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PROPRIEDADE HORIZONTAL
ACTA DE CONDOMÍNIO
TÍTULO EXECUTIVO
TRANSMISSÃO DA FRACÇÃO
OBRIGAÇÕES PROPTER REM
CONHECIMENTO DO MÉRITO
SUCESSÃO DE LEIS
Sumário
(elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC): I – A ata do condomínio constitui título executivo, nos termos do disposto nos artigos 703º, nº, 1, alínea d), CPC e 6º do Dl 269/94, de 25/10, se documentar a deliberação da qual emerge a obrigação do condómino relativa ao pagamento das contribuições devidas ao condomínio, fixar a sua quota parte nas despesas comuns, e definir o modo e o prazo de pagamento. II – Com as alterações operadas pela Lei 8/2022, de 10-01 ao regime da propriedade horizontal, em caso de transmissão da fração, a responsabilidade pelo pagamento de dívidas e encargos relativos à conservação e fruição das partes comuns “é aferida em função do momento em que as mesmas deveriam ter sido liquidadas”, como passou a prever o nº 3 do artigo 1424º-A, CC. III – De tal norma resulta que previamente à transmissão da fração é, em regra, emitida pelo administrador, declaração na qual, além do mais, são especificadas as dívidas de condomínio do condómino alienante, que, consequentemente, passaram a ser um elemento objetivo, que pode ser ponderado por ambos os contraentes na fixação dos termos do negócio. IV – Discutindo-se nos embargos de executado a responsabilidade do condómino adquirente de fração relativamente a dívidas de condomínio constituídas antes da aquisição, e anteriormente à vigência do artigo 1424º-A CC, importa averiguar quando foram executadas as obras de reabilitação do edifício que lhes deram origem, e ainda se o valor de tais obras foi ou poderia ter sido ponderado no negócio de compra e venda, por forma a aferir em que esfera jurídica (do transmitente ou do alienante) as mesmas devem ser repercutidas. VI - Nesse contexto, revela-se prematuro o conhecimento do mérito de embargos de executado no despacho saneador por subsistir controvérsia quanto a factos pertinentes à decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito.
Texto Integral
Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:
I - RELATÓRIO
Os autos executivos principais, de que os presentes embargos constituem apenso, foram instaurados em 24-03-2021, sob a forma de execução para pagamento de quantia certa, pelo exequente “Condomínio do Prédio sito na Rua ... I, nº ..., Almada” contra a executada “A Unipessoal, Ldª”, aí identificada, constando do requerimento executivo que:
- A executada é proprietária da fração “B” - R/C Esquerdo - do Edifício sito na Rua ... I, n.º ..., ...;
- No dia 26 de março de 2019, foi realizada Assembleia Extraordinária de Condóminos, tendo sido aprovado o valor de quotização extraordinária para realização de obras de conservação no edifício. A quotização deveria ser liquidada até ao dia 8/06/2019, sendo que, no caso da Fração “B” - R/C Esq. - encontra-se por liquidar o montante de € 6.398,74, conforme ata nº 33;
- No dia 22 de julho de 2019, foi realizada Assembleia Geral de Condóminos, tendo sido aprovada uma quotização extra para custear obras de conservação da cobertura do Edifício. Sendo que, no caso da Fração “B” – R/C Esq. - a quota extra correspondia ao valor total de € 930,06, conforme ata nº 34;
- Embora interpelada para o efeito, a executada tem-se recusado a pagar o valor em dívida que, à data da instauração da execução se cifra em € 7.328,80, acrescendo os juros moratórios vencidos, no valor de € 145,15, sendo ainda devidos os vincendos até efetivo e integral pagamento;
- As atas de condomínio constituem título executivo nos termos do artigo 703.º, alínea d) do CPC conjugado com o artigo 6º, n.º 1 do Decreto-Lei 268/94, de 25 de outubro.
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A execução prosseguiu os seus termos, tendo sido lavrado auto de penhora, em 22-09-2021, relativo a saldo bancário titulado pela executada.
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Após a sua citação, a executada deduziu embargos, em 09-11-2021, pugnando pela extinção da execução.
Para tanto, alegou não ser devedora da quantia exequenda, uma vez que apenas adquiriu a fração em causa em junho de 2020 e as quotas extraordinárias ali em causa foram objeto de deliberação em 2019, com vencimento naquele mesmo ano, constando das respetivas atas, na qualidade de condómino, o antigo proprietário da fração que, consequentemente, está obrigado ao seu pagamento.
A exequente contestou os embargos, alegando que a executada usufruiu e beneficiou com os melhoramentos decorrentes das obras, que terminaram apenas em 2021, pelo que, com a transmissão da propriedade da fração, também se transmitiu a obrigação de pagar as quotas de condomínio associadas à realização das obras.
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Findos os articulados, foi proferido saneador-sentença, nos termos conjugados dos artigos 597º, alínea c) e 595º, nº1, alínea b) do CPC, no qual se concluiu que a embargante não é responsável pelo pagamento das quotizações extraordinárias peticionadas, deliberadas e vencidas em momento anterior àquele em que adquiriu a fração. Consequentemente, por falta de título executivo, foram julgados procedentes os embargos e declarada extinta a execução.
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Não se conformando com tal decisão, a exequente da mesma interpôs recurso, pugnando pela sua revogação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“1. No âmbito dos presentes autos veio o Tribunal a quo entender absolver o embargante por considerar que as atas de condomínio não [constituem] título executivo contra este, fazendo a aplicação ao caso concreto das alterações ao código civil previstas na Lei n.º 8/2022, de 10/01. 2. Ora, a aplicação imediata da Lei n.º 8/2022, de 10/01, por se julgar de natureza interpretativa, é uma medida desproporcional que afeta o princípio constitucional da proteção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático plasmado no artigo 2.º da Constituição. 3. A Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro, alterou o regime da propriedade horizontal, introduzindo alterações ao Código Civil, ao Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de outubro e ao Código do Notariado. Assim, as alterações introduzidas pela nova lei entraram em vigor 90 dias após a sua publicação, ou seja, a 10 de abril de 2022. 4. Sucede que, o requerimento executivo, foi interposto a 24 de março de 2021, ou seja, antes da entrada em vigor da mais recente alteração ao regime da propriedade horizontal. 5. A este propósito, consideremos o que nos diz o artigo 12º n.º 1 do CC “A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.” 6. Assim, a lei só se aplica aos factos que depois da sua entrada em vigor se operaram; e, mesmo que normativamente permitida, a retroatividade está sujeita aos limites que o n.º 2 do art.º 12.º do C. Civil lhe impõe para a sua real concretização. 7. Entende-se, portanto, que, no ordenamento jurídico português, as normas civis só podem ser retroativas no caso de a lei habilitante o permitir, o que, no caso em concreto, não sucede. 8. Ademais, houve igualmente omissão de pronúncia pelo Tribunal a quo, pois eram reclamadas em sede de execução quotas ordinárias respeitantes a período em que o embargante já era proprietário, pelo que, ao proferir a decisão recorrida o Tribunal não se pronuncia sobre tal pedido. 9. Face ao exposto, andou mal o Tribunal a quo ao proferir decisão que absolve o embargante, devendo o Tribunal ad quem revogar a decisão recorrida por outra que ordene o prosseguimento dos autos de execução.”
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A executada não apresentou contra-alegações.
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Foi admitido o recurso como apelação, com subida imediata e nos próprios autos e efeito devolutivo.
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Remetidos os autos a este tribunal, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
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II – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Assim, inexistindo questões de apreciação oficiosa, são as seguintes as questões a decidir:
- Nulidade por omissão de pronúncia (cfr. artigo 615º, nº 1, alínea d), CPC);
- Existência de título executivo.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
A - Factos provados
Os factos a ponderar na presente decisão são os seguintes:
1. A sociedade Rigor Comum, Lda., é Administradora do Condomínio do prédio urbano, constituído no regime de propriedade horizontal, sito na Rua ... I, nº..., em Almada, ora exequente.
2. A executada A Unipessoal, Ldª, é proprietária da fração autónoma designada pela letra “B” correspondente ao r/c esquerdo do prédio referido em 1., desde 30-6-2020, encontrando-se registada tal aquisição, por compra por negociação particular em processo executivo, conforme certidão permanente do registo predial, junta ao requerimento executivo, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
3. O Condomínio Exequente interpôs execução contra a ora embargante nos seguintes termos:
“No dia 26 de março de 2019, foi realizada Assembleia Extraordinária de Condóminos, tendo sido aprovado o valor de quotização extraordinária para realização de obras de conservação no edifício. A quotização deveria ser liquidada até ao dia 8/06/2019, sendo que, no caso da Fração “B” – R/C Esq. encontra-se por liquidar o montante de € 6.398,74 (Seis Mil Trezentos e Noventa e Oito Euros e Setenta e Quatro Cêntimos). (Cfr. Ata n.º 33). No dia 22 de julho de 2019, foi realizada Assembleia Geral de Condóminos, tendo sido aprovada uma quotização extra para custear obras de conservação da cobertura do Edifício. Sendo que, no caso da Fração “B” – R/C Esq. a quota extra correspondia ao valor total de € 930,06 (Novecentos e Trinta Euros e Seis Cêntimos). (Cfr. Ata n.º 34). O Exequente tem interpelado sempre atempadamente a Executada para que esta procedesse à liquidação dos valores em dívida, sendo que ainda não logrou qualquer pagamento. Ocorre que à presente data encontra-se em dívida o montante global de € 7.328,80 (Sete Mil Trezentos e Vinte e Oito Euros e Oitenta Cêntimos), correspondentes às quotas de condomínio de julho de 2020 a abril de 2021. Aos montantes que realizam o valor líquido da obrigação (capital) foram aplicados os juros moratórios vencidos desde a data do incumprimento até à presente data, à taxa de 4%, que totalizam o montante de € 145,15.” 4. O exequente juntou as atas nº 33 e 34, a que alude, com a aprovação das quotas extraordinárias para cada fração e com respetivas datas de vencimento em 2019, constando das referidas atas, o condómino “Hilário Domingues Gonçalves”, com referência ao r/c esq-fracção B, dando-se aqui por reproduzido o teor integral de tais atas juntas como título executivo.”
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B – Nulidade da decisão recorrida
Considerou a recorrente que a sentença padece de nulidade por não ter ponderado que no processo executivo foram peticionadas “quotas ordinárias” do condomínio, vencidas em momento em que a embargante já era proprietária das frações em causa.
Tal causa de nulidade reconduz-se à previsão da alínea d) do nº 1 do artigo 615º, CPC, que dispõe que a sentença é nula quando: “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
A propósito do vício ora em análise, tem vindo a referir-se que, em rigor, constitui um fundamento de anulabilidade da sentença, relacionado com os seus limites, ocorrendo quando o juiz não esgotou todas as questões que lhe incumbia conhecer – José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 3ª edição, pág. 735).
Na realidade, ao juiz incumbe o conhecimento de todas as questões “que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela decisão dada a outras” – cfr. artigo 608º, nº 2, CPC.
Como refere Alberto dos Reis (CPC anotado, 1981, Volume V, páginas 124 e 125), o vício da nulidade da sentença reporta-se a “erro de atividade”, correspondendo à infração de regras que disciplinam o exercício do poder jurisdicional, respeitando à forma como o juiz exerceu a sua atividade. Porém, estando em causa uma divergência quanto à interpretação e aplicação da lei, defendendo o recorrente que a propugnada na decisão recorrida é errada, o vício em discussão já não se reconduz à nulidade por omissão de pronúncia, mas sim a uma errada aplicação do direito (erro de julgamento). A distinção entre ambas as realidades foi efetuada de forma clara pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 03-03-2021 (proferido no processo nº 3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt) considerando que: “(…) as nulidades da decisão não incluem o erro de julgamento seja de facto ou de direito (…): as nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal (…); trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei (…), consiste num desvio à realidade factual (…) ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma”.
No requerimento executivo, alega a exequente que:
- “No dia 26 de março de 2019, foi realizada Assembleia Extraordinária de Condóminos, tendo sido aprovado o valor de quotização extraordinária para realização de obras de conservação no edifício. A quotização deveria ser liquidada até ao dia 8/06/2019, sendo que, no caso da Fração “B” – R/C Esq. encontra-se por liquidar o montante de € 6.398,74”;
- “No dia 22 de julho de 2019, foi realizada Assembleia Geral de Condóminos, tendo sido aprovada uma quotização extra para custear obras de conservação da cobertura do Edifício. Sendo que, no caso da Fração “B” – R/C Esq. a quota extra correspondia ao valor total de € 930,06”.
Conforme resulta expressamente de tal requerimento executivo, os montantes que contabilizam a quantia exequenda (€ 7.328,80), resultante da soma de ambas as parcelas supra enunciadas, a que acrescerão ainda juros, são identificados como “valor de quotização extraordinária para realização de obras de conservação” e “quotização extra para custear obras de conservação da cobertura”.
Acresce que tal requerimento identifica como título executivo as atas das referidas assembleias de condóminos de 26 de março de 2019 e de 22 de julho de 2019, constando dos autos as respetivas cópias, cujo teor foi dado por reproduzido nos factos provados.
Da ata nº 33 (relativa à assembleia de condóminos de 26-03-2019) consta: “Para custear as obras de conservação, foi deliberado, por unanimidade, a emissão de quotização extraordinária destinada a Fundo de Obras de Conservação. O valor global de quotização extraordinária ora aprovado será repartido por todas as frações, resultando nos seguintes valores de quotização extraordinária para a correspondente fração: (…) Condómino B - R/C ESQ Letra B Valor Total 6.398,74”. Ali se estabelece que: “(…) a quotização ora aprovada deverá ser liquidada do seguinte modo: a) 35% do montante calculado para cada fração até ao dia 30 de abril de 2019. 2) 65% do montante calculado para cada fração deve ser liquidado até ao doa 08 de junho de 2019”.
A ata nº 34 (referente à assembleia de condóminos de 22-07-2019), da qual se extrai que, quanto ao ponto da ordem de trabalhos nº 5 (o único que releva para a apreciação do recurso) enunciado como “Obras/Reparações pendentes de execução no edifício”, para execução de obras de conservação da cobertura do edifício foi aprovada “a emissão de Quota Extraordinária no valor global de 5.188,80 (…)”. E ali se refere expressamente: “No que concerne à fração R/C esquerdo, será devido o montante de € 930,06 € a título de quota Extra para o mesmo efeito, tal como as demais frações com a mesma permilagem de 152”. Ali se consignou também que a quota extraordinária ali aprovada será “(…) a repartir em 3 (três) mensalidades, com início em agosto de 2019 e término em outubro de 2019”.
Ora o teor de tais atas mostra-se consonante com o afirmado no requerimento executivo, sendo manifesto que o valor da quantia exequenda (€ 7.328,80, resultante da soma das parcelas de € 5.188,80 e € 930,06) se refere às quotizações extraordinárias, resultantes de execução de obras, conforme deliberado nas assembleias de condóminos referidas (26-03-2019 e 23-07-2019).
É certo que no requerimento executivo o exequente exarou ainda:
“Ocorre que à presente data encontra-se em dívida o montante global de € 7.328,80 (Sete Mil Trezentos e Vinte e Oito Euros e Oitenta Cêntimos), correspondentes às quotas de condomínio de julho de 2020 a abril de 2021.”
Porém, a soma dos montantes (extraordinários) cujo pagamento foi deliberado para pagamento de obras – que perfaz a quantia exequenda de € 7.328,80 – não corresponde às “quotas de condomínio de julho de 2020 a abril de 2021”, tratando-se esta de menção errada, cuja retificação se extrai do demais alegado no requerimento executivo e do teor das atas oferecidas como título executivo. Aliás, tendo sido instaurada a execução em 24-03-2021, ainda não estavam vencidas as quotas de abril daquele ano, o que reafirma a conclusão de que na execução estão em causa unicamente quotas “extraordinárias” que visaram custear obras de conservação, cuja execução e pagamento foi deliberada nas assembleias de condóminos a que se reportam as atas oferecidas como títulos executivos.
Conclui-se, pois, com segurança, que não foram incluídos no requerimento executivo valores de quotas ordinárias vencidas quando a executada já era proprietária da fração, e ainda que a decisão recorrida interpretou devidamente tal requerimento, designadamente ao considerar que a quantia exequenda se reporta a período em que a executada não era ainda proprietária da fração.
Em suma, o tribunal recorrido apreciou todas as questões suscitadas, revelando-se improcedente o fundamento de nulidade apontado à sentença recorrida.
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C - Existência de título executivo
A decisão recorrida, analisando o teor das atas das assembleias de condóminos juntas, embora afirmando a sua suscetibilidade para constituírem título executivo, concluiu ser tal conclusão válida apenas quanto ao condómino da fração em causa, à data das deliberações ali documentadas, bem como no momento em que se venceram as quotizações em dívida. Assim, visto que na execução figura como executada a atual proprietária da fração, concluiu o tribunal recorrido pela inexistência de título executivo.
Efetivamente, refere-se na decisão recorrida:
“Aqui chegados, e em face do que ficou dito, parece-nos claro que as atas juntas aos autos têm o conteúdo acima assinalado para constituírem título executivo, mas apenas em relação ao proprietário à data das deliberações, aliás condómino identificado no título executivo, e bem assim no momento do vencimento das quotizações em dívida. Porém, foi demandada como executada a proprietária atual da fração que adquiriu a mesma em data posterior às deliberações supra aludidas e ao vencimento das obrigações de pagamento ora em causa. Assim, sendo o título executivo, duas atas de assembleia de condóminos de 8.6.2019 e de 22.7.2019, não se concebe a possibilidade de formação de um título executivo desta natureza contra alguém que não era proprietário à data de realização das assembleias de condóminos e que, por esse motivo, não podia nelas participar, nem exercer qualquer direito, não tendo também nascido na sua esfera jurídica, qualquer obrigação de pagamento, sendo o respetivo devedor, quem consta dessas atas como condómino e proprietário da fração à data. Ao contrário do defendido pelo exequente, a posterior adquirente da fração não tinha qualquer responsabilidade pelo pagamento no momento do vencimento da obrigação, nem pode sofrer sanções pelo incumprimento de obrigações pessoais do proprietário anterior. Em suma: as prestações vencidas alegadamente em dívida ao condomínio não se transmitem com o direito real, em caso de alienação da respetiva fração, solução que aliás veio a ser consagrada no novo regime da propriedade horizontal- cf. art.º 1424º-A, nº 3 e 4 do CC-. Com efeito, a Lei 8/2022. de 10.1, aditou o art.º 1424º-A, de acordo com a qual: (..) Nesta conformidade, as despesas a que alude o art.º 1424.º do Código Civil são da responsabilidade do transmitente que seja o titular do direito real sobre a coisa à data da sua constituição, pelo que não deve ser imputada ao atual proprietário a responsabilidade pelas despesas para o condomínio relativas a um período de tempo anterior à sua aquisição (cfr., neste sentido, entre outros, Aragão Seia, Propriedade Horizontal, Coimbra, 2001, pp. 124 e 125; Sandra Passinhas, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2.ª Ed., Coimbra, 2002, pp. 319 e 320; na jurisprudência podem citar-se, entre outros, os seguintes Acórdãos: Rel. de Lisboa de 14/12/2004, CJ 2004, tomo V, p. 118; Rel. do Porto de 06/04/2006, P. 0631840; Rel. de Coimbra de 14/11/2006, P. 3948/04.oTBALR.C1; Rel. do Porto de 09/07/2007, P. 0753550 e Rel. de Lisboa de 21/01/2011, P. 12517/09.7YYLSB-B.L1-7, todos em www.dgsi.pt.). Importa, pois, concluir que a embargante não é responsável pelo pagamento das quotizações extraordinárias peticionadas, deliberadas e vencidas em momento anterior àquele em que adquiriu a fração. Urge, portanto, concluir pela manifesta falta de título executivo em relação à executada, ora embargante (que não consta evidentemente do título dado à execução), o que determina, desde logo, a procedência dos presentes embargos de executado.”
Apreciando a questão suscitada pelo recorrente, importa salientar que os títulos executivos oferecidos na execução apensa consistem em duas atas da assembleia de condóminos do prédio sito na Rua ... I, nº ... em Almada, de 26 de março de 2019 e 22 de julho daquele mesmo ano, nas quais foram aprovados valores de “quotização extraordinária” e de “quotização extra” para custear obras de conservação do edifício e a da sua cobertura, das mesmas resultando incumbir ao condómino da fração B-R/C dto, o pagamento dos montantes de € 6.398,74 e de € 930,06”. O vencimento de tais quotas aprovadas para a execução de obras ocorreu no ano de 2019.
Naquelas atas está identificado como condómino da fração “B”.
Conforme consta da certidão de registo predial relativa à fração em causa, desde 30-06-2020 a executada/embargante é proprietária da fração (cfr. presunção derivada do registo conferida pelo 7º do Código de Registo Predial).
Dispõe o artigo 10º nº 5, CPC que: “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva”. Assim, a existência de título executivo constitui pressuposto formal para o exercício do respetivo direito de ação, correspondendo à causa de pedir da ação declarativa - Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. I, pág. 147.
Por seu turno, o artigo 703º, CPC discrimina as espécies de títulos executivos, resultando da alínea d) do seu nº 1 que a execução pode ter por base: “Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva”. Reconduz-se a “disposição especial” o disposto no artigo 6º, nº 1, do Dl 268/94, de 25 de outubro, que na versão em vigor à data da instauração da execução (conferida pelo DL 81/2020, de 02/10), dispunha: “Aata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte”.
Tal preceito, que evidencia uma intenção legal de agilizar a cobrança de dívidas do condomínio, suscitou algumas dúvidas interpretativas, quanto ao concreto teor da ata de condomínio para que lhe fosse conferida força executiva.
Assim, defendeu-se que bastaria que a ata declarasse o montante da dívida do condómino demandado para que funcionasse como título executivo. Neste sentido, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão de 07-07-2011, proferido no processo nº 42780/06.9YYLSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.
Outra tese considerou ser de atribuir força executiva à ata do condomínio que documente a deliberação de onde nasce a obrigação de pagamento de contribuição por parte do condómino, fixando a sua quota-parte nas despesas comuns, estipulando o prazo e o modo de pagamento. Como se refere no acórdão da Relação de Lisboa de 02-05-2013 (proferido no processo nº 2568/10.4TBCSC-A.L1-8, disponível em www.dgsi.pt) : “Uma ata com este conteúdo comprova a constituição de uma obrigação, bem como a data do seu vencimento pelo que, decorrido o prazo de pagamento, documentará uma obrigação que é certa, e exigível e que poderá ser liquidada através do requerimento executivo, indicando-se as prestações não pagas/em falta e que estão em dívida (…) A fonte da obrigação pecuniária do condómino assenta na sua aprovação em assembleia de condóminos, consubstanciada na respetiva ata, que aprova e fixa o valor a pagar, correspondente à sua quota-parte nas despesas comuns, bem como o prazo do seu pagamento (…) Esta ata que aprovou a contribuição devida, enforma em si, a afirmação de um direito em benefício de outrem – o condomínio – e a constituição de uma obrigação a cargo de outro – o condómino (…) Só esta ata tem força executiva – só ela contém a fonte de obrigação, o facto jurídico que lhe deu origem.”
Foi esta a posição seguida na decisão recorrida, concordando-se com a sua fundamentação, designadamente quando refere que apenas documenta a constituição da obrigação de pagamento, a ata da qual consta a deliberação do condomínio, fixando a quota-parte do condómino nas despesas comuns, estipulando o prazo e o modo de pagamento, “(…) o que não sucede nas atas recompilativas ou certificativas, que procedem a uma mera liquidação dos valores em dívida” – em idêntico sentido, se tem pronunciado maioritariamente a jurisprudência, designadamente o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 09-09-2021 (proferido no processo nº 20315/19.3T8SNT-B.L1-2, disponível em www.dgsi.pt).
Certo é que tal questão não se debate nos autos, merecendo o consenso de ambas as partes que as atas do condomínio oferecidas para o efeito (datadas de 26-03-2019 e de 22-07-2019), reúnem os requisitos de verdadeiros títulos executivos, nos termos supra enunciados.
A controvérsia radica no efeito a atribuir à transmissão do direito de propriedade sobre a fração B, correspondente ao R/C esquerdo do edifício, em 30-06-2020 (data posterior quer à das assembleias de condomínio referidas, quer ao momento de vencimento das quotas aprovadas para realização de obras). Mais concretamente, interessa definir se a dívida de condomínio a que se reportam as atas supra mencionadas se transferiu ou não para a esfera jurídica da embargante. Trata-se, no fundo de indagar se as referidas atas constituem título executivo relativamente ao embargante, adquirente da fração em momento posterior às deliberações ali documentadas.
É sabido que a propriedade horizontal congrega dois direitos reais distintos, sendo um de propriedade singular, quanto às frações autónomas, e outro de compropriedade, incidente sobre as partes comuns do edifício – cfr. artigo 1420º, CC. Por outro lado, para o titular do direito real derivam deveres, de conteúdo positivo que, em regra, se concretizam em prestações de dare ou facere, tradicionalmente designados por obrigações propter rem, às quais se reconduzem as “prestações periódicas ou eventuais” a cargo do condómino – Henrique Mesquita, (Obrigações Reais e Ónus Reais, páginas 26, 266, 280 a 282).
O fundamento legal da obrigação de pagamento de despesas de condomínio radica no regime consagrado no artigo 1424º, CC, que, quanto aos “Encargos de conservação e fruição” estabelece atualmente no seu nº 1 (após às alterações ao regime da propriedade horizontal operadas pela Lei 8/2022, de 10/01): “1. Salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e relativas ao pagamento de serviços de interesse comum são da responsabilidade dos condóminos proprietários das frações no momento das respetivas deliberações, sendo por estes pagas em proporção do valor das suas frações.”
Tal regime foi ainda clarificado com o aditamento do artigo 1424º A, do Código Civil, (pela Lei 8/2022, de 10 de janeiro), que com a epígrafe “Responsabilidade por encargos do condomínio” passou a estabelecer:
“1 - O condómino, para efeitos de celebração de contrato de alienação da fração da qual é proprietário, requer ao administrador a emissão de declaração escrita da qual conste o montante de todos os encargos de condomínio em vigor relativamente à sua fração, com especificação da sua natureza, respetivos montantes e prazos de pagamento, bem como, caso se verifique, das dívidas existentes, respetiva natureza, montantes, datas de constituição e vencimento. 2 - A declaração referida no número anterior é emitida pelo administrador no prazo máximo de 10 dias a contar do respetivo requerimento e constitui um documento instrutório obrigatório da escritura ou do documento particular autenticado de alienação da fração em causa, salvo o disposto no número seguinte. 3 - A responsabilidade pelas dívidas existentes é aferida em função do momento em que as mesmas deveriam ter sido liquidadas, salvo se o adquirente expressamente declarar, na escritura ou no documento particular autenticado que titule a alienação da fração, que prescinde da declaração do administrador, aceitando, em consequência, a responsabilidade por qualquer dívida do vendedor ao condomínio. 4 - Os montantes que constituam encargos do condomínio, independentemente da sua natureza, que se vençam em data posterior à transmissão da fração, são da responsabilidade do novo proprietário.”
O nº3 desta norma consagra o princípio de que a responsabilidade pelo encargo do condomínio é aferida em função do momento em que deveria ter sido liquidado. Ou seja, se o montante já se encontrava “a pagamento” quando a fração foi transmitida, a responsabilidade radica na esfera do transmitente, o que só não ocorrerá se o adquirente declarar no momento da aquisição, prescindir da declaração dos montantes de condomínio que se encontram em dívida, assumindo a responsabilidade pelo seu pagamento. Trata-se de regime que, aliás, se mostra consonante com o consagrado no nº 1 do artigo 1424º, CC, já enunciado que, por princípio, atribui a responsabilidade pelo pagamento das dívidas do condomínio ao proprietário da fração no momento da deliberação da assembleia de condóminos que as determinou. A obrigatoriedade de, previamente à transmissão da fração, ser emitida declaração escrita do administrador da qual constem os encargos e obrigações em vigor, bem como os montantes em dívida pelo condómino alienante da fração, veio conferir ao negócio um nível acrescido de informação e transparência. Certo é, porém, que tal norma, entrou em vigor 90 dias após a sua publicação, como resulta do artigo 9º da Lei 8/2022 de 10-01, (em 10-04-2022), ou seja, em momento posterior ao da formação do título executivo em causa nos autos e da própria instauração da execução.
Porém, até à vigência deste regime foi amplamente discutida, quer na doutrina, quer na jurisprudência, a questão da transmissão de dívidas do condomínio em caso de alienação de frações autónomas do prédio submetido a propriedade horizontal. Como refere Henrique Mesquita (ob. cit. pág. 36): “(…) do que se trata é de indagar se as obrigações nascidas antes da transmissão do direito real, e ainda não cumpridas, se transferem para o adquirente”.
A redação do artigo 1424º CC, anterior à alteração operada pela Lei 8/2022 de 10-01, que estabelecia: “Salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas frações”, não respondia a tal questão.
Certo é que se foi firmando o entendimento de que tal obrigação de pagamento do condomínio constituía uma obrigação “propter rem”, inerente à coisa em si e não à pessoa do seu proprietário, pelo que se transmitia para o adquirente do direito real. Concomitantemente, tal obrigação foi classificada como “ambulatória” – neste sentido, “Doutrina da ambulatoriedade, sem exceções, das obrigações propter rem”, mencionada por Henrique Mesquita (ob cit. p. 316).
Contudo, quer a doutrina quer a jurisprudência constataram o desequilíbrio decorrente da afirmação automática e inequívoca da ambulatoriedade, em todas as situações, das obrigações do condómino, ainda não liquidadas à data da transmissão da fração. Ou seja, não obstante as obrigações do condómino se qualificarem como propter rem, sendo inerentes ao direito real que as determina, nem sempre deveriam acompanhar a sua transmissão, permanecendo, ao invés, na esfera jurídica do transmitente.
A tal propósito, refere Henrique Mesquita (ob. cit. pág. 321) “tratando-se de prestações destinadas a custear despesas habituais originadas pela utilização de serviços ou pelo consumo de bens necessários a assegurar a funcionalidade normal do condomínio, seria injusto fazê-las recair sobre o adquirente da fração. Por um lado, este não disporia (…) de quaisquer elementos objetivos que revelassem ou indiciassem a existência de dívidas. Por outro lado, tais prestações representam, em regra, na economia do instituto, a contrapartida de um uso ou fruição (das partes comuns do edifício) que couberam ao alienante e, por conseguinte, só a este deve competir o respetivo pagamento”. No mesmo sentido, Jorge Alberto Aragão Seia (Propriedade Horizontal, Condóminos e Condomínio, 2ª edição, pág. 125) refere que: “Embora o proprietário da fração a venha a alienar será sempre o responsável pelo pagamento das prestações que se encontrem vencidas à data da transação, pois referem-se em regra à contrapartida pelo uso e fruição da fração a que respeitam”. Igualmente Sandra Passinhas (A Assembleia de Condóminos e o Administrador da Propriedade Horizontal, 2ª edição, pág. 319): “Parece-nos que não se deve onerar o adquirente da fração autónoma com uma despesa que ele muitas vezes desconhece, e que não corresponde a nenhuma vantagem real para si”.
Também a nível jurisprudencial, no quadro legal supra enunciado, anterior às alterações operadas pela Lei 8/2022, de 10-10, ao regime da propriedade horizontal, se foi decidindo pela intransmissibilidade ao novo proprietário de despesas que decorrem do uso normal da fração (designadamente no que se reporta a despesas de manutenção ou de administração), dado que o seu efeito útil se produziu na esfera do transmitente. Neste sentido, Acórdão da Relação do Porto de 07-07-2016 (proferido no processo nº 5741/13.0YIPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt), onde se refere: “Esta característica de “ambulatoriedade”, porém, não ocorre designadamente quando estejam em causa prestações destinadas a custear despesas habituais originadas pela utilização de serviços ou pelo consumo de bens necessários a assegurar a funcionalidade normal do condomínio. Assim quando o condómino vende a sua fração autónoma, estando em atraso no pagamento das contribuições devidas ao condomínio, não se deve onerar o adquirente da fração autónoma com uma despesa que não corresponde a nenhuma vantagem real para si”; Acórdão da Relação de Lisboa de 14-09-2017 (proferido no processo nº 14836/14.1T8LSB.L1-6, disponível em www.dgsi), ali se referindo: “Estando apenas em dívida quantias correspondentes a prestações de condomínio enquadráveis no n.º 1 do art.º 1424.º do Código Civil, encontramo-nos face a obrigação de “dare” desprovida de carácter ambulatório ou efeito de traslação, pelo que a mesma não se transmite aos adquirentes da fração à qual se reportem tais prestações”.
Ora, se tal entendimento (não transmissão de dívidas do condomínio) para o adquirente da fração se tem afirmado quanto às dívidas correntes de administração do condomínio (vencidas antes da transmissão), o certo é que também relativamente a despesas relativas à própria reabilitação do imóvel, tem vindo a impor-se uma análise casuística, por forma a fazer repercuti-las sobre o condómino que das mesmas usufruiu. Tal entendimento, aliás, corresponde ao pensamento nuclear de Henrique Mesquita (ob. cit pág. 320), ao referir: “A doutrina ainda não se libertou, nesta matéria, de um claro vício concetualista: em vez de partir, com vista à formulação do conceito de obrigação real, das soluções concretas, como o impõe uma correta e hoje indiscutida metodologia jurídica, tem feito precisamente o contrário, aceitando um conceito tradicional e todas as suas implicações, sem o submeter nas situações e casos por ele abrangidos, à necessária reflexão crítica”.
Neste sentido, consignou-se no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-03-2020 (proferido no processo nº 99/18.3T8OVR-A.P1, disponível em www.dgsi.pt): “A obrigação de pagamento das despesas com partes comuns de um imóvel em regime de propriedade horizontal constitui uma típica obrigação propter rem. Todavia, a sua natureza ambulatória ou não ambulatória nem sempre se apresenta com a mesma linearidade. Assim, quando se trate de despesas relativas à conservação das partes comuns (conservação das coberturas fachadas etc.) do edifício, importa distinguir se as reparações estavam ou não executadas e concluídas à data da alienação da fração. No primeiro caso (reparações ainda não executadas ou não concluídas) o encargo das respetivas despesas, na proporção respetiva, deve ser suportado, salvo acordo em contrário, pelo adquirente, pois que, dispunha objetivamente de todos os elementos para se aperceber da existência da obrigação, além de que será ele a retirar proveito do gozo do bem ao qual foi incorporada aquela beneficiação. No segundo caso (reparações já executadas e concluídas) o encargo deve ser suportado, salvo acordo em contrário, pelo alienante, pois que, o adquirente não dispõe agora de quaisquer elementos objetivos que indiciem ou denunciem a existência da obrigação”. No mesmo sentido da necessidade de ponderação dos contornos concreto do litígio por forma a determinar o responsável pelo pagamento de obras, se pronunciou o Tribunal da Relação de Guimarães, em acórdão de 08-04-2021 (proferido no processo nº 1521/20.4T8GMT-A.G1, disponível em www.dgsi.pt), constando do respetivo sumário: “No caso, tem natureza ambulatória a obrigação de pagamento de obras de conservação profunda do telhado e das fachadas de um imóvel em regime de propriedade horizontal que, além do mais, embora já tivessem sido aprovadas à data da transmissão da fração ainda não tinham sido realizadas.”
Perante o exposto, salvo melhor opinião, afigura-se que não deve concluir-se, como consta da sentença recorrida: “Assim, sendo o título executivo, duas atas de assembleia de condóminos de 8/6/2019 e de 22.7.2019, não se concebe a possibilidade de formação de um título executivo desta natureza contra alguém que não era proprietário à data de realização das assembleias de condóminos e que, por esse motivo, não podia nelas participar, nem exercer qualquer direito, não tendo também nascido na sua esfera jurídica, qualquer obrigação de pagamento, sendo o respetivo devedor, quem consta dessas atas como condómino e proprietário da fração à data.”
Desde logo, nos termos expostos, o caráter propter rem da obrigação em discussão e a sua natureza tendencialmente ambulatória, poderá justificar a responsabilização da executada, adquirente da fração, pelo pagamento da quantia exequenda.
Porém, importará previamente aferir em qual das esferas jurídicas (do transmitente ou do alienante) se repercutiu o benefício resultante das obras de conservação do edifício e da sua cobertura. Contudo, tal análise casuística, in casu, resulta inviabilizada, por serem vários os factos pertinentes para o efeito que persistem controvertidos. Ou seja, no atual estado dos autos, os factos que, por acordo, se podem considerar apurados consistem, essencialmente, nas deliberações da assembleia de condóminos relativamente à execução de obras, à sua natureza (conservação do edifício e cobertura), valor e contribuição fixada aos condóminos.
Mas os factos apurados não permitem com segurança determinar:
- Se as obras estavam ou não executadas no momento em que a fração foi transmitida;
- Se o adquirente sabia da necessidade de realização de tais obras;
- Se o montante respetivo foi ou não repercutido no preço fixado para a compra.
Ou seja, no quadro legal aplicável, anterior à vigência das alterações operadas à propriedade horizontal pela Lei 8/2022, de 10-01, não era inequívoca a desresponsabilização do adquirente pelo pagamento dos montantes discriminados nas atas das assembleias de condóminos, importando ainda apurar um acervo de factos que poderiam justificar ou não a sua responsabilização. Factos esse que se revelam determinantes para a decisão sobre a existência de título executivo que vincule o adquirente da fração em causa.
Interessa ainda clarificar que o quadro legal decorrente da Lei 8/2022, de 10-01, não foi aplicado de forma retroativa, contrariamente ao que refere a recorrente. O que se afirma na decisão recorrida é que o entendimento aí propugnado, implicando a formação de título executivo relativamente ao proprietário à data da deliberação, “veio a ser consagrada no novo regime da propriedade horizontal”. Tal aplicação retroativa estaria vedada pelo princípio geral relativo à aplicação das leis no tempo, consagrado no artigo 12º CC.
A este propósito, interessa ter em conta que a lei nº 8/2022, resulta do Projeto de Lei n.º 718/XIV/2.ª, constando da respetiva exposição de motivos, que visou introduzir “(…) mecanismos facilitadores da convivência em propriedade horizontal, nomeadamente agilizando procedimentos de cobrança (…). O diploma pretende ainda contribuir para a pacificação da jurisprudência que é abundante e controversa a propósito de algumas matérias, como, por exemplo, os requisitos de exequibilidade da ata da assembleia de condóminos, a legitimidade processual ativa e passiva no âmbito de um processo judicial e a responsabilidade pelo pagamento das despesas e encargos devidos pelos condóminos alienantes e adquirentes de frações autónomas, colocando fim, neste último aspeto, à vasta e sobejamente conhecida discussão acerca das características de tais obrigações”. Ora, quanto este último objetivo (clarificação das obrigações dos “condóminos alienantes e adquirentes de frações autónomas”), as profundas alterações operadas pela Lei 8/2022, de 10-01, envolvendo, previamente à transmissão da fração, a emissão de declaração de dívidas do condómino alienante, revelam-se incompatíveis com a sua imediata aplicação a situações constituídas anteriormente à sua vigência. Efetivamente, nesse aspeto o regime da propriedade horizontal foi alterado, passando a prever mecanismo que permite a obtenção de informação atualizada sobre as dívidas do condómino alienante e que inviabiliza que a tal alteração legal seja atribuído caráter de lei interpretativa, compatível com a sua imediata aplicação – cfr. artigo 13º, CC.
O certo é que existe factualidade que permanece controvertida, cujo apuramento permitirá uma decisão conscienciosa e segura quanto à existência ou inexistência de título executivo, relativamente à executada/embargante (adquirente da fração em momento posterior às deliberações que ditaram o contributo dos condóminos nas obras de conservação do edifício e da cobertura).
Assim, a decisão recorrida, na realidade, revela-se prematura, dado que os factos apurados no momento do saneamento dos autos não permitem, com segurança, apreciar e decidir a questão suscitada de harmonia com as várias soluções plausíveis para a questão de direito. Questão essa que impõe maior indagação factual, nos termos já expostos, no mínimo quanto ao apuramento da data em que foram realizadas as obras correspondentes às deliberações do condomínio que constituem o título executivo, por forma a que o seu valor possa, com segurança, ser imputado à esfera jurídica do beneficiário das mesmas.
Ora, nos termos do disposto no artigo 595º, nº 1, alínea b), ex vi artigo 732º, nº 2, CPC, o despacho saneador destina-se a “Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas”. Porém, tal sucede quando os factos relevantes se mostrem assentes por acordo, revelando-se desnecessária a instrução da causa para o conhecimento do mérito o que, in casu não se verifica. Como se sumariou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-12-2012 (proferido no processo nº 1345/10.7TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt): “1- Seja na seleção dos factos assentes, seja na seleção dos factos controvertidos, o juiz deve ter em conta todos os factos relevantes segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não apenas os factos que relevam para a solução da questão de direito que tem como aplicável. II - Assim, na fase do despacho saneador, não pode o juiz decidir de acordo com os factos então assentes e que tem por suficientes para a solução jurídica que considera correta, desprezando factos ainda controvertidos e relevantes para uma solução jurídica diversa sustentada por parte da jurisprudência”.
Dado os autos não reunirem todos os elementos de facto que permitam concluir pela existência/inexistência de título executivo relativamente à executada/embargante, impõe-se, pois, a revogação da decisão recorrida e a prolação de despacho que ordene o prosseguimento dos autos, nos termos que se revelarem adequados, seja com o convite ao aperfeiçoamento dos articulados, para ampliação dos factos alegados, ou com a realização da audiência prévia, ou mesmo a sua dispensa, impondo-se, de todo o modo, enunciação do objeto do litígio e dos temas de prova e a ulterior instrução da causa - cfr artigos 590º nº 2, alínea b), 593º ou 597º, CPC.
Em face da procedência do recurso deduzido pela exequente/embargada, a executada deverá suportar as respetivas custas - cfr. artigo 527º, CPC.
*
III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 2ª secção cível em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela exequente/embargada, revogando a decisão recorrida e ordenando o prosseguimento dos autos.
Custas pela executada – cfr. artigo 527º, CPC.
Lisboa, 13 de fevereiro de 2025
Rute Sobral
Paulo Fernandes da Silva
João Paulo Vasconcelos Raposo (com voto de vencido, conforme declaração infra)
Voto de Vencido
Entendendo que não existem questões de facto controvertidas que se possam considerar materialmente comportadas na oposição deduzida, decidiria pela sustentação da decisão, nos termos constantes da mesma.
João Paulo Vasconcelos Raposo