RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA PARA O TRABALHO HABITUAL
INCAPACIDADE PARA O EXERCÍCIO DE OUTRA PROFISSÃO
INCAPACIDADE FUNCIONAL
DANO FUTURO
DANOS PATRIMONIAIS
EQUIDADE
Sumário


É de considerar equitativa a indemnização por perda de capacidade de ganho decorrente de défice funcional permanente da integridade física e psíquico da lesada nas seguintes circunstâncias: défice permanente da integridade física e psíquica da autora, fixado em 73 pontos; incapacidade da lesada para exercício da sua atividade profissional habitual, bem como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional; previsível longo período de perda de rendimentos a (desde a data da consolidação das lesões em Dezembro de 2020, numa altura em, que a ré tinha 38 anos de idade até aos 84 anos de idade, correspondente à esperança média de vida das mulheres; salário líquido mensal de aproximadamente 655 euros.

Texto Integral


Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça

AA, residente na Rua ..., ... ..., propôs a presente acção declarativa com processo comum contra a Companhia de Seguros Allianz Portugal S.A., com sede na rua Andrade Corvo, n.º 32, Lisboa, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe:

a. A indemnização global líquida de 769.150,78 €, acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação, até efetivo pagamento;

b. A indemnização que, por força dos factos alegados nos artigos 426.º a 446.º da petição inicial, viesse a ser fixada em decisão ulterior ou a ser liquidada em execução de sentença/incidente de liquidação.

Com estes pedidos, a autora visa indemnizar os danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu em consequência de acidente de viação ocorrido em ... de Abril de 2017. A ré foi demandada na qualidade de seguradora do veículo automóvel que atropelou a autora. Na sua versão, a condutora de tal veículo (BB) foi a única responsável pelo atropelamento.

A ré contestou a acção, pedindo que a mesma fosse julgada em conformidade com a prova a produzir em Audiência de Julgamento.

Após a junção aos autos do relatório pericial do Gabinete Médico-Legal e Forense ..., a autora ampliou os seguintes pedidos:

• O pedido de indemnização por danos não patrimoniais, ampliado para 300 000 euros;

• O pedido de indemnização por perda de capacidade de ganho ou IPP ou DFP de 73 pontos, ampliado para 600 000 euros;

• O pedido de condenação da ré a pagar à autora a indemnização relativa aos danos alegados nos artigos 426.º a 446.º da petição inicial, passando a pedir a condenação da ré a pagar à autora as indemnizações relativas aos danos alegados nos artigos 7.º a 33.º do articulado superveniente, a fixar em decisão ulterior (artigo 564º., nº. 2, do Código Civil) ou, seguindo outro entendimento, a quantificar em incidente de liquidação, ao abrigo do disposto nos artigos 358.º, nº. 2 e 609.º, nº. 2, do Código de Processo Civil, acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da propositura da presente acção, até efectivo pagamento.

A ampliação do pedido foi admitida.

Após a realização da audiência final foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, decidiu:

1. Condenar a ré a pagar à autora a quantia 586.345,78 € (quinhentos e oitenta e seis mil, trezentos e quarenta e cinco euros e setenta e oito cêntimos), correspondente à diferença entre 636.345,78 € (soma das verbas abaixo enunciadas) e 50.000 € (montante já pago pela ré)), sendo:

• 200 000,00 € (duzentos mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, contados desde a prolação da presente decisão e até efetivo e integral pagamento;

• 430 000,00 € (quatrocentos e trinta mil euros), a título de défice funcional permanente da integridade física e psíquica, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até efetivo e integral pagamento;

• 6 345,78 € (seis mil, trezentos e quarenta e cinco euros e setenta e oito cêntimos), a título de danos patrimoniais (diferenças salariais), acrescidos de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até efetivo e integral pagamento.

2. Condenar a ré a pagar à autora a indemnização que viesse a ser liquidada em execução de sentença relativa aos factos provados que constam dos pontos nºs 180 a 184.

Apelação:

A autora não se conformou com a sentença na parte relativa à indemnização do défice funcional permanente da integridade física e psíquica e na respeitante indemnização dos danos não patrimoniais e interpôs recurso de apelação.

Pediu a revogação e a substituição deles pelas seguintes decisões:

• Pela que condenasse a ré no pagamento de montante não inferior a 700 000 euros (setecentos mil euros), a título de indemnização do défice funcional permanente da integridade física e psíquica;

• Pela que condenasse a ré no pagamento de montante não inferior a 250 000 euros, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

A interpôs recurso (apelação) subordinado contra o segmento da sentença que a condenou no pagamento de 200 000 euros, a título de indemnização por danos não patrimoniais, pedindo a revogação e a substituição dele por decisão que a condenasse no pagamento de quantia de 150 000 euros.

O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão proferido em 19 de Setembro de 2024, julgou parcialmente procedente o recurso interposto pela autora e improcedente o recurso subordinado da ré e, em consequência, alterou o valor da parcela indemnizatória fixada na sentença a título “de défice funcional permanente da integridade física e psíquica, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação até efetivo e integral pagamento” de 430.000,00 para 530.000,00 € (quinhentos e trinta mil euros), passando o valor global da condenação resultante da soma das diversas parcelas, com a dedução do já pago também efetuado na sentença, a ser de 686.345,78 € (seiscentos e oitenta e seis mil, trezentos e quarenta e cinco euros e setenta e oito cêntimos).

Revista

A não se conformou com o acórdão na parte em que a condenou a pagar 530 000 euros, a título de indemnização do défice funcional permanente da integridade física e psíquica, e interpôs recurso de revista, pedindo se revogasse, nessa parte, o acórdão e se repristinasse a sentença proferida em 1.ª instância.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. Não pode a recorrente, no entanto conformar-se com o então decidido, porquanto entende, com o devido respeito e salvo melhor opinião, que mal andou o Venerando Tribunal da Relação na apreciação da matéria de direito em apreço, concretamente quanto à fixação do quantum indemnizatório devidos pelos danos patrimoniais, nomeadamente a quantia de Eur. 530.000,00 fixada pela Relação.

2. Assim, a presente revista fundamenta-se na violação de lei substantiva vertida nos artigos 563.º, 564.º, 566.º e 569.º do Código Civil.

3. O fundamento base do Tribunal a quo para o aumento da indemnização é o de considerar que a incapacidade fixada levará a dificuldades no re-acesso à vida profissional, tendo assim em consideração uma incapacidade absoluta para o trabalho, fundamento que não tem fundamento na matéria de facto dada como provada, uma vez que apenas foi dado como provado que (i) a A. padece de um défice funcional permanente da integridade física e psíquica fixável em 73 pontos, impeditivo do exercício da sua atividade profissional habitual, bem como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional e que (ii) a A. encontra-se a auferir uma pensão provisória por invalidez, que em 2020 encontrava-se fixada em Eur. 211,79, como resulta do artigo 191 dos factos provados - o que corresponde desde logo a cerca de 25% do seu rendimento bruto (conforme facto provado 186).

4. A fixação do quantum indemnizatório de Eur. 530.000,00 parte de pressupostos que não se coadunam com a jurisprudência proferida em casos análogos e recentes e com a concreta extensão do dano no caso concreto, estando desconforme seja com a jurisprudência citada pelo Tribunal a quo (o acórdão proferido no processo n.º 551/19.3T8AVR.P1.S1) e com a jurisprudência supra citada pela recorrente (processos 347/21.2T8PNF.P1 e 163/11.0TBFZZ.E1.

5. Entende a Recorrente que, no cálculo a efetuar quanto aos danos patrimoniais, o Tribunal sempre deverá atender ao período temporal que medeia entre a data da consolidação das sequelas do A. até à sua idade provável de reforma.

6. O Tribunal a quo tem como variável de base o salário bruto da A., quando apenas a retribuição líquida é relevante para o apuramento do lucro cessante da A.

7. A indemnização de Eur. 530.000,00 fixada excede o dano patrimonial da A. ainda que se tivesse em consideração uma incapacidade total para qualquer profissão, o salário bruto, e a esperança média de vida e não se efetuasse qualquer redução pelo recebimento antecipado, uma vez que se multiplicarmos o salário bruto mensal da A. de Eur. 840,00 por 12 meses e por 50 anos, tal conta matemática ascenderia a Eur. 504.000,00.

8. Considerando o rendimento da A., a percentagem de incapacidade de que ficou a padecer, a sua idade e tomando como guia os sistemas de orientação maioritariamente seguidos na jurisprudência dominante e que balizam os montantes indemnizatórios dos danos corporais decorrentes de acidentes de viação, designadamente o período de vida ativa, o salário líquido e ainda a dedução pelo recebimento instantâneo de uma quantia que apenas iria ser auferida ao longo de uma vida de trabalho, de forma a evitar uma situação de enriquecimento sem causa, temos que a quantia fixada pelo Tribunal de 1.ª Instância a merecer algum reparo é por excesso e não por defeito, devendo a indemnização fixada pelo Tribunal a quo ser reduzida em conformidade.

9. Destarte, ao decidir como decidiu quanto à indemnização por danos não patrimoniais, o Tribunal da Relação violou a lei substantiva, concretamente a disposta nos artigos 562.º, 563.º, 564.º e 566.º do Código Civil, o que se invoca nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 674.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil.

A autora respondeu, sustentando a manutenção da decisão recorrida.


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Síntese da questão suscitada pelo recurso:

Saber se, ao condenar a ré no pagamento à autora da quantia de 530 000 euros, a título de indemnização do défice permanente da integridade física e psíquica, o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 562.º, 563.º, 564.º e 566.º do Código Civil.


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O acórdão recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos

Provados:

1. No dia ... de Abril de 2017, pelas 21h30m, ocorreu um acidente de trânsito, na Rua ..., na União de Freguesias de ..., concelho de ....

2. Junto ao estabelecimento comercial denominado “Café M....”.

3. Tendo em conta o sentido Nascente-Poente, ou seja, P....-V.... .. ........

4. Nesse acidente, foram intervenientes: 1º – o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-HI, propriedade de CC; 2º – e o peão AA, Autora na presente ação.

5. Na altura da ocorrência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI era conduzido por BB, residente na Praça ..., ... ....

6. BB conduzia o referido veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI em consequência de empréstimo que o supra-referido CC lhe havia, previamente, concedido.

7. Na altura da ocorrência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, a BB conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula 79-20HI, à ordem, com conhecimento, com autorização, por conta no interesse e sob a direção efetiva do suprarreferido CC.

8. A Rua ..., no local da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, configura um sector de reta,

9. Com um comprimento superior a cento e setenta metros.

10. A faixa de rodagem da Rua ... tinha uma largura de 7,50 metros.

11. O seu piso era pavimentado a asfalto.

12. Na altura da ocorrência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, o tempo estava bom e seco.

13. E o pavimento asfáltico da faixa de rodagem da Rua ... encontrava-se limpo, seco e em bom estado de conservação.

14. A faixa de rodagem da Rua ..., no preciso local da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, era dividida em duas hemi-faixas de rodagem distintas.

15. A hemi-faixa de rodagem da Rua ..., situada do lado Sul, é destinada ao trânsito automóvel que desenvolve a sua marcha no sentido Poente-Nascente, ou seja, M......-P.....

16. A hemi-faixa de rodagem da Rua ..., situada do lado Norte, é destinada ao trânsito automóvel que desenvolve a sua marcha no sentido Nascente-Poente, ou seja, P....-M.......

17. Pela sua margem esquerda, tendo em conta o sentido Nascente-Poente, ou seja, P.... M......, a faixa de rodagem da Rua ... apresentava, à data da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, uma berma.

18. Pela margem direita, tendo em conta o sentido Nascente-Poente, ou seja, P....-M......, a faixa de rodagem da Rua ... não apresentava, à data da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, qualquer berma, destinada ao trânsito de peões.

19. Sendo certo que, no preciso local da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, existia, à data do sinistro que está na génese dos presentes autos, o estabelecimento comercial denominado “CAFÉ M....”.

20. O local da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação configura-se como uma localidade.

21. Na altura da ocorrência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, eram 21h30m, do ... de Abril de 2017.

22. O tempo estava seco, sem nevoeiro e sem neblina.

23. Pelas duas margens da faixa de rodagem da Rua ... existiam candeeiros da iluminação pública,

24. Implantados em postes de suporte, a uma distância não superior a trinta metros uns dos outros.

25. A Autora conhecia perfeitamente o local onde eclodiu o acidente a que a presente ação se reporta.

26. E a condutora do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..- ..-HI – BB – passava no local da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, no desempenho da atividade da condução automóvel, todos os dias e, até, mais do que duas vezes ao dia.

27. No dia ... de Abril de 2017, pelas 21h30m, imediatamente antes do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, a Autora procedia do interior do edifício onde funciona o estabelecimento comercial “CAFÉ M....”.

28. A Autora saiu para o exterior do referido “CAFÉ M....”.

29. Pretendia proceder ao atravessamento da faixa de rodagem da Rua ..., no sentido Sul-Norte, ou seja, da esquerda para a direita, tendo em conta o sentido Nascente Poente: P....-M.......

30. Logo que saiu do espaço correspondente ao estabelecimento comercial “CAFÉ M....”, a Autora imobilizou a sua marcha sobre a berma empedrada situada na margem esquerda da Rua ..., tendo em conta o sentido Nascente-Poente, ou seja, P....-M.......

31. A Autora pretendia proceder ao atravessamento da faixa de rodagem da Rua ..., no sentido Sul-Norte, da esquerda para a direita, tendo em conta o sentido de marcha Nascente-Poente – P....-M......, em direção ao espaço destinado ao estacionamento e aparcamento de veículos automóveis, situado do lado Norte (em relação à faixa de rodagem da Rua ...), na margem direita da referida via, tendo em conta o sentido Nascente-Poente, onde se encontrava o seu veículo automóvel.

32. E que margina, pelo lado exterior, a hemi-faixa de rodagem do lado direito da Rua ..., tendo em conta o sentido Nascente-Poente.

33. A Autora pretendia dirigir-se, a pé, para o seu veículo automóvel, que se encontrava estacionado no espaço destinado ao estacionamento e aparcamento de veículos automóveis, situado do lado Norte da faixa de rodagem da Rua ..., na margem direita da referida via – Rua ..., tendo em conta o sentido Nascente-Poente, em frente e do lado oposto da faixa de rodagem da Rua ..., em relação ao local onde se situa o estabelecimento comercial “Café M...”.

34. A Autora, em passo firme, ligeiro e determinado, iniciou e desenvolveu o atravessamento da faixa de rodagem da Rua ..., no sentido Sul-Norte, da esquerda para a direita, tendo em conta o sentido Nascente-Poente.

35. A Autora percorreu, sem parar e sem hesitação, toda a largura – de 1,60 metros - correspondente à berma empedrada situada na margem esquerda da Rua ..., tendo em conta o sentido Nascente-Poente.

36. Ato contínuo e sem parar, percorreu, sem hesitação, toda a largura – de 3,75 metros - da hemi-faixa de rodagem do lado esquerdo – Rua ..., tendo em conta o sentido Nascente-Poente.

37. A Autora percorreu depois uma largura de 3,55 metros, correspondente à largura da hemi-faixa de rodagem do lado direito da referida via – Rua ..., tendo em conta o sentido Nascente-Poente, quando a Autora foi embatida pelo veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI, tripulado pela supra-referida BB,

38. Nas referidas circunstâncias de espaço e tempo, o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI transitava pela Rua ..., na União de Freguesias de ..., da cidade e concelho de ....

39. O veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI desenvolvia a sua marcha, no sentido Nascente-Poente, ou seja, P...-M....

40. A condutora do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..- ..-HI, BB, não se apercebeu da presença da Autora.

41. A condutora do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..- ..-HI – BB - não levou a efeito qualquer manobra de evasão ou de salvação.

42. Não reduziu a velocidade que imprimia ao veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI.

43. BB foi embater com o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI contra o corpo da Autora.

44. Esse embate ocorreu totalmente sobre a metade direita da faixa de rodagem da Rua ..., tendo em conta o sentido Nascente-Poente.

45. A uma distância de apenas 0,20 metros – vinte centímetros - da linha delimitativa do lado direito, da metade direita da faixa de rodagem da Rua ..., tendo em conta o sentido Nascente-Poente.

46. Essa colisão verificou-se entre a parte frontal direita, ao nível do canto e do farol do mesmo lado, do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI e o corpo da Autora.

47. Com o embate, o corpo da Autora foi projetado para sua frente – para a frente do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI, no sentido Poente, em direção a M..., ao longo de uma distância de 16,59 metros.

48. Até que ficou, prostrado, no solo, sobre a metade direita da faixa de rodagem da Rua ..., tendo em conta o sentido Nascente-Poente, ou seja, P...-M....

49. O veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI, após o embate, prosseguiu a sua marcha, ao longo da distância de 74,05 metros, até que se imobilizou.

50. A condutora do veículo automóvel não tinha noção de que havia atropelado uma pessoa.

51. A Ré Companhia de Seguros “ALLIANZ PORTUGAL COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, logo após a deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, através dos seus serviços técnicos, levou a efeito as pertinentes averiguações, com vista ao apuramento das causas que estão na génese do sinistro.

52. A Ré Companhia de Seguros “ALLIANZ PORTUGAL COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.” concluiu que a culpa na produção do sinistro que está na génese da presente ação é única e exclusivamente imputável à condutora do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI – BB.

53. Assumiu a responsabilidade pelas consequências danosas decorrentes do acidente de trânsito que deu origem à presente ação.

54. E, em conformidade, prestou assistência médica e medicamentosa à Autora, nos seus serviços clínicos.

55. Pagou, à Autora, quantias diversas relativas a despesas por ela suportadas com assistência médica, medicamentosa e transportes.

56. E pagou também, à Autora, diversas quantias relativas a diferenças salariais por esta sofridas em consequência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, das lesões sofridas e das sequelas delas resultantes.

57. Consequência direta e necessária do acidente e da queda que se lhe seguiu, resultaram, para a autora as seguintes lesões corporais: politraumatismos, traumatismo crânio-encefálico grave, traumatismos da coluna lombar, dorsal e cervical, traumatismo torácico, contusão da face, otorrogia bilateral, fratura dos ossos temporais direitos, com atingimento do canal auditivo, com hemotímpano e ar intercerebral, contusões hemorrágicas temporais esquerdas, contusões hemorráias temporais direitas, hematoma subdural direito, pequeno subdural esquerdo, fratura da apófise transversa direita de C3 e da pars articular, fratura da clavícula direita, fratura da omoplata direita, fratura da sétima costela direita, fratura da asa do ilíaco direito, fratura do prato tibial esquerdo, fratura do perónio esquerdo, fratura alinhada da asa do sacro direita, hematoma subdural à direita, contusões hemorrágicas, hematoma subdural do lado esquerdo, edema cerebral, fratura da coluna cervical, escoriações e hematomas espalhados pelo corpo todo.

58. A Autora foi transportada, de ambulância do INEM, para o Hospital 1, de ....

59. Foram-lhe aí prestados os primeiros socorros, no respetivo Serviço de Urgência.

60. Dada a gravidade das lesões sofridas, a Autora foi de imediato transferida para o Hospital 2, em coma induzido.

61. A Autora manteve-se internada, no Hospital 2, desde o dia ... de Abril de 2017 até ao dia ... de Maio de 2017.

62. No Hospital 2, a Autora fez TAC.

63. A qual revelou agravamento marcado das lesões endocranianas traumáticas, com destaque para o volumoso hematoma subdural agudo direito, com efeito de massa muito marcado, desvio de linha média e herniação sub-facial.

64. A Autora foi transferida para o Bloco Operatório do Hospital 2.

65. Foi-lhe, aí, ministrada uma anestesia geral.

66. E foi submetida a uma intervenção cirúrgica ao crânio, no dia 4 de Abril de 2017, consubstanciada em Craniotomia Descompressiva Emergente, com drenagem do Hematoma Subdural e controlo da Hemorragia craniana.

67. Foram-lhe ministradas quatro transfusões de sangue.

68. Após a realização da supra-referida intervenção cirúrgica, a Autora fez nova TAC cerebral, a qual revelou drenagem praticamente total do hematoma subdural, hemisfério direito, menor desvio esquerdo da linha média, com algum encerramento do corno temporal do ventríloco lateral direito e redução significativa do efeito de massa.

69. Após a sujeição à supra-referida intervenção cirúrgica, a Autora foi transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos Polivalente, do Hospital 2, para medidas de neurointensivismo, entubada, com respiração assistida e alimentação nasogástrica.

70. A Autora permaneceu na Unidade de Cuidados Continuados do Hospital 2 ao longo de um período de dez dias.

71. A Autora manteve-se entubada até ao dia 9 de Abril de 2017, data em que foi extubada.

72. A Autora continuava a apresentar Edema Artnaoideu Bilateral, com SDR importantes e estridor de má resposta à terapêutica.

73. A Autora foi reintubada até ao dia 13 de Abril de 2017, data em que foi extubada.

74. A Autora apresentava quadro de SIRS.

75. Foi-lhe ministrada amoxicilina-clauvulanato, 2 D, com início em D6, escalado para ceftriaxone, com cobertura meníngea.

76. Durante o internamento, no Hospital 2, a Autora manteve estabilidade hemodinâmica, com necessidade de suporte vasopressor (Noradrenalina), até D4 para PPC > 60 mmHg.

77. Durante o internamento, no Hospital 2 e após ser extubada, a Autora passou a fixar o olhar.

78. Passou a parecer compreender as mensagens.

79. Mas não cumpria ordens.

80. Tolerou a dieta entérica, Normoglicémica e Normotérmica.

81. Fez um pico febril em 11 de Abril de 2017.

82. E apresentou parâmetros inflamatórios em perfil descendente.

83. No dia 9 de Abril de 2017, a Autora apresentava Haemophilus Influenzae w MSSA (resistente a amoxicilina e ácido clavulánico) no aspirado brônquico.

84. Fez tratamento conservador, no Hospital 2, às fraturas dos ossos: temporais direitos; da coluna cervical; da apófise transversa direita de C3 e da pars articular; da clavícula direita; da omoplata direita; sétima costela à direita; da asa do ilíaco direito,

85. Com manutenção do uso do colar cervical.

86. Em consequência da fratura dos ossos da coluna cervical, no dia 14 de Abril de 2017, a Autora foi transferida para a Unidade de Cuidados Intensivos de Neurocríticos.

87. Na Unidade de Cuidados Intensivos de Neurocríticos, a Autora apresentou evolução favorável,

88. Após o que foi transferida para continuação de cuidados, na Enfermaria de Neurocirurgia.

89. Na admissão, na Enfermaria de Neurocirurgia, a Autora apresentava-se vigil, mas com resposta muito escassa.

90. No dia 17 de Abril de 2017, a Autora acordou do estado de Coma.

91. No dia 24 de Abril de 2017, a Autora regressou ao Bloco Operatório do Hospital 2.

92. Foi-lhe, aí, ministrada uma anestesia geral.

93. E foi sujeita a uma intervenção cirúrgica, consubstanciada na redução da fratura do joelho esquerdo: Prato Tibial Lateral e Cabeça do Perónio.

94. No dia 8 de Maio de 2017, a Autora regressou ao Bloco Operatório do Hospital 2.

95. Foi-lhe, aí, ministrada uma anestesia geral.

96. E foi submetida uma terceira intervenção cirúrgica, à região craniana, consubstanciada em Cranioplastia, com cimento.

97. No dia 16 de Maio de 2017, a Autora obteve alta do Hospital 2.

98. E regressou, para continuação dos tratamentos e para convalescença, à casa de residência dos seus pais.

99. Onde se manteve, acamada, ao longo de: a) um período de nove meses – de 16/05/2017 a 18/02/2018; b) sendo duas semanas – de 16/05/2017 a 01/06/2017, acamada; c) sendo quatro semanas - de 01/06/2017 a 02/07/2017, em cadeira de rodas; d) sendo duas semanas – de 03/07/2017 a 17/07/2017, ora com uma, ora com um par de canadianas.

100. A Autora viu-se na necessidade de se manter na casa de habitação dos seus pais ao longo do período de nove meses.

101. Com necessidade diária de acompanhamento, ajuda e auxílio de uma terceira pessoa – a sua mãe.

102. Ao fim do referido período de nove meses, de permanência na casa de habitação dos seus pais, a Autora regressou à sua própria residência, com crises diárias de tonturas e com tendência para quedas.

103. Após a sua alta hospitalar, a Autora passou a frequentar o 2, no regime de Consulta Externa, da Especialidade de Neurocirurgia.

104. A partir do dia 2 de Junho de 2017, a Autora passou a frequentar o Hospital 3 da cidade ..., por conta e a expensas da Ré Companhia de Seguros “ALLIANZ PORTUGAL COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”.

105. No dia 2 de Junho de 2017, a Autora teve uma consulta médica, no Hospital 3, da cidade do ....

106. Na sequência da qual lhe foi prescrito tratamento de Medicina Física e Reabilitação (MFR) – Fisioterapia, que a Autora cumpriu, na Clínica Médica..., Lda, ao longo de trezentas e dez sessões, desde o dia 6 de Junho de 2017 ao dia 1 de Fevereiro de 2019.

107. No dia 21 de Setembro de 2017, a Autora foi internada no Hospital 3, da cidade ....

108. Permaneceu internada ao longo de um período de tempo de dois dias, até ao dia 22 de Setembro de 2019.

109. Foi-lhe ministrada uma anestesia geral.

110. E foi submetida a uma intervenção cirúrgica ao ouvido direito, com vista à recuperação da audição, ao nível desse ouvido.

111. No dia 10 de Janeiro de 2018, a Autora foi internada no Hospital 3, da cidade ..., ao longo de um período de tempo de dois dias, até ao dia 11 de Janeiro de 2018.

112. Foi-lhe ministrada uma anestesia geral e foi submetida a uma segunda intervenção cirúrgica aos ossos do joelho esquerdo, para extração dos parafusos que lhe haviam sido aplicados na primeira intervenção cirúrgica ao joelho esquerdo.

113. No dia 15 de Fevereiro de 2018, a Autora foi internada no Hospital 3, da cidade ..., ao longo de três dias, até ao dia 17 de Fevereiro de 2018.

114. Foi-lhe ministrada uma anestesia geral.

115. E foi submetida a uma segunda intervenção cirúrgica ao ouvido direito.

116. No Hospital 3, da Cidade ..., a Autora foi consultada, seguida a tratada, nas seguintes Especialidades: a) Ortopedia – Dr. DD; b) Otorrinolaringologia – Dr. EE; c) Estomatologia – Dr. FF; d) Cirurgia Plástica – Dr. GG; e) Oftalmologia – Dra. HH; f) Dermatologia – Dr. II; g) Psiquiatria – Dr. JJ; h) Neurologia; i) Neurocirurgia – Dr. KK; j) Medicina Geral – Dra. LL.

117. No dia 16 de Novembro de 2019, a Autora foi internada no Hospital 2, ao longo de um período de tempo de sete dias, até ao dia 22 de Novembro de 2019.

118. E foi submetida a uma segunda intervenção cirúrgica ao crânio.

119. No dia 28 de Novembro de 2019, a Autora regressou ao Hospital 2, no Serviço de Cirurgia

120. E foram-lhe extraídos os pontos de sutura.

121. A partir dessa data, a Autora continuou a frequentar o Hospital 2.

122. Os serviços clínicos da Ré Companhia de Seguros “ALLIANZ PORTUGAL COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, à data da propositura da ação, ainda não haviam dado alta clínica à Autora.

123. A Autora, em consequência do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, das lesões sofridas e das sequelas delas resultantes, ainda se encontrava, à data da propositura da ação, na situação de doença, com Incapacidade Temporária Absoluta para o trabalho – Repercussão Temporária da Atividade Profissional Total.

124. Como queixas das lesões sofridas, a autora apresenta:

• A nível funcional, compreendendo este nível as alterações das capacidades físicas ou mentais (voluntárias ou involuntárias), cateterísticas de um ser humano, tendo em conta a sua idade, sexo e etnia, que surgem na sequência das sequelas orgânicas e são influenciadas, positiva ou negativamente, por fatores pessoais (como a idade, o estado físico e psíquico anterior, a motivação e o esforço pessoal de adaptação) e do meio (como as barreiras arquitetónicas, as ajudas técnicas ou as ajudas humanas), refere:

• Postura, deslocamentos e transferências: dificuldade em caminhar longos períodos (mais de 20 minutos), referindo dor ao nível da anca, joelho esquerdo e tornozelo direito (refere que usa uma palminha especial no pé direito) ao final desse tempo; dificuldade em subir e descer escadas, mais a descer; não consegue correr por sentir dor com o impacto ao nível das áreas anatómicas referidas previamente; dificuldade em permanecer na posição de acocorada ou ajoelhada;

• Manipulação e preensão: refere notar os movimentos da cintura escapular "mais presos"; dificuldade em transportar pesos devido às queixas álgicas a nível cervical: nega outras alterações;

• Comunicação: dificuldade na audição com o ouvido direito, não sabendo a percentagem de audição com que ficou; refere zumbido constante "irrita-me profundamente acordo e adormeço com ele, ainda não me consegui habituar a tal coisa";

• Cognição e afetividade: dificuldade na concentração, perda de memória "dizem-me que eu faço uma pergunta, respondem-me, daí a 5 min sou capaz de fazer a mesma pergunta": irritabilidade fácil, principalmente com barulhos; "sempre fui uma pessoa de estar em convívio ... e agora não suporto ou ir várias pessoas a falar ao mesmo tempo, os barulhos ... "; refere que se assusta com barulhos no carro, não tem pesadelos com o acidente; refere ter desenvolvido um quadro depressivo após o evento, em relação com as limitações sequelares que sente, encontrando-se medicada com Sertralina (antidepressivo, lx/dia), Fluoxetina (antidepressiv o, lx/ dia e Bromalex (ansiolítico, em SOS);

• Sexualidade e procriação: refere que deste o acidente nunca mais teve parceiros sexuais, "nunca mais tive apetite sexual", "antes não era assim, depois ficou tudo apagado;

• Fenómenos dolorosos: tipo "moedeira" na região cervical, que agravou com os esforços; gonalgía esquerda e queixas álgícas ao nível do tornozelo direito, que surgem com alguns movimentos e esforços; crises de enxaqueca duas a três vezes por mês, que duram cerca de 3 dias e que não cedem à toma de medicação analgésica (refere que nao tinha antes);

• Outras queixas a nível funcional: refere tonturas, mais frequentes quando está deitada e faz alguns movimentos, "tonturas" essas que induzem o vómito "como se tivesse a andar num baloiço duram alguns segundos só mas deixam-me de rastos";

• A nível situacional, compreendendo este nível a dificuldade ou impossibilidade de uma pessoa efetuar certos gestos necessários à sua participação na vida em sociedade, em consequência das sequelas orgânicas e funcionais e de fatores pessoais e do meio, refere: - Atos da vida diária: dificuldades na condução pela lentificação de raciocínio "noto que não tenho a mesma agilidade mental ... a mesma capacidade de reação ... ". "eu achava que não me deixavam conduzir porque me podiam falhar as pernas ... agora percebo que era pela cabeça ... "; dificuldade em limpar vidros e mudar os lençóis devido as queixas álgicas a nível cervical; dificuldade em transportar sacos de compras mais pesados; dificuldade em colocar a roupa na máquina por ter de permanecer baixada;

• Vida afetiva, social e familiar: praticava ginásio cerca de 3 a 4 vezes por semana, refere ter tentado a retoma ao ginásio após ter terminado a fisioterapia, frequentando mais a hidroginástica, no entanto depois surgiu a pandemia COVID-19 e seguidamente as questões monetárias fizeram-lhe abandonar esta prática; esporadicamente fazia trilhos com grupos de amigos e abandonou devido às queixas álgicas ao nível do tornozelo e joelho;

• Vida profissional ou de formação: escolaridade: 12° ano completo, no ramo de administração; previamente ao acidente desempenhava tarefas de administrativa numa Empresa de Produtos para ..., desde há cerca de 2 anos; após o acidente esteve de baixa médica até abril de 2020, pensão provisória até setembro de 2020 e seguidamente foi-lhe atribuída uma "pensão de invalidez relativa" a partir de 03-04-2021, explicando que terá sido observada em junta médica na Segurança Social. Refere que não retomou a atividade profissional porque foi entretanto despedida (não tinha contrato efetivo) e por não se sentir capaz de exercer a mesma profissão a tempo inteiro, devido às dificuldades na concentração e perda de memória "dizem-me que eu faço uma pergunta, respondem-me, daí a 5 min sou capaz de fazer a mesma pergunta". Refere ter vontade de ter uma atividade profissional, por se sentir de momento "uma inválida", explicando, no entanto, que ainda não procurou trabalho.

125. Como sequelas das lesões sofridas, a autora apresenta:

• Crânio: na região parietal e temporal direitas, presença de uma cicatriz arcifonne com concavidade anterior, com 31 cm de comprimento, sem áreas de alopécia cicatricial associadas e que se encontra recoberta pelos fios de cabelo;

• Face: na região frontal direita, anteriormente à linha de implantação capilar, presença de urna área cicatricial hipocrómica, de contornos irregulares, com 7 por 4 centímetros de maiores dimensões, que tapa com a franja do cabelo, sendo que quando está para trás se torna percetível a urna distância social (refere que lhe incomoda muito);

• Pescoço: presença de várias áreas cicatriciais irregulares eucrómícas dispersas pela face posterior do pescoço, a maior das quais linear com 2,5 cm de comprimento, que ocupam urna área com 7 por 6 cm de maiores dimensões: mobilidade cervical conservad apesar de referida como dolorosa nos últimos graus do movimento:

• Ráquis: mobilidades conservadas;

• Membro superior direito: na face dorsal da articulação ínterfalangica proximal do 5° dedo, presença de uma cicatriz hipocrómica infracentimétrica: arcos de movimento do ombro conservados, sem dor referida à mobilização do mesmo;

• Membro inferior direito: sem alterações da mobilidade ou dor referida à mobilização da articulação coxo-femoral, sem dor a palpação; na face anterior do joelho, presença de uma área cicatricial irregular hípocrómíca com 4 por 2,5 cm de maiores dimensões; defesa no movimento de inversão do tornozelo, mobilidades conservadas; articulação tíbiotásíca/ pé em posição de inversão, ligeira rigidez nos últimos arcos do movimento, referidos como dolorosos;

• Membro inferior esquerdo: na face medial da coxa, presença de tuna cicatriz hipocrômica linear com 3 cm de comprimento; na face anterior do joelho, presença de uma área cicatricial irregular hipocrórnica com 3,5 por 3 cm de maiores dimensões: na face anterolateral e lateral do terço superior da perna, presença de uma cicatriz linear curvilínea com concavidade posterior, e vestígios de pontos, com 11 cm de comprimento, visível a distância social; mobilidades do joelho conservadas mas referidas como dolorosas, testes Iigamentares e meniscais negativos, sem atrofias musculares: força muscular conservada.

126. A Autora contava, à data do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, trinta e quatro anos de idade, pois nasceu no dia ... de ... de 1982.

127. A Autora obteve a sua consolidação médico-legal, no dia 21 de dezembro de 2020.

128. O período de défice funcional temporário total é fixável em 239 dias.

129. O período de défice funcional temporário parcial é fixável em 1120 dias.

130. O período de repercussão temporária na atividade profissional total é fixável em 1359 dias.

131. O quantum doloris é fixável no grau 6/7.

132. O défice funcional permanente da integridade física e psíquica é fixável em 73 pontos.

133. As sequelas descritas são impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual, bem como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.

134. O dano estético permanente é fixável no grau 4/7.

135. A repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer é fixável no grau 2/7.

136. A repercussão permanente na atividade sexual é fixável no grau 4/7.

137. A autora vai necessitar, no futuro, de ajudas medicamentosas, tratamentos médicos regulares, nomeadamente de Medicina Física e de Reabilitação, ajudas técnicas, adaptação do domicílio e do veículo.

138. Na sua casa de banho, a autora terá de adquirir uma barra de apoio para duche, um assento para duche e um tapete antiderrapante, até realizar as obras de adaptação necessárias.

139. A Autora vai carecer, ao longo de toda a sua vida, de colocar palmilhas no calçado do pé direito, com apoio do arco interno.

140. A Autora vai carecer, ao longo de toda a sua vida, de próteses auditivas para o seu ouvido direito.

141. A Autora vai carecer, ao longo de toda a sua vida, de comprar máquina de lavar e secar roupa, limpa-vidros elétrico, com cabo extensível, robot aspirador, robot de cozinha multifunções (triturar, amassar, bater, liquidificar, ralar, picar, cozinhar).

142. A Autora, na altura da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, exercia a profissão de Assistente Administrativa, por conta da sociedade “C..., lda”, com sede na Rua Zona Industrial, ...

143. A autora auferia o salário ilíquido de 840,00 €.

144. Até ao dia 31 de Março de 2019, a Segurança Social Portuguesa pagou à Autora as quantias correspondentes ao subsídio de doença.

145. E a Ré Companhia de Seguros “ALLIANZ PORTUGAL, S.A.”, com referência a essa data de 31 de Março de 2019, pagou as respetivas diferenças salariais, à Autora.

146. A partir do dia 1 de abril de 2019, a Segurança Social Portuguesa continuou a pagar à Autora, as quantias relativas ao subsídio de doença, no valor de 570,30 €, por mês.

147. No dia 2 de Abril de 2020, a Autora atingiu o período máximo de concessão de subsídio de doença.

148. Passou-lhe a ser concedida uma pensão provisória de invalidez, a partir de 3 de Abril de 2020, no valor de 211,79 €.

149. A partir da data de 31 de Março de 2019, a Ré Companhia de Seguros “ALLIANZ PORTUGAL, S.A.” não pagou quaisquer quantias a título de diferenças salariais.

150. Até 30 de setembro de 2020, a autora recebeu da Segurança Social, a título de subsídio de doença e a título de pensão provisória de invalidez, a quantia total de 8.114,34 €.

151. Para a Ré, Companhia de Seguros “ALLIANZ PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, estava transferida a responsabilidade civil por danos a terceiros do veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-HI, identificado nos autos como causador do acidente de trânsito que deu origem à presente ação, através de contrato, titulado pela apólice nº .......61, válido, eficaz e em vigor à data da deflagração do acidente.

152. A ré já pagou à autora por conta da indemnização, a quantia de 50.000 €, em 12/02/2021.

Factos não provados:

a. Que antes da ocorrência do sinistro a autora desempenhava atividades domésticas, ao longo de um período de quatro horas por dia;

b. Que o rendimento/valor não pode computar-se em menos de (5,00 €/hora x 4 horas = 20,00 €/dia x 30 dias) 600,00 €, por mês;

c. Que a autora efetuou as seguintes despesas, ainda não reembolsadas pela ré: consultas médicas e obtenção do Relatório médico junto aos autos 410,00 €; deslocações múltiplas, relacionadas com o acidente, 250,00 €;

d. Que a autora viu danificadas e inutilizadas as seguintes peças de vestuário e de calçado: 1 par de calças de licra, 2 camisolas, toda a roupa interior e 1 par de botas de cabedal, no valor de 145,00 €;

e. Que a autora ajustou com a sua mãe pagar-lhe a quantia mensal de 600,00 €, pelo fornecimento de cama, alimentação, companhia e todos os serviços que esta lhe prestou durante o período em que permaneceu na sua casa.


*

Descritos os factos provados e não provados, passemos à resolução da questão suscitada pelo recurso.

A presente acção destina-se à efectivação de responsabilidade civil por factos ilícitos decorrente de acidente de viação. Neste recurso não se discute se a ré, ora recorrente, na qualidade de seguradora, está obrigada a indemnizar a autora. A sentença proferida em 1.ª instância decidiu, sem que tal decisão tenha sido impugnada, que o acidente, consistente no atropelamento da autora pelo veículo automóvel seguro na ré, foi imputável exclusivamente à condutora desse veículo. E assim, por aplicação do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto (regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) combinado com o n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, recai sobre a ré, seguradora, a obrigação de indemnizar a autora pelos danos resultantes do acidente.

Na revista está em questão apenas a medida da indemnização em dinheiro do seguinte dano resultante do acidente: défice funcional permanente da integridade física e psíquica da autora, fixado em 73 pontos numa escala de 100.

Apesar de este défice se referir “à afectação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas actividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais, e sendo independente das actividades profissionais”, no presente recurso está em causa o montante que o acórdão recorrido fixou para indemnizar a repercussão do mencionado défice na capacidade de ganho da autora, ou por outras palavras, a medida da indemnização da perda de rendimentos decorrente de tal défice.

Na determinação de tal montante (530 000 euros), o acórdão sob recurso, além de se referir aos elementos tidos em conta na 1.ª instância (tempo previsível de vida da autora, o rendimento mensal dela e o défice de que ficou afetada), destacou as seguintes circunstâncias:

1. Que o défice de que ficou a padecer a autora impediam-na de exercer a sua actividade profissional habitual, bem como qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional e dificultavam o acesso à vida profissional;

2. Que a consideração cega dos 73 pontos no cálculo matemático do que a autora perdeu na sua capacidade não contemplava o peso que as lesões corporais lhe trouxeram nesse campo (na capacidade de ganho);

3. Que o valor de 530 mil euros tinha correspondência com o que havia sido decidido no acórdão do STJ proferido em 10-04-2024, no processo n.º 551/19.3T8AVR.P1.S1 em que se havia fixado uma indemnização de 165 000 com base nas seguintes circunstâncias:

• Vítima de acidente de viação com 58 anos de idade;

• Incapacidade total para o trabalho habitual ou para qualquer outro;

• Défice funcional da integridade física e psíquica de 72 pontos;

• Grau de incapacidade permanente e global de 80% atribuída pela segurança social;

• Salário médio mensal de 990 euros a receber durante 20 anos de esperança média de vida.

A lógica do acórdão recorrido para sustentar que o montante de 530 000 euros tinha correspondência com o de 165 000 euros, fixado no acórdão acima indicado, foi a seguinte: se num caso em que a vítima tinha lesões semelhantes às da autora, mas em que, após o acidente, tinha uma esperança de vida de 20 anos, foi fixada indemnização de 165 000 euros, então era adequado fixar, como medida da indemnização da incapacidade da autora, o montante de 530 000 euros, apesar de o seu vencimento ser inferior ao da vítima do processo acima referido. E era adequado porque a esperança de vida desta vítima era de 20 anos ao passo que a da autora era de 50 anos.

O recurso é de julgar procedente, embora não por todas as razões alegadas pela recorrente. Vejamos.

Como se escreveu acima, no recurso está em questão a medida da indemnização da repercussão do défice funcional permanente da integridade física e psíquica da autora, fixado em 73 pontos, sobre a capacidade de trabalho/ganho da autora.

Apesar de, como escreve Carlos Alberto da Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, página 345), a capacidade de trabalho não fazer parte do património, constitui, no entanto, uma qualidade da pessoa que se “projecta nos resultados patrimoniais da sua vida”. Daí que a privação ou mesmo a mera diminuição da capacidade de trabalho e de ganho decorrentes de défice funcional permanente da integridade física e psíquica seja de considerar dano patrimonial.

E dano patrimonial futuro, no sentido de que terá incidência nos resultados patrimoniais da sua vida, quer se tenha como horizonte temporal desta vida aquele que vai até à idade prevista pela lei para a reforma, quer se tenha como horizonte temporal a esperança média de vida.

Qualquer que seja o horizonte temporal que se considere para efeitos de definição do “futuro”, não é possível averiguar com exactidão os danos que o défice permanente da integridade física e psíquica causará ao património do lesado.

Daí que a medida da indemnização destes seja de fixar com recurso à equidade por aplicação da regra do n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil. Assim o tem afirmado a jurisprudência do STJ, citando-se, como exemplos deste entendimento, o acórdão proferido em 21-01-2021, no processos n.º 6705/14.1T8LRS.L1.S1., o acórdão proferido em 12-01-2022, no processo n.º 6158/18.5T8SNT.L1.S1., e o acórdão proferido em 30-03-2023, no processo n.º 15945/18.3TPRT, todos publicados em www.dgsi.pt.

Não diz o n.º 3 do artigo 566.º quais as circunstâncias que devem ser tomadas em conta na fixação equitativa da indemnização, ao contrário do que faz o n.º 4 do artigo 496.º do mesmo diploma, a propósito da fixação equitativa do montante da indemnização dos danos não patrimoniais. Limita-se a prescrever que o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.

A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça – que se segue neste acórdão – tem entendido que na fixação equitativa da medida da indemnização dos danos patrimoniais decorrentes do défice funcional da integridade física da vítima de acidente de viação, o tribunal deve ter em atenção, no essencial, as seguintes circunstâncias:

• O grau do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica (a tendência é a de que quanto maior for o défice maior será a indemnização);

• A idade do lesado;

• A esperança média de vida;

• A actividade profissional do lesado;

• Os rendimentos do lesado;

• As qualificações profissionais do lesado.

Citam-se a título de exemplo desta jurisprudência os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: acórdão proferido em 28-01-2016, no processo n.º 7793/09.8T2SNT, acórdão proferido em 01-03-2018, no processo n.º 773/07.0TBALR.E1.S1, acórdão proferido em 7-03-2019, processo n.º 203/14.0T2AVR.P1.S1, e os acima indicados, todos publicados no sítio www.dgsi.pt.

Tendo presente a regra do n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil e as circunstâncias a ter em conta na fixação equitativa da indemnização, apreciemos as razões do recurso.

A recorrente começa por se insurgir contra o acórdão com a alegação de que decisão assentou no pressuposto de que a autora, ora recorrida, está absolutamente incapaz para o trabalho, quando tal pressuposto não tem apoio na fundamentação de facto.

Não é exacto que o acórdão sob recurso tenha laborado no pressuposto de que a autora, ora recorrida, estava na situação de incapacidade absoluta para todo e qualquer trabalho. O que acórdão afirmou é que as sequelas das lesões dificultavam o regresso da autora, ora recorrida, à vida profissional, ou seja, ao exercício de uma profissão.

Esta afirmação tem amparo nos factos provados, pois constitui uma presunção lógica e pertinente da seguinte realidade:

• As lesões deixaram sequelas que se traduzem num défice permanente da integridade física e psíquica, fixado em 73 pontos, numa escala de 100 pontos;

• As sequelas são impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual, bem como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.

Na verdade, no mercado de trabalho e do emprego, quem tem a capacidade física e psíquica diminuída não tem tantas possibilidades/oportunidades de trabalho e de emprego (ou não tem tantas possibilidades de manter o trabalho e o emprego) como aqueles que não têm qualquer deficiência na sua integridade física e psíquica. Daí que é legítimo presumir que quem, como a autora, ficou com sequelas que correspondem a um défice funcional permanente da integridade física e psíquica de 73 pontos e que está incapaz de exercer a sua actividade profissional habitual bem como qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico profissional, dificilmente tem condições para regressar à vida profissional.

Esta presunção é também a do legislador. Com efeito, é por as pessoas com deficiências na sua integridade física e psíquica terem dificuldade em obter emprego que o Estado, em cumprimento do artigo 71.º da Constituição da República Portuguesa, estabeleceu através da Lei n.º 4/2019, de 10 de Janeiro, o sistema de quotas de emprego para pessoas com deficiência com um grau de incapacidade igual ou superior a 60%, visando a sua contratação por entidades empregadoras do setor privado e organismos do setor público, não abrangidos pelo âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 29/2001, de 3 de fevereiro (este diploma Estabelece o sistema de quotas de emprego para pessoas com deficiência, com um grau de incapacidade funcional igual ou superior a 60%, em todos os serviços e organismos da administração central, regional autónoma e local).

Não merece, assim, qualquer censura o acórdão recorrido quando afirmou que as sequelas das lesões dificultavam o regresso da autora, ora recorrida, à vida profissional, ou seja, ao exercício de uma profissão.

O segundo argumento de que a recorrente lançou mão para censurar o acórdão consistiu na alegação de que, no cálculo da indemnização devia atender-se ao período que decorre desde a data da consolidação das lesões até à sua idade provável de reforma.

Ao alegar no sentido exposto, a recorrente argumenta como se o acórdão sob recurso não tivesse tomado em conta como período relevante para o cálculo do montante da indemnização o que ia da data da consolidação das lesões até à idade provável da reforma.

Assim sucedeu. Com efeito, apesar de não ter tomado posição expressa sobre a questão, deduz-se da fundamentação do acórdão que tomou em conta o período que ia desde a data do acidente (3 de Abril de 2017) até à data limite da esperança média de vida, que estabeleceu nos 84 anos de vida.

Assiste razão à recorrente quando alega que o período relevante deve iniciar-se com a data da consolidação das lesões. O mesmo não se pode dizer sobre a alegação de que a indemnização servirá para indemnizar a perda da capacidade de ganho até à idade provável da reforma.

Sobre o início do período na data da consolidação as lesões:

Visto que o dano em causa é a perda de capacidade de ganho resultante das sequelas das lesões e que estas consolidaram-se no dia 21 de Dezembro de 2020, é a partir deste momento que se inicia o cálculo da indemnização. Antes de se consolidarem, as lesões são fonte de incapacidade temporária (total ou parcial), a qual é indemnizada, como sucedeu no caso dos autos, a título de perdas salariais.

Sobre o horizonte temporal que se tem como referência para calcular as perdas de rendimentos:

Nesta questão segue-se a jurisprudência do STJ, segundo a qual o limite temporal é constituído pela esperança média de vida, pois “a afectação da capacidade tem repercussões negativas ao longo de toda a vida, tanto directas como indirectas”. Citam-se a título exemplificativo o acórdão do STJ proferido em 12-01-2022, processo n.º 6158/18.5T8SNT.L1.S1. e o acórdão do STJ proferido em 30-03-2023, no processo n.º 15945/18.3T8PRT.P1.S1. ambos publicados em www.dgsi.pt.

O terceiro argumento de que se socorre a recorrente para pedir a alteração da decisão quanto ao montante da indemnização é constituído pela alegação de que o acórdão atendeu ao salário bruto quando o rendimento relevante para determinar a indemnização por perda de rendimentos é o rendimento líquido.

Apesar de o acórdão não ter tomado uma posição expressa quanto a questão, é de entender que laborou com base no rendimento ilíquido da autora à data do acidente, visto que foi este valor que foi tido em conta na sentença proferida na 1.ª instância e o acórdão nada disse a este propósito.

Também aqui, seguindo jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, entende-se que os rendimentos relevantes são os líquidos. Citam-se como exemplos deste entendimento os seguintes acórdãos: proferido em 19 de Outubro de 2016, no proc. n.º 1893/14.0TBVNG.P1.S1; proferido em 25 de Maio de 2017, no processo n.º 806/12.8T8VCT; proferido em 9 de Janeiro de 2019, no proc. n.º 1649/14.0T8VCT.G1.S1, proferido em 21 de Março de 2019, proc. n.º 1069/09.8TVLSB.L2.S1, e proferido em 21-01-2021, no processo n.º 6705/14.1T8LRS.L1.S1.todos publicados em www.dgsi.pt.

De resto este entendimento tem apoio no artigo 64.º, n.º 7 do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 De Agosto, ao dispor que “Para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao lesado, o tribunal deve basear-se nos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente que se encontrem fiscalmente comprovados, uma vez cumpridas as obrigações declarativas relativas àquele período, constantes de legislação fiscal”.

Na verdade, como se assinala no acórdão do STJ acima indicado proferido em 21-03-2019, a circunstância de o Tribunal Constitucional ter julgado inconstitucional a norma do n.º 7 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de Agosto, correspondente ao entendimento segundo o qual, nas ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado, no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, que se encontrem fiscalmente comprovados, após cumprimento das obrigações declarativas legalmente fixadas para tal período (acórdão n.º 565/2018, de 7 de Novembro de 2018), não obsta que se deva atender aos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente. Na verdade, este segmento do preceito não foi julgado inconstitucional.

Segue-se do exposto que, ao tomar em conta o salário ilíquido na determinação da indemnização por perda de rendimentos, é de entender que o acórdão recorrido não julgou segundo a equidade.

O quarto argumento de que serve o recorrente para impugnar o acórdão é constituído pela alegação de que o montante da indemnização excede o dano patrimonial da autora, ainda que se tivesse em consideração uma incapacidade total para qualquer profissão, o salário ilíquido e a esperança média de vida. Segundo a recorrente o excesso era evidenciado pela seguinte operação: se se multiplicasse o salário bruto da autora de (840 euros) por 12 meses durante 50 anos, obter-se-ia uma perda de rendimentos de 504 000 euros.

O argumento não colhe. Na verdade, não sendo possível averiguar o valor exacto das perdas de rendimentos da autora em consequência das sequelas das lesões, não pode afirmar-se que a indemnização fixada (530 000 euros) é superior a tais perdas. Seguindo a lógica argumentativa da recorrente, o mais que se poderia dizer é que se multiplicássemos o salário bruto da autora por 12 meses durante 50 anos obter-se-ia um montante inferior ao que foi fixado pelo acórdão recorrido.

Por último, alega o recorrente que o montante da indemnização fixado não está em conformidade com a jurisprudência que o próprio acórdão cita (o acórdão do STJ proferido no processo n.º 551/19.3T8AVR.P1.S1) e com a jurisprudência citada pela recorrente, concretamente com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 4-04-2024 no processo n.º 347/21.2T8PNF.P1 e com o proferido Tribunal da Relação de Évora em 11-06-2015, no processo n.º 163/11.0TBFZZ.E1, ambos publicados em www.dgsi.pt.

Este argumento não colhe, apesar de ser certo que, entre os elementos que podem ser tomados em consideração na fixação equitativa da indemnização, figuram as decisões judiciais que tenham semelhanças com o caso.

Este caminho tem apoio no n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil, que estabelece que “nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”, e no princípio constitucional da igualdade dos cidadãos perante a lei (n.º 1 do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa).

Importa, no entanto, notar que as decisões judiciais não têm a força de precedente obrigatório. Como escreve Filipe Albuquerque Matos (Reparação dos danos não patrimoniais: inconstitucionalidade da relevância da situação económica do lesado, artigos 496, n.º 3, e 494º, do Código Civil, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 142, n.º 3984, página 217), os valores fixados por decisões judiciais anteriores têm natureza meramente indicativa, e o que é decisivo é o caso concreto.

Tendo presentes as considerações anteriores, é de afirmar que o acórdão sob recurso, ao calcular a indemnização a partir da data do acidente (como se nessa altura já estivesse estabelecido o défice permanente da integridade física e psíquica) e tendo por base o salário ilíquido que a autora auferia nessa data (840 euros), não responde às exigências do julgamento equitativo a que se refere o n.º 3 do artigo 566.º do CC.

Considerando:

• O défice permanente da integridade física e psíquica da autora, fixado em 73 pontos;

• A repercussão deste défice na sua capacidade de trabalho, consistente na incapacidade para exercício da sua atividade profissional habitual, bem como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional e na manifesta dificuldade em retomar qualquer actividade profissional;

• O previsível longo período de perda de rendimentos a ter em conta (desde a data da consolidação das lesões em Dezembro de 2020, numa altura em, que a ré tinha 38 anos de idade, até aos 84 anos, correspondente à esperança média de vida das mulheres);

• O salário líquido, que se calcula em cerca de aproximadamente 655 euros, considerando o salário bruto (840 euros), a dedução da quotização da autora para a segurança social (11% de acordo com o artigo 53.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social) e a retenção na fonte do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (11% por aplicação da tabela I de retenção na fonte para o ano de 201, aprovada pelo despacho n.º 843-A/2017 de 13 de Janeiro de 2017 atendendo ao facto de se estar perante trabalhadora dependente não casada e sem dependentes).

É de julgar adequado o montante da indemnização fixado na 1.ª instância, ou seja, 430 000 euros.

Decisão:

Concede-se a revista e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido na parte impugnada e substitui-se a mesma por decisão a condenar a ré, ora recorrente, no pagamento à autora da quantia de quatrocentos e trinta mil euros (430 mil euros), a título de indemnização por perda da capacidade de ganho, decorrente do défice funcional permanente da integridade física e psíquico, fixado em 73 pontos, mantendo-se a parte restante da decisão.

Responsabilidade quanto a custas:

Do recurso:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a autora, recorrida, ter ficado vencida no recurso, caberia à mesma suportar as custas do recuso. Não se condena, no entanto, a mesma, considerando que beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo.

Da acção:

Considerando a disposição legal acima citada e a circunstância de ambas as partes terem ficado vencidas, em parte, na acção, caberia à autora e a ré a pagar as custas na proporção do seu decaimento, respectivamente de 36% e 64%. Dado que a autora goza do benefício do apoio judiciário, condena-se apenas a ré a pagar as custas da acção na proporção atrás indicada.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2025

Relator: Emídio Santos

1.ª Adjunta: Isabel Salgado

2.ª Adjunta. Catarina Serra