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CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE CAFÉ
PRESTAÇÃO DE EXECUÇÃO FRACIONADA OU REPARTIDA
RESOLUÇÃO
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
CLAÚSULAS CONTRATUAIS GERAIS
ABUSO DO DIREITO
CLÁUSULA RESOLUTIVA EXPRESSA
RESERVA DE PROPRIEDADE
Sumário
I - A obrigação de adquirir uma determinada quantidade de mercadoria através da aquisição mensal de fracções dessa quantidade corresponde a uma prestação de execução fraccionada ou repartida sujeita ao prazo ordinário de prescrição de 20 anos. II - O direito de indemnização associado à resolução contratual só nasce quando esta é levada a cabo e, como tal, o prazo de prescrição daquele direito só começa a correr esgotado o prazo de que o devedor, interpelado para o efeito, disponha para o cumprir. III - A negociação de uma parte essencial de um contrato individual composto por cláusulas pré-elaboradas, insusceptíveis de alteração e destinadas em bloco à generalidade das pessoas, não o exclui do âmbito de aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais. IV - As cláusulas pré-elaboradas por uma das partes que, inseridas num contrato individual, não tenham sido negociadas não significa que não tenham sido queridas pela contraparte. V - Para a verificação do abuso do direito na modalidade de supressio é necessário que a inacção do titular do direito por tempo prolongado seja acompanhada de circunstâncias que com ela conjugadas criem no devedor a confiança fundada de que o direito já não será exercido e que, por isso, o mesmo tenha feito opções cuja reversão, por força do tardio e inesperado exercício do direito, lhe cause prejuízos maiores do que aqueles que exercício atempado lhe teriam causado. VI - A cláusula resolutiva expressa pode, designadamente por vontade das partes, não ter efeito retroactivo e estar associada a cláusula penal compensatória destinada a cobrir os danos pelo interesse contratual positivo. VII - A reserva de propriedade pode ser objecto de renúncia tácita constituída pela resolução contratual acompanhada da exigência do pagamento da pena indemnizatória equivalente às prestações em falta do preço da coisa vendida e entregue ao comprador.
Texto Integral
Proc. n.º 513/23.6T8ESP.P1 – Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Competência Genérica de Espinho – Juiz 1
Relatora: Carla Fraga Torres
1.º Adjunto: Carlos Gil
2.º Adjunto: Ana Olívia Esteves Silva Loureiro
Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório.
Recorrente: AA e esposa BB
Recorridos: A..., S.A.
A..., S.A.
instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra AA e esposa BB
pedindo que:
1. Seja reconhecida a resolução do contrato, e
2. Consequentemente os Réus condenados a:
a) Proceder ao pagamento dos bens vendidos no valor de € 4.178,40, reduzido do valor da bonificação prometida (€ 2.066,22), sendo o valor em dívida de € 2.112,18 (989 kg × €4.178,40 / 2.000 kg = € 2.066,22) (€ 4.178,40 - € 2.066,22 = € 2.112,18);
b) Pagar o montante indemnizatório de (2.000 kg – 989 kg) x € 24,20 x 20% = € 4.893,24;
c) Proceder ao pagamento das faturas vencidas e acima identificadas, ambas pelo valor de €424,16, acrescidos dos juros de mora entretanto vencidos até esta data, respetivamente €293,38 e € 301,70, tudo no total de € 1.019,24;
No montante global de € 8.024,66 (€ 2.112,18 + € 4.893,24 + € 1.019,24), tudo acrescido de juros de mora à taxa legal de juros comerciais desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Para o efeito, alegou, em síntese, que, no âmbito da sua actividade, celebrou com os RR. um contrato pelo qual:
- estes se obrigaram a comprar-lhe a quantidade de 2.000 Kg de café Torrié, em fracções mensais mínimas de 30 Kg ao preço de tabela, mediante a bonificação de 4.178,40 €, quando adquirida e paga a quantidade de 2.000 Kg e a liquidar anual e proporcionalmente ao quantitativo de café adquirido e pago por ano;
- a própria por valor equivalente àquela bonificação lhes vendeu determinado equipamento para estabelecimento de café, reservando para si a respectiva propriedade até que o preço, através de compensação com a referida bonificação, se mostrasse pago, e
- o incumprimento pelos RR. poderia dar lugar à anulação/revogação do contrato e ao pagamento pelos mesmos da indemnização correspondente a 20% do valor do café que até ao limite estabelecido não fosse adquirido e ao valor do preço do equipamento ainda não pago.
Do mesmo passo, invocou que de Setembro de 1999 a Março de 2006, os RR. lhe compraram a quantia de 989 Kg dos referidos 2.000 Kg de café e que não lhe pagaram duas facturas que identifica, razão pela qual os interpelaram para pagarem as referidas quantias, sem que tal tenha sucedido.
Os RR devidamente citados, apresentaram contestação, arguindo a prescrição seja por estarem em causa prestações contratuais periodicamente renováveis seja por o contrato ter sido outorgado em 1999. Do mesmo passo, invocaram o abuso do direito da A., porquanto, tendo ambas as partes acordado em 2006 na devolução do equipamento por impossibilidade dos RR. venderem mais café, aquela não levantou esse equipamento no estabelecimento que estes exploraram até 2010, e ainda porque a devolução do equipamento, por força da reserva de propriedade contratualmente estabelecida, dispensa e justifica que nada mais tenham a pagar à A.. Por último, defendem que o contrato em discussão é um contrato com cláusulas contratuais gerais em cuja negociação não participaram, sendo nula a cláusula 9, e que, em todo o caso, são excessivas as penalidades nela estabelecidas e não podem ser cumuladas com o cumprimento da obrigação principal.
A Autora respondeu às excepções, dizendo, em suma, que:
- sobre a prescrição, as prestações em apreço têm caráter não periódico mas fraccionado a que se aplica o prazo regra da prescrição a contar não da data da celebração do contrato mas sim do seu incumprimento em 2007;
- sobre o abuso do direito, foram os RR. que, de forma unilateral, deixaram de comprar café à A., nada lhes permitindo assumir que esta não tentasse cobrar os valores em dívida;
-sobre a nulidade da cláusula 9, o contrato e as condições comerciais em que o mesmo foi celebrado foram prévia e cuidadosamente discutidos e negociados entre as partes, e
- sobre a redução das penalidades, o valor acordado à luz da liberdade contratual é perfeitamente razoável.
Foi proferido despacho saneadore dispensada a fixação do objecto da acção e dos temas da prova.
Realizada a audiência final foi proferida sentença, julgando parcialmente procedente a acção, com o seguinte dispositivo:
“VI. Decisão
Pelo exposto, perscrutados todos os argumentos de direito e de facto supra referidos, decide-se julgar parcialmente procedente a presente ação e, em consequência:
a) Reconhecer o direito da autora A... SA, à resolução do contrato celebrado com os réus AA e BB, por incumprimento destes,
E, em consequência,
b) Condenar os réus a pagar, solidariamente, à autora o valor total de € 6.680,03 (seis mil, seiscentos e oitenta euros e três cêntimos), (€ 3.548,61 (montante indemnizatório) + € 1.019,24 (faturas) + € 2.112,18 (pagamento dos bens vendidos), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal vigente, desde a citação, até efetivo e integral pagamento.
c) Absolver os réus do mais peticionado.
Custas na proporção do respetivo decaimento e sem prejuízo do apoio judiciário
de que os réus beneficiam”.
Inconformada com tal sentença, dela apelaram os RR., concluindo as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
(…)
A A. não apresentou contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com o efeito e o modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art. 5.º, n.º 3 do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, são as seguintes:
1. as invocadas nulidades da sentença;
2. a impugnação da matéria de facto;
3. a revogação da sentença que julgou improcedentes as excepções da prescrição, do abuso do direito e da nulidade da cláusula 9 do contrato e que fixou o valor concreto da indemnização devida pelos recorrentes à recorrida.
*
III. Fundamentação
3.1.Fundamentação de facto
O Tribunal recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos (destacando-se a negrito a matéria de facto ora impugnada): “4.1 Matéria de facto provada
Com relevo para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
Da petição inicial:
1. A Autora dedica-se ao comércio de venda, por grosso, de cafés, bebidas espirituosas e outros produtos.
2. No dia 17 de setembro de 1999, autora e réus outorgaram o documento escrito, designado por «Contrato de Comércio ...1/..9/16», subordinado às seguintes clausulas:
“(…) PROMESSA DE COMPRA E VENDA
1.
A PO promete vender aos SO, dois mil (2.000) quilos de café Torrié, lote Moinho Nobre, em frações mensais mínimas de trinta (30) quilos, aos preços de tabela às datas das vendas efetivas, sendo o preço de tal café, atualmente, de dois mil oitocentos e cinquenta escudos (2.850$00) por quilo.
2.
E conceder-lhes uma bonificação de oitocentos e trinta e sete mil seiscentos e noventa e quatro escudos (837.694$00), quando, cumulativamente, a totalidade do café ora prometida em venda se mostrar integralmente adquirida e paga, a liquidar anualmente em função direta e proporcionada dos quantitativos de café adquiridos e pagos em cada ano.
3.
O café adquirindo será fornecido sob encomenda prévia dos SO e será pago no prazo a estabelecer nas faturas correspondentes, podendo o PO suspender o fornecimento em caso de não pagamento tempestivo.
4.
Os SO prometem comprar o café mencionado no número um desta promessa, nos termos exarados.
COMPRA E VENDA
5.
A PO vende aos SO os bens mencionados na fatura número ...98 de 17 de setembro de 1999 – da qual se apensa cópia que aqui fica dada como reproduzida – pelo preço global de oitocentos e trinta e sete mil seiscentos e noventa e quatro escudos (837.694$00) – com IVA incluído – reservando para si a propriedade dos mesmos até seu integral pagamento.
6.
A obrigação de pagamento dos bens vendidos será cumprida por via da compensação com as importâncias liquidadas a favor dos SO, nos termos referidos em 2, sempre sem prejuízo do disposto em 9.
7.
Pretende a PO, com a venda em apreço, e nisso a funda, promover e incrementar, junto dos SO, a venda dos seus cafés, que comercializa sob a marca Torrié.
8.
Os SO declaram comprar os bens referidos no número cinco, nos termos exarados e tê-los recebido nesta data (17 de setembro de 1999), no estado de novos, em bom estado de funcionamento e sem defeitos aparentes.
DISPOSIÇÕES COMUNS
9.
Se os SO – por facto que lhes seja imputável – não efetuarem compras de café durante três meses, ou não realizarem um mínimo trimestral de compras de noventa (90) quilos de café – em dois trimestres seguidos ou interpolados – ou não pagarem duas quaisquer faturas vencidas no prazo de oito (8) dias, a contar dos seus vencimentos, poderá a PO resolver o contrato, reclamar indemnização em montante equivalente a vinte por cento (20%) do valor do café prometido e não adquirido, vencendo-se imediatamente a obrigação de pagamento do preço em divida dos bens de equipamento ora vendidos, podendo, também, os SO resolver o contrato em caso de incumprimento culposo da PO.
10.
Os SO poderá obstar à resolução se comprarem – e pagarem simultaneamente – o café prometido em venda e ainda não adquirido, no prazo de 15 dias, contado da data da comunicação resolutória.
(…)
12.
Este contrato terá termo inicial no dia 17 de setembro de 1999, e termo final quando a totalidade do café prometida em venda houver sido integralmente adquirida.
DECLARAÇÃO DE CIÊNCIA
13.
Declararam expressamente os SO que o teor deste contrato lhes foi comunicado, por cópia integral, com cerca de dez dias de antecedência, em relação à data da sua outorga (17 de setembro de 1999) e explicado pormenorizadamente, tendo o mesmo, depois, sido discutido ponderadamente, em todos os seus termos, entre as partes, verificando, assim, corresponder inteiramente às suas manifestações de vontade, pelo que o ratificam e vão assinar sem reservas quaisquer.”
3. O documento referido em 2. tinha como destino o estabelecimento comercial sob a designação Café B..., sito no Lugar ..., ..., ... –....
4. Os bens inscritos na fatura referida no ponto 5 do documento referido em 2, e que foram entregues aos réus no próprio dia 17 de setembro de 1999, correspondem a:
1 Máquina de Café Spaziale 3000 – 2 Grupos e 1 Moinho Lux Negri.
5. Desde setembro de 1999 a março de 2006, os réus compraram 989 kg de café dos 2.000 kg prometidos em compra.
6. Depois de março de 2006, os réus não voltaram a comprar qualquer café à autora.
7. A solicitação dos Réus, a Autora forneceu, nas datas e pelos valores indicados, os bens indicados nas seguintes faturas:
-Fatura n.º ...572/05, emitida em 06/10/2005, com a data de vencimento a 05/11/2005, pelo valor de € 206,78;
− Fatura n.º ...46/06, emitida em 07/02/2006, com a data de vencimento a 09/03/2006, pelo valor de € 217,38;
8. Por carta registada com aviso de receção emitida a 16 de abril de 2007, a autora comunicou aos réus o seguinte:
“Assunto: Contrato n.º ...1/..9/16
Reportamo-nos ao contrato assumido por V. Exas. Em 17/09/1999, por via do qual V. Exas. Prometeram comprar cafés Torrie, lote Moinho Nobre, em quantidades mínimas mensais não inferior a 30 quilos.
No pressuposto de que dariam cumprimento pontual e integral ao acordado vendemos equipamentos (máquinas de café e moinho) em condições extraordinariamente vantajosas (o pagamento do preço, por exemplo, só será devido no termo final do contrato).
Infelizmente V. Exas. Não veem adquirindo café, facto que viola frontalmente o acordado e nos permite por fim ao contrato e reclamar-lhes indemnização em montante correspondente a 20% do preço do café não adquirido, bem como o pagamento dos bens vendidos.
Assim cumpre-nos informar que o contrato ...1/..9/16, celebrado entre as nossa duas firmas acusa um débito de compras de café de 1.011 kgs de café Lote Moinho Nobre, o que de acordo com o clausulado contratual representa, de v/ parte, as seguintes responsabilidades:
1. Pagamento dos bens vendidos, no valor de € 4.178,40 (quatro mil cento e setenta e oito euros e quarenta cêntimos);
2. Indemnização correspondente a 20% do café prometido em venda e ainda não adquirido no valor de € 3.548,61 (três mil quinhentos e oito euros e sessenta e um cêntimos).
Num total em débito de € 7.727,01, (sete mil, setecentos e vinte e sete euros e um cêntimo).
Ficamos, pois a aguardar a liquidação dos valores mencionados no prazo máximo de 15 dias findo esse prazo recorreremos aos meios judiciais competentes.”
9. Por carta registada emitida a 15 de setembro de 2008, a autora comunicou aos réus o seguinte:
“Assunto: resolução do contrato de fornecimento de café n.º ...1/..9/16 de 17 de setembro de 1999 Ex.mos Srs.,
Vimos por esta via, em relação ao contrato de fornecimento de café supra referenciado, notifica-los de que o resolvemos/anulamos nos termos do disposto no seu numero 09, com base no facto de, desde pelo menos abril de 2006, não mais terem efetuado compras de café Torrié.
Queiram V. Exas., consequentemente, proceder ao pagamento:
1. Dos bens que lhes foram fornecidos no montante de € 4178,40 deduzido do valor da bonificação a que têm direito pela aquisição de café efetuada, no valor de € 2.066,22 (o quantitativo em divida a este titulo perfaz, por conseguinte, € 2.112,18);
2.Da respetiva indemnização, no valor de € 3.548,61, calculado de acordo com a seguinte fórmula – (2000-989) x € 17,55 x 20%.
A este montante acresce ainda o valor que V. Exas. Mantêm em divida referente aos seguintes documentos:
- fatura n.º ...71/05 de 06/10/2005 no valor de € 206,78;
- fatura n.º ...46/06 de 07/02/2006, no valor de € 217,38;
E ainda o relativo aos juros de mora, os quais, na presente data, ascendem a € 118,40, perfazendo o valor de € 542,56 (capital + juros).
O total em divida ascende, portanto, atualmente, a € 6.203,35, valor que agradecemos nos seja liquidado no prazo de 15 (quinze) dias a contar da presente data, sob pena de intentarmos a correspondente ação judicial.
Finalmente, ficam ainda V. Exas. Notificados de que, dentro do mesmo prazo de 15 (quinze) dias e nos termos do n.º 10 do contrato em referencia, poderão, em alternativa, ao pagamento do valor reclamado em virtude da resolução contratual (soma das parcelas 1 e 2, no total de € 5.660,79) comprar – e pagar simultaneamente – o café prometido em venda e ainda não adquirido, num total de 1.011 quilos.
Advertimos, porém, que caso V- Exas. Não exerçam um tal direito dentro do prazo contratualmente estipulado de 15 dias, então a resolução agora operada será inelutável e produzirá todos os seus efeitos legais.”
10. A presente ação foi proposta no dia 2.08.2023.
Do articulado de resposta às exceções:
11. Autora e réus procederam à prévia negociação e discussão dos termos do contrato, tendo acordado as condições comerciais em que ambas as partes estavam dispostas a celebrar o contrato.
4.2. Matéria de facto não provada
Com relevo para a boa decisão da causa Não se Provaram os seguintes factos:
Da contestação:
1. No ano de 2006, os réus encontravam-se na impossibilidade de vender mais café, tendo acordado com o representante da autora devolver todo o equipamento, propriedade desta, que tinha na sua posse e aguardando que o viessem buscar.
2. Os réus guardaram na sua arrecadação os bens da autora, nomeadamente: Máquina de café; Moinho de café; Toldes; Mesa e cadeiras de esplanada, na esperança de a autora os vir buscar/levantar, o que nunca sucedeu.
3. Em meados do ano de 2010, os réus encerraram o seu estabelecimento e a atividade nele desenvolvida, procedendo à entrega do locado onde exploravam o café/restaurante.
4. Os réus ficaram convictos de que a sua responsabilidade perante a autora estava resolvida.
5. Os réus confiaram que a autora não acionaria qualquer ação”.
*
3.2. Fundamentação de direito
3.2.1. Das nulidades da sentença
Delimitadas que estão, sob o n.º II, as questões a decidir, é o momento de as apreciar.
1. Das invocadas nulidades da sentença.
As nulidades que os recorrentes apontam à sentença recorrida são as previstas nas al. b) e c), do n.º 1 do art. 615.º do CPC, invocando para o efeito:
No que respeita à referida al. b), a manifesta insuficiência da matéria de facto provada, por absoluta falta de motivação, porquanto, para efeitos do raciocínio desenvolvido acerca da excepção da prescrição que foi julgada improcedente:
- não resulta do contrato sub judice que o fracionamento em prestações do fornecimento do café pela quantia prometida comprar e vender pelas partes tenha sido por opção dos Apelantes, nem consta da matéria de facto dada como provada qualquer outro facto que demonstre que o mencionado fracionamento tenha sido uma opção dos Apelantes.
- não resulta da matéria de facto dada como provada quando é que se tornou exigível a primeira prestação não paga pelos apelantes, enquanto compradores, ou qualquer outro facto demonstrativo da exigibilidade dessa primeira prestação que permita ao tribunal a quo afirmaro início da contagem do prazo de prescrição ordinário de 20 anos e assim concluir que “tendo o incumprimento ocorrido em 2006, apenas em 2026 é que se encontraria prescrito o direito”.
No que respeita à al. c), a contradição insanável ou pelo menos ambiguidade em virtude de o critério constituído por “prestações periódicas análogas” afastado para a contagem do prazo de prescrição de 5 anos ter sido, por via da invocação do art. 307.º do CC, o empregue, pelo tribunal a quo para efeitos de contagem do prazo de prescrição ordinário de 20 anos.
Vejamos.
O art. 615.º do CPC, sob a epígrafe “Causas de nulidade da sentença”, dispõe no seu n.º 1 que é nula a sentença quando:
a) não contenha a assinatura do juiz;
b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, e
e) o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora ensinam que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável” (in “Manual de Processo Civil”, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 686).
Por sua vez, Lebre de Freitas, esclarece que “…a sentença pode apresentar vícios que geram nulidade, tornando-a totalmente inaproveitável para a realização da função que lhe compete, e vícios de conteúdo, que podem afetá-la total ou apenas parcialmente. Os segundos podem respeitar à estrutura, aos limites ou à inteligibilidade da decisão, gerando anulabilidade, ou em erro material, a retificar, todos caracterizando o que a doutrina tradicional usava designar por error in procedendo, ou consubstanciar erro de julgamento (error in judicando), gerando a injustiça da decisão” (in “A Ação Declarativa Comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, 4.ª Edição, Gestlegal, págs. 375/6).
A este respeito, também se têm debruçado os nossos tribunais superiores, designadamente o STJ que em acórdão de 8/04/2021 (Proc. 8/04/2021, rel. Ilídio Sacarrão Martins) escreveu que “Por vezes torna-se difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, que é aquele que está na origem da decisão. No acórdão do STJ de 30/9/2010[3], refere-se que “o erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa”. Porque assim é, as nulidades da decisão, previstas no artigo 615º do CPC são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento…” (in www.dgsi.pt).
Sobre a falta de fundamentação, Antunes Varela explica que “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto, ou só aos fundamentos de direito” (in loc. cit., fls. 687).
Referindo-se à nulidade contemplada na al. b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, o STJ em acórdão de 3/03/2021 (Proc. 3157/17.8T8VFX.L1.S1; rel. Leonor Cruz Rodrigues), diz-nos que “A nulidade contemplada nesse preceito ocorre quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão, impondo-se por razões de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstracta soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto, e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respectivo fundamento.
…
Como já afirmava o Prof. Alberto os Reis, ob. citada, pág. 140, “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade” (https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2021:3157.17.8T8VFX.L1.S1.CD/
Retomando o caso dos autos, do próprio teor da invocação da nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1. al. b) do CPC verifica-se que não é a absoluta falta de fundamentação de facto que os recorrentes expressam.
Na verdade, da sentença recorrida constam factos provados que servem de base à decisão sobre a invocada excepção da prescrição (veja-se o ponto 6 dos factos provados), e na sua motivação estão discriminados os meios de prova em que o Tribunal se baseou para formar a sua convicção a respeito dos mesmos.
Quando muito a deficiência que por aquela via os recorrentes apontam à sentença é a falta, como provado, de um facto - ter sido opção dos apelantes o fracionamento em prestações do fornecimento do café - em que assentou o raciocínio que conduziu à decisão de improcedência daquela excepção, assim como a inexistência da respectiva motivação, o que, como vimos, não constitui falta de fundamentação geradora de nulidade, mas antes questão sobre o mérito da acção a ser apreciada nos termos que infra serão expostos.
Quanto à nulidade a que se refere o art. 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, socorremo-nos uma vez mais das palavras do STJ, desta feita no acórdão de 17/12/2024 (Proc. 8567/20.0T8LSB.L1.S1; rel. Rosário Gonçalves): “nos termos de tal alínea, é nula a sentença, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Conforme refere, Cardona Ferreira, in Guia de Recursos em Processo Civil, 3ª. ed., pág. 36 «A hipótese da alínea c) reporta-se ao processo lógico de raciocínio e não a opção voluntária decisória, ou seja, nulidade não é o mesmo que erro de julgamento».
A decisão judicial é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível e é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes – Abrantes Geraldes – Paulo Pimenta – Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º., pág. 738.
No dizer de Alberto dos Reis, in CPC. Anotado, ano de 1981, Reimpressão, vol. V «Tal nulidade só ocorre quando existe no raciocínio do julgador um vício lógico, isto é, quando os fundamentos por ele invocados conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto».
Para Antunes Varela e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª. ed., pág. 689…há um vício real no raciocínio do julgador e não um simples lapsus calami do autor da sentença; a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direção diferente.
Diz-se que a sentença padece de obscuridade quando algum dos seus passos enferma de ambiguidade, equivocidade ou de falta de inteligibilidade: de ambiguidade quando alguma das suas passagens se presta a diferentes interpretações ou pode comportar mais de um sentido, quer na fundamentação, quer na decisão; de equivocidade quando o seu sentido decisório se perfile como duvidoso para um qualquer destinatário normal. Mas só ocorre esta causa de nulidade constante do 2º segmento do art. 615º/1/c, se tais vícios tornarem a “decisão ininteligível” ou “incompreensível” (cfr. Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, volume II, 2ª edição, pp. 436-437).
O vício da alínea c) do nº1 do art. 615º só ocorre quando os fundamentos de facto e de direito invocados no acórdão recorrido conduzirem de acordo com um raciocínio lógico a resultado oposto ao que foi decidido, ou seja, quando a fundamentação apresentada justifica uma decisão precisamente oposta à tomada, como refere o Ac. do STJ. de 2/3/2011, in http://www.dgsi.pt.
Para efeitos da nulidade por ininteligibilidade da decisão, prevista no art. 615º/1/c/2ª parte, do CPCivil, ambígua será a decisão à qual seja razoavelmente possível atribuírem-se, pelo menos, dois sentidos díspares sem que seja possível identificar o prevalente; obscura será a decisão cujo sentido seja impossível de ser apreendido por um destinatário medianamente esclarecido, como se alude no Ac. STJ. de 8/2/2018” (in www.dgsi.pt).
Ora, a contradição assacada pelos recorrentes à sentença em apreciação insere-se no âmbito da própria fundamentação, não dizendo respeito à oposição entre os fundamentos e a decisão, porquanto cada um dos fundamentos isoladamente considerados é susceptível de conduzir à decisão de improcedência da prescrição.
Por outro lado, a descrita ambiguidade não torna o sentido da decisão ininteligível ou incompreensível e, como tal, não constitui causa da nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do citado art. 615.º do CPC.
Assim, as invocadas nulidades improcedem.
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3.2.2 Da impugnação da decisão de facto
Os recorrentes invocam erro no julgamento quanto ao ponto 11 do elenco dos Factos Provados.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC, segundo o qual a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Para o efeito, o art. 640.º, n.º 1 do CPC impõe que o recorrente especifique obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Assim, no que concerne a esta parte do recurso interposto pelos recorrentes, da leitura das respectivas alegações e conclusões, constata-se que os mesmos discordam da decisão no que se refere ao ponto 11, propondo para o mesmo uma outra redacção, assentando a sua divergência na apreciação de um determinado meio de prova que especificadamente identificam.
Os recorrentes cumpriram os aludidos ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, pelo que, no que respeita aos factos especificadamente indicados, importa reapreciar os meios de prova disponíveis no processo, posto que, como escreve Abrantes Geraldes, embora “a modificação da decisão da matéria de facto esteja dependente da iniciativa da parte interessada e deva limitar-se aos pontos de facto especificadamente indicados, desde que se mostrem cumpridos os requisitos formais que constam do art. 640.º, a Relação já não está limitada à reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, devendo atender a todos quantos constem do processo, independentemente da sua proveniência (art. 413.º), sem exclusão sequer da possibilidade de efetuar a audição de toda a gravação se esta se revelar oportuna para a concreta decisão” (in “Recursos em Processo Civil”, 7.ª Edição, Almedina, pág. 341).
O art. 607.º, n.º 5 do CPC, de que outros preceitos legais como os arts. 389.º, 381.º e 396.º do CC, a propósito, respectivamente da prova pericial, da inspecção judicial e da prova testemunhal, dão eco, consagra o princípio de que o juiz aprecia livremente a prova segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, excluindo desta livre apreciação os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Na verdade, as provas, dispõe o art. 341.º do CC, têm por função a demonstração da realidade dos factos, o que, como ensinam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, não se consegue “visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente), como é por exemplo, o desenvolvimento de um teorema nas ciências matemáticas”. Esclarecendo, os mesmos autores escrevem que “A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, e que “O resultado da prova traduz-se assim, as mais das vezes, num efeito psicológico, embora a demonstração que a ele conduz no espírito do julgador envolva a cada passo operações de carácter lógico” (in “Manual de Processo Civil”, 2.ª Edição, Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Limitada, págs. 435/436).
Daí que, na fundamentação da sentença, o art. 607.º, n.º 4 do CPC imponha que o juiz declare quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
Os supra citados autores salientam que “Além do mínimo traduzido na menção especificada (relativamente a cada facto provado) dos meios concretos de prova geradores da convicção do julgador, deve este ainda, para plena consecução do fim almejado pela lei, referir, na medida do possível, as razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova” (in loc. cit., pág. 653).
Verdade que, como sublinha Abrantes Geraldes, “existem aspectos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador.
O sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1.ª instância a perceção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os fatores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo aos tribunais retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo.
Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização da motivação da decisão da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou de verbalizar, mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção formada acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos” (in loc. cit., págs. 348 e 349).
Em todo o caso, sublinha este autor que “a Relação poderá e deverá modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado…se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro, deve proceder à correspondente modificação da decisão. E para isso, tem de pôr em prática as regras ditadas acerca da impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto provada e não provada” (in loc. cit., págs. 348 e 350).
Efectivamente, a questão que se coloca relativamente à prova, quer na 1ª Instância quer na Relação, é sempre a da valoração das provas produzidas em audiência ou em documentos de livre apreciação, pois que, em ambos os casos, vigoram para o julgador as mesmas normas e os mesmos princípios.
Retomando o caso dos autos, vejamos o concreto ponto da matéria de facto cuja decisão foi impugnada pelos recorrentes.
Quanto ao ponto 11 dos factos provados – entendem os recorrentes que a prova produzida contraria a afirmação ali vertida de que “Autora e réus procederam à prévia negociação e discussão dos termos do contrato, tendo acordado as condições comerciais em que ambas as partes estavam dispostas a celebrar o contrato”,e que antes deve constar como provado que o “O contrato foi previamente elaborado pela Autora, sem discussão das suas cláusulas, nomeadamente as penalizações, com exceção do volume de café a comprar”.
Entendem os recorrentes que a prova testemunhal produzida constituída unicamente pela testemunha CC, funcionário da A. desde Outubro de 2015, com as funções de supervisor, contraria o teor daquele ponto dos factos provados, porquanto o mesmo em julgamento afirmou que “os contratos são elaborados pela A...”; “são todos iguais, dependendo do tipo de contrato”; “todas as cláusulas são iguais; o que difere são os “quilos contratados”; “a génese do contrato é sempre a mesma”, respondendo afirmativamente sobre se há uma minuta previamente elaborada pela recorrida.
Ouvido o depoimento da identificada testemunha, verifica-se, que, efectivamente, a mesma depôs no sentido de a generalidade das cláusulas do contrato em apreço serem previamente elaboradas pela recorrida e serem comuns a todos os contratos do mesmo tipo, salvo, naturalmente, a identificação do cliente e do estabelecimento comercial que o mesmo explora, e com excepção da quantidade de café do lote a que cada contrato individual se refere, ou seja, a quantidade de café que cada cliente se compromete a comprar é com ele concretamente negociado, também em função do preço do lote de café que é comercializado, que, normalmente, dá lugar o mais barato a quantidades maiores e o mais caro a quantidades menores.
Quanto a esta parte não oferece dúvidas, portanto, que da prova produzida resultou demonstrado, excepto quanto àqueles aspectos - identificação dos recorrentes e do seu estabelecimento, e lote/quantidade de café – que as cláusulas do contrato foram pré-elaboradas pela recorrida, facto contido no art. 49.º da Contestação.
Acresce que a testemunha afirmou que todas as cláusulas do contrato, inclusive quanto às consequências do incumprimento do contrato, são explicadas aos clientes.
Seguro que a testemunha justificou o seu conhecimento quanto às explicações prestadas aos clientes com o que é a prática da recorrida, para quem trabalha desde Outubro de 2015, não podendo garantir, porque não estava lá, que essas explicações tenham sido prestadas aos recorrentes cujo contrato data de 1999.
Todavia, deste contrato, cuja celebração pelos recorrentes não foi impugnada pelos próprios (Ponto 2 dos factos provados) consta:
- a identificação dos recorrentes;
- a identificação da actividade de exploração de um estabelecimento comercial de café pelos recorrentes bem como a identificação desse estabelecimento denominado de “Café B...”;
- as cláusulas relativas ao seu objecto, como seja o compromisso dos recorrentes adquirirem à recorrida a quantidade 2.000 Kg de café em prestações mínimas de 30 Kg mensais ao preço de tabela; a bonificação de 4.178,40 € (837.694$00) a prestar, anual e proporcionalmente pela recorrida aos recorrentes em contrapartida pela aquisição e pagamento daquela quantidade de café (pontos 1 e 2 do contrato);
- a venda e entrega na mesma data pela recorrida aos recorrentes de determinados bens com reserva de propriedade (cl. 5 do contrato);
- as consequências para os recorrentes do seu incumprimento nos termos do ponto 9 que tem a seguinte redacção:
“Se os SO – por facto que lhes seja imputável – não efetuarem compras de café durante três meses, ou não realizarem um mínimo trimestral de compras de noventa (90) quilos de café – em dois trimestres seguidos ou interpolados – ou não pagarem duas quaisquer faturas vencidas no prazo de oito (8) dias, a contar dos seus vencimentos, poderá a PO resolver o contrato, reclamar indemnização em montante equivalente a vinte por cento (20%) do valor do café prometido e não adquirido, vencendo-se imediatamente a obrigação de pagamento do preço em divida dos bens de equipamento ora vendidos…”.
Para mais está assente que:
- o referido contrato tinha como destino o estabelecimento comercial sob a designação Café B..., sito no Lugar ..., ..., ... – ... (ponto 3);
- os bens referidos no ponto 5 do contrato foram entregues aos RR. no próprio dia da celebração do contrato, 17/09/1999 (ponto 4);
- desde setembro de 1999 a março de 2006, os réus compraram 989 kg de café dos 2.000 kg prometidos em compra (ponto 5), e
- depois de março de 2006, os réus não voltaram a comprar qualquer café à autora (ponto 6).
Do teor do contrato em causa resulta desde logo a identificação dos recorrentes e bem assim a identificação do estabelecimento de café explorado pelos próprios a que o equipamento constituído por 1 máquina de café de 2 grupos e um moinho e o próprio café a adquirir se destinava, informações que foram necessariamente fornecidas pelos recorrentes e que dão conta da existência de contactos entre os mesmos e a recorrida e da preparação, explicação e aceitação dos termos do contrato por ambas as partes, no que respeita àqueles aspectos e, em relação a todos os demais ali abordados, como seja os relativos às obrigações contratuais e ao seu incumprimento.
Na verdade, a quem exerce a actividade de exploração de um estabelecimento de café não pode deixar de se reconhecer competências para o efeito, designadamente no que respeita à celebração de contratos de fornecimento dos bens e equipamentos indispensáveis ao seu funcionamento. Não pode, outrossim, admitir-se, por implausível, que um comerciante subscreva um contrato deste género sem saber exactamente quais os direitos que lhe assistem e quais as correspondentes obrigações a que se vincula.
Note-se que o equipamento de cafetaria em causa neste contrato foi entregue aos recorrentes no próprio dia em que o contrato foi celebrado, pelo que, sendo inevitável saber que lhe correspondia uma contrapartida, não se concebe, por inverosímil, que aqueles não se tenham inteirado dessa contrapartida, do modo de a prestar e das consequências do seu incumprimento. E o mesmo se diga em relação à aquisição do café que os recorrentes deram mostras de ter compreendido comprando a quantidade de 989 kg ao longo dos mais de cinco anos em que o contrato vigorou entre as partes. Aliás, a compra do café que distingue individualmente os contratos implica necessariamente a negociação deste ponto, o que, na prática normal de um comerciante, não se faz sem discussão e esclarecimento de todos os aspectos associados a esse ponto, como seja as quantidades, o preço, o incumprimento e a sua relação com a entrega do equipamento que, sendo feita na data da celebração do contrato, não podia ser ignorada pelos recorrentes, o mesmo sucedendo com o teor do contrato em causa, que justamente versa sobre aqueles aspectos e contém uma cláusula que faz coincidir o seu termo final com a aquisição da totalidade do café prometida em venda.
Afigura-se-nos, pois, que o depoimento da identificada testemunha CC de que quando vai celebrar o contrato a recorrida explica sempre aos clientes as suas cláusulas, designadamente as relativas a valores, modo de pagamento e consequência do incumprimento, está devidamente sustentado pelas regras da experiência comum em geral e daquelas que são próprias do ramo de negócio em causa, e, como tal, apesar de essa testemunha não ter, em representação da recorrida, negociado e celebrado o contrato dos autos, considera-se que o seu depoimento, pelas razões supra expostas, é suficiente para demonstrar que aquela prática da recorrida foi observada com os recorrentes.
Se assim é, demonstrada a explicação sobre as cláusulas contratuais pré-elaboradas pela recorrida pode depreender-se, sem esforço, que o seu teor, significado e alcance foi objecto de discussão e análise conjunta pelas partes e que, portanto, os recorrentes acordaram, porque estando esclarecidos aceitaram fazê-lo, as condições comerciais em que celebraram o contrato em discussão.
O que, todavia, tais explicações e discussão entre as partes não permitem concluir é que por essa via os recorrentes influenciaram os termos das cláusulas pré-elaboradas pela recorrida, mormente a constante do ponto 9, relativa às consequências do seu incumprimento contratual, cuja nulidade é invocada pelos próprios. Uma coisa são as explicações prestadas pela recorrida acerca dos termos do contrato pré-elaborado por si, e a aceitação esclarecida por parte dos recorrentes do teor das respectivas cláusulas. Outra coisa é os recorrentes, por via da discussão prévia à assinatura do contrato, terem influenciado os seus termos, para além da parte relativa ao volume do café a comprar, designadamente quanto ao seu ponto 9 relativo às consequências do incumprimento das suas obrigações contratuais.
Na verdade, a mencionada testemunha, apesar de ter salientado que tudo é explicado ao cliente e que este sabe o que está a assinar, foi clara ao enfatizar o facto de os contratos, dentro do seu tipo, serem todos iguais, de já haver uma minuta, e de que o que difere é, em função do lote de café, “o volume de kilos” de café, único ponto que depois é negociado com o cliente.
Assim, mais do que a falta de prova de que as cláusulas contratuais foram negociadas (cujo ónus competia à recorrida nos termos do art. 1.º, n.º 3 do DL n.º 446/85 de 25/11), os meios de prova produzidos demonstram que, salvo na parte relativa ao lote e quantidade de café a comprar, os recorrentes, como haviam alegado, não participaram na negociação do conteúdo dessas cláusulas pré-elaboradas pela recorrida (sobre o ónus da prova nos contratos individualizados cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não possa influenciar vide com interesse o acórdão da RP de 13/03/2012 no Proc. 3951/08.0TBVFR.P1, rel. M. Pinto dos Santos, in www.dgsi.pt).
Assim, com base na prova produzida e analisada nos termos sobreditos, relativamente aos factos, que a respeito da matéria impugnada vertida no ponto 11 dos factos provados, foi alegada pelos recorrentes e pela recorrida, o tribunal de recurso considera provados os seguintes factos:
- Tal contrato foi previamente elaborado pela A., com cláusulas tipificadas (art. 49.º da Contestação).
- Os RR. puderam escolher o lote do café e determinar os quantitativos mínimos mensais estipulados no contrato (art. 43.º da Resposta).
- Os RR. não negociaram o restante clausulado do contrato (art. 49.º da Contestação).
De onde, julgando procedente a impugnação se determina a eliminação do ponto 11 dos factos provados e o aditamento como provados dos factos vertidos nos 3 pontos que antecedem.
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3.2. Reapreciação da decisão de mérito da acção
Cumpre agora saber se, designadamente por força da alteração da matéria de facto, se impõe a modificação da decisão de mérito que os recorrentes demandam no sentido de:
A) a excepção da prescrição ser julgada procedente;
B) a excepção do abuso do direito ser julgada procedente;
C) a excepção da nulidade da cláusula 9 do contrato ser julgada procedente, e
D) ser outro o valor da indemnização devida.
A) Da excepção da prescrição.
A este respeito, defendem os apelantes que a decisão do tribunal recorrido que julgou improcedente a excepção da prescrição invocada pelos mesmos deve ser revogada, por entenderem que em causa estão obrigações periodicamente renováveis - porquanto o pagamento fraccionado, constando do contrato pré-elaborado pela recorrida, não foi opção dos próprios enquanto compradores - a que se aplica o prazo de 5 anos previsto no art. 310.º, al. g) do CC e não o prazo ordinário de 20 anos previsto no art. 309.º do CC, que, a ser aplicável, começa a correr desde a data da celebração do contrato em Setembro de 1999 e não desde 2006 por não ter sido dado como provado o início do incumprimento e por a qualificação pelo tribunal a quo das prestações em apreço como prestações fraccionadas e não periódicas impedir o recurso ao disposto no art. 307.º do CC para determinar o início da prescrição.
O art. 298.º, n.º 1 do CC dispõe que estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.
Trata-se da chamada prescrição extintiva que, como ensina, Manuel de Andrade, “é o instituto por via do qual os direitos subjectivos se extinguem quando não exercitados durante certo tempo fixado na lei” e que, além de ter outras razões secundárias a justificá-lo, como seja a necessidade de certeza e segurança jurídica, tem por fundamento específico a “negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo indicado na lei” e que “faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular) indigno de protecção jurídica” (in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, Coimbra, 1992, pág. 445).
Assim, completada a prescrição, determina o art. 304.º, n.º 1 do CC que o beneficiário tem a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito, não podendo, contudo, segundo o n.º 2 do mesmo preceito legal, ser repetida a prestação realizada espontaneamente em cumprimento de uma obrigação prescrita, ainda quando feita com ignorância da prescrição.
A par do prazo ordinário de 20 anos consagrado no art. 309.º do CC, estabelece a lei prazos mais curtos, como seja o prazo de 5 anos previsto no art. 310.º para as prestações discriminadas nas respectivas alíneas, entre as quais se conta a al. g) dedicada a quaisquer outras prestações periodicamente renováveis.
Em face da apontada distinção legal importa recuperar os ensinamentos da doutrina acerca da diferenciação entre obrigações duradouras e obrigações instantâneas em que a relevância do factor tempo nas relações jurídicas é evidenciada.
Com esse propósito citaremos Carlos Alberto da Mota Pinto:
“Se há obrigações que se esgotam num momento determinado – isto é, em que a prestação fica satisfeita em dada altura e sobre a qual o tempo não tem qualquer influência –, o mesmo não acontece em certas outras, cuja execução se prolonga no tempo e em que este influi no montante da prestação. As do primeiro grupo (de que são exemplo, as obrigações de entregar determinado objecto, de pagar o preço, etc.) extinguem-se pelo cumprimento através de um só acto do devedor – de um só golpe – e são designadas obrigações de execução instantâneas; as do segundo não se extinguem com um único acto do devedor e o tempo é aí um factor determinante do contrato global da prestação – são as obrigações duradouras.
Mencionamos o caso da obrigação do locatário de pagar a renda e a do locador de assegurar o uso da coisa locada…
Por aqui se vê que estas obrigações não apresentam sempre a mesma forma de cumprimento, isto é, a sua prestação ora é satisfeita sem interrupção no tempo, continuadamente, ora se renova em prestações sucessivas e parcelares. Distinguem-se, por isso, entre obrigações duradouras de execução continuada e obrigações periódicas, reiteradas ou com trato sucessivo…
Cabe ainda fazer referência às obrigações de prestação fraccionada ou repartida que, apesar do seu cumprimento se prolongar no tempo, não podem ser consideradas obrigações duradouras. Com efeito, a obrigação de pagar o preço a prestações cumpre-se em fracções sucessivas durante um certo período de tempo, mas o tempo não exerce influência no seu montante – o que é nota característica das obrigações duradouras.
Por isso, nas relações duradouras não estão compreendidos os casos em que o tempo não tem influência sobre o conteúdo e montante da prestação. Tanto as relações duradouras como as de prestação instantânea ou de prestação fraccionada têm em princípio e um fim, uma existência entre dois polos temporais; a duração em si não constitui nota distintiva de ambas as espécies, mas é diversa a sua estrutura temporal específica, isto é, o sentido que toma a sua existência entre o ponto inicial e o momento final. As obrigações não duradouras (de prestação instantânea ou de prestação fraccionada) existem em função ou em ordem a um fim; têm por objecto uma só prestação, a realizar de uma só vez ou em fracções, com cujo cumprimento o devedor se liberta, tendendo a terminar através da efectivação da prestação. Há, assim, entre o termo da sua existência e a sua função, ou seja, o seu significado, uma conexão essencial de tal modo que elas perecem na realização da sua função ou do seu sentido; para o credor, quanto mais curta for a sua existência, tanto melhor. Estes deveres de prestação duradoura cumprem a sua função, na medida em que existem e enquanto existem; o termo da sua existência é uma rotura que não está em conexão essencial com a função e o significado da obrigação; para o credor, quanto mais durarem, tanto melhor” (in “Teoria Geral do Direito Civil”, 3.ª Edição Actualizada, Coimbra Editora, Limitada, págs. 637 e ss.).
Estabelecendo a mesma destrinça, Antunes Varela reforça que “Nas obrigações duradouras, a prestação devida depende do factor tempo; nas prestações fraccionadas, o tempo não influi na determinação do seu objecto, apenas se relacionando com o modo da sua execução” (in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 6.ª Edição, Almedina, Coimbra, pág. 96).
Retomando o caso dos autos, verifica-se que as prestações decorrentes do contrato celebrado entre as partes são, por um lado, o compromisso dos recorrentes adquirirem uma quantidade global de 2000 Kg de café através de fracções mensais mínimas de 30 Kg, mediante o pagamento do respectivo preço, até atingir aquela quantidade, e, em contrapartida, a bonificação pela recorrida aos recorrentes de 4.178,40 € em ordem a permitir, através de compensação anual e proporcional ao pagamento das aquisições anuais de café, o pagamento por estes àquela do equipamento de estabelecimento de café que a mesma lhes vendeu e entregou no início do contrato.
Do teor do contrato assim sucintamente descrito resulta que efectivamente as prestações a que os recorrentes se obrigaram foram as de comprar e pagar uma quantidade unitária de café, 2.000 Kg, assim como pagar o equipamento que a recorrida lhes vendeu, cujo cumprimento, de uma e outra prestação, foi fraccionado ao longo do tempo, a primeira por via da compra e pagamento da quantidade mínima de 30 Kg de café por mês e a segunda por via da compensação anual e proporcional com a bonificação de 4.178,40 € concedida pela recorrida.
Em situação semelhante à dos autos, pronunciou-se a Relação do Porto em acórdão de 15/10/2013 (Processo 3992/12.3TBPRD.P1, rel. Vieira e Cunha), nos seguintes termos: “a análise do contrato que supra transcrevemos, nos “factos provados”, verificamos que o compromisso dos Réus para com a Autora estava na aquisição de determinada quantidade global de café, repartida em fracções, no mínimo de 40 quilos mensais. Não obstante, existia ainda, no âmbito das relações contratuais estabelecidas, um compromisso da Autora para com os Réus – comprometia-se ela Autora a efectuar um desconto no custo do café, mas sobretudo, logo no início do contrato, também entregou aos Réus a quantia de Esc. 100.000$00 para compra de bens de equipamento e mais vendeu aos RR. determinados bens (equipamentos), no valor de Esc. 360.623$00, relativamente aos quais a obrigação do pagamento se venceria no final da execução do contrato, ou então com a resolução do contrato pelas partes, por força das vicissitudes que o contrato previa. Ou seja – o crédito da Autora encontrava-se previamente fixado, embora competisse aos Réus o pagamento à medida que as partidas de café fossem encomendadas pelos Réus e fornecidas pela Autora. Ou seja, ainda, encontramo-nos perante um objecto prestacional global, previamente fixado, embora a poder ser solvido nas prestações correspondentes às encomendas de café, ao longo do tempo. Está em causa o valor total do café adquirido, pese embora tal valor poder ser entregue em prestações. Tal valor global também se reflecte na indemnização forfaitaire fixada para o evento resolução, no contrato, e agora peticionada por via da presente acção judicial – fixada em percentagem dos bens e da quantia em falta para atingir o valor final acordado. Não estamos assim perante prestações singulares sucessivas, correspondentes a períodos de tempo determinados – na visão da doutrina, não nos encontramos pois perante prestações determinadas, apenas e só, pelo factor “tempo”, mas antes por prestações previamente obtidas, ao menos no seu montante mínimo, de acordo com um valor global previamente fixado” (in www.dgsi.pt).
À luz do que fica dito, colhe-se, portanto, que as prestações mensais dos recorrentes não são prestações individuais, sucessivas e com autonomia gerada por um determinado período de tempo, antes se reportam e estão subordinadas à obrigação prestacional pré-existente.
No apontado acórdão da RP de 15/10/2013 pode ler-se ainda que: «o Prof. Menezes Cordeiro (Tratado, Dtº das Obrigações, I/524) chama a atenção para que o prolongamento no tempo da prestação contratual pode dar origem a outras distinções, salientando:
“- a relação de fornecimento, quando se traduza em sucessivas transferências de propriedade sobre coisas corpóreas;”
“- a relação de serviço, quando esteja em causa um facere prolongado;”
“- a relação-quadro, quando implique sucessivos actos jurídicos, no seu desenvolvimento.”
Precisamente o Ac. R.C. 1/7/2008 Col.III/39, relatado pelo Desemb. Barateiro Martins, salientou o facto de as prestações contratuais que se desenvolvem dentro de um contrato-quadro (exemplificado, no caso do acórdão pelo contrato de concessão comercial) caírem fora da prescrição de 5 anos a que alude a citada al.g) do artº 310º”.
Também na situação em discussão, as prestações parcelares que os recorrentes aceitaram nos termos do contrato que quiseram celebrar decorrem de um objecto contratual global, cujo tempo exigido para a sua execução repartida, no essencial, não o determina nem influencia, e, consequentemente, não lhe acrescenta, sem prejuízo de possíveis variações do preço de mercado, valor adicional com o qual aqueles não pudessem contar desde o início.
Foi naturalmente opção dos recorrentes aceitar o contrato e as suas cláusulas, inclusive as que estabelecem as regras relativas ao seu cumprimento fraccionado ao longo do tempo nos termos sobreditos. Na realidade, a pré-elaboração das cláusulas contratuais, ou da generalidade delas, por uma das partes, e inclusive a sua não negociação, como, com excepção do lote e quantidade de café, sucedeu in casu, não significa falta de conhecimento pelos clientes, no caso os recorrentes, do teor, significado e alcance dessas cláusulas e falta de aceitação das mesmas. Da análise crítica da prova produzida que este tribunal levou a cabo, resultou que, não tendo sido negociadas – salvo o lote e volume de café - as cláusulas contratuais foram, em todo o caso, explicadas.
E ao aceitar celebrar o contrato dos autos, os recorrentes quiseram celebrá-lo assim como quiseram as cláusulas que conheciam, inclusive a que repartia a compra dos 2.000 Kg de café que se obrigaram a adquirir por compras mensais de pelo menos 30 kg.
Trata-se de uma obrigação não de prestação periódica mas antes de prestação fraccionada ou repartida e, como tal, considera-se, como considerou o tribunal recorrido, que aos direitos da recorrida provenientes do incumprimento do contrato dos autos se aplica o prazo geral de 20 anos que, por força do art. 306.º, n.º 1 do CC, começa a contar-se quando o direito puder ser exercido, ou, se o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, quando findar esse tempo.
Dos factos provados, consta que desde Setembro de 1999 a Março de 2006, os recorrentes compraram 989 kg de café dos 2.000 kg prometidos em compra e que depois de Março de 2006 não voltaram a comprar qualquer café à recorrida, na sequência do que esta, considerando findo o contrato, primeiro por carta de 16/04/2007 dirigida àqueles exigiu o pagamento no prazo de 15 dias de valores indemnizatórios pelo seu incumprimento, e depois por carta de 15/09/2008 declarou resolvido o contrato e interpelou os mesmos para no prazo de 15 dias lhe pagarem os valores de 2.112,18 € (dívida pela aquisição do equipamento); 3.538,61 € (20% do valor do café não comprado) e 424,16 € (2 facturas uma de 6/10/2005 e outra de 7/02/2006).
Daqueles valores, os dois primeiros constituem o valor global da indemnização a prestar pelos recorrentes à recorrida em resultado da declaração de resolução fundada no incumprimento das obrigações contatuais originárias. Já não se trata, pois, de uma prestação destinada a cumprir uma obrigação contratual inicial mas antes uma prestação que tem por objecto um dever que nasce com a resolução do contrato (com interesse Baptista Machado, in “Obra Dispersa”, Vol. I, Scientia Ivridica, pág. 195).
Ora, como resulta do art. 436.º, 224.º, n.º 1 e 230.º, n.ºs 1 e 2 do CC, a resolução opera-se por meio de declaração unilateral receptícia e torna-se irrevogável quando chega ao poder do devedor ou é dele conhecida. “Trata-se, como escreve Pedro Romano Martinez, de uma declaração informal, mas receptícia, pois só se torna eficaz quando chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida (art. 224.º do CC). Acrescenta o mesmo autor que “Ainda, segundo o regime geral, a declaração mediante a qual uma das partes resolve o contrato será expressa ou tácita (art. 217.º do CC) e, eventualmente, em casos limitados, o silêncio pode valer como declaração de resolução (art. 218.º do CC” (in “Da Cessação do Contrato”, 2017, 3.ª Edição, Almedina, pág. 171).
Porque assim é, antes da declaração de resolução da recorrida, os recorrentes não podiam pagar o referido valor indemnizatório associado à cessação do contrato por aquela via.
No caso, a resolução foi efetuada por carta de 15/09/2008, e com ela a interpelação dos recorrentes para, no prazo de 15 dias, pagarem a dita indemnização a que a recorrida passou a ter direito. Antes disso, já a recorrida, por carta de 16/04/2017, havia interpelado os recorrentes para, em igual prazo de 15 dias, procederem ao pagamento da indemnização, de valor embora distinto, em todo o caso devida pelo incumprimento do contrato a que punham fim. Admite-se a validade e eficácia resolutiva da declaração (tácita) contida nesta interpelação.
Como quer que seja, só estando os recorrentes obrigados a pagar o valor global indemnizatório pela cessação do contrato decorrido um determinado período de tempo, no caso 15 dias, o prazo de prescrição de 20 anos a que o correspondente direito da recorrida está sujeito, por força do citado art. 306.º, n.º 1, 2.ª parte do CC, só desde então começou a correr, quer se considere a declaração tácita de resolução de 2007, quer a resolução expressamente declarada em 2008, e, portanto, é manifesto que o direito indemnizatório que a recorrida demanda através da presente acção ainda não prescreveu, como concluiu o tribunal de 1.ª Instância, embora com fundamentos distintos.
Quanto ao mencionado valor das facturas, sendo elas de 2005 e 2006, respectivamente, sucede que, só podendo os respectivos créditos serem exigidos em data posterior, a correspondente prescrição de 20 anos, de harmonia com o art. 306.º, n.º 1, 1.ª parte do CC, ainda não se esgotou.
Não assiste, portanto, razão aos apelantes, e, como tal, nesta parte, o recurso improcede.
B) Da excepção do abuso do direito.
Discordam os apelantes da decisão que julgou improcedente a excepção do abuso do direito na modalidade de supressio por parte da recorrida, na medida em que, ao contrário do tribunal recorrido, entendem que os factos provados são suficientes para o efeito.
Sobre o abuso do direito, o art. 334.º do CC diz-nos que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
“É com estas três hipóteses, explica Heinrich Ewald Hörster, que a lei procura obter um controlo ou uma moderação do poder, fazendo com que o exercício do direito subjectivo por parte do seu titular se efectue dentro do quadro resultante do fim para o qual foi atribuído. O instituto do abuso do direito representa o controlo institucional da ordem jurídica quanto aos exercícios dos direitos subjectivos privados, garantindo a autenticidade das suas funções” (in “A Parte Geral do Código Civil Português -Teoria Geral do Direito Civil”, Almedina Coimbra 1992, pág. 281).
Prosseguindo, em particular sobre o abuso do direito na modalidade de perda de direito (ou Verwirkung), este autor escreve que “O titular do direito não invoca o mesmo durante bastante tempo, sem que se tenha preenchido o prazo de prescrição, e observa simultaneamente um comportamento através do qual o devedor podia legitimamente concluir que o direito já não seria exercido. A perda do direito pode ter lugar quando se trata de prazos de prescrição compridos. Em qualquer caso, são sempre necessárias circunstâncias especiais que justifiquem a sua invocação, sob pena de esvaziamento das regras da prescrição” (in loc. cit., pág. 286).
Por sua vez, Baptista Machado ensina que “Nas situações em que a “Verwirkung” opera combinam-se as seguintes circunstâncias:
a) o titular de um direito deixa passar longo tempo sem o exercer;
b) com base neste decurso do tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido;
c) movida por esta confiança, essa contraparte orientou em conformidade a sua vida, tomou medidas ou adoptou programas de acção na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado” (in loc. cit. pág. 421).
Nesta linha de pensamento, a RP, em acórdão de 30/05/2017 (Proc. 15612/15.0YIPRT.P1; rel. Vieira e Cunha), a propósito das características da supressio escreveu que “Na supressio, tais características vêm a assumir as seguintes configurações características:
- um não-exercício prolongado do direito;
- uma situação de confiança, daí derivada;
- uma justificação para essa confiança;
- um investimento de confiança;
- a imputação da confiança ao não-exercente”.
Volvendo à situação sub iudice, o que o tecido factual revela é que depois de os recorrentes a partir de Março de 2006 terem deixado de comprar café à recorrida (Ponto 6 dos factos provados), esta, após uma primeira interpelação daqueles em Abril de 2007 para pagarem uma indemnização pelo apontado incumprimento, em Setembro de 2008 voltou a interpelá-los para, em conformidade com o contrato, lhe pagarem o valor de 2.112,18 € correspondente ao preço dos bens fornecidos (4.178,40 €, deduzidos da bonificação de 2.066,22 € devida pela aquisição do café); o valor de 3.548,61 € correspondente à indemnização equivalente a 20% do café não adquirido; o valor de 425,16 € de facturas de café adquirido e não pago e o valor de 118,40 € de juros de mora.
Em ambas as cartas através das quais a recorrida fez as referidas interpelações, foi concedido aos recorrentes o prazo máximo de 15 dias para liquidação dos valores reclamados, com a advertência de que findo esse prazo recorreria aos meios judiciais competentes.
Desde então e até que foi instaurada a presente acção, não se colhe da factualidade apurada que a recorrida tenha agido no sentido de obter a satisfação da sua pretensão, pelo que entre um momento e outro passaram quase 15 anos, período que se pode considerar prolongado, posto que sendo inferior ao prazo de prescrição, equivale a dois terços do mesmo, e, portanto, cumprida está a primeira das apontadas características da denominada supressio.
E quanto às demais?
Percorrida a matéria assente não se divisa um único facto que revele uma situação de confiança por parte dos recorrentes criada pelo não exercício prolongado do direito nem que a inacção da recorrida tenha sido acompanhada de qualquer circunstância susceptível de justificar nos recorrentes uma confiança geradora de mudança na sua vida.
Nesta medida, a inacção da recorrente em propor a acção num período longo é insuficiente para concluir por abuso do direito na modalidade apontada.
Neste sentido, veja-se os acórdãos da RP de 9/11/2020 (Proc. 320/18.8T8CPV.P1, rel. Carlos Gil aqui primeiro adjunto) e de 30/05/2017 (Proc. 15612/15.0YIPRT.P1, rel. Vieira e Cunha), em que, respectivamente, se pode ler:
- “A simples inação da autora na propositura da ação por um período longo mas ainda longe do completamento do prazo prescricional ordinário de vinte anos é manifestamente insuficiente para concluir pelo preenchimento da “supressio”, enquanto modalidade de abuso do direito. De facto, não ressalta da factualidade provada uma situação de confiança derivada desse não exercício, uma justificação para essa confiança, um investimento de confiança e a imputação da confiança àquela que não exerceu judicialmente o direito durante onze anos e oito meses. Refira-se que mesmo em face da factualidade que o tribunal recorrido havia julgado provada, não havia factos que justificassem a convicção dos réus de que a autora não iria exercer o seu direito, nem um qualquer investimento de confiança e muito menos resultava da mesma factualidade que tal convicção era imputável à autora” (https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2020:320.18.8T8CPV.P1.56/).
- Concedemos, no caso concreto, que o não exercício do direito por um prazo tão longo é inesperado, inabitual, e é até susceptível de criar uma convicção (“confiança”) subjectiva de que o direito não será exercido.
Todavia, o que já não podemos afirmar, porque os factos o não corroboram, é que tenha existido qualquer espécie de justificação objectiva para essa confiança, com desenvolvimento de tentativas de indagação razoáveis por parte do devedor confiante, posto que outros factos, expressos, não decorriam aparentemente da actividade da credora. Factos que o tendiam a demonstrar (designadamente um acordo posterior entre as partes) não resultaram demonstrados. Também não decorrem dos autos quaisquer factos, mesmo que meramente instrumentais, dos quais se pudesse concluir que, para a Ré confiante, decorreu o prejuízo de um anterior “investimento de confiança”. Resta assim a afirmação da jurisprudência de que “o simples decurso do tempo sem o exercício de um direito não é suficiente para se poder concluir pelo abuso do direito” (cf. Ac.R.G. 5/2/2013, pº 4838/09.5TBBRG.G1, relatado pela Desª Ana Cristina Duarte). É claro que, em termos gerais, não deixa de surpreender, como já afirmámos atrás, que, para um montante de capital tão elevado como o discutido nos presentes autos, se tivesse deixado decorrer mais de 12 anos antes de o exigir judicialmente. É claro que à Ré se mostrava vedada a invocação pura e simples do instituto da prescrição do direito. Nesse sentido, e como puro obiter dictum, não podemos deixar de corroborar a afirmação do Prof. Menezes Cordeiro, Tratado – Parte Geral, IV, 2005, pg. 173, no sentido de que uma prescrição ordinária de 20 anos retira sentido ao instituto, tratando-se de um período muito longo, “irrealista”, entre o mais superior ao constante da legislação comparada – p.e, na Alemanha, após 2002, o prazo geral de prescrição é de 3 anos.
Trata-se porém de matéria a apreciar apenas de jure condendo” (https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2017:15612.15.0YIPRT.P1.B1/).
Improcede, assim, também neste ponto a pretensão recursiva dos apelantes.
C) Da excepção da nulidade da cláusula 9 do contrato
Defendem os recorrentes que a cláusula 9 do contrato em apreço, ao cumular com a resolução contratual o pagamento do preço do equipamento cuja propriedade havia ficado reservada para a recorrida, revela-se desproporcional, sendo, por isso, nula por força dos arts. 12.º e 19.º, al. c) do DL n.º 446/85, de 25/10, que aprovou o regime geral das cláusulas contratuais gerais, assim como, ao permitir o cumprimento coercivo da obrigação principal e o pagamento da cláusula penal, não pode ser admitida.
Na situação dos autos, a generalidade das cláusulas do contrato dos autos corresponde a cláusulas pré-elaboradas pela recorrida e constam de todos os contratos individuais do mesmo tipo celebrados por esta com os seus clientes, salvo no que diz respeito ao lote e ao volume de café, que são negociados com cada um deles. Este aspecto do contrato representando uma parte reduzida do contrato não deixa de ser uma parte essencial do mesmo.
Ainda assim, o contrato não fica automaticamente excluído do regime das cláusulas contratuais gerais instituído pelo DL n.º 446/85 de 25/10 e suas sucessivas alterações (RCCG), atento o disposto no seu art. 1.º, n.º 2, segundo o qual o mesmo aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar.
José Manuel de Araújo de Barros, em anotação a este preceito legal, clarificando o teor do preâmbulo do DL n.º 249/99, de 7/07, escreve que «O n.º 2 foi introduzido pelo DL n.º 249/99 de 7/07, para completar o ato de transposição da Directiva n.º 93/13/CEE iniciado pelo DL n.º 220/95, de 31 de agosto. Como se refere no seu preâmbulo “a protecção conferida aos consumidores pela Directiva n.º 93/13/CEE abrange quer o contratos que incorporam cláusulas contratuais gerais, quer os contratos dirigidos a pessoa ou consumidor determinado, mas em cujo conteúdo, previamente elaborado, aquele não pode influir”».
Esta linha de pensamento é expressa quer no citado acórdão da RP de 13/03/2012 (Proc. 3951/08.0TBVFR.P1, rel. M. Pinto dos Santos) quer no acórdão da RP de 10/10/2024 (Proc. 785/23.6T8MAI-A.P1, rel. Isabel Peixoto Pereira) em cujo sumário se pode ler “ I - Ainda quando se apure terem sido objecto de negociação algumas das cláusulas que constituem o núcleo do contrato, não está imediatamente excluída a aplicação ao caso do regime das CCG, desde que se verifique quanto ao contrato individual apreciando que as cláusulas que o integram: a) se desenham como cláusulas pré-elaboradas, existindo disponíveis antes de surgir a declaração que as perfilha; b) apresentam-se rígidas, sem possibilidade de alterações ao regime ou esquema delineado, sem prejuízo de acertamentos pontuais e concretos; c) e podem ser utilizadas por pessoas indeterminadas, quer como proponentes, quer como destinatários” (in www.dgsi.pt).
A debatida cláusula 9 do contrato faz parte de um conjunto de outras cláusulas pré-elaboradas pela recorrida, em ordem a serem inseridas numa pluralidade de contratos e, assim, serem apresentadas a múltiplos destinatários indeterminados que não têm a possibilidade de as selecionar ou de alterar o seu conteúdo.
Impõe-se, pois, apreciá-la à luz do RCCG, designadamente dos seus arts. 12.º, 17.º e 19, al. c) que consideram proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, e, consequentemente, nulas, as cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir.
Lembremos o seu conteúdo: “Se os SO – por facto que lhes seja imputável – não efetuarem compras de café durante três meses, ou não realizarem um mínimo trimestral de compras de noventa (90) quilos de café – em dois trimestres seguidos ou interpolados – ou não pagarem duas quaisquer faturas vencidas no prazo de oito (8) dias, a contar dos seus vencimentos, poderá a PO resolver o contrato, reclamar indemnização em montante equivalente a vintepor cento (20%) do valor do café prometido e não adquirido, vencendo-se imediatamente a obrigação de pagamento do preço em divida dos bens de equipamento ora vendidos, podendo, também, os SO resolver o contrato em caso de incumprimento culposo da PO”.
Se lida em conjugação com a prestação a que os recorrentes se obrigaram – compra de 2.000 Kg de café em fracções mensais de 30 kg/mês (pontos 1 e 4 do contrato) – verifica-se que a apontada cláusula 9 reveste a natureza de uma cláusula resolutiva expressa, na medida em que, com a cobertura do art. 432.º, n.º 1 do CC, as partes no próprio contrato atribuíram, no caso, à recorrida o poder de, com base num facto posterior à sua celebração, dissolver a relação contratual estabelecida.
Sobre o tema, ousamos convocar, pelo interesse para o caso decidendo, os ensinamentos de Brandão Proença que passamos a citar: “O poder resolutivo privado mais não é do que uma expressão da chamada autotutela dos direitos, traduzindo-se no poder potestativo unilateral ou bilateral de, com base em determinado(s) fundamento(s), quase sempre atinente(s) a um incumprimento, inseridos(s), por norma, no próprio contrato e no momento da sua celebração, o contraente legitimado fazer cessar o contrato. A cobertura legal para esta manifestação “autonómica” radica no n.º 1 do art. 406.º (“… ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei”) e, sobretudo, no disposto no n.º 1 do art. 432.º (É admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção”).
…
Sabendo-se que um contrato pode ser resolvido verificados que sejam os chamados fundamentos legais genéricos (é paradigmática a norma do art. 801.º, n.º 2, aplicada diretamente ou por reenvio da conversão da mora operada no seio do art. 808.º) e específicos, reconduzíveis, em linguagem menos moderna e pouco rigorosa, à existência de uma condição resolutiva tácita, que razões levam os contraentes a estipular frequentemente (por vontade expressa e livre) ou o predisponente a incluir nas condições contratuais gerais tais cláusulas resolutivas? Não haverá por parte dos estipulantes uma espécie de excesso de zelo contratual ao pensarmos que a autonomia reguladora parece perfeitamente “tutelada” pelo legislador? Não pretenderá a parte legitimada estabelecer um caminho mais fácil de desvinculação apesar de a resolução legal já ser eficaz, em regra, por mera declaração?
…
Também não desconhecemos, com alguma doutrina, que este tipo de acordo assume um papel preventivo, análogo à inclusão contratual de outras cláusulas (reserva de propriedade, cláusula penal indemnizatória e compulsória, sinal) que pretendem “recordar” os efeitos derivados de atitudes de incumprimento com o objetivo de evitar este mesmo incumprimento.
Analisando o regime resolutivo constantes dos arts. 432.º e ss., verifica-se que, com exceção do n.º 1 deste normativo, apenas no n.º 1 do art. 435.º e no n.º 2 do art. 436.º há uma referência particular à resolução convencional (o primeiro contendo uma prescrição imperativa e o segundo prevendo uma lacuna negocial quanto ao prazo de exercício do direito),o que significa que aquele regime vale indistintamente para os dois tipos de resolução e que uma resolução convencional que se limite a remeter para “os termos da lei” não exclui a aplicação dos pressupostos que condicionam a resolução legal.
É por isso que o leitmotiv deste tipo de clausulado de desvinculação reside na fuga à aplicação das normas dispositivas e supletivas do regime legal, incluindo aspetos de procedimento que tornem mais célere ou segura a própria eficácia da declaração resolutiva. Pensamos, por ex., na dispensa da chamada interpelação cominatória, na sua prévia fixação ou na estipulação das consequências para o decurso infrutífero do prazo suplementar …Como quer que seja, essa “fuga” não pode conduzir à predisposição de condições contratuais abusivas ou à negociação de um clausulado resolutivo contrário aos princípios fundamentais (sobretudo, o da boa-fé) que limitam a própria autonomia privada.
…
No plano dos fundamentos/pressupostos, partindo sempre da dupla consideração, não aceite pelo pensamento jurídico dominante noutros países, de que o fundamento convencionado não repousa necessariamente num incumprimento e que a culpa, como vimos, não é requisito essencial de qualquer resolução, as partes podem, por ex., colocar como razões resolutivas a mora no cumprimento de prestações de facto, de coisa ou mesmo pecuniárias…
No plano dos efeitos, na medida em que a retroatividade (obrigacional e real) não é uma consequência essencial ou necessária da resolução, os contraentes podem querer afastá-la nos contratos com prestações fracionadas, instituindo uma “Verfallklausel” (o que é admitido pela segunda parte do n.º 1 do art. 434.º ao “destruir” a presunção de retroatividade resultante da parte inicial do preceito e confirmado pelo n.º 2 do art. 935.º) ou mantê-la nos contratos duradouros propriamente ditos e que sejam propícios a tal”.
…
A cláusula resolutiva pode ser integrada por referências à indemnização devida, quer no sentido (mais raro) da sua exclusão (sem ofensa do disposto no art. 809.º) quer, na sua consideração como cláusula penal ou com um conteúdo indemnizatório determinado por critérios não coincidentes com os parâmetros dominantes de cálculo da indemnização associada à resolução.
…
Para lá da alusão ao tipo de incumprimento considerado (mora? incumprimento definitivo? recusa categórica de cumprimento? cumprimento defeituoso?) e à sua vertente causal (incumprimento imputável ou não imputável?), devem, assim, estar previstos um ou mais fundamentos concretos (que concretizem o incumprimento das obrigações ou cláusulas contratuais) e não meras cláusulas de estilo que repitam inutilmente a fundamentação legal” (in “Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações”, 2.ª Edição, Universidade Católica Editora, Porto, págs. 457 e ss.).
Volvendo à situação de que nos ocupamos, constata-se que associada à convenção resolutiva, as partes definiram os termos da indemnização devida à recorrida pelo incumprimento contratual dos recorrentes, determinando que, a par de uma percentagem sobre o valor da mercadoria não adquirida, estes tivessem de lhe pagar o valor do preço em dívida pelo equipamento vendido e entregue. Daqui resulta, antes de tudo o mais, que as partes, com abrigo legal nos arts. 406.º, n.º 1; 432.º, n.º 1 e 434.º, n.º 1, 2.ª parte do CC, pretenderam excluir da resolução a retroactividade que o art. 434.º, n.º 1, 1.ª parte, do CC lhe reconhece, posto que, em caso de incumprimento dos recorrentes que previram, não pretenderam que o contrato e os seus efeitos já produzidos viessem a ser eliminados, mas quiseram que nessa circunstância o contrato deixasse de subsistir para futuro (com interesse vide aindaPedro Romano Martinez, in “Da Cessação do Contrato”, 2017, 3.ª Edição, Almedina, pág. 181; Baptista Machado, in loc. cit. pág. 200 e ss., Daniela Farto Baptista, in AAVV, “Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral”, Universidade Católica Editora, pág. 135).
Inclusive, atento o valor em falta, 2.112,18 €, do preço do equipamento vendido, 4.178,40 €, a disposição imperativa do art. 934.º do CC, relativa à venda a prestações, não se revelou entrave à resolução contratual (quanto à imperatividade do art. 934.º do CC, vide Brandão Proença, loc. cit., pág. 436 e Pedro Romano Martinez, in “Contratos em Especial”, Universidade Católica Editora, pág. 89 e Luís Manuel Teles Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, 14.ª Edição, Vol. III, Almedina, pág. 69).
O mesmo quanto à convencionada reserva de propriedade do equipamento de hotelaria vendido e entregue, que, assegurando, em respeito do art. 886.º do CC, a possibilidade de recurso à resolução contratual, vem depois, ao abrigo da mesma convenção negocial, a poder ser tacitamente renunciada com a exigência, em face do incumprimento irremediável dos recorrentes, do valor em dívida do preço daquele equipamento, como sucedeu por carta de 16/04/2007 que a recorrida dirigiu aos recorrentes e com a expressa resolução contratual de 15/09/2008.
A cláusula de reserva de propriedade está prevista no art. 409.º do CC e, como esclarece Pedro Romano Martinez, apresenta-se, pelo menos em termos teóricos, como uma condição ou termo suspensivos da transferência da propriedade ou de outro direito real” (in “Contratos em Especial”, Universidade Católica Editora, pág. 34). O que acontece é que, acrescenta o acórdão da RP de 29/04/2013 (Proc. 4337/11.5TBGDM.P1; rel. Abílio Costa) “a reserva de propriedade, na maioria das situações, é ajustada com um mero efeito de garantia, principalmente quando acordada nos contratos de compra e venda com espera de preço. A cláusula de reserva de propriedade é vulgarmente acordada como garantia, com efeitos idênticos, por exemplo aos da hipoteca - razão pela qual não é usual acordar-se a cláusula de reserva de propriedade na venda de imóveis -, mas em que o comprador fica com o gozo da coisa…” (in www.dgsi.pt).
Daí que, à semelhança do que sucede com alguma doutrina, jurisprudência variada, ainda que a propósito de situações distintas, se tem pronunciado sobre a possibilidade de a reserva de propriedade ser renunciável (sobre o assunto vide Brandão Proença in loc. cit. 440 e ss. e Miguel Pestana de Vasconcelos, in “Direito das Garantias”, 3.ª Edição, Almedina, págs. 478 e ss. e Raúl Ventura, in ROA, Ano 43, Vol. III, Dez. 1983, págs. 613 e ss.).
Neste sentido, temos por exemplo o acórdão da RL de 15/12/2006 (Proc. 10411/2006-7; rel. Rosa Maria Ribeiro Coelho): “Afigura-se-nos também que tal reserva, instituída no âmbito do princípio da liberdade contratual, como meio de afastar o princípio segundo o qual a transferência da propriedade é mero efeito do contrato de alienação, é, de facto, passível de renúncia abdicativa (ou renúncia strito sensu) por parte do respectivo titular. Esta, como escreve Francisco Pereira Coelho (5), corporizar-se-á em negócio ou acto unilateral que, constituindo ex nunc uma nova situação de direito, tem como efeito real a perda ou extinção do direito renunciado, dele ficando privado o respectivo titular. E a declaração unilateral do titular do direito é bastante para a produção do resultado abdicativo” https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2006:10411.2006.7.BB/ (no mesmo sentido acórdão da RL de 22/11/2001 – Proc. 00110876; rel. Urbano Dias, deste disponível apenas o seu sumário-https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2004:1785.2004.6.05/ e sobre a renúncia como negócio unilateral não receptício vide Carlos Alberto da Mota Pinto, in loc. cit. pág. 387 e ss.).
Extinto, por renúncia, o direito da recorrida à reserva de propriedade sobre o equipamento, essa propriedade transferiu-se para a esfera patrimonial dos compradores, aqui recorrentes, por mero efeito do contrato nos termos dos arts. 408.º e 879.º do CC.
Associada à convenção resolutiva, as partes definiram, como vimos, os termos da indemnização devida à recorrida pelo incumprimento contratual dos recorrentes, determinando, que a par de uma percentagem sobre o valor da mercadoria não adquirida, os segundos tivessem de pagar à primeira o valor do preço em dívida pelo equipamento vendido, entregue e não restituído.
Fizeram-no, portanto, por via de uma cláusula penal cuja noção se encontra prevista no art. 810.º do CC.
Em anotação ao citado art. 810.º Antunes Varela e Pires de Lima escrevem que “O disposto no artigo anterior não impede a estipulação duma cláusula penal, pela qual as partes fixem, por acordo, o montante da indemnização, no caso de não-cumprimento ou mora do devedor ao mesmo tempo que criam ou podem criar um novo ou mais eficaz instrumento de pressão sobre o devedor…O principal objectivo da cláusula penal é evitar dúvidas futuras e litígios entre as partes quanto à determinação do montante da indemnização. Muitas vezes, porém, ela é fixada com o carácter de verdadeira penalidade ou, ao contrário, com o intuito de pôr um limite à responsabilidade, nos casos em que os danos possam atingir proporções exageradas em relação às previsões normais dos contraentes” (in “Código Civil Anotado”, Vol. II, 3.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, pág. 74).
O TRL, a este propósito, em acórdão de 8/05/2014 (Proc. 1689/12.3TVLSB.L1-8, rel. Ilídio Sacarrão Martins) redigiu, sobre o assunto, a seguinte síntese que, data vénia, se transcreve:
“A doutrina admite dois tipos de cláusula penal:
a) cláusula penal indemnizatória, em que o acordo das partes tem por finalidade liquidar a indemnização devida em caso de não cumprimento definitivo, de mora ou de cumprimento defeituoso;
b) cláusula penal compulsória, em que o acordo das partes tem por finalidade compelir o devedor ao cumprimento e/ou sancionar o não cumprimento.
No primeiro caso, os contraentes recorrem à cláusula penal a fim de fixarem, desde logo e antecipadamente, a indemnização que será devida em caso de incumprimento da obrigação principal.
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No primeiro caso, estipula-se a cláusula penal a fim de liquidar o dano, ou seja, com o objectivo de fixar antecipadamente o montante da indemnização.
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E, consoante a pena convencionada vise sancionar o incumprimento propriamente dito ou a simples mora do devedor, assim estaremos perante uma cláusula penal compensatória ou moratória”,inhttps://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2014:1689.12.3TVLSB.L1.8.BF/).
Verdade que, em caso de resolução, a indemnização a que, ao abrigo dos arts. 798.º e 801.º do CC, o credor tem direito, tradicionalmente, é a chamada indemnização do interesse negativo ou da confiança. Trata-se, como ensina Antunes Varela, “da indemnização do prejuízo que o credor teve com o facto de se celebrar o contrato – ou por outras palavras, do prejuízo que ele não sofreria, se o contrato não tivesse sido celebrado” (in “Das Obrigações em geral”, vol. II, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 107 e ss.).
Sintetizando a problemática, Pedro Romano Martinez escreve que “No domínio da responsabilidade contratual, a indemnização pode prosseguir dois objectivos diversos: restabelecer a situação que existiria se a parte lesada não tivesse celebrado o contrato; ou colocar a parte lesada em circunstâncias idênticas à que se verificariam se o contrato houvesse sido pontualmente cumprido. A prossecução desta primeira finalidade, vulgarmente designada por interesse contratual negativo, justificar-se-ia no caso de o credor resolver o contrato e estar adstrito a devolver a prestação recebida…De modo diverso, a indemnização pelo interesse contratual positivo visa cobrir os prejuízos resultantes do incumprimento, colocando a parte lesada na situação em que estaria se o contrato tivesse sido pontualmente cumprido…Tradicionalmente, tem-se defendido que a indemnização cumulada com a resolução do contrato, na hipótese prevista no n.º 2 do art. 801.º do CC, será pelo interesse contratual negativo do credor (aparte lesada), visando somente ressarcir os danos emergentes e lucros cessantes sofridos com a celebração do contrato incumprido…” (in “Da Cessação do Contrato”, pág. 196).
Todavia, o mesmo autor, em crítica à posição tradicional, sublinha que, “Não sendo a retroactividade consequência necessária da resolução, admite-se, até na lógica da teoria clássica, que a indemnização pelo interesse contratual positivo seja cumulada com a resolução. De facto, tendo a resolução eficácia ex nunc, não há uma total dissolução do vínculo, pelo que o efeito extintivo dá origem a uma relação de extinção. Como segunda crítica, admite-se que, apesar de existir fundamento para resolver o contrato em razão do incumprimento do devedor, o credor opte, antes, por realizar a sua contraprestação exigindo a indemnização pelo interesse contratual positivo. Sendo a resolução o exercício de um direito potestativo, cabe à parte lesada optar por exercer o direito, desvinculando-se, ou manter o contrato, cumprindo a contraprestação; nesta segunda hipótese não poderia ser negada ao credor a indemnização pelo interesse contratual positivo” (in loc. cit., págs. 196 e ss.).
De igual modo, a jurisprudência, de que é exemplo o acórdão da RP de 10/10/2024 (Proc. 785/23.6T8MAI-A.P1- rel. Isabel Peixoto Pereira), reconhece que “… situações há, em função da qualidade do credor e das características do contrato celebrado, em que o interesse contratual negativo e o interesse contratual positivo acabam por coincidir, em que as oportunidades perdidas com a celebração não diferem dos interesses insatisfeitos com a inexecução” (in www.dgsi.pt).
E porque assim é, explica-se no mesmo acórdão que “Em tese, pois, não é proibido ou ilegítimo que a indemnização corresponda ao interesse contratual positivo.
No quadro dos desenvolvimentos mais recentes da doutrina e da jurisprudência, é de considerar, em tese, admissível a cumulação da resolução do contrato com a indemnização dos danos por violação do interesse contratual positivo, não alcançados pelo valor económico das prestações retroativamente aniquiladas por via resolutiva”.
O próprio STJ em acórdão de 15/02/2018, a que aquele aresto faz referência, (Proc. 7461/11.0TBCSC.L1.S1; rel. Tomé Gomes), escreveu que: “a tese da admissibilidade da cumulação da resolução com a indemnização pelo interesse contratual positivo assenta em argumentação sólida, que, numa análise sistémica de todo o quadro normativo relevante, melhor corresponde ao primado da responsabilidade civil contratual e da sua função na reintegração dos interesses do credor lesado pela frustração do programa negocial.
Assim sendo, propendemos a considerar, em tese, admissível aquela cumulação, na linha do que foi ponderado no acórdão do STJ de 21/10/ 2010, proferido no processo n.º 1285/07.7TJVNF.P1.S1, sem prejuízo da ponderação casuística a fazer, à luz do princípio da boa fé, no concreto contexto dos interesses em jogo, mormente em função do tipo de contrato em causa, de modo a evitar situações de grave desequilíbrio na relação de liquidação ou de benefício injustificado por parte do credor lesado.
E, no atual panorama da jurisprudência, afigura-se ser mais curial prosseguir por via da ponderação de caso a caso, sem a condicionar, de forma apriorística, ao critério abstrato de regra-exceção.
Para tanto, consideramos, à luz da doutrina acima convocada nesse sentido, em síntese, que:
a) – Do preceituado no artigo 801.º, n.º 2, do CC, no respeitante à ressalva do direito a indemnização, em caso de resolução de contratos bilaterais, nenhum argumento interpretativo substancialmente decisivo se pode extrair no sentido de excluir o direito de indemnização pelos danos positivos resultantes do incumprimento definitivo desde que não se encontrem cobertos pelo aniquilamento resolutivo das prestações que eram devidas;
b) – Por isso mesmo, impõe-se equacionar a solução na perspetiva da finalidade e função da resolução, enquadrada no plano mais latitudinário do programa negocial, multidimensional, envolvente e da relação de liquidação em que, por virtude dessa resolução, se transfigura a relação contratual originária;
c) – Nesse quadro, deve ser reconhecido o primado do princípio geral da obrigação de indemnizar o credor lesado, consagrado no artigo 562.º do CC, segundo o método da teoria da diferença acolhido pelo artigo 566.º, n.º 2, do mesmo diploma, como escopo fundamental reintegrador dos interesses atingidos pelo incumprimento do contrato;
d) – Nessa medida, tendo em conta a “diversidade ontológica” da invalidade e da resolução, deve ser relativizada a eficácia retroativa atribuída a esta pelos artigos 433.º e 434.º, n.º 1, por equiparação aos efeitos daquela estatuídos nos artigos 289.º e 290.º do CC, em termos de salvaguardar a vertente da tutela ressarcitória (a par da tutela restituitória ou recuperatória), quanto aos danos positivos resultantes do incumprimento que serviu de fundamento à mesma resolução e não abrangidos pelo obliteração resolutiva das prestações que eram devidas, assim se ressalvando a finalidade da resolução (que se tem por restrita) a que se refere a parte final do citado artigo 434.º, n.º 1;
e) – Consequentemente, ao contraente fiel, perante o incumprimento definitivo imputável ao outro contraente, assistirá a faculdade de optar, em simultâneo, pela resolução do contrato de forma a libertar-se do respetivo dever típico de prestar ou a recuperar a prestação já por si efetuada, e pelo direito a indemnização dos danos decorrentes daquele incumprimento não satisfeitos pelo valor económico das prestações atingidas pela resolução;
f) – Todavia, em caso de resolução, poderá ser ainda assim desatendida a indemnização pelos danos positivos, quando esta revele desequilíbrio grave na relação de liquidação ou se traduza em benefício injustificado para o credor, ponderado, à luz do princípio da boa fé, o concreto contexto dos interesses em jogo, atento o tipo de contrato em causa, sem prejuízo, nessas circunstâncias, do direito a indemnização em sede do interesse contratual negativo nos termos gerais” (com interesse igualmente o acórdão da RP de 19/12/2023, Proc. 4423/20.0T8MTS.P, rel. Artur Dionísio Oliveira e o acórdão da RE de 16/03/2023, Proc. 1127/20.8T8TMR.E1, rel. Isabel de Matos Peixoto Imaginário, todos in www.dgsi.pt).
Ora, o que as partes acordaram para o caso de incumprimento contratual por parte dos recorrentes foi justamente, através da resolução, pôr fim à relação contratual, e, através da indemnização, por um lado, manter, com o pagamento do valor em falta do equipamento entregue pela recorrida, os efeitos contratuais já produzidos, inclusive, extinta a reserva de propriedade, a transmissão do respectivo direito de propriedade, e por outro, com o acrescento da percentagem de 20% do valor do café não adquirido, um benefício estimado (já considerando o custo do café que não foi entregue) que a execução do contrato permitiria, o que efectivamente corresponde a uma indemnização pelo interesse contratual positivo, que é aquela que confere ao credor a reconstituição do benefício que obteria com a execução do contrato, em sintonia, de resto, com o art. 562.º do CC que consagra o princípio de que quem estiver obrigado a reparar um dano há-de reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, justamente o não cumprimento da obrigação. Daí que quem estiver obrigado a reparar o dano possa ter de, mesmo em caso de resolução contratual, reconstituir a situação que existiria se a obrigação tivesse sido cumprida.
De facto, em situações como a dos autos em que, por força do fracionamento das prestações, a relação contratual se prolonga no tempo e em que existem bens desvalorizáveis pelo uso, a indemnização pelo interesse contratual positivo, é a que, preservando o efeito útil da cessação da relação jurídica provocado pela resolução, recupera o equilíbrio que era suposto ser realizado pelo cumprimento contratual.
Note-se que a indemnização assim prevista tem duas componentes distintas cada uma delas destinada a ressarcir danos diferenciados: uma visa a reparação do dano emergente constituído pela dívida de parte do preço do bem vendido e entregue, e a outra dirige-se ao lucro cessante decorrente do proveito que a recorrida teria obtido se os recorrentes lhe tivessem comprado a totalidade do café. O que não seria admissível era a pena prever a restituição do equipamento e, em simultâneo, o pagamento do preço em falta, na medida em que que o credor não pode obter cumulativamente o cumprimento da obrigação e a indemnização acordada para o incumprimento dessa obrigação.
Não existe portanto cumulação indevida na atribuição à recorrida de indemnização por um e outro dano. Na verdade, o equipamento em discussão não é mais propriedade da recorrida, e, portanto, é-lhe devido o valor do preço que permanece em dívida, assim como lhe é devida uma indemnização pelos benefícios que não obteve em virtude do incumprimento contratual.
Para mais, na situação em causa, a formulação vertida na cláusula penal para determinar a indemnização devida à recorrida permite encontrar, a um tempo, o prejuízo efectivo, traduzido no valor do preço do equipamento em dívida, e, a outro, o prejuízo estimado, traduzido no proveito que a compra da totalidade do café representaria. Quanto a este último aspecto, o valor da indemnização corresponde apenas a 20% do valor do café que não foi adquirido, o que, naturalmente, contempla a consideração das despesas que a recorrida não teve com a alienação da mercadoria, no que se inclui o custo da mesma.
Afigura-se-nos, pois, que a cláusula penal em análise não revela ser desproporcional aos danos da recorrida e, como tal, não sendo proibida à luz do art. 19.º, al. c) do RGCG, não é uma cláusula nula, de acordo com o art. 12.º do mesmo diploma legal, assim como, inexistindo a cumulação a que se refere o art. 811.º, n.º 1 do CC, se mostra admissível.
Falece, pois, o recurso quanto à questão em apreço.
D) Do valor da indemnização devida
Os recorrentes defendem ainda que para determinar o valor da indemnização com base no critério fornecido pela cláusula penal de ressarcir a recorrida com 20% do valor do café prometido e não adquirido deve considerar-se o valor do café fixado no contrato celebrado entre as partes e não o seu valor à data da resolução do contrato.
Certo que, a este respeito, a cláusula 9 do contrato determina que a indemnização devida à recorrida é em montante equivalente a 20% do valor do café prometido e não adquirido.
A cláusula 1 do contrato, porém, o que diz é que a recorrida promete vender aos recorrentes 2.000 Kg de Café Torrié em fracções mensais mínimas de 30 Kg, aos preços de tabela às datas das vendas efectivas, sendo o preço de tal café, à data de 2.850$00 (14,21 €).
Desta cláusula colhe-se que o preço a que as sucessivas fracções de 30 Kg de café iriam sendo compradas era o preço de tabela à data da venda efectiva. De onde, decorre que o proveito que a recorrida teria recebido se o contrato tivesse sido cumprido seria em função do preço de tabela à data da compra, que sempre poderia ser efectuada até à data da resolução, por referência à qual o tribunal a quo calculou, e bem, a respectiva indemnização.
Não se nos afigura, pois, que a sentença mereça a censura que lhe é apontada.
Conclui-se desta forma pela total improcedência do recurso interposto pelos recorrentes, mantendo-se a sentença recorrida.
As custas do recurso são pelos recorrentes por terem ficado vencidos (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663.º, n.º 7 do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.