulamentação diretamente atinente à realização concreta da reação criminal, que encontre inscrição nas garantias de defesa em processo criminal asseguradas pela Constituição (artigo 32.º, n.º1, da Constituição), ainda que estas também não exijam necessariamente a possibilidade de impugnação de toda e qualquer decisão proferida ao longo do processo.

Também não encontrou o TC, na decisão judicial denegatória da sua saída por um período de dias do estabelecimento prisional em que o condenado se encontre a cumprir reação criminal privativa da liberdade, afetação do bem jurídico essencial que é o direito à liberdade (art. 27.º da CRP), de modo a impor o direito ao recurso por parte do recluso.

Considerou, ainda, que o recluso não beneficia de um direito generalizado ao recurso, nem a norma questionada respeita a decisão judicial que comporte direta restrição do direito à liberdade, dela não resultando restrição jusfundamental relativamente à qual caiba apreciar a sua conformidade com o princípio da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2 da Constituição).

Arredou, por último, a violação do princípio da igualdade (art. 13.º da CRP) ou da garantia de um processo equitativo (art. 20.º da CRP), na senda da jurisprudência constitucional de que estes princípios não proíbem em absoluto toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as diferenciações (e a sua medida) materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional.

O legislador do CEPMPL conformou o sistema de recursos em termos díspares quanto ao Ministério Público e quanto ao recluso. Por regra, sempre que a decisão jurisdicional admite recurso – o que, de acordo com o disposto no artigo 235.º do CEP, carece de previsão legal expressa – o Ministério Público dispõe de legitimidade para o interpor, mas nem sempre ao recluso assiste idêntica faculdade. É o caso da impugnação perante o Tribunal da Relação da decisão do juiz do Tribunal de Execução das Penas em matéria de saída jurisdicional, pois o Ministério Público pode recorrer da decisão seja qual for o respetivo sentido – concessão, recusa ou revogação – enquanto o recluso apenas tem ao seu dispor a impugnação deste último sentido decisório.

Mas concluiu, então, o TC que o legislador ordinário não vulnerou o princípio da igualdade nesta concreta conformação legal, na medida em que o Ministério Público não tem um estatuto de “parte” na execução de penas e medidas privativa das liberdade, devendo orientar-se pela defesa da legalidade, referindo «Nos termos do artigo 134.º do CEP, ao Ministério Público cabe acompanhar e verificar a legalidade da execução das penas e medidas privativas da liberdade, para o que dispõe de um conjunto de competências, elencadas no artigo 141.º, entre as quais funções alargadas de vigilância da legalidade das decisões dos serviços prisionais (al. b)) e as de recorrer das decisões do tribunal de execução das penas (al. c)).

A possibilidade de o Ministério Público recorrer amplamente de decisões em matéria de saída jurisdicional carece de ser compreendida neste contexto. Por um lado, o legislador configurou o sistema de recursos no domínio da execução das penas e medidas privativas de modo a reservar as vias de recurso para os Tribunais da Relação às decisões que, pelo seu grau de afetação, considerou merecedoras de reapreciação, de forma a racionalizar o âmbito de intervenção dos tribunais de recurso e evitar o respetivo congestionamento. Mas, por outro, no exercício da sua liberdade de conformação, o legislador optou por conferir apenas ao Ministério Público – vinculado por um poder-dever de promoção – legitimidade para suscitar o controle da legalidade das decisões negativas, agindo aí em benefício da pretensão do recluso, encontrando em tais poderes de intervenção adstritos a regras estritas um ponto de equilíbrio, capaz de, a um tempo, assegurar adequada tutela dos direitos dos reclusos e prevenir o afluxo excessivo de recursos em matéria de saídas jurisdicionais (cfr. A Reinserção Social dos Reclusos. Um contributo para o Debate sobre a Reforma do Sistema Prisional, Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, 2003, pp. 285-292, denotando o elevado número de pedidos formulados e objeto de apreciação jurisdicional, ainda que no regime anterior ao CEP). Ou seja, entre a radical proibição do recurso das decisões judiciais que neguem ao recluso a pretensão de saída e a irrestrita possibilidade de impugnação por parte dos sujeitos da relação processual de execução quanto a tais decisões, o legislador escolheu uma via intermédia, reputada capaz de assegurar a reponderação das decisões negativas por tribunal distinto e superior nos casos em que tal se justifique: confiou essa iniciativa a órgão de justiça dotado de autonomia, constitucionalmente vinculado pelo princípio da legalidade (artigo 219.º, n.º 1, da Constituição), designadamente, face ao artigo 2.º do CEP, a promover a socialização do recluso durante a execução das penas privativas da liberdade.»

Em suma, decidiu então o TC por um juízo de não inconstitucionalidade2 considerando que a apontada diferenciação opera entre sujeitos que não se encontram em posições comparáveis e não se pode considerar desrazoável, nem desproporcionada, face às finalidades que persegue. Mas esta decisão não foi tomada por unanimidade, tendo o Conselheiro Pedro Machete lavrado voto de vencido, onde, em apertada síntese, sustenta que a licença de saída jurisdicional «tem uma conexão tal com o bem jurídico liberdade, em especial com a liberdade física ou liberdade de movimentos, que a eventual ilegalidade (material) da sua recusa deve poder ser sindicada junto de um outro tribunal, conforme decorre do entendimento jurisprudencial firmado a partir do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 40/2008: o direito de acesso aos tribunais consignado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição garante o direito à impugnação judicial de atos dos tribunais – o direito ao recurso – nos casos em que a respetiva atuação, por si mesma, e de forma direta, lesa direitos fundamentais de um cidadão, mesmo fora da área penal (…)Como justamente se refere no artigo 30.º, n.º 5, da Constituição, “os condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurança privativas da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respetiva execução”. Ora, a licença de saída jurisdicional, à semelhança da liberdade condicional e de outras medidas aplicáveis no âmbito da execução da pena de prisão, constitui um «limite aos limites» próprios da execução da pena de prisão, para mais justificado pela ideia de ressocialização que a própria pena de prisão também serve (cfr. os artigos 2.º, n.º 1, e 76.º, n.º 2, do CEP). E tal «limite ao limite» traduz-se no reconhecimento, ainda que condicionado e temporário, de um «tempo de liberdade» que coexiste com o tempo de execução da pena de prisão (sendo inclusivamente aquele tempo computado neste último – cfr. o artigo 77.º, n.º 1, do CEP). Com efeito, o recluso que se encontre no gozo de licença de saída jurisdicional é um cidadão que, ressalvadas as restrições próprias e específicas decorrentes do gozo de tal licença, é titular dos demais direitos fundamentais, como qualquer outro cidadão. Acresce, reforçando a importância da lesividade da recusa de licença de saída jurisdicional, que o gozo prévio com êxito deste tipo de licença constitui o pressuposto da concessão de licenças (administrativas) de saída de curta duração e da colocação do recluso em regime aberto no exterior (cfr., respetivamente, o artigo 80.º, n.º 1, alínea b), e o artigo 14.º, n.º 4, ambos do CEP). (…) A pretensão dirigida à licença corresponde, por isso, inequivocamente, a um interesse legalmente protegido do recluso. Num quadro legal em que só são recorríveis as decisões do tribunal de execução de penas nos casos expressamente previstos na lei (cfr. o artigo 235.º, n.º 1, do CEP), é significativo que o legislador tenha reconhecido a recorribilidade da decisão que recuse a licença de saída jurisdicional (cfr. o artigo 196.º, n.º 1, do CEP). A recorribilidade em apreço evidencia a importância de tal decisão para os interesses legalmente tutelados, ao mesmo tempo que garante a adequação da tutela jurisdicional neste domínio. Ou seja, ao admitir o recurso da decisão de recusa de concessão de licença de saída jurisdicional, é o próprio legislador que reconhece a insuficiência – e, portanto, a inadequação – da tutela conferida apenas pela decisão proferida pelo tribunal de execução de penas.

A mesma decisão de recusa é claramente proferida contra o recluso-requerente. Mas este, por força do artigo 196.º, n.º 2, do CEP, está impossibilitado de, por si próprio, agir na defesa dos seus interesses, vendo-se remetido para o Ministério Público que, depois, poderá – ou não – agir no interesse da lei protetora do interesse do recluso. Este reencaminhamento da tutela dos interesses do recluso-requerente para o Ministério Público constitui uma menorização do primeiro incompatível com a sua dignidade, enquanto sujeito de direitos fundamentais, que, por outro lado, não encontra justificação nas limitações próprias do respetivo estatuto (cfr. os artigos 1.º, 20.º, n.º 1, e 30.º, n.º 5, todos da Constituição).

Em suma: abstraindo ad argumentandum tantum das considerações sobre a lesividade específica da recusa de licença de saída jurisdicional mencionadas supra em A), poderia o legislador ter considerado adequada a tutela jurisdicional conferida neste domínio pela decisão do tribunal de execução de penas. Contudo, a partir do momento em que a lei prevê a possibilidade de recurso da decisão de recusa de licença de saída jurisdicional – e, desse modo, a insuficiência e inadequação da tutela jurisdicional conferida pela mesma decisão aos interesses em causa –, não é constitucionalmente admissível impedir o principal interessado de recorrer. Aliás, tal impedimento configura uma denegação do direito de tutela jurisdicional adequada dos seus interesses legalmente protegidos.»

E a maioria que se tem vindo a formar no Tribunal Constitucional vai neste sentido, invertendo posição anterior3.

Quer no Acórdão n.º 652/2023, quer no Ac. 598/20244, este proferido em recurso interposto pelo aqui recorrente e em apenso deste mesmo processo, o TC julgou inconstitucional a norma contida nos artigos 196.º, ns. 1 e 2, e 235.º, n.º 1, do CEPMPL, interpretados no sentido da irrecorribilidade da decisão que não conceda a licença de saída jurisdicional.

Na primeira situação estava em causa despacho liminar que determinou que os autos aguardassem a estabilização da situação prisional do recluso5, ao passo que no segundo está em causa decisão idêntica à proferida nos presentes autos, que denegou a concessão da licença de saída jurisdicional.

Refere agora o TC, que a circunstância de a liberdade condicional e a adaptação à liberdade condicional interferirem mais intensamente com o direito à liberdade não significa que a menor interferência verificada no caso da licença de saída jurisdicional não merece certo grau de tutela. Haverá, designadamente, que ponderar que, como sublinha Inês Horta Pinto (ob. cit.6, pp. 309/310):

“[…]A solução legislativa [do artigo 196.º do CEPMPL] é, todavia, questionável, do ponto de vista da tutela jurisdicional efetiva, na medida em que, ainda que não se trate de decisão que atinja diretamente o direito à liberdade, pelas razões aduzidas pelo Tribunal, não deixa de se refletir negativamente, sob vários prismas, na esfera do condenado: primeiramente, pelo próprio não gozo da saída (já que esta, embora sendo um instituto funcionalizado ao processo de socialização, representa para o indivíduo uma lufada de liberdade e um contacto com a família livre das restrições prisionais); depois, por a concessão de licença de saída jurisdicional constituir pressuposto para a aplicação de outros regimes favoráveis ao recluso, como é o caso das licenças de saída administrativas de curta duração ou do regime aberto no exterior.

Com efeito, não pode deixar-se de reconhecer que o recluso tem um interesse juridicamente protegido na concessão da licença (compete-lhe até, em exclusivo, a iniciativa de a requerer) e que uma recusa ilegal – seja por vícios materiais, como o desvio de poder (a lei proíbe, por exemplo, que a recusa de saída funcione como medida disciplinar – artigo 77.º, n.º 3, do CEP), o erro sobre os pressupostos de facto ou a violação de princípios constitucionais, seja por vícios formais, como a falta ou deficiência de fundamentação – é lesiva desse interesse, pelo que o recluso deve poder aceder a um tribunal para obter tutela. Existe, aliás, jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que aponta no sentido da exigência da possibilidade de impugnar uma decisão que negue um pedido de saída, quando este estiver relacionado com o exercício de algum direito da Convenção.[…]”.

E, na verdade, na esteira daquele que já é entendimento maioritário junto do TC entendemos não ser «aceitável, à luz do direito constitucional à tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 20.º da Constituição, que uma decisão que interfere diretamente com a (possibilidade de) liberdade do recluso (…) – e embora não tanto como as que se relacionam com a liberdade condicional), dependente de pressupostos objetivos que um tribunal superior pode controlar, conheça apenas um grau de jurisdição por impulso do recluso, menos ainda quando a lei prevê o acesso a um segundo grau de jurisdição pelo Ministério Público, que, embora esteja vinculado a critérios de legalidade, não é o principal afetado pela decisão que nega a concessão da licença.».

Em suma, afastando a aplicabilidade do artigo 32.º da CRP, o parâmetro constitucionalmente relevante para a conformação do direito ao recurso de decisões judiciais proferidas em matéria de execução de penas deve, assim, ser o artigo 20.º da CRP, com o alcance que lhe vem sendo dado pela doutrina e pela jurisprudência, ou seja, o que releva como parâmetro é o entendimento segundo o qual deve garantir-se o direito ao recurso das decisões, incluindo judiciais, que, por si mesmas, sejam aptas a lesar diretamente direitos fundamentais.

E tal ocorre na decisão que aprecie o pedido de concessão de licença de saída jurisdicional, negando-a, traduzindo-se num distinto modo de execução da pena privativa da liberdade, ao não facultar o gozo da mesma em regime transitório de contacto com o exterior, de aproximação à concessão da liberdade condicional e de reforço dos laços sociais e familiares. Não esquecendo, de igual modo, que a decisão que conceda o gozo de licença jurisdicional se reflete na concessão de futuras licenças e na apreciação da liberdade condicional.

Entendemos, por isso, que o disposto nos arts. 235.º, n.º 1 e 196.º, n.º 2 do CEPMPL, na interpretação segundo a qual está vedado ao recluso recorrer da decisão que lhe negou a concessão da licença de saída jurisdicional que havia requerido padece de inconstitucionalidade material, por violação do art. 20.º da CRP, admitindo-se, assim o recurso interposto, passando a conhecer das razões invocadas.

B) VÍCIOS DA DECISÃO

Refere o recorrente padecer a decisão recorrida de nulidade, não resultando da mesma a razão pela qual foi recusada a licença de saída jurisdicional, limitando-se a juízos conclusivos, omitindo qualquer exame crítico dos elementos do processo e não justificando a alteração dos critérios que avaliaram positivamente a conduta do recorrente e anotavam como positivas todas as saídas de que beneficiou.

O recorrente beneficiou de cinco licenças de saídas jurisdicionais, concedidas pelo Tribunal de Execução de Penas de …, ao que tudo indica, com avaliação positiva. Encontra-se atualmente em regime aberto ao exterior, satisfazendo todos os requisitos para lhe ser concedida a peticionada licença.

O tribunal estava vinculado a justificar a alteração do critério, indicando qual o facto superveniente que determinou a alteração, pois que agora, como anteriormente, o recluso não reconhece a prática dos crimes que lhe são imputados, mas exprimiu a sua abominação a tais cometimentos e frequentou o programa específico destinado a condenados pela prática de crimes sexuais.

Apreciando o requerido, adiantamos desde já que, em nosso entender e na essência dos fundamentos invocados, assiste razão ao recorrente, pois que dispõe o art. 146.º, n.º 1 do CEPMPL que os atos decisórios do juiz de execução de penas são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

O dever de fundamentação tem consagração constitucional (art. 205.º) e respaldo legal, nomeadamente no art. 97.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, impondo-se também ao Juiz do Tribunal de Execução de Penas.

A fundamentação de um ato decisório deve estar convenientemente expressa no respetivo texto, de modo a que os destinatários percebam cabalmente o seu sentido e as razões, de facto e de direito, que lhe subjazem. Apresenta-se como garantia dos sistemas democráticos, constituindo um meio de autocontrolo, obrigando à devida ponderação dos motivos que determinam a decisão e, assim, permitindo o controlo da legalidade do ato. Tem também o escopo de convencer os destinatários, bem como os cidadãos em geral, da respetiva correção e justiça.

Analisando a decisão proferida nos presentes autos, verificamos que a mesma tem a epígrafe de “sentença”, obedecendo a um modelo previamente elaborado de escolha múltipla. Encontra-se manuscrito o número do processo e o nome do recluso, assinalando-se uma cruz quanto ao parecer favorável, por unanimidade, do Conselho Técnico e desfavorável do Ministério Público. Mais se sinaliza que desde a última apreciação da situação do recluso se mantêm os pressupostos que fundamentaram a decisão então proferida e que “Não revela consciência crítica sobre o crime, sequer percebendo a razão do desvalor do crime que se lhe imputa”. Termina, referindo que estes aspetos não permitem concluir por uma fundada expetativa de que o recluso se comporte, em liberdade, de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, motivo pelo qual não concede a requerida licença jurisdicional.

É apenas isto!

Ora, para além da resistência intelectual a uma decisão que obedeça a este esquema de escolha múltipla, como refere o Digno Procurador-Adjunto, para mais quando os meios informáticos permitem a elaboração célere de decisões, a verdade é que nenhuma referência é feita a factos, nomeadamente os que contendem com a execução da pena do recluso, que nos permitam de todo concluir que a circunstância de o arguido não admitir a prática dos factos (único motivo objetivo que se pode retirar da decisão) seja de molde a arredar os requisitos e critérios gerais enunciados no art. 78.º do CEPMPL. Não podemos sequer presumir que estes foram ponderados.

Atendendo à fase de execução da pena, à circunstância de o recluso cumprir pena em regime aberto para o exterior, já ter gozado de várias licenças de saída jurisdicionais e considerando o parecer favorável do Conselho Técnico, exigia-se ao Tribunal muito mais, desde logo que explicasse o que mudou na situação do recorrente que determine a alteração de critério, a inflexão no processo de ressocialização, da aproximação do mesmo à família e comunidade.

É certo que o CEPMPL não só não qualifica de sentença a decisão em causa como não exige fundamentação tão exaustiva como a prevista no art. 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Mas as exigências de fundamentação têm coincidência com as previstas no art. 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, para os atos decisórios que não sejam sentenças.

Permitindo o nosso ordenamento que as decisões tomadas na fase de execução de penas sejam mais concisas na fundamentação, já não se encontra cabimento legal para uma decisão exarada num “formulário” de escolha múltipla, em que apenas se intuí qual seja a posição do juiz quanto aos factos que podem preencher os pressupostos da concessão da licença de saída jurisdicional.

Dispensando o CEPMPL as exigências de fundamentação que o Código de Processo Penal determina para a sentença, não está a decisão que aprecia o pedido de licença jurisdicional dispensada de evidenciar um juízo autónomo, crítico, valorativo, no sentido de esclarecer convenientemente as razões pelas quais entende que tal medida de flexibilização da pena não pode ser concedida. E não deixa de ser mais exigente essa fundamentação se o recluso tiver gozado de licenças anteriores, concedidas por outro Tribunal, importando demonstrar o que mudou para justificar a inflexão no processo de ressocialização do recluso.

Admitindo-se uma fundamentação mais concisa, a mesma não pode estar ao nível da quase inexistência, bastando-se com um juízo meramente conclusivo.

Deste modo, impõe-se concluir que a fundamentação da decisão em apreço é insuficiente, não permite exercer a referida função de controlo pelo Tribunal de recurso e, portanto, padece de irregularidade prevista no art. 123.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do art.154.º do CEPMPL.

Como se refere no acórdão do TRP de 17/05/2023, proferido no processo n.º 233/20.3T9MTS.P1, seguido pelo acórdão do TRL de 20/02/2024, proferido no processo n.º 1100/12.0TXLSB-N.L1-5 (disponíveis in www.dgsi.pt): «O regime regra da declaração da irregularidade é o de que esta seja feita a requerimento do interessado, nos estritos termos e prazos previstos na lei, ficando sanada se não for tempestivamente arguida perante o tribunal a quo (art.º 123º n.º 1).

Ressalva-se no seu n.º 2, a declaração e reparação oficiosa de irregularidades que possam afetar o valor do ato praticado, obviamente limitadas pelo campo de proteção da norma que deixou de observar-se.

Assim, se a norma se destina a proteger unicamente interesses de determinado interveniente/sujeito processual e este não se tiver prevalecido da faculdade de invocar o vício, a irregularidade fica definitivamente sanada, não sendo possível declará-la oficiosamente. Se estiver em causa norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, já pode ser declarada oficiosamente sem qualquer restrição»7.

Como acima já referimos, a exigência da fundamentação, para além do mais, visa o controlo crítico, por via de recurso, da lógica e transparência da decisão, constituindo fator de legitimação do poder jurisdicional e uma garantia de observância e respeito pelos princípios da legalidade, imparcialidade e independência, obstando a decisões arbitrárias.

E este Tribunal, perante a exiguidade do texto da decisão (quase inexistente), não pode conhecer das razões que a determinaram, pelo que o vício atinge valores e princípios que extravasam o interesse dos concretos sujeitos processuais.

Não se mostra, pois, cumprido o dever de fundamentação previsto no art. 146.º, n.º 1 do CEPMPL, art. 97.º do Código de Processo Penal e 205.º da Constituição da República Portuguesa, estando assim, a decisão recorrida ferida de irregularidade, cuja reparação pode e deve ser ordenada, a todo o tempo e oficiosamente, uma vez que afeta o valor do ato praticado (art.123.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)8.

Nestes termos, se conclui pela manifesta procedência do recurso interposto, mostrando-se prejudicada a apreciação do respetivo mérito.

*

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal em julgar procedente o recurso interposto pelo recorrente AA e, em consequência, por irregularidade decorrente da omissão dos concretos fundamentos da decisão de não conceder licença de saída jurisdicional ao recluso, declara-se inválida a decisão recorrida, determinando-se a descida dos autos à 1ª instância, para prolação de nova decisão elaborada em conformidade com o aqui decidido.

Sem custas.

Notifique.

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Évora, 11 de fevereiro de 2025

Mafalda Sequinho dos Santos

Carla Oliveira

Manuel Ramos Soares

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1 “Verifica-se ainda que o legislador teve o cuidado de utilizar uma terminologia que afasta a possibilidade de interpretar o respectivo regime como um direito – “podem ser concedidas” (artigos 76.o, n.º 1, 78.º, n.º 1, 79., n.º 2, e 82.º, n.º 1), “pode conceder” (artigos 80.º, n.º 1, e 81.º, n.º 1), “pode autorizar” (artigo 83.º). Também o facto de não ser admissível ao recluso recorrer da decisão que não concede a licença de saída jurisdicional é mais uma manifestação de que não se trata de um direito subjectivo.” JOAQUIM ANTÓNIO LOURENÇO BOAVIDA, A Flexibilização da Prisão - Da Reclusão à Liberdade, Ebook Almedina.

2 Retomado no Acórdão n.º 752/2014.

3 O que também já ocorreu no Acórdão n.º 764/2022, que decidiu julgar inconstitucional a norma contida no artigo 235.º, n.º 1, do CEPMPL, na interpretação segundo a qual não é recorrível a decisão que indefere o pedido de concessão do período de adaptação à liberdade condicional, assim contrariando anteriores juízos de não inconstitucionalidade (cfr. Acórdãos n.os 150/2013 e 332/2016).

4 E o Ministério Público junto do TC pronunciou-se também, neste processo, no sentido do juízo de inconstitucionalidade que veio a ser proferido.

5 Tendo o TC julgado inconstitucional a norma contida nos artigos 196.º, n.º 2, e 235.º, n.º 1, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, interpretados no sentido da irrecorribilidade do despacho que indefira liminarmente o pedido de concessão de licença de saída jurisdicional com fundamento na verificação de que a situação jurídico-penal do recluso não se encontra estabilizada.

6 Repartição de funções entre administração e juiz e tutela jurisdicional efetiva na execução da pena de prisão, Coimbra, 2022.

7 Também no mesmo sentido, Ac. TRP de 21/6/2023, Proc. N.º 764/12.9TXPRT-U.P1 (www.dgsi.pt).

8 No sentido de que a concessão ou não da licença, exige uma fundamentação adequada em tudo idêntica às sentenças pois implica uma ponderação cuidada de cada caso, que não se compadece com uma fundamentação superficial que fique aquém do que exige o disposto no art.º 374º, n.º 2 do Código de Processo Penal, além do mais, porque só este tipo de fundamentação permite que a decisão seja verdadeiramente sindicável em sede de recurso, vide Ac. TRL de 29/01/2020, Proc. n.º 1949/15.1TXLSB-P.L1-3 (www.dgsi.pt).