GRAVAÇÃO DE VOZ NÃO CONSENTIDA
PONDERAÇÃO DOS INTERESSES CONFLITUANTES
Sumário

I - A captação de gravação e reprodução de mensagens de voz sem o consentimento do visado constitui um crime e um método proibido de prova, excepto se a sua utilização tiver como fim exclusivo proceder contra o agente do crime.
A gravação não consentida não é crime quando a captação da voz corresponde à defesa de um interesse protegido, numa situação de estado de necessidade, o que acontecerá sempre que a gravação constitua o único meio de prova da prática de um crime.
Esta ponderação dos interesses conflituantes deve ser feita caso a caso, devendo os direitos de personalidade dos particulares ceder em prol dos interesses públicos apenas quando haja para tal uma causa de justificação.
II - Não impugna correctamente a matéria de facto o recorrente que se limita a invocar os vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, mas não concretiza em que consistem esses vícios, nem em que partes da decisão é que os mesmos se verificam.
Não cumpre as exigências legais da impugnação da matéria de facto indicadas no art.º 412º, nºs 3, 4 e 6 do Cód. Proc. Penal o recorrente que não indica os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido mal julgados, os meios de prova que impunham decisão diversa, as concretas passagens dos depoimentos das testemunhas que fundamentam a falta de prova dos factos, as partes da gravação dos depoimentos que o Tribunal de recurso deveria ouvir e a factualidade que, em concreto, se apurou e que deveria figurar na parte dos factos provados.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1– Relatório

No processo nº 598/21.0GDPTM do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo Local Criminal de … - Juiz …, por sentença datada de 21/11/2023, foi a arguida AA condenada, pela prática em autoria material de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181º, nº 1 do Cód. Penal, na pena de 80 dias de multa, à razão diária de € 5,00, o que perfaz o montante de € 400,00, bem como a pagar à demandante BB a quantia de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos em consequência da conduta da demandada.

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Inconformada com a decisão condenatória, veio a arguida interpor recurso, pugnando pela declaração de nulidade da sentença recorrida e pela sua absolvição, para o que formulou as seguintes conclusões:

“A – A matéria que o Tribunal recorrido enumerou como provada mostra-se escassa e insuficiente para, dela, se concluir pelo ilícito criminal de injúria, crime pelo qual decidiu condenar à arguida ora Recorrente.

B- A matéria considerada provada não permite suportar, por insuficiente.

C- A testemunha CC, companheiro da assistente há quatro anos, ao depor a favor da Autora fê-lo somente no interesse da companheira e com vista a prejudicar a arguida, levando-a à condenação.

D – A Testemunha DD, respondeu nada ter visto e ter ouviu.

E – Quanto a pen drive com a gravação apresentada pela assistente em fls. 72, a lei estabelece os casos em que as provas não podem ser produzidas nem valoradas, consubstanciando uma nulidade da decisão por incumprimento do art.º 125.º, n.º 1, art.º 130.º e n.º 1, art.º 167.º todos do C.P.

F - O regime legal dos métodos de obtenção de provas prevê várias formalidades cuja inobservância torna o ato ilegal, designadamente, prova proibida que atenta contra direitos de liberdades, n.º 8, art.º 32.º da C. R. P.

G - Segundo Paulo de Sousa Mendes, Professor Catedrático, nas Áreas de Interesse/ Investigação: Direito Penal; Direito Processual Penal; Direito Probatório, “o regime sui generis das nulidades cominadas pelo art.º 126.º do C. P. P. consiste em: nulidades de conhecimento oficioso a todo o tempo podem ser atacadas... (…), em situações que atentem contra direitos de liberdade no âmbito da prova.

H – Razão pela qual, a prova validada pelo Tribunal “a quo” é proibida, ilegal, nula e consequentemente, padece de uma nulidade insanável, sem nenhum efeito e desprovida de interesse, afigurando-se o reenvio do processo para novo julgamento.

I – Porque a matéria provada é insuficiente para a decisão tomada, ocorre erro notório na apreciação da prova e padece de nulidade insanável deve a Sentença recorrida ser revogada, dando esse Tribunal de recurso, perante a matéria provada, a interpretação e o sentido que a mesma impõe, absolvendo a Recorrente do crime de Injurias e consequentemente, do pedido de indemnização cível.

J – Se entender, revogar tal decisão e ordenar o reenvio do processo para produção de novo julgamento.”

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O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso da arguida, pugnando pela manutenção da sentença recorrida e formulando as seguintes conclusões:

“1. O Tribunal a quo fundamentou adequadamente os factos que julgou provados e não provados na decisão de facto.

2. Com efeito, na sentença recorrida o tribunal a quo referiu, especificamente, os elementos de prova em que se baseou para a factualidade provada e não provada e enunciada em todos os pontos, dando especial relevância à credibilidade que os depoimentos da assistente e da testemunha CC, mereceram ao Tribunal.

3. O Tribunal recorrido fez uma criteriosa análise dos meios de prova produzidos, especificando devidamente as provas em que formou a sua convicção, incluindo a gravação de vídeo, do que resultou uma correcta determinação dos factos provados, com o que concordamos na íntegra.

4. Em discordância com a Recorrente, consideramos que a fundamentação factual constante da sentença recorrida. resulta, face á prova devidamente submetida a contraditório, serem seguros os factos dados como provados.

5. Ao contrário do Recorrente, consideramos que o despacho recorrido, não violou os arts.º 125.º, n.º 1, art.º 130.º e n.º 1, art.º 167.º todos do C.P.P e não se encontra ferido de qualquer nulidade.

6. No caso dos autos, tendo em conta que a atuação da arguida se traduziu em palavras ofensivas dirigidas à assistente, a gravação efectuada por esta, com o seu telemóvel, foi o único meio que teve ao seu dispor para se proteger e demonstrar, em termos probatórios, aquelas palavras.

7.A conduta da assistente, ao filmar aqueles actos da arguida, encontrava-se a coberto de uma causa de justificação – o direito de necessidade – prevista no art. 34º do Código Penal.

8.Em suma, consideramos lícita a realização do referido vídeo e lícita também a sua reprodução e valoração pelo tribunal como prova nos presentes autos, nos termos do artigo 167.º CPP.”

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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância.

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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo a recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.

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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.

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2 – Objecto do Recurso

Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt).

À luz destes considerandos, importa saber se a decisão recorrida:

- se fundamentou em prova proibida;

- padece dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas a) e c) do Cód. Proc. Penal;

- enferma de erro de julgamento.

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3- Fundamentação:

3.1. – Fundamentação de Facto

A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:

“ A) Factos provados

I.

1. Assistente e Arguida são vizinhas, habitando em de imóveis contíguos em …, não existindo entre ambas uma boa relação de vizinhança.

2. No dia 04-12-2021, entre as 19h00m e as 20h00m, na Rua …, em …, em frente ao café “…”, a Arguida AA dirigiu-se à Assistente BB, aos gritos e a gesticular, e disse:

- “Vem aqui a nossa… a outra Maluca”;

- “És uma Puta de Merda... Uma Cobardolas”.

3. A Assistente, com medo e sentindo estar a ser a sua pessoa posta em causa, procurou afastar-se e sair dali como efectivamente o fez.

4. A Assistente, perante os gritos e a gesticulação da Arguida, sentiu-se amedrontada e ofendida na sua honra e dignidade.

5. A Arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser tal conduta apta a ofender a reputação e bom nome da Assistente como sucedeu e, bem ainda, ser a sua conduta proibida e punida por lei.

II.

6. Em consequência da conduta da Arguida, a Assistente sentiu-se ofendida na sua honra e dignidade.

7. E sentiu e sente medo da mesma.

8. E evita o contacto com a arguida, receando quando sai de casa deparar-se com a mesma, pelo que cuida fazê-lo quando não avista a arguida nas imediações e evita passar pela rua da arguida, ir ao Café “…” e, bem assim, passear no centro de ….

III.

9. A arguida presentemente não aufere rendimentos provenientes do exercício de actividade profissional, vivendo com o auxílio de seus pais.

10. Habita em casa pertença de seu pai.

11. Tem um filho com … anos de idade que estuda e já trabalha.

12. É licenciada em … e tem uma pós-graduação em ….

13. No certificado do registo criminal da arguida não constam averbados registos de condenações.

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B) Factos não provados

Expurgadas as alegações conclusivas, genéricas, de direito ou meramente probatórias, com relevo para a decisão da causa, não resultaram provados quaisquer outros factos, para além dos já mencionados, designadamente não resultou provado:

14. Que em consequência da conduta da arguida descrita sob o ponto 2 a assistente se tenha sentido envergonhada.

15. seja em consequência da conduta da arguida descrita sob o ponto 2 que a demandante viva ansiosa, triste e que tenha perdido 17Kg de peso.

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C) Indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a convicção

Na formação da sua convicção o Tribunal atendeu aos meios de prova disponíveis, atentando nos dados objectivos fornecidos pelos documentos juntos aos autos e efectuando a análise das declarações da arguida e da assistente/demandante e dos depoimentos das testemunhas prestados em sede de audiência de discussão e julgamento.

Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica das provas, dispensando-se da descrição pormenorizada das declarações e dos depoimentos prestados uma vez que a prova se encontra digitalmente gravada e devidamente registada em suporte magnético.

Concretizando.

A arguida/demandada AA, no essencial negou ter dirigido à assistente as expressões que lhe são imputadas, dizendo não ter trocado palavras com a assistente e ter-lhe esta atiçado o cão contra si. Mais referiu não ter conflitos com a assistente e não fazer ideia do porquê das imputações que lhe são feitas.

A assistente/demandante BB, cujas declareações se nos afiguraram terem sido prestadas com sinceridade e denotando memória vivida dos factos que descreveu, no essencial explicou que ela própria e a arguida são vizinhas, que várias situações têm ocorrido por parte da arguida e confirmou a factualidade imputada à arguida em sede de acusação particular, explicando que na ocasião se encontrava a passear o seu cão na rua, que ouviu barulho – percebendo depois que se tratava de uma confusão dentro do Carfé mas não conseguindo ver o que se passava no seu interior - e que receosa ligou a câmara de filmar do seu telemóvel, tendo-lhe então a arguida – que se encontrava no exterior do Café – dirigido aos gritos as expressões “maluca”, “puta de merda” e uma outra que não conseguiu verbalizar em português mas explicou que significava que ela estaria com medo, sendo que, perguntada, reconheceu a mesma como sendo a expressão “cobardolas”, dizendo que continuou a passar com o seu cão e que a arguida a seguia a gritar, dizendo que ela a estava a gravar e que tinha um cão perigoso, tendo-a de sua parte tentado manter afastada de si e do seu cão. Mais explicou que sempre se deu bem com as pessoas em … e que se sentiu “atacada”, se sentiu ser posta em questão pela arguida, que teve então medo e que ficou com medo do que a arguida possa fazer, tendo sempre cuidado quando sai de atentar no que se passa à sua volta, tendo deixado de frequentar os Cafés e de passear no centro da localidade e tendo perdido 17 kg. Negou, todavia, ter sentido vergonha, dizendo nada ter feito de mal que justificasse ficar com vergonha.

A testemunha CC, companheiro da assistente, cujo depoimento se nos afigurou ter sido prestado com sinceridade, no essencial aludiu a condutas várias da arguida para com a assistente, explicando relativamente aos factos quem causa que na ocasião se encontrava em casa e que a assistente chegou com muito medo, muito nervosa, a chorar e que viu e ouviu o ocorrido na filmagem que a mesma efectuou no telemóvel, explicando que com tais situações a assistente perdeu 17 kg, não pelas expressões que oram em causa lhe foram dirigidas mas pela situação complicada que vivencia por causa das condutas da arguida, explicando que a assistente deixou de passar na rua da arguida, não vai à janela porque lhe atiram pedras, sendo já muito raramente que vai ao Café “…” e que tembém deixou de ir à Rua …, frisando que o que a assistente sente não é vergonha mas sim receio de encontrar a arguida na rua.

A testemunha DD, que trabalha no estabelecimento de Café/Snack-bar “…”, cujo depoimento se nos afigurou retraído, deixando transparecer não querer com o mesmo comprometer-se, no essencial referiu lembrar que a arguida lá entrou para beber café, tendo ideia que a mesma e a assistente já se não falavam, dizendo não ter visto ou ouvido nada, que tudo se terá passado no exterior onde viu a assistente a passear o cão e a arguida a passar de carro e a parar junto ao seu estabelecimento.

O Tribunal atentou igualmente em toda documentação junta aos autos, aqui se destacando em particular a queixa apresentada a fls. 69 a 70 e o suporte digital - pen drive - que a acompanha a fls. 72, contendo a gravação efectuada pela assistente dos factos ocorridos, a cuja visualização e audição se procedeu em audiência de julgamento, aí se visualizando ao longe uma discussão entre um indivíduo do sexo masculino e a arguida e esta exaltada a afastar-se do estabelecimento e dirigir-se à assistente que leva consigo um cão e que a procura manter de si afastada com uma espécie de bengala, enquanto a arguida, inicialmente em voz alta e depois aos gritos se dirige à assistente proferindo as expressões que lhe são imputadas em sede de acusação, aparentando ligar para a polícia - enquanto se percebe que a assistente se afasta apressada - a pedir a comparência da polícia no local e dizer que a assistente a está a atacra e que tem um cão ilegal e perigoso.

Em face de toda a prova assim produzida, salientando que nos mereceram credibilidade as declarações prestadas pela assistente que colhem também suporte e reforço na gravação contida no suporte digital de fls. 52 e no depoimento da testemunha CC que não tendo presenciado pessoalmente os factros ocorridos descreveu o estado de espírito da assistente após o ocorrido e que nos mereceu credibilidade pelas razões já supra adiantadas e apelando ainda às regras da experiência comum na análise da conduta interna do arguido exteriorizadas nos factos praticados e em face das quais nos é possível extrair que quem assim dirige tais expressões a outrem outro tanto não pode pretender que ão insultar o visado, sendo do conhecimento do cidadão médio e não podendo deixar de o ser da arguida que dificuldade de compreensão não denotou, que tal se trata de conduta proibida e punida por lei lei penal, o Tribunal dúvidas não teve em dar como provada a matéria como tal supra descrita, dando como não provada a factualidade referida sob os pontos 14 e 15 posto que quanto a esta não foi produzida prova suficiente que de per si ou em conjugação com a demais permitisse firmar convicção distinta.

No que à situação pessoal e socioeconómica da arguida respeita, o Tribunal aqui fez fé nas suas declarações que não foram contrariadas por qualquer outro meio de prova produzido, sendo que no que respeita à ausência de antecedentes criminais por parte da mesma teve em consideração o teor do respectivo Certificado do Registo Criminal junto aos autos.”

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3.2.- Mérito do recurso

No presente recurso vem a recorrente alegar que a sentença recorrida é nula porque se fundamentou em prova proibida, padece dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas a) e c) do Cód. Proc. Penal e enferma de erro de julgamento.

Apreciemos as suas razões.

A) Nulidade da decisão por se fundamentar em prova proibida

Vem a recorrente alegar que a decisão recorrida é nula, por se fundamentar em prova proibida, em violação do disposto nos arts.º 125º, 130º, nº 1 e 167º, nº 1 todos do Cód. Proc. Penal.

Fundamenta a sua pretensão no facto de no decurso da audiência de discussão e julgamento o Tribunal recorrido se ter socorrido de uma pen com gravação de factos efetuada pela assistente, que foram visualizados e ouvidos sem que a arguida tivesse conhecimento ou tivesse dado o seu consentimento.

Mais alega que o regime legal dos métodos de obtenção de provas prevê várias formalidades cuja inobservância torna o ato ilegal, designadamente, a prova que atenta contra direitos e liberdades, previstos no art.º 32º, nº 8 da CRP e que consiste numa nulidade de conhecimento oficioso, a todo o tempo.

Por esta razão, entende a arguida que a audição das gravações é uma prova que padece de nulidade insanável, cuja consequência é o reenvio do processo para novo julgamento.

Vejamos se lhe assiste razão.

Em matéria de prova, prevê-se no art.º 32º, nº 8 da CRP que:

“8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.”

Na sequência desta proibição constitucional, o Cód. Proc. Penal, no seu art.º 167º, nº 1, prevê que: “1 - As reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal.”

Por seu turno o Cód. Penal, no seu art.º 199º, nº 1, estabelece que:

“1 - Quem, sem consentimento:

a) Gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas; ou

b) Utilizar ou permitir que se utilizem as gravações referidas na alínea anterior, mesmo que licitamente produzidas;

é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.”

A este respeito, importa também atentar no art.º 126º, nºs 1, 3 e 4 do Cód. Proc. Penal, onde se prevê que: “1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.(…) 3 - Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular. 4 - Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.”

Ou seja, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127º, admite todos os meios de prova, desde que não sejam proibidos por lei, nos termos dos arts.º 125º e 126º todos do Cód. Proc. Penal.

Da análise conjugada de todas estas normas resulta que a captação de gravação e reprodução de mensagens de voz sem o consentimento do visado constitui um crime e um método proibido de prova, excepto se a sua utilização tiver como fim exclusivo proceder contra o agente do crime.

Na verdade, uma prova proibida não é admissível pelo ordenamento jurídico, não pode ser utilizada no processo, essa inadmissibilidade perdura para além do trânsito em julgado da decisão que a tiver valorado, é cognoscível a todo o tempo e constituí fundamento de recurso extraordinário de revisão, nos termos do art.º 449º, nº 1, al. e) do Cód. Proc. Penal, não se sanando, nem podendo ser repetida.

Como se viu, no art.º 199º, nº 1 do Cód. Penal protegem-se as palavras ditas por uma pessoa, independentemente do conteúdo favorável ou desfavorável das gravações para a própria, e tutelam-se os direitos dessa pessoa a não ver captada e divulgada a sua voz perante terceiros sem o seu consentimento, em consonância com a proteção do direito à imagem dada pelo art.º 79º, nº 1 do Cód. Civil e com a consagração deste direito como um direito fundamental de personalidade pelo art.º 26º, nº 1 da CRP.

Sucede, porém, que o direito à palavra não é um direito absoluto, estando sujeito às restrições que estiverem expressamente previstas na Constituição e que se mostrem indispensáveis à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, como se refere no art.º 18º, nº 2 da CRP.

Da ponderação do previsto no art.º 167º do Cód. Proc. Penal e no art.º 199º do Cód. Penal decorre que a gravação que não é crime, é admissível como meio de prova.

Pode dizer-se que a gravação não consentida não é crime quando a captação da voz corresponde à defesa de um interesse protegido, numa situação de direito de necessidade, o que acontecerá sempre que a gravação constitua o único meio prático e eficaz de garantir ao ofendido o seu direito de protecção contra a vitimização pela prática de crimes que, não fora essa captação de voz, ficariam impunes.

Nestes casos as gravações não serão meios proibidos de prova, devendo ser valorados à luz do princípio da livre apreciação da prova previsto no art.º 127º do Cód. Proc. Penal.

É admissível concluir que a elaboração de gravação áudio ou vídeo destinada a demonstrar factos com relevância criminal não configura a prática de um crime, na medida em que o autor da gravação actua ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude, nomeadamente o estado de necessidade, previsto no art.º 34º do Cód. Penal.

Estabelece este preceito legal que:

“Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:

a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;

b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e

c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.”

Verifica-se, assim, que não é ilícita a actuação do agente que conhece a situação de conflito de interesses e actua com a consciência de salvaguardar o interesse preponderante, sendo razoável a imposição ao lesado do sacrifício do seu interesse em função da natureza ou valor do interesse colocado em risco.

Dito por outras palavras, é razoável impor ao agente da prática de um crime a lesão do seu direito à palavra quando a captação da sua voz é o único meio de prova da prática do crime, sendo legítimo sacrificar o direito à palavra do agente em prol da defesa do direito à justiça e ao exercício do ius puniendi por parte do Estado, como única forma de salvaguardar os interesses público e da vítima na descoberta do crime, a eficiência penal, a segurança, a pacificação social e a justiça.

Esta ponderação dos interesses conflituantes deve ser feita caso a caso, e não em termos genéricos, devendo os direitos de personalidade dos particulares ceder em prol dos interesses públicos apenas quando haja para tal uma causa de justificação, como sucede no caso dos presentes autos.

(cf. neste sentido os acórdãos do TRC datado de 26/01/11, proferido no processo nº 68/10.1PBLRA.C1, em que foi relatora Brízida Martins, do TRE datado de 29/03/16, proferido no processo nº 558/13.4GBLLE.E1, em que foi relator António João Latas, do STJ datado de 28/04/22, proferido no processo nº 397/21.9GBABF.S1, em que foi relatora Adelaide Magalhães Sequeira, do TRL datado de 23/05/23, proferido no processo nº 924/20.9PBCSC.L1-5, em que foi relator Jorge Gonçalves, do TRC datado de 25/10/23, proferido no processo nº 303/22.6GCTND.C1, em que foi relatora Alexandra Guiné, do TRL datado de 24/01/24, proferido no processo nº 449/20.2PBSCR.L1-3, em que foi relatora Cristina Almeida e Sousa, do TRL datado de 6/02/24, proferido no processo nº 1280/19.3PBBRR.L1-5, em que foi relator Manuel Advínculo Sequeira, do TRE datado de 5/03/24, proferido no processo nº 122/21.4GDPTM.E1, em que foi relator Moreira das Neves, do TRC datado de 25/10/24, proferido no processo nº 273/23.0GCPBL-B.C1, em que foi relator João Abrunhosa, todos in www.dgsi.pt).

Em face de tudo o exposto, considera-se que não existe a nulidade de prova apontada pela recorrente, improcedendo nesta parte o recurso.

B) Vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas a) e c) do Cód. Proc. Penal

Dispõe o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) O erro notório na apreciação da prova.

Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, que não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.

Estes vícios são também de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 16. ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6.ª ed., 2007, pág. 77 e seg.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).

Há insuficiência da matéria de facto para a decisão quando os factos dados como assentes na decisão são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição, ou seja, são insuficientes para a aplicação do direito ao caso concreto.

No entanto, tal insuficiência só ocorre quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito, porque não se apurou o que é evidente e que se podia ter apurado ou porque o Tribunal não investigou a totalidade da matéria de facto com relevo para a decisão da causa, podendo fazê-lo.

Esta insuficiência da matéria de facto tem de existir internamente, no âmbito da decisão e resultar do texto da mesma.

Neste sentido decidiu o STJ no Ac. de 5/12/2007, proferido no processo nº 07P3406, em que foi relator Raúl Borges, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta se mostra exígua para fundamentar a solução de direito encontrada, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Ou, como se diz no acórdão deste STJ de 25-03-1998, BMJ 475.º/502, quando, após o julgamento, os factos colhidos não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, dar o ilícito como provado; ou ainda, na formulação do acórdão do mesmo Tribunal de 20-12-2006, no Proc. 3379/06 - 3.ª, o vício consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura.”

No mesmo sentido se decidiu no Ac. do TRC de 12/09/18, proferido no processo nº 28/16.9PTCTB.C1, em que foi relator Orlando Gonçalves, in www.dgsi.pt, onde se escreveu que: “ (…) Como resulta expressamente mencionado nesta norma, os vícios nela referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente a segmentos de declarações ou depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento e que se não mostram consignados no texto da decisão recorrida. O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito. Existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa.”

No caso dos autos, alega a recorrente que na matéria dada como provada pela sentença recorrida não há factos concretos e determinados que, permitam concluir pelo cometimento do crime de injúria pela arguida.

Prevê-se no art.º 181º, nº 1 do Cód. Penal que:

“Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias”.

O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra, enquanto bem jurídico complexo, no qual se inclui a reputação e o bom nome de que qualquer pessoa goza na comunidade, bem como a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social, decorrendo a tutela penal da honra directamente da dignidade da pessoa humana, prevista no art.º 1º da CRP, e merecendo tutela constitucional no art.º 26º também da CRP.

O crime de injúria é um crime de dano, quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido, e de mera actividade, quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção.

O tipo objectivo inclui a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo, sempre dirigido ao ofendido.

O tipo subjectivo, por seu turno, admite qualquer modalidade de dolo, incluindo o dolo eventual.

( quanto à qualificação do crime, cf. Paulo Pinto de Albuquerque, in “ Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos ”, 5ª edição atualizada, UCP, pág. 819 e 820 )

De acordo com o disposto no art.º 14º do Cód. Penal, o dolo pode assumir uma das seguintes modalidades:

“1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.

2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.

3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.”

Analisada a decisão recorrida, vemos que a factualidade descrita em 2 e 4 dos factos provados é idónea ao preenchimento dos elementos objectivos do crime em apreço, assim como a factualidade descrita em 5 é idónea ao preenchimento dos elementos subjectivos do tipo legal do crime de injúria, na modalidade de dolo directo.

Assim sendo, verifica-se que o que decorre das alegações da recorrente é que não concorda com a apreciação da prova feita pelo Tribunal recorrido, mas daí não se pode concluir que a sentença recorrida padeça de insuficiência da matéria de facto para a decisão, impondo-se julgar improcede nesta parte o recurso.

No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, segundo o disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal, o mesmo releva como fundamento de recurso desde que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.

Pese embora a lei não o defina, o «Erro notório» tem sido entendido como aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade e que ressalta do teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e percetível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do «homem médio».

Há «erro notório» quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum e ainda quando determinado facto provado é incompatível, inconciliável ou contraditório com outro facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida (cf. neste sentido, LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in “Código de Processo Penal anotado”, II volume, 2ª edição, 2000, Rei dos Livros, pág. 740).

Este é um vício do raciocínio na apreciação das provas, de que nos apercebemos apenas pela leitura do texto da decisão, o qual, por ser tão evidente, salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental, em que as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu uma ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial (cf. entre muitos outros, Acs. TRC de 09.03.2018, proferido no processo nº 628/16.7T8LMG.C1, em que foi relatora Paula Roberto, e de 14.01.2015, proferido no processo nº 72/11.2GDSRT.C1, em que foi relator Fernando Chaves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Quanto ao que se deva entender por erro notório na apreciação da prova, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Civil, discorreu largamente o STJ, no seu Ac. de 7/07/21, proferido no processo nº 128/19.3JAFAR.E1.S1, em que foi relator Nuno Gonçalves (in www.dgsi.pt) e onde se pode ler: “ (…) A decisão de julgar provado um acontecimento da vida na convicção de que foi demonstrado por uma versão que é manifestamente ilógica, contrariada pelas regras da física e ao mesmo tempo pelas máximas da experiência, padece do vício que o legislador consagrou no art.º 410º n.º 2 al.ª c) do CPP. Este é, como os demais aí previstos, um defeito da decisão em matéria de facto. Não devendo confundir-se nem com a errada aplicação do direito aos factos, nem com a escassez da prova para suportar o julgado. A sua deteção ou verificação não permite o recurso a elementos externos ao texto da decisão recorrida. Não assim, evidentemente, ao que constar da motivação do julgamento da matéria de facto. Se é certo que um determinado facto ou acontecimento da vida, simplesmente pelo modo como vem narrado, pode apresentar-se visivelmente irracional, notoriamente impossível, manifestamente desconforme às regras da experiência comum, todavia, mais comumente o erro notório na apreciação da prova deteta-se pela motivação do julgamento da facticidade, designadamente pelo exame critico dos elementos de prova. (…)”

No caso dos presentes autos, a recorrente invoca o vício do erro notório, alegando apenas que o Tribunal recorrido gizou toda a sua convicção e produziu a sua decisão na base de indícios, não apreciando, no bom rigor, provas precisas e inequívocas.

Porém, o que daqui mais uma vez decorre é que a recorrente se limita a discordar da apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo, no que concerne à sua condenação pela prática do crime de injúria, mas não concretiza em que consiste o vício em causa, nem em que partes da decisão é que o mesmo se verifica.

Ora, analisada a decisão recorrida, não resulta da mesma que padeça de erro notório, pois os factos estão descritos de forma clara e perceptível, não existe qualquer contradição entre a matéria de facto provada e não provada, todos os factos se mostram fundamentados, de forma lógica, e a decisão do Tribunal funda-se na prova produzida, estando em conformidade com a mesma.

Não se tendo apurado a existência de um qualquer vício de raciocínio evidente para um observador médio ou uma qualquer desconformidade intrínseca e evidente no raciocínio exposto na decisão do Tribunal recorrido, o que também não foi alegado pela recorrente, impõe-se julgar este recurso improcede quanto a este fundamento, sem necessidade de mais considerandos.

C) Erro de julgamento

De toda a argumentação da recorrente o que resulta é que a mesma não concorda e não se conforma com a apreciação da prova feita pelo Tribunal recorrido, nem com a matéria de facto fixada pelo mesmo, o que significa que pretende fazer uma impugnação ampla da matéria de facto, embora nunca a qualifique como tal.

Ora, a reapreciação da matéria de facto poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde, como supra se referiu, a verificação dos mesmos tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente. O recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto destina-se a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, razão pela qual o art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal impõe ao recorrente a obrigação de indicar: “ a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.” A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. A especificação das «concretas provas» implica a indicação do conteúdo do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Por seu turno, a especificação das provas que devem ser renovadas impõe a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo previsto no art.º 430º do mesmo diploma. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência. Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao que tiver sido consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que fundamenta a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou de vários depoimentos, pois são essas passagens concretas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo Tribunal de recurso, como é exigido pelo art.º 412º, nºs 4 e 6 do Cód. Proc. Penal. A este respeito, importa ter em atenção que o STJ, no seu Ac. nº 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, já fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».

Na verdade, o poder de apreciação da prova da 2ª Instância não é absoluto, nem é o mesmo que o atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo quanto à mesma.

Verifica-se, assim, que só se pode alterar o decidido se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida. Nos casos de impugnação ampla da matéria de facto, o recurso não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, mas constitui apenas um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, sempre em relação aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. Para esse efeito, deve o Tribunal de recurso verificar se os concretos pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa ( neste sentido, cf. Ac. STJ de 14.03.2007 (no processo nº 07P21, Relator: Conselheiro Santos Cabral), de 23.05.2007 (no processo 07P1498, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), de 03.07.2008 (no processo nº 08P1312, Relator: Conselheiro Simas Santos), de 29.10.2008 (no processo nº 07P1016, Relator: Conselheiro Souto de Moura) e de 20.11.2008 (no processo nº 08P3269, Relator: Conselheiro Santos Carvalho), todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Sucede que: «O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.» ( cf. Ac. do TRP de 6/10/2010, proferido no processo nº 463/09.9JELSB.P1, em que foi relatora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt).

O que o recorrente tem que fazer é apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas, se for o caso, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude.

No caso dos autos, analisadas a motivação e as conclusões do recurso, verificamos que a recorrente não cumpriu minimamente as exigências legais da impugnação da matéria de facto supra indicadas, pois não indicou os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido mal julgados, não indicou quais os meios de prova que impunham decisão diversa, não indicou as concretas passagens dos depoimentos das testemunhas que, no seu entendimento, fundamentam a falta de prova dos factos, nem quais as partes da gravação dos depoimentos é que este Tribunal de recurso deveria ouvir e que factualidade é que, em concreto, se apurou e que deveria figurar na parte dos factos provados.

Na verdade, não é suficiente para a impugnação da matéria de facto o recorrente alegar que não concorda com a apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo, dizer que com base na prova produzida não deveriam ter sido dados como provados todos os factos que o foram e transcrever depoimentos inteiros, sem concretizar quais desses depoimentos fundamentariam a prova de outros factos e que partes dos mesmos este Tribunal de recurso deveria ouvir.

Em face disso, não tendo a recorrente cumprido minimamente o ónus imposto pelo art.º 412º, nºs 3 e 4 do Cód. Proc. Penal, não pode este Tribunal reexaminar amplamente a matéria de facto fixada pelo Tribunal recorrido, improcedendo também nesta parte o recurso.

Por tudo o exposto, impõe-se julgar totalmente improcedente o recurso, não se considerando violadas as normas legais e constitucionais invocadas pela recorrente.

*

4. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso interposto por AA e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s.

Évora, 11 de Fevereiro de 2025

(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)

Carla Francisco

(Relatora)

Jorge Antunes

Maria Filomena Soares

(Adjuntos)