I. No quadro contratual estabelecido e a facticidade provada, não podia a Autora percorrer a alternativa da prorrogação (sucessiva) do prazo para a celebração do contrato prometido, para no final, decidir resolver o contrato.
II. O declaratário normal - “…pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário”, interpretaria, que a opção pela prorrogação do prazo para a celebração do contrato prometido, excluía a resolução do contrato-promessa, pelo menos, com o fundamento de não ter sido obtido o registo do alojamento local das frações.
III. A declaração de resolução ilícita deverá ser tida como ineficaz, inidónea a produzir efeito extintivo do contrato.
IV. A verificação de incumprimento definitivo do contrato dependerá de uma ponderação casuística em torno do circunstancialismo da declaração de resolução sem fundamento, que segundo as regras da experiência comum, levarem à conclusão de que se evidencia uma recusa definitiva, firme, categórica de cumprimento por parte do promitente autor da declaração.
1. Da acção
AA intentou contra FRIENDLY IMOBILIARE – SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA, e COUL, UNIPESSOAL, LDA, a presente acção declarativa de condenação com processo comum, pedindo que as rés sejam condenadas a pagar à autora a quantia de € 75.000,00, acrescida de juros de mora desde 05.07.2020 e até integral pagamento.
Em síntese útil alegou, que celebrou com as rés o contrato promessa de compra e venda de duas fracções de imóvel com destino a alojamento local; como não logrou obter resposta ao seu pedido de licenciamento, comunicou por carta às Rés a resolução do contrato promessa e solicitou a devolução do sinal, que aquelas recusaram.
As Rés contestaram e deduziram reconvenção.
Alegaram de relevante que a carta de resolução é ilícita; tendo marcado a escritura, a autora comunicou que não compareceria, reiterando o propósito de resolução do contrato promessa, pelo que retêm o sinal pago, e em consequência pedem a sua absolvição do pedido da Autora e a sua condenação a reconhecer às Rés aquele seu direito.
A Autora replicou e contestou o pedido reconvencional no sentido da sua pretensão.
No prosseguimento da instância e instrução da causa, foi proferido o seguinte despacho - “Tendo em consideração os motivos invocados no requerimento apresentado pelas rés a 27.5.2021, ter-se-á por não junto o documento apresentado pela autora a 12.5.2021. Notifique.”,
Realizada a audiência final, seguiu-se a sentença que julgou improcedente a acção e absolveu as Rés do pedido e procedente a reconvenção, condenando a Autora a reconhecer o direito de aquelas a haver para si o sinal prestado, no montante de Euros 75.000,00.
2. A apelação
Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação tendo por objecto o despacho supratranscrito e a sentença.
O Tribunal da Relação julgou improcedente o recurso da Autora em ambos os segmentos; o acórdão culminou no seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência, decidimos: a) - Confirmar a sentença na parte em que julgou improcedente a ação e absolveu as Rés do pedido;
b) - No mais, revogar a sentença e julgar improcedente a reconvenção, absolvendo a Autora do pedido reconvencional.”
3. A(s) Revista(s)
3.1. Inconformada, a Autora pede revista, pugnando pela revogação do acórdão; a sua motivação termina com as conclusões seguintes:
«1ªO acórdão recorrido enferma de erro, fazendo errada interpretação e aplicação do disposto no art. 644º/2/d), ao considerar que a impugnação do despacho de 27.06.2023, que antecede a sentença, e que decidiu que se teria por não junto o documento apresentado pela autora a 12.5.2021, teria de ser objecto de impugnação autónoma.
2ªNo caso, o despacho em questão não era sobre a rejeição de um meio de prova, mas sobre se um documento, já junto aos autos e admitido, constituía um acto praticado por advogado em violação do dever de sigilo profissional.
3ªOs factos não provados a), b) e c) deviam ter sido considerados assentes por acordo das RR., que não impugnaram especificadamente os arts. 19º a 24º da petição inicial e, em qualquer caso, assentam na ocorrência pandemia e seus efeitos, que são factos públicos e notórios, enfermando o acórdão de erro de julgamento, e de ofensa ao disposto no art. 574º/2 do CPC, uma vez que tais factos não foram objecto de qualquer impugnação.
4ªO facto não provado d) devia ter sido eliminado e substituído por outro com a redacção do art. 26º da réplica, que se encontra provado pelo documento junto aos autos em 12.05.2021, e foi expressamente aceite pelas RR., pelo que, ao não decidir neste sentido, a Relação desaplicou o disposto no art. 465º do CPC.1
5ª O facto não provado e) devia ter sido eliminado e substituído pelo art. 42º da petição inicial, que não foi impugnado pelas RR., tendo o acórdão recorrido, em violação do disposto no art. 574º/2 do CPC, mantido erradamente a resposta negativa, declarando que tal facto havia sido impugnado na contestação, quando não tinha.
6ªO acórdão recorrido decidiu acertadamente na parte em que, contrariamente ao entendimento da primeira instância, declarou que assistia à Autora o direito de resolver o contrato-promessa sub judice ao abrigo da sua cláusula nº 4.2. 2..
7ªJá não decidiu bem quando concluiu que a A. actuou em abuso de direito, que a impedia de exercer o direito de resolução, por ter actuado contrariamente aos ditames da boa-fé, adoptando um comportamento, posterior à resolução, que seria incompatível com esta.
8ª O alegado abuso de direito, a ter ocorrido, só ocorreu em momento posterior à resolução – três meses após esta – quando a A. solicitou às RR. elementos para o processo camarário de licenciamento do alojamento local, sendo que o instituto do abuso de direito, e o art.334 do CC não podem fundamentar a paralisação retroactiva de um direito que já foi exercido e que produziu os seus efeitos jurídicos.
9ªNo caso, não constituiu abuso do direito, que excedesse os limites impostos pela boa-fé, a circunstância de a A., após a resolução contratual, não ter deixado cair o processo camarário, tendo, ao invés, na sequência de uma notificação que a informava do projecto de decisão de indeferimento, solicitado às RR. elementos para construir uma defesa contra esse indeferimento.
10ªEsse comportamento da A., mesmo que fosse contraditório com a resolução ocorrida três meses antes, nunca poderia ter a virtualidade de repristinar o contrato resolvido, fazendo renascer para as partes as obrigações extintas pelo acto resolutivo.
11ªA Relação fez errada aplicação do disposto no art. 334º do Cód. Civ. e do instituto do abuso do direito, não tendo havido, in casu, qualquer comportamento abusivo, em qualquer das suas modalidades, designadamente o venire contra factum proprium.
12ª A A. tinha o direito de resolver o contrato-promessa de 29.12.2019 celebrado com as RR., ao abrigo da sua cláusula 4.2.2., pois, na data da resolução – 30.06.2020 – não se verificavam as condições de que dependia a celebração do contrato prometido, designadamente, não tinha sido emitido o licenciamento para alojamento local para as duas fracções prometidas comprar, pelo que a acção devia ter sido julgada procedente, enfermando o acórdão de erro de julgamento ao não decidir nesse sentido.
13ªO acórdão recorrido não devia ter decidido que o contrato-promessa sub judice se mantinha em vigor, visto que a A. praticou um segundo acto resolutivo em 23.12.2020, que o Tribunal a quo não considerou.»
3.2. As Rés também inconformadas, interpõem revista.
Nas suas alegações concluem no final:
1. No Acórdão proferido em 25.10.2023, o Tribunal a quo (i) julgou improcedente o pedido da Recorrida (à semelhança do que havia decidido o tribunal de 1.ª instância, embora com fundamentação diversa) e (ii) julgou improcedente o pedido reconvencional das Recorrentes, tendo decidido (iii) que o Contrato-Promessa celebrado entre as Partes se mantém em vigor.
2. As Recorrentes não podem, contudo, conformar-se com a decisão da improcedência do pedido reconvencional, dela interpondo o presente recurso de revista, que é admissível, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 671.º, n. os 1 e 3, do CPC.
3. Do mesmo modo, as Recorrentes também não se conformam com a fundamentação utilizada pelo Tribunal a quo para julgar improcedente o pedido formulado pela Recorrida (embora concordem, naturalmente, com a improcedência do mesmo) – ao contrário do referido pelo Tribunal a quo, a improcedência do pedido da Recorrida baseia-se na ilicitude da resolução do Contrato-Promessa, por esta, em 30.06.2020.
4. Ora, o pedido reconvencional deverá proceder, pois a resolução do Contrato-Promessa pela Recorrida, em 30.06.2020, foi ilícita, por carecer de qualquer fundamento legal ou contratual (cfr. artigo 432.º, n.º 2, do CC).
5. A ilicitude, por sua vez, não só foi eficaz (tendo, assim, extinto o vínculo contratual entre as Partes), como equivaleu ao incumprimento definitivo do Contrato-Promessa pela Recorrida, o que, de acordo com o disposto no artigo 442.º, n.º 2, 1.ª parte, do CC, confere às Recorrentes o direito de fazerem suas as quantias recebidas a título de sinal.
6. Nos termos da cláusula 4.2. do Contrato-Promessa, as Partes acordaram que, se em 30.03.2020 não estivessem verificadas todas as condições para outorgar a escritura de compra e venda, a Recorrida podia escolher uma das opções alternativas constantes das cláusulas 4.2.1., 4.2.2 ou 4.2.3.
7. A Recorrida optou por prorrogar o prazo para a celebração da escritura (cláusula 4.2.3.), até 30.06.2020, pelo que, nesta data, já não podia escolher nenhuma das outras opções, como fez, ao tentar resolver (ilicitamente) o contrato, ao abrigo da cláusula 4.2.2.
8. A interpretação exposta é não só a que resulta do elemento literal da cláusula, como a que está em linha com as regras interpretativas dos artigos 236.º a 238.º do CC.
9. Considerando o artigo 236.º do CC, o único sentido que um declaratário normal, colocado na posição das Partes, poderia retirar do teor da cláusula 4.2., era o de que, perante a falta das condições para a celebração da escritura em 30.03.2020, a. Recorrida dispunha de três opções alternativas, não cumulativas – ou seja, que só podia optar por uma.
10. E, que, em 30.03.2020, a Recorrida foi confrontada com a escolha entre terminar, validamente, o Contrato-Promessa (cláusula 4.2.2.) ou mantê-lo válido, prorrogando apenas o prazo para celebrar a escritura (cláusulas 4.2.1. ou 4.2.3.). 1. Uma vez prorrogado o prazo para a celebração da escritura (escolha da Recorrida), o Contrato-Promessa tinha de ser cumprido, a escritura pública tinha de ser outorgada. Por outras palavras, após prorrogar, a Recorrida estava obrigada a celebrar o contrato definitivo, com ou sem registo de AL.
12. Além disso, o sentido de interpretação que garante o maior equilíbrio das prestações de ambas as partes (cfr. artigo 237.º do CC) é aquele que resulta na atribuição à Recorrida de três opções alternativas, não cumulativas, em 30.03.2020.
13. Com efeito, adotar a interpretação do Tribunal a quo é aceitar que, no âmbito da celebração do Contrato-Promessa, as Recorrentes ficaram à total mercê: (i)da diligência, ou falta de diligência, da Recorrida no início, gestão e instrução do procedimento para registo de AL; (ii) da vontade da Recorrida em celebrar o contrato definitivo (com ou sem AL); e (iii) do momento incerto em que a Recorrida, por sua conveniência, decidisse resolver o Contrato-Promessa.
14. Assim, a interpretação do Tribunal a quo é manifestamente injusta e conduz a um desequilíbrio contratual evidente.
15. Importa sublinhar que ficou provado que o atraso no início do procedimento para o registo de AL, e os erros na instrução do mesmo, são imputáveis à Recorrida (cfr. factos provados 13 a 20 e 22 a 26 da Sentença).
16. A licença de utilização e a propriedade horizontal (responsabilidade das
Recorrentes) foram enviadas à Recorrida em 17.03.2020, mas só em 30.04.2020 é que a Recorrida requereu, finalmente, o registo de AL das duas frações.
17. As Recorrentes ficaram à “mercê” da Recorrida durante 3 meses – quer em termos de prazo, cuja faculdade de prorrogação era apenas da Recorrida, quer quanto ao registo de AL, ao qual eram alheias – e, portanto, em clara “desvantagem” contratual.
18. Não é evidente que o registo de AL fosse imprescindível para o contrato de compra e venda, por diversos motivos.
19. Em primeiro lugar, porque, de acordo com o depoimento do Legal Representante da 1.ª Recorrente, o Contrato-Promessa apenas foi celebrado porque, em novembro de 2019, as Recorrentes ainda não tinham a licença de utilização, o que demonstra que a Recorrida estaria disposta a comprar as frações mesmo sem ter o registo de AL;
20. Em segundo lugar, porque a própria cláusula 4.2.1. do contrato previa taxativamente a possibilidade de celebrar a escritura sem o registo de AL;
21. Em terceiro lugar, a escritura também podia ocorrer sem registo de AL no caso de prorrogação do prazo para a celebração da escritura (cláusula 4.2.3);
22. Por fim, em 30.03.2020 – o momento contratualmente estabelecido para a Recorrida tomar uma decisão quanto à outorga da escritura (com ou sem registo de AL) – a Recorrida ainda não tinha, sequer, iniciado o procedimento de registo de AL.
23. Como tal, ainda menos justificação existe para adotar uma interpretação que deixa as Recorrentes à completa mercê da inércia e negligência da Recorrida em relação a uma questão que, como resulta dos factos provados, não parecia assim tão relevante para esta no processo de compra das frações.
24. No mais, a cláusula 11.1 do Contrato-Promessa deve ser interpretada de forma restritiva, porque não coincide com aquela que era a vontade real das Partes, na medida em que parece estabelecer que o registo de AL era sempre, e em todos os casos, impreterível para a compra e venda das frações (“diz mais”), quando, na verdade, as Partes não pretendiam que assim fosse, pelo menos, nas três hipóteses descritas (“do que aquilo que se pretendia dizer”).
25. Estabelecer uma cláusula no interesse de uma das partes (como o Tribunal a quo considera que é o caso da cláusula 4.2. em relação à Recorrida) implica, para essa parte, um dever acrescido de boa-fé, já que a contraparte – no caso, as Recorrentes – fica sujeita ao interesse e ao exercício dos direitos/faculdades inerentes ao mesmo, e estabelecidos na cláusula.
26. Mesmo que se considerasse que, em 30.06.2020, a Recorrida gozava do direito de resolução do Contrato-Promessa com base na não obtenção do registo de AL (o que não se concede), tal resolução continuava a ter de ser considerada ilícita, pois teria resultado da gestão negligente do procedimento de registo de AL, permitindo, assim, que a Recorrida se prevaleça das consequências jurídicas da sua atuação ilícita (abuso de direito, na modalidade tu quoque).
27. A prorrogação do prazo exprimia um claro interesse da Recorrida em celebrar o contrato definitivo, o que criou uma legítima confiança nas Recorrentes, que deve ser tutelada pelo direito.
28. De acordo com a doutrina e jurisprudência nacionais, a resolução ilícita é eficaz, pois determina a cessação do contrato, mas configura, ainda, um incumprimento definitivo do mesmo. No caso, isto sucede, verificando-se, ainda, os critérios que este douto Tribunal ad quem reputa como necessários: a declaração de 30.06.2020, a de 23.12.2020 e, até, a propositura da presente ação confirmam o propósito da Recorrida de não celebrar o contrato definitivo.
29. O comportamento da Recorrida após a resolução de 30.06.2020 tem relevância, para este efeito, como uma atuação de má-fé (conforme considerou o Tribunal a quo). Contudo, ao contrário do que o Tribunal a quo decidiu, tal comportamento não significou que a Recorrida não tenha pretendido resolver o Contrato-Promessa em 30.06.2020 – tanto que pretendeu, que o confirmou em 23.12.2020, e que o confirma nestes autos.
30. Assim, deverá ser mantida a decisão recorrida na parte em que julga improcedente, por não provada, a ação, e absolve as Recorrentes do pedido, mas revogada a fundamentação respetiva, em especial, a que considerou lícita a resolução do Contrato-Promessa pela Recorrida em 30.06.2020.
31. Do mesmo modo, deverá ser revogada a decisão recorrida na parte em que julga improcedente a reconvenção, e absolve a Recorrida do pedido reconvencional.
32. Ao entender que, em 02.12.2020, a escritura de compra e venda não podia ter sido agendada e outorgada, e desta forma desconsiderar a clara recusa da Recorrida em cumprir o Contrato-Promessa, o Tribunal a quo procede, com todo o respeito, a uma ponderação incorreta dos factos.
33. Primeiro, (i) desconsidera os factos subjacentes ao processo (nomeadamente, que já havia decorrido mais de 1 ano desde a assinatura do Contrato-Promessa, e que os atrasos se deveram, em exclusivo, à Recorrida); além disso, (ii) atém-se a uma formalidade (interpelação da Recorrida para, num prazo razoável, proceder ao registo de AL) que, após 30.06.2020, deixou de ser necessária.
34. Com efeito, após a opção de prorrogação até 30.06.2020, as Partes estavam obrigadas a outorgar a escritura de compra e venda, independentemente do registo de AL, que deixara de ser condição para o efeito.
35. A falta de uma notificação prévia que não era obrigatória, e relativa a um facto que já não era necessário para a celebração da escritura, não pode ser o fundamento para desconsiderar a recusa da Recorrida em cumprir.
36. O motivo da recusa da Recorrida em comparecer à escritura foi, segundo a própria, o facto de o Contrato-Promessa estar resolvido por si desde 30.06.2020 – resolução esta que, como alegado, foi ilícita.
37. Com a decisão do Tribunal a quo de manter em vigor o Contrato-Promessa – quando nenhuma das Partes o deseja (ambas peticionaram o oposto) – obriga as Partes a permanecer num vínculo contratual no qual inexiste qualquer confiança mútua ou cooperação, no contexto do qual já foram violados, por parte da Recorrida, diversos deveres contratuais e o próprio princípio da boa-fé.
38. Não é exigível às Partes que estas se mantenham no Contrato-Promessa, nem se vislumbra qualquer fundamento, de facto ou de direito, que o sustente (o contrato foi resolvido – ilicitamente – em 30.06.2020, ou, caso assim não se entenda, em 23.12.2020), devendo, por isso, ser esta decisão revogada e considerar-se extinto o Contrato-Promessa.»
II. Da admissibilidade e objecto dos recursos
1.A Autora impugna o acórdão da Relação no segmento, que teve por extemporâneo o recurso interposto do despacho do tribunal de primeiro grau que não admitiu os documentos, em simultâneo com o recurso da sentença, no prazo de 30 dias.
A impugnação em revista de decisões interlocutórias de natureza processual proferidas pela primeira instância e reapreciadas pela Relação, segue o regime restrito de revista “continuada” previsto no artigo 671º, nº 2, do CPC.
Ou seja, apenas poderão ser objecto de revista: “a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível; b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.”
Analisadas as conclusões da recorrente sobre o indeferimento da junção de documentos - Conclusões 1ª e 2ª- o seu dissentimento estriba-se em erro de julgamento e não tem como fundamento recursivo qualquer das hipóteses especiais de admissibilidade contempladas naquele normativo.
A revista não é de conhecer, pois, nessa parte.
No demais, as Rés defenderam também a rejeição do recurso da Autora invocando o obstáculo da dupla conforme.
Pois bem, constatando-se que as instâncias convergiram na improcedência da acção e consequente absolvição das Rés do pedido, a Relação socorreu-se de fundamentação “essencialmente diversa “da prosseguida pela primeira instância, como de resto resulta expressis verbis do acórdão recorrido.
Na sentença foi negada a pretensão da Autora por a resolução do contrato-promessa nos termos e data realizada não ter previsão contratual; já a Relação concluiu pela ilicitude da resolução, seguindo o caminho inovatório e a ratio decidendi do abuso do direito. 2
Em suma, atestados os pressupostos gerais de recorribilidade do acórdão, admite-se o recurso da Autora sobre o mérito da causa, e bem assim, o recurso apresentado pelas Rés quanto à decretada improcedência da reconvenção (cfr. artigos 629.º, nº1, 631º, nº1, 671.º, nº1, ex vi nº2, e 674.º, nº1, a) do CPC.
2. Tema decisório
O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões do recorrente, fora as questões de conhecimento oficioso.
Analisadas as razões das recorrentes, em interface com o acórdão impugnado, haverá que decidir se, no quadro contratual da promessa de compra e venda, em adverso ao que concluiu a Relação, a acção procede e a Autora tem direito a reaver o sinal prestado ou as Rés poderão fazê-lo seu.
As questões sujeitas a escrutínio são as seguintes:
• Uso incorrecto dos poderes de reapreciação da prova à luz do disposto no 662º do CPC;
• Erro de julgamento ao concluir pela ilicitude da resolução do contrato-promessa;
• Erro de julgamento ao concluir não se verificar incumprimento definitivo do contrato-promessa pela Autora.
III. Fundamentação
A. Factos
Vêm provados das instâncias os seguintes factos:
1. A A. é uma cidadã de nacionalidade suíça que reside actualmente em França.
2. Em finais de 2019 a A. visitou um imóvel que os RR. estavam a remodelar, sito na Rua ..., em ..., que lhe agradou.
3. Encetadas negociações, a A. chegou a acordo com as RR. para a compra de duas das fracções do edifício, então em fase final de construção.
4. No dia 29.12.2019, a A., como promitente compradora e as RR, como promitentes vendedores, celebraram um contrato de promessa de compra e venda das duas frações autónomas que viessem a corresponder à cave e ao rés do chão do prédio sito na Rua ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..36 da freguesia de ..., inscrito na matriz sob o artigo .39 da freguesia de ....
5. O referido imóvel estava a sofrer obras de total reabilitação e ampliação, não estando ainda dividido em frações autónomas, e não tinha licença de utilização.
6. Nos termos da cláusula 2.1.5 do contrato, ficou acordado que a A. prometia comprar aos RR. as duas fracções livres de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades e direitos de terceiros, completamente construídas e acabadas, em conformidade com as plantas, projectos e mapas de acabamentos anexos, com as ligações de electricidade, água e gás efectuadas, em condições de poderem ser habitadas de imediato.
7. A título de sinal e princípio de pagamento, com a assinatura do contrato, a A. pagou por duas transferências bancárias, uma no valor de € 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros) para a conta bancária da FRIENDLY IMOBILIARE, UNIPESSOAL, LDA., e uma transferência bancária no valor de € 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros) para a conta bancária da COUL, UNIPESSOAL, LDA.
8. O remanescente do preço da venda no valor de € 675.000,00 (seiscentos e setenta e cinco mil euros) seria pago na data da escritura de compra e venda, mediante dois cheques bancários, um no valor de € 337.500,00 (trezentos e trinta e sete mil e quinhentos euros) à ordem de FRIENDLY IMOBILIARE, UNIPESSOAL, LDA. e um no valor de € 337.500,00 (trezentos e trinta e sete mil e quinhentos euros) à ordem de COUL, UNIPESSOAL, LDA.
9. Foi acordado na cláusula 11ª do contrato que:
“11.1. A celebração da compra e venda aqui prometida fica sujeita ao registo para alojamento local (AL) das frações objeto do presente contrato.
11.2. Após a obtenção de toda a documentação necessária para o registo das frações para alojamento local (AL), caso a CM... não aceite o registo das frações para alojamento local (AL), o presente contrato-promessa caducará automaticamente nessa data. Os PROMITENTES VENDEDORES devolverão aos PROMITENTES COMPRADORES, no período máximo de 5 (cinco) dias, a contar dessa data, o montante recebido a título de antecipação de cumprimento, em singelo, nada mais sendo devido (…)”.
10. E na clausula 4.1 consta: “A escritura pública de compra e venda será outorgada no prazo de 15 (quinze) dias, a contar da data da verificação cumulativa da: obtenção do alvará de autorização de utilização das Frações (previsivelmente a emitir até 31.01.2020), da escritura de constituição da propriedade horizontal e do registo do Alojamento Local das duas frações.”
11. E na cláusula 4.2: “Verificando-se que na data-limite de 30.03.2020, não estão verificadas todas as condições para a celebração da escritura, a PROMITENTE VENDEDORA desde já confere à PROMITENTE COMPRADORA o direito de optar, em alternativa e no seu livre critério, por uma das seguintes situações:
4.2.1. Celebrar a escritura pública de compra e venda das fracções, nos termos do disposto no Decreto-Lei n, ° 281/99, de 26 de julho, e independentemente da autorização para o Alojamento Local.
4.2.2. Resolver unilateralmente o presente contrato-promessa ficando, neste caso, a PROMITENTE VENDEDORA obrigada a devolver em singelo à PROMITENTE COMPRADORA, todas as quantias recebidas a título de sinal e previstas em 3.2.1 no prazo de 5 (cinco) dias, a contar da comunicação a realizar nesse sentido ou,
4.2.3. Prorrogar o prazo previsto em 4.2., por períodos de 30 (trinta) dias até à data-limite de 30.06.2020, mediante comunicação à PROMITENTE VENDEDORA com a antecedência de 8 (oito) dias em relação ao termo do prazo em curso.
12. E na cláusula 5.:
“5.1 Em caso de incumprimento do presente contrato;
5.1.1. Por motivo imputável à PROMITENTE COMPRADORA, a PROMITENTE VENDEDORA terá o direito de resolver o presente contrato e de fazer suas todas as quantias entregues a título de sinal e princípio de pagamento previstas em 3.2.1;
5.1.2. Se o incumprimento do contrato for por motivo imputável à PROMITENTE VENDEDORA, a PROMITENTE COMPRADORA terá o direito de resolver o presente contrato e de exigir o pagamento em dobro das quantias entregues a título de sinal e princípio de pagamento previstas em 3.2.1.
5.2. O disposto no número anterior não prejudica o direito da parte não faltosa requerer, em alternativa, a execução específica das obrigações contratuais da parte faltosa, nos termos do artigo 830.º do Código Civil.
5.3 A não verificação ou confirmação de qualquer dos factos que constituem objeto das declarações de garantia - ou a sua verificação em termos diferentes dos afirmados ou garantidos - previstas na Cláusula Segunda deste Contrato, confere à PROMITENTE COMPRADORA o direito de resolver o presente contrato e de exigir à PROMITENTE VENDEDORA a restituição do sinal prestado, acrescido de juros à taxa de 7% (sete por cento) ao ano, desde a presente data até à sua efetiva restituição.
13. Em 17.03.2020 as RR. informaram a A. de que haviam sido emitidas as licenças de utilização para as duas fracções prometidas comprar.
14. Em 20.03.2020 a A. notificou as RR. da prorrogação do prazo previsto na cláusula 4.2. do contrato promessa por mais 30 dias.
15. A 17.3.2020 a A. constituiu com BB, uma sociedade comercial por quotas com a firma T..., Lda.
16. Em 03.04.2020 a A. enviou às RR. uma minuta de declaração que disse ser necessária para juntar ao processo de alojamento local autorizando a sociedade constituída pela A. a requerer o registo, bem como certidão da CRP e Cadernetas das duas fracções, assim como declaração do condomínio autorizando (ou não se opondo) ao AL.
17. Em 13.04.2020 o representante da COUL LDA. informou o mandatário da A. que enviara a 07.04.2020 a declaração solicitada, bem como outros documentos necessários ao processo de AL.
18. A 22.04.2020 a A., enviou correspondência electrónica para as rés, comunicando a prorrogação do prazo previsto na clausula 4.2. do contrato promessa por mais 30 dias, até ao dia 30.4.2020, afirmado que se afigurava impossível a verificação de condições para a celebração da escritura, designadamente o registo no regime de Alojamento Local.
19. Em 22.05.2020 a A., enviou correspondência electrónica para as rés, comunicando a prorrogação do prazo previsto na clausula 4.2. do contrato promessa por mais 30 dias, afirmando não estarem reunidas as condições para a celebração da escritura, designadamente o registo no regime de Alojamento Local.
20. Em 30.06.2020, a autora enviou às rés carta afirmando não estarem as fracções registadas para alojamento local por se encontrarem em área de contenção e a e a câmara não ter ainda atribuído a autorização e afirmando que, por aquela carta, “nos termos da clausula 4.2.2. do aludido contrato, pela presente a promitente compradora resolve o contrato promessa de compra e venda de 29.11.2029, com as consequências aí previstas, valendo esta também como a notificação a que se refere a mesma clausula 4.2.2.”.
21. As RR. não restituíram à A. os sinais pagos no contrato-promessa.
22. Em 01 de Outubro de 2020 a sociedade T..., Lda foi notificada do projecto de indeferimento do pedido de registo de Alojamento local, formulado no processo nº ..45/EXP/2020.
23. A 16.10.2020 a T..., Lda remeteu para a CM... um requerimento, referente ao processo ..45/EXP/2020, pedindo o deferimento do pedido de autorização de alojamento local.
24. O que também fez a 04.11.2020 a T..., Lda, referindo-se ao processo ..46/EXP/2020.
25. A 7 de Outubro de 2020 a autora solicitou às rés o envio de documentos respeitantes às fracções e a 27 de novembro de 2020 solicitou-lhe a colocação de contadores da água.
26. A ré enviou à autora a “Declaração sob compromisso de honra” datada de 12.10.2020, declarando que as fracções não tinham sido objecto de contrato de arrendamento para fins habitacionais nos últimos cinco anos
27. A 2 de Dezembro de 2020 as rés remeteram à autora carta, datada de 2 de dezembro de 2020, notificando-a para a realização da escritura pública de compra e venda a realizar no dia 5 de janeiro de 2021.
28. Carta à qual a Autora respondeu em 23 de dezembro de 2020, a reiterar a resolução do contrato-promessa com fundamento na cláusula 4.2.2. e a informar que «não estava obrigada a outorgar a escritura pública de compra e venda, considerava resolvido o contrato e entendia ser credora do montante dos sinais pagos (…) pelo que não iria comparecer à escritura notificada por V. Exas.»
E, não provados:
a) Que a situação de pandemia e estado de emergência tenha provocado “dificuldades” na preparação da “documentação necessária à constituição da sociedade” e ao “pedido de registo de alojamento local” ou que a A. e o seu marido se tenham visto impossibilitados de viajar para Portugal, ou que tal fosse sua intenção.
b) Que tenha sido necessário tratar da constituição da sociedade e do registo de alojamento local remotamente e com o envio para França de diversos documentos para assinatura.
c) Que o mandatário da A. não se tenha deslocado ao escritório em data que lhe permitisse o conhecimento da carta enviada pelas rés a 07.04.2020.
d) Que na sequência da “carta de resolução” enviada pela autora, as rés tenham “indicado” através dos seus mandatários, que não aceitavam a resolução do contrato e que aguardariam os processos camarários e a escritura.
e) Que até à data 26.11.2020 a CM... não tenha notificado a decisão final dos processos de alojamento local.
B. O Direito
1. A reapreciação da prova
A Autora questiona o julgamento da matéria de facto efetuado pela Relação, afirmando que as provas justificavam o juízo probatório afirmativo quanto aos factos considerados não provados sob as alíneas a), b), c) e e), uma vez que as Rés não impugnaram especificadamente os arts. 19º a 24º da petição inicial e, em qualquer caso, assentarem na ocorrência da pandemia e seus efeitos, que são factos públicos e notórios. 3
O Supremo Tribunal enquanto tribunal de revista só excepcionalmente se pronuncia sobre questões de facto, sendo a regra a competência na reapreciação de questões de direito t (art. 682º, nº 1, do CPC.
Nessa construção normativa, a sua interferência em sede do julgamento da matéria de facto levada a cabo pela Relação é residual, circunscrevendo-se à sindicância da desconformidade com o direito probatório material (artigo 674.º, nº3, 3 do CPC), à possibilidade de ordenar a ampliação da matéria de facto, com vista a que a mesma constitua base suficiente para a decisão de direito ou à possibilidade de ordenar a sanação de contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito (artigo 682.º, nº 2 e 3, do CPC).
Dispõe o artigo 574.º do CPC: “1 - Ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor. 2 - Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.”
Sobre o alcance do ónus de impugnação no actual regime processual, sintetiza expressivamente o Acórdão do STJ de 31-01-2023:4
“(..)sobre o ónus de impugnação, a lei (art.574 nº1 CPC) deixou de se reportar à necessidade de impugnação especificada dos factos articulados pelo autor e à proibição da contestação por negação e à possibilidade de a mesma poder operar por simples menção dos números dos artigos da petição inicial narrativos dos factos contestados. Porém, continua a exigir-se que o réu tome posição definida perante os factos articulados na petição, o que significa, como é natural, que a maleabilização do ónus de impugnação não a dispensa. A posição definida sobre os factos articulados na petição implica que o impugnante assuma uma posição clara, frontal e concludente sobre eles, embora se não exija que o faça sob a forma especificada, ou seja, facto por facto, podendo efectivar-se pela menção do número dos artigos inerentes dos factos narrados, sem necessidade de reprodução do conteúdo da alegação objecto de impugnação. Por conseguinte, a impugnação significa contrariar, refutar ou negar a veracidade de um facto, que a tomada de posição definida perante os factos articulados na petição implica a negação dirigida a determinada espécie factual, ou a um conjunto de factos, desde que assuma um recorte definido em função da sua densidade, heterogeneidade e extensão.”
Na doutrina, LEBRE DE FREITAS precisa acerca da impugnação indireta, i.e, na circunstância em que os factos alegados pelo autor estão em oposição com o conjunto da defesa, não se exige - «(…) agora que a oposição seja “manifesta” bastando que em consequência de uma interpretação razoável do teor global da contestação, o facto não expressamente impugnado deva ter-se por questionado pelo réu. A inobservância do ónus processual de impugnação tem como consequência darem-se como assentes no processo determinados factos alegados pela parte contrária, através da figura da admissão, entendida como pura omissão, designada por “confissão presumida”, conceitualmente autónoma da confissão judicial espontânea em articulado (enquanto declaração de ciência expressa.»5
No caso em apreciação, tal como considerou o acórdão recorrido, é seguro afirmar que, dos artigos 9.º a 42.º da contestação se extrai a posição das Rés definida, concludente e clara, no sentido de afastar a realidade da factualidade em causa associada à dificuldade e vicissitudes do pedido da Autora na obtenção do registo de alojamento local do imóvel prometido vender.
De outro passo, s.d.r., não se basta o argumento da natureza de factos públicos e notórios (a)b e c), e o disposto no artigo 412.º, nº 1 do CPC.
Admitindo a categoria de “facto notório” no que se refere à ocorrência da pandemia Covid-19, e dos períodos de confinamento e de encerramento de serviços e estabelecimentos abertos ao público, não podemos estender aos específicos efeitos no caso, alegadamente resultantes na preparação da documentação necessária à constituição de uma sociedade ou ao pedido de registo de alojamento local, efeitos que a recorrente alegou de modo genérico.6
Finalmente, a Autora recorrente alega ter existido violação por parte do Tribunal recorrido do regime da confissão, uma vez que “o facto não provado d) devia ter sido eliminado e substituído por outro com a redacção do art. 26º da réplica, que se encontra provado pelo documento junto aos autos em 12.05.2021, e foi expressamente aceite pelas RR.”
Não lhe assiste razão; as recorridas impugnaram expressamente o documento em causa no requerimento de 27-05-2021 e aquele não foi admitido.7
2.A (i)licitude da declaração de resolução do contrato-promessa
A Autora, na qualidade de promitente compradora, e as Rés, na qualidade de promitentes vendedoras, celebraram o contrato-promessa de compra e venda de duas frações autónomas nos termos consignados no instrumento contratual junto.
A Autora pretende reaver a quantia paga às Rés a título de sinal, no montante de €75.000,00, alegando que não teve resposta ao seu pedido de licenciamento de alojamento local, actividade que pretendia afectar as frações prometidas adquirir, o que a levou a resolver o contrato.
As instâncias consideraram, de modo convergente, que a resolução do contrato operada pela autora se mostrava ilícita, e por consequência, sem respaldo o direito reclamado de restituição do sinal prestado, embora, como já se disse, assentando em fundamentações não coincidentes.
O Tribunal de Primeira Instância considerou que nos termos do programa contratual a Autora ao optar pela prorrogação sucessiva do contrato promessa até à data-limite, não podia seguir também o exercício da opção de resolução unilateral do contrato-promessa, pelo que concluiu que tal resolução “não operou, mantendo-se o contrato válido por não haver incumprimento definitivo de qualquer das partes.”
O Tribunal da Relação, diversamente, entendeu que o plano contratual não excluía a possibilidade de Autora exercer a faculdade de prorrogar o prazo e, após proceder à resolução do contrato.
Vindo, porém, a concluir que a resolução se revela abusiva, porque atentatória da boa-fé, num quadro factual em que a Autora, decorridos os três meses de prorrogação continuou “a desenvolver todas as diligências com vista ao registo das frações para Alojamento Local, tendo constituído uma sociedade que fez o pedido de tal registo”, que, em 7 de outubro de 2020, solicitou às rés o envio de documentos respeitantes às frações e que, a 27 de novembro de 2020, lhes solicitou a colocação de contadores da água.
A Autora refuta a aplicação do instituto do abuso do direito, afirmando que o mesmo não pode “fundamentar a paralisação retroactiva de um direito que já foi exercido e que produziu os seus efeitos jurídicos”, repristinando um contrato resolvido, concluindo que “tinha o direito de resolver o contrato-promessa de 29.12.2019 celebrado com as RR., ao abrigo da sua cláusula 4.2.2., pois, na data da resolução – 30.06.2020 – não se verificavam as condições de que dependia a celebração do contrato prometido, designadamente, não tinha sido emitido o licenciamento para alojamento local para as duas fracções prometidas comprar.”
Que dizer?
O artigo 432º do Código Civil admite a resolução do contrato com fundamento em lei ou em convenção.
A resolução envolve o exercício de um direito potestativo de, por acto unilateral (436.º do CC) e com fundamento em motivo legalmente tipificado ou convencionalmente acordado, fazer cessar, por regra retroativamente (cfr. artigo 434.º do CC), uma relação contratual, independentemente de qualquer causa de invalidade que a afete.
Na definição de Baptista Machado, «o direito de resolução, diz-se, é um direito potestativo extintivo dependente de um fundamento. O que significa que precisa de se verificar um facto que crie este direito – melhor, um facto ou situação a que a lei liga como consequência a constituição (ou o surgimento) desse direito potestativo. Tal facto ou fundamento é aqui, obviamente, o facto de incumprimento ou a situação de inadimplência.» 8
Nas palavras de BRANDÃO PROENÇA, a resolução consiste no “poder unilateral de extinguir um contrato (maxime bilateral) válido, em virtude de circunstâncias posteriores à sua conclusão e frustrantes do interesse na execução contratual ou desequilibradoras da relação de equivalência económica entre as prestações e desencadeado uma normal «liquidação» retroativa.”9
A Autora defende a licitude do exercício de um direito de resolução com fundamento, precisamente, invocando que o contrato contemplou uma cláusula resolutiva expressa.
A vocação do Supremo Tribunal de Justiça respeita ao conhecimento das questões de direito.
É matéria de direito determinar o sentido normativo, juridicamente relevante, que deve ser atribuído à declaração contratual com apelo ao disposto no artigo 236 do Código Civil.
Refere a propósito dos poderes de intervenção do Supremo Tribunal neste domínio o Acórdão tirado em 5.02.2015:
“I - O tribunal, no caso de cláusula resolutiva expressa, quando chamado a intervir, exerce um controlo de legalidade. II - Nesse controlo de legalidade insere-se a interpretação dessa cláusula à luz dos critérios interpretativos que promanam dos arts. 236.º a 238.º do CC” (…).10
Voltando ao contrato-promessa em apreciação em juízo- cfr. ponto 9) da factualidade assente e da sua cláusula 11.ª:
“11.1.A celebração da compra e venda aqui prometida fica sujeita ao registo para alojamento local (AL) das frações objeto do presente contrato.
11.2. Após a obtenção de toda a documentação necessária para o registo das frações para alojamento local (AL), caso a Câmara Municipal de ... não aceite o registo das frações para alojamento local (AL), o presente contrato-promessa caducará automaticamente nessa data. Os PROMITENTES VENDEDORES devolverão aos PROMITENTES COMPRADORES, no período máximo de 5 (cinco) dias, a contar dessa data, o montante recebido a título de antecipação de cumprimento, em singelo, nada mais sendo devido (…)”.
10. E na clausula 4.1 consta: “A escritura pública de compra e venda será outorgada no prazo de 15 (quinze) dias, a contar da data da verificação cumulativa da: obtenção do alvará de autorização de utilização das Frações (previsivelmente a emitir até 31.01.2020), da escritura de constituição da propriedade horizontal e do registo do Alojamento Local das duas frações.”
11. E na cláusula 4.2: “Verificando-se que na data-limite de 30.03.2020, não estão verificadas todas as condições para a celebração da escritura, a PROMITENTE VENDEDORA desde já confere à PROMITENTE COMPRADORA o direito de optar, em alternativa e no seu livre critério, por uma das seguintes situações:
4.2.1. Celebrar a escritura pública de compra e venda das fracções, nos termos do disposto no Decreto-Lei n, ° 281/99, de 26 de julho, e independentemente da autorização para o Alojamento Local.
4.2.2. Resolver unilateralmente o presente contrato-promessa ficando, neste caso, a PROMITENTE VENDEDORA obrigada a devolver em singelo à PROMITENTE COMPRADORA, todas as quantias recebidas a título de sinal e previstas em 3.2.1 no prazo de 5 (cinco) dias, a contar da comunicação a realizar nesse sentido ou,
4.2.3. Prorrogar o prazo previsto em 4.2., por períodos de 30 (trinta) dias até à data-limite de 30.06.2020, mediante comunicação à PROMITENTE VENDEDORA com a antecedência de 8 (oito) dias em relação ao termo do prazo em curso.”
Importa retirar o sentido juridicamente decisivo das suas declarações de vontade por apelo aos critérios da hermenêutica negocial, constantes dos artigos 236.º a 239.º do CC.
Em primeiro lugar, conclui-se que, não obstante as partes terem convencionado a caducidade automática do contrato-promessa na eventualidade de, após a obtenção de toda a documentação necessária para o registo das frações para alojamento local, a Câmara Municipal de ... não aceitar o registo das frações para esse efeito, a Autora sempre poderia optar pela celebração da escritura pública de compra e venda das frações “independentemente da autorização para o Alojamento Local”.
De outro ângulo, as partes previram, para o caso de, à data de 30.03.2020, não se encontrarem verificadas todas as condições para a celebração da escritura, faculdades de exercício alternativo, não cumulativo.
Esta interpretação seria a que faria um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, a Autora recorrente, – art. 236º, nº1, do Código Civil – tendo em conta o teor do contrato e contexto das relações negociais retratadas na factualidade apurada.
O declaratário normal - “pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário”, interpretaria, que a opção pela prorrogação do prazo para a celebração do contrato prometido excluía a posterior a resolução do contrato-promessa, pelo menos com o fundamento com que esta foi realizada - ainda não ter sido obtido o registo do alojamento local das frações. 11
Em bom rigor, parece-nos que a conclusão resulta, desde logo, do elemento literal do clausulado , consistente com o emprego da conjunção disjuntiva “ou” entre as duas opções ou na utilização da expressão “o direito de optar, em alternativa”.
E, para a qual concorre a finalidade da estipulação da alternativa, ou seja, o adiamento delimitado do prazo para a celebração do contrato definitivo só assume sentido, no pressuposto dessa celebração se concretizar, e que justifica, no interesse das promitentes vendedoras, um prazo suplementar conferido à compradora para realização do contrato prometido.
Releva, por último, a motivação da Autora na resolução do contrato promessa.
Note-se que a Autora não invocou como causa de resolução a circunstância de o pedido de registo das frações ter sido indeferido pela Câmara Municipal de ....12
Alegou, ao invés, como causa de resolução a circunstância de tal autorização ainda não ter sido atribuída, um facto que poderia levar a recorrente a negociar com a Rés uma nova prorrogação do prazo para celebração do contrato prometido. 13
Significando que, no quadro contratual definido entre as partes e a matéria de facto provada, não podia a Autora percorrer a alternativa da prorrogação (sucessiva) do prazo para a celebração do contrato prometido, para no final, decidir resolver o contrato com o aludido fundamento.
A existir dúvida, seria o alcance da declaração que conduz ao maior equilíbrio entre as prestações de cada uma das partes -artigo 237.º do CC.
Ora, caso as partes tivessem pretendido que, na sequência da prorrogação do prazo de outorga, o contrato de compra e venda apenas seria celebrado caso o registo das frações para alojamento local tivesse sido concretizado – raciocínio que está subjacente à posição da autora – normal seria que assim o consignassem expressamente, mas, na verdade, não tem o mínimo de correspondência no texto do documento contratual (cfr. n.º 1 do artigo 238.º do CC).
Neste desenvolvimento, com precedência lógica, qualificando-se a resolução operada como ilícita, por não terem resultado provados os factos (de origem legal ou contratual) constitutivos de tal resolução com o fundamento invocado, fica prejudicada a valoração à luz do instituto do abuso do direito e do eventual caráter supervenientemente ilícito da resolução.
Em contraponto, o direito invocado pelas Rés na reconvenção de fazer seu esse sinal, apenas se poderá estribar no eventual incumprimento do contrato pela Autora, que a seguir se tratará.
3. Os efeitos da resolução ilícita do contrato promessa
O Tribunal da Relação considerou, em síntese, que nos termos contratuais, a marcação da escritura e posterior outorga estava dependente, além do mais, do registo do alojamento local das duas frações, pressuposto cuja ocorrência as Rés não lograram provar.
As Rés reclamam a revogação do acórdão recorrido que julgou improcedente a reconvenção - fazerem suas as quantias recebidas a título de sinal - sustentando que a resolução ilícita da Autora- promitente compradora, configura um incumprimento definitivo do contrato promessa e que, em consequência, têm o direito de haver como sua a quantia do sinal, ao abrigo do artigo 442°, n° 2, do Código Civil.
No caso concreto, não lhes assiste a razão, como se procurará demonstrar.
4.1. Sufragando o entendimento porfiado, inter alia, nos Acórdãos do STJ de 15-01-2015, de 22-11-2018 e de 30-06-2020, a declaração de resolução ilícita deverá ser tida como ineficaz, inidónea a produzir efeito extintivo do contrato.14
Sublinha PAULO MOTA PINTO, que a ineficácia da resolução sem fundamento compreende-se à luz da asserção de que, se o direito potestativo de resolução não existia, a tentativa de exercício pelo resolvente de um direito de que não era titular não pode redundar num efeito extintivo da relação contratual, “sob pena de se estar a conceder directa prevalência, sobre a inequívoca força do Direito, ao facto ilícito.” 15
No mesmo sentido, sintetiza PINTO OLIVEIRA -“excluídos os argumentos jurídicos, os argumentos contrários à reconstituição da relação contratual entretanto perturbada pela resolução ilícita seriam, tão-só, argumentos práticos - i.e., argumentos relacionados com as dificuldades práticas de aplicação de princípios e de regras jurídicos; ora, os argumentos práticos relacionados com as dificuldades práticas de aplicação de princípios e de regras jurídicos são, e devem ser, insuficientes para afastar os argumentos jurídicos - são, e devem ser, insuficientes para afastar os princípios e as regras jurídicas.”16
Posto isto.
Dispõe o artigo 808º do CCivil que o incumprimento definitivo do contrato ocorre, se existir perda objectiva do interesse do credor por via da mora do devedor, ou se o devedor não cumprir, depois de o credor lhe ter fixado um prazo razoável para o cumprimento.
Previsão normativa que na densificação da figura jurídica do incumprimento definitivo, a doutrina e a jurisprudência vêm adicionar as situações em que o devedor se comporta de forma inequívoca e expressa de recusa antecipada de cumprimento da prestação, sendo, então, dispensável a interpelação admonitória.17
Tal não quer dizer que em todas as situações de resolução infundada, se possa afirmar o incumprimento antecipado e definitivo do contrato; exigindo-se, outrossim uma ponderação casuística de todo o circunstancialismo da declaração de resolução, as regras da experiência comum permitam a conclusão, de uma recusa definitiva, firme, categórica de cumprimento por parte do promitente autor da declaração de resolução ilícita.
O inadimplemento do contrato-promessa que se traduza na recusa de celebração do contrato prometido encontra-se submetido ao regime geral do não cumprimento das obrigações, sem embargo das especificidades existentes no tocante à execução específica do contrato e à sua resolução (artigos 442.º e 830.º do CC).
Existindo sinal passado, estabelece o artigo 442.º do Código Civil, n.º 2:
“Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago.”18
A perda do sinal pelo promitente faltoso só se justifica no caso de incumprimento definitivo, que não perante a simples mora, regime legal que as partes reproduziram na cláusula 5.ª do contrato.19
O ponto está em apurar se, no caso de resolução ineficaz do contrato-promessa, a situação jurídica de mora na realização da prestação se converteu em incumprimento definitivo do contrato pela parte declarante.
A propósito da recusa de cumprimento no contrato-promessa, a jurisprudência do Supremo Tribunal vem destacando:
- “se o devedor comunica ao credor, de forma categórica, a sua intenção de não cumprir a sua prestação, fica desde logo em falta, tornando desnecessária a sua interpelação – de facto, não se justificaria a interpelação (judicial ou extrajudicial), referida no art. 805.º, n.º 1, do CC, nem a fixação judicial de prazo para cumprimento da obrigação” (Ac.STJ de 17-04-2012); 20
- Que se equipara ao “incumprimento definitivo da prestação, possível e com interesse para o credor, a manifestação expressa ou tácita por parte do devedor no sentido de que não cumprirá a obrigação, o que se infere, designadamente da falta injustificada da ré à outorga da escritura pública” (Acórdão de 18-01-2022).21
Nos autos ficou provado que, após a prorrogação do prazo para celebração do contrato prometido e a carta de resolução da Autora de 30.06.2020, as Rés notificaram-na por carta de 3.12.2020 para a realização da escritura pública de compra e venda, a realizar no dia 5 de janeiro de 2021.
A Autora respondeu em 23 de dezembro de 2020, reiterou intenção de resolver o contrato-promessa com o fundamento na cláusula 4.2.2. – E “não estava obrigada a outorgar a escritura pública de compra e venda, considerava resolvido o contrato e entendia ser credora do montante dos sinais pagos (…) pelo que não iria comparecer à escritura notificada por V. Exas.” (pontos 27 e 28 da matéria de facto assente).
Para justificar a sua posição, afirma na declaração resolutiva (como se extrai da carta junta pelas próprias rés como documento 2 com a contestação, cujo teor não se encontra integralmente refletido no ponto 28 da factualidade assente) que não se verificaria a condição de que contratualmente dependia a celebração do contrato prometido, atinente ao registo de alojamento local das frações.
Invocou a Autora as cláusulas do contrato-promessa que sob a sua valoração, estipulam a caducidade automática do contrato-promessa no caso de, “após a obtenção de toda a documentação necessária para o registo das frações para alojamento local (AL), a Câmara Municipal de ... não aceitar o registo das frações para alojamento local”, e acrescenta ter já existido um projeto de indeferimento do pedido de registo, prevendo-se uma decisão definitiva a confirmar tal indeferimento.
Não se acompanha semelhante interpretação da vontade contratual documentada e dos factos provados.
Note-se que a relação contratual em análise foi adequadamente projetada pelas partes que pretenderam estipular cenários alternativos, para o caso de o registo de alojamento local não ser obtido até à mencionada data.
O contrato promessa previu a possibilidade de a escritura de compra e venda vir a ser outorgada, independentemente da autorização da CM do registo do alojamento local das duas frações, por opção da promitente compradora.
A cláusula 41.1 do contrato que estabelece que “a celebração da compra e venda aqui prometida fica sujeita ao registo para alojamento local (AL) das frações objeto do presente contrato”, constitui uma declaração de princípio – que se reporta, em termos genéricos, à finalidade económica na qual seriam empregues as frações sob escrutínio.
A obrigação de celebração da escritura não foi colocada na estrita dependência da obtenção da licença de AL, inexistindo um vínculo de dependência funcional entre essa circunstância e, a obrigação principal de celebração do contrato prometido, que comprometa em definitivo a execução contratual.
Por outro lado, em auxílio de que a conduta da Autora não integra um incumprimento definitivo do contrato-promessa, milita a especificidade do desenho contratual traçado pelas partes, gerador de complexa interpretação no funcionamento das condicionantes e efeitos da recusa da Autora em celebrar o contrato prometido.
Como se expendeu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: 22
“(…) Para relevar, a recusa de cumprimento (“antecipatory breach of a contract”) tem de traduzir-se numa declaração absoluta, peremptória e inequívoca do propósito de não outorgar o contrato prometido, sem deixar que sobre essa vontade e propósito subsistam quaisquer dúvidas. (…)” “In dubio”, o seu incumprimento só se traduz em mora, ou mero retardamento. “
Somos, pois, levados a concluir que, da matéria factual - v.g. o conteúdo declaração de resolução, a comunicação ulterior entre as partes e, a continuação das diligências relativas ao licenciamento das fracções - não se descortina uma postura que corresponda à inequívoca e definitiva vontade de não cumprir o contrato.
A terminar , analisando a carta enviada pelas Rés, informando a Autora da marcação da escritura, é discutível que possa valer com o sentido e finalidade da interpelação admonitória (artigo 805º CC), sendo omissa na alusão ou advertência de que na falta, a sua obrigação se considerar definitivamente incumprida.23
Neste quadro factual, subsistindo o contrato-promessa em vigor por ineficácia da resolução pretendida pela Autora, tendo as Rés marcado a escritura, atento o teor e a consistência da justificação avançada pela Autora para não outorgar o contrato prometido, não se poderá concluir que a recusa em contratar implicou, sem mais, a conversão da mora em incumprimento definitivo do contrato-promessa.
Á luz de tais considerações não se evidencia a inadimplência definitiva do contrato promessa pela Autora, sem necessidade de interpelação admonitória, não constituindo a obtenção do registo de alojamento local das frações, requisito necessário para a celebração do contrato prometido.
Para concluir, que até agora, o contrato-promessa em juízo permanece em vigor, com a consequente vinculação das partes outorgantes ao cumprimento das obrigações assumidas e a celebração do contrato prometido.
Indemonstrado o incumprimento definitivo do contrato promessa pela promitente compradora, soçobra a pretensão das recorrentes de fazer sua, por ora, a quantia entregue como sinal.
IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na improcedência da revista interposta pelas Autora e na improcedência da revista interposta pelas Rés, e em consequência, manter o acórdão do Tribunal da Relação.
Lisboa, 13 de fevereiro de 2025
Isabel Salgado (relatora)
Ana Paula Lobo
Emídio Francisco dos Santos
_________
1. Certamente por lapso de escrita o enunciado repete.
2. Cfr., nesta linha de entendimento, inter alia, o acórdão do STJ de 13-09-2022 no proc.º nº1936/17.5T8STR.E1. S1
3. Não provado: “- a) Que a situação de pandemia e estado de emergência tenha provocado “dificuldades” na preparação da “documentação necessária à constituição da sociedade” e ao “pedido de registo de alojamento local” ou que a A. e o seu marido se tenham visto impossibilitados de viajar para Portugal, ou que tal fosse sua intenção. b) Que tenha sido necessário tratar da constituição da sociedade e do registo de alojamento local remotamente e com o envio para França de diversos documentos para assinatura. c) Que o mandatário da A. não se tenha deslocado ao escritório em data que lhe permitisse o conhecimento da carta enviada pelas rés a 07.04.2020. e) Que até à data 26.11.2020 a CM... não tenha notificado a decisão final dos processos de alojamento local.”
4. No proc. nº 1843/17.1T8CSC.L1, in www.dgsi.pt.
5. In Confissão no Direito Probatório, pág. 461 e segs.
6. Cfr. A fundamentação da convicção que consta do acórdão recorrido consta “Explicitando: O estado de emergência foi declarado em Portugal no dia 18 de março de 2020 através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março e manteve-se até 30.4.2021.-Como é do conhecimento geral a pandemia trouxe restrições no funcionamento serviços públicos e na deslocação de pessoas. Não obstante, no caso concreto, a autora alega de forma conclusiva não esclarecendo que actos teria praticado não fora a pandemia e em que datas; sendo assim, não pode dar-se como provado a conclusiva alegação das “dificuldades” sofridas em consequência da pandemia. Nota-se ainda que a declaração do estado de emergência data de março de 2020, tendo sido o contrato promessa celebrado no final de dezembro de 2019, não havendo notícia de diligências tendentes à celebração do contrato prometido no período de tempo que mediou entre dezembro e março.”
7. Decisão que não é objecto da revista.
8. In Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Obra Dispersa», vol. I, Braga, 1991, pp. 130/1 e seguintes.
9. In Lições de Cumprimento e não Cumprimento das Obrigações, Coimbra, Coimbra, Editora, 2011, pág. 288
10. No proc. nº 269/12.8TCFUN.L1. S1, consultável in www.dgsi.pt.
11. ANTÓNIO P. MONTEIRO E PAULO MOTA PINTO , in Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição pág. 444.
12. Além do mais, o projeto de decisão de indeferimento do pedido de alojamento local foi notificado à sociedade T..., Lda, constituída pela autora em 01-10-2020 (ponto 22), em momento posterior à carta de resolução.
13. Na economia do contrato o prazo de 30-06-2020 não se afigura consubstanciar um termo essencial.
14. Os arestos foram proferidos respetivamente nos proc. n.º 2365/08.7 TBABF.E1. S1; n.º 1559/13.8TBBRG.G1. S1; e n.º 1114/16.0T8LRA.C1. S1, todos in www.dgsi.pt.
15. PAULO MOTA PINTO, in Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, volume II, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, nota 4861, pág. 1675.
16. In Princípios de direito dos contratos, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pág. 897.
17. Cfr. AC.STJ de 29-01-2014, proc.º 954/05.0TCSNT.L1; de 21.01.2021, proc. n.º 109/19.7T8MAI.P1. S1; e de 28-03-2023, no proc. 211/21.5T8GMR.G1.S1 todos disponíveis in www.dgsi.pt.Na doutrina, também João Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 12.ª edição, pp 140/3; e Nuno Pinto de Oliveira in Princípios de Direito dos Contratos, 2011, pp. 814 e 815 Sobre a matéria,
18. Sobre a matéria, cfr. MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, in Contrato-Promessa – Uma síntese do Regime Vigente, 8.ª edição, 2004, pág. 69/70.
19. Entendimento consistente na doutrina mais significativa e na jurisprudência, segundo a qual, só o incumprimento definitivo do contrato implicará a restituição do sinal em dobro ou a perda do sinal, nos termos dos disposto no artigo 442º do CC, que não a simples mora, quer de acordo com o disposto no art.º 804.º, nº 1, do C.C., apenas determina a obrigação de reparar os danos causados ao credor .cfr ex. J CALVÃO da SILVA - Sinal e Contrato Promessa, 2010, pp.123 e segs; e A PRATA - Código Civil Anotado – Coordenação de Ana Prata, Vol. I, pág. 567.Na jurisprudência, inter alia os Ac.do STJ de 11.02.2015. proc nº 2434/12.9T2AVR.C1. S1, e de 02.11.2017 proc. nº 27768/15.7T8LSB.L1. S1), in www.dgsi.pt
20. No proc. n.º 1199/05.5TBABT.E1. S1, inédito.
21. No proc. n.º 14575/18.4T8SNT.L1. S1, in www.dgsi.pt.
22. Proferido em 29.11.2016 no proc. nº 7825/11.0TBCSC.L1. S1, in www.dgsi.pt.
23. Cfr. neste sentido, inter alia, os Acórdãos do STJ de 12.10.2023, proc n.º 1823/19.2T8FNC.L1. S1, e de 28.03.2023, proc. n.º 211/21.5T8GMR.G1. S1, de 23.06.2022, proc. n.º 831/19.8T8PVZ.P1. S1, todos in ww.dgsi.pt. A assinalar ainda que o contrato não incluiu qualquer cláusula resolutiva expressa, com o escopo de evitar que uma situação de mora tenha de ser convertida em definitiva nos termos do art. 808.º do CC, e de acordo com a qual a não comparência do promitente-comprador à escritura de compra e venda no dia e hora estipulados equivale a incumprimento definitivo, atribuindo ao promitente-vendedor o poder potestativo de resolver o contrato-promessa.