CONTRATO DE LOCAÇÃO
PERDA OU DETERIORAÇÃO DA COISA
DEVER DE VIGILÂNCIA
LOCATÁRIO
ÓNUS DA PROVA
DANO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME PARCIAL
CONDENAÇÃO EM CUSTAS
Sumário


Não tendo a locatária logrado provar, como lhe competia (cfr. artigos 342.º e s. do CC), que os danos que atingiram a coisa locada não resultaram de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela, impende sobre ela o dever de indemnizar a locadora (cfr. arts. 1043.º e 1044.º do CC).

Texto Integral



ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: Hotel do Cais, Lda.

Recorrida: Oliveira & Marques, Lda.

1. Oliveira & Marques, Lda., instaurou a presente acção declarativa condenatória, sob a forma de processo comum, contra Hotel do Cais, Lda., peticionando:

(i) a resolução do contrato de cessão de exploração celebrado entre a autora e a ré por perda de objecto;

(ii) a condenação da ré a restituir à autora a exploração do empreendimento turístico devoluto de pessoas e bens, com a entrega de todas as partes do imóvel onde se encontra instalado e de todos os equipamentos, móveis e utensílios que o integram;

(iii) a condenação da ré a pagar à autora o valor que vier a ser apurado a título de danos verificados e apurados no empreendimento e nos prédios, a liquidar posteriormente.

2. Por sua vez, a ré deduziu reconvenção, peticionando a condenação da autora a pagar-lhe a quantia global de € 295.984,66, acrescida do valor de juros à taxa legal aplicável às operações comerciais, de 8%, contados desde a notificação da contestação, até integral e efectivo pagamento.

3. Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Em face do exposto, julgo a acção proposta por Oliveira & Marques, Lda. contra Hotel do Cais, Lda., parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, consequentemente:

- Declaro caducado o contrato de cessão de exploração celebrado em 1 de Fevereiro de 2016 e descrito na alínea c), do ponto II.1.;

- Condeno a Ré a restituir à Autora o prédio descrito na alínea h), do ponto II.1.;

- Absolvo a Ré do demais peticionado.

Custas da acção por Autora e Ré, na proporção de 1/3 para a primeira e 2/3 para a segunda.

Julgo o pedido reconvencional deduzido por Hotel do Cais, Lda. contra Oliveira & Marques, Lda., parcialmente procedente, por parcialmente provado, e consequentemente:

Condeno a Autora a pagar à Ré a quantia de € 12.551,84, acrescida de juros de mora contados à taxa aplicável às operações comerciais, desde 20.04.2022, até integral e efectivo pagamento;

- Absolvo os Chamados dos pedidos reconvencionais contra si deduzidos.

Custas da reconvenção por Autora e Ré, na proporção do decaimento”.

4. Inconformadas, apelaram tanto a autora como a ré, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães proferido Acórdão em que, a final, pode ler-se:

“Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em:

A - Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pela ré;

As custas do recurso da ré ficam a cargo desta.

B - Julgar parcialmente procedente o recurso da autora e, em consequência, revogar parcialmente a decisão recorrida, condenando-se a ré a indemnizar a autora pelos danos sofridos no empreendimento turístico e no prédio onde o mesmo se encontrava instalado, em quantia a liquidar posteriormente (cfr. art.º 609º, nº 2, do NCPC);

mantendo-se no mais a sentença recorrida.

As custas do recurso interposto pela autora da acção ficam a cargo da autora e da ré, provisoriamente, na proporção de 1/5 e 4/5, respectivamente, ficando o seu rateio definitivo para a decisão a proferir na liquidação (art.º 527º, nºs 1 e 2, do NCPC)”.

5. Inconformada, vem a ré interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as conclusões que se seguem:

1) Vem o presente Recurso de Revista interposto contra o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que julgou não verificada a condição suspensiva do acordo celebrado em setembro de 2020 entre as partes, bem como na parte em que julgou parcialmente procedente o recurso da autora e, em consequência, revogou parcialmente a decisão recorrida, condenando a ré aqui recorrente a indemnizar a autora pelos danos sofridos no empreendimento turístico e no prédio onde o mesmo se encontrava instalado, em quantia a liquidar posteriormente (cfr. art.º 609º, nº 2, do NCPC) por entender que aqui a ré/recorrente não adotou “as medidas de vigilância efetivas que prevenissem ou ao menos mitigassem a possibilidade de assaltos ao local e sobretudo que não permitissem o grau de destruição do estabelecimento que se veio a verificar, com o desaparecimento de todos os móveis que o compunham.”.

A - Quanto à não verificação da condição suspensiva do acordo celebrado em setembro de 2020.

2) É indiscutível, face ao que se provou, que a referida condição (de venda do imóvel) ainda não se verificou, uma vez que o prédio onde se encontra instalado e pronto a funcionar o estabelecimento comercial de Hotel de 2 estrelas, não foi ainda vendido pela A a terceiros, como esta se propôs no acordo celebrado com a Ré para denuncia do contrato de cessão de exploração.

Sucede que,

3) A questão que se coloca é a de saber se a referida condição, que (ainda) não se verificou, pode (ainda) vir a verificar-se, sendo de notar que, segundo dispõe o art. 275º, nº 1, do CC, a certeza de que a condição não se pode verificar equivale à sua não verificação.

4) Sendo que, o n.º 2 do mesmo artigo 275º do CC dispõe ainda que: “2. Se a verificação da condição for impedida, contra as regras da boa fé, por aquele a quem prejudica, tem-se por verificada; se for provocada, nos mesmos termos, por aquele a quem aproveita, considera-se como não verificada.”

Ora,

5) Nos presentes autos, a A. e chamados assinaram com a Ré em 22 de setembro de 2020 o acordo constante da alínea n) dos Factos Provados, nos termos do qual:

“…os primeiros outorgantes, sócios-gerentes da sociedade cedente, pretendem denunciar antecipadamente o contrato de cessão de exploração celebrado, porquanto pretendem vender o respetivo empreendimento turístico a terceiros.”

“…os primeiros outorgantes e a sociedade por si representada (…) obrigam-se solidariamente a pagar à segunda outorgante, a título de compensação, para minimizar os danos verificados na esfera jurídica desta para ressarcimento dos lucros cessantes associados à antecipada e abrupta cessação do contrato a quantia de € 130.000,00, acrescido de todo o recheio existente no empreendimento turístico”.

“Nos termos da cláusula quinta do supramencionado acordo, “1. A referida quantia de € 130.000,00 será paga pelos primeiros outorgantes à segunda outorgante no dia da celebração da escritura de compra e venda do imóvel identificado…”

6) Do exposto resulta que, tendo o acordo sido celebrado no ano de 2020 e tendo em vista a venda urgente do imóvel por iniciativa da A. a referida venda apenas não se concretizou, por única e exclusiva responsabilidade da A. e volvidos mais de 3 anos, a A. teve tempo mais que suficiente para a concretização desse ou de outro negócio (com outros interessados na compra) para venda do imóvel e/ou do estabelecimento, fazendo assim cumprir a verificação da condição.

7) Acresce que, com a propositura da presente ação, invocando a perda do estabelecimento comercial e a consequente caducidade do contrato por perda do objeto que só a si pode ser atribuído e peticionando a entrega do estabelecimento e dos imóveis onde o mesmo se encontra instalado, a A. apenas pretende evitar o pagamento da indemnização acordada à Ré porquanto caducando o contrato já nada terá que lhe pagar.

8) Ou seja, a A. pretende evitar que se verifique a condição a fim de evitar pagar a indemnização à Ré.

9) A venda do imóvel só depende da boa vontade da A. que tem evitado e recusado todo e qualquer negócio de compra e venda do estabelecimento comercial e/ou dos imóveis que o compõem.

10) Venda essa que como se disse ainda é possível bastando para isso a boa vontade da A. na concretização do negócio.

11) Pelo que, a condição a que as partes subordinaram o acordo celebrado a 22 de setembro de 2020 ainda não se verificou, mas pode ainda vir a verificar-se.

12) Na verdade, o que ficou estipulado foi o pagamento de uma indemnização à Ré, aquando da venda do imóvel e não aquando da venda do empreendimento.

13) Os imóveis onde o empreendimento se insere tem valor avultado e valem por si só.

14) Pelo que, a Ré pretende ser indemnizada aquando da venda dos imóveis, pelo prejuízo resultante da cessação abrupta do contrato de locação, o que se pretende seja declarado, para todos os efeitos legais, nos termos do acordo celebrado entre as partes, devendo pois, ser alterada a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães, no sentido de ficar a constar que, é possível ainda a verificação da condição e que aquando da verificação da condição, a A. terá que pagar à Ré a indemnização acordada em entre as partes em setembro de 2020, nos valores de 130.000€ e de 25.000€.

B- Quanto à atribuição de indemnização à A. pelos danos ocorridos no empreendimento e no prédio por culpa da Ré.

15) Dos factos provados resulta que em 13.06.2021, 28.08.2021, 05.09.2021, 06.04.2022 e 14.03.2022, AA, sócio-gerente da Ré, participou à Polícia de Segurança Pública os factos que melhor se acham descritos nas cópias de fls. 232v a 234v dos presentes autos e cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos.

16) Mais ficou provado na sentença, pelo tribunal de 1ª instância que, terceiros, em várias ocasiões, se introduziram nos imóveis por arrombamento de portas e janelas e escalamento, vandalizaram o espaço, furtaram objetos e, em 14.03.2022, foi detida uma pessoa em flagrante delito.

17) Em face deste quadro factual, e tendo em conta que o arrombamento implica a destruição de mecanismos destinados a impedir o acesso do público aos espaços e que a detenção em flagrante delito implica vigilância da Ré, considera-se ilidida a presunção de culpa.

18) Nem a autora logrou provar a culpa da Ré nestes atos de vandalismo.

19) Entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão transitado em julgado na data de 02.11.2011, emitido no âmbito do processo nº 1521/08.2..., o seguinte:

1 - A obrigação de manutenção e restituição da coisa no estado em que o arrendatário a recebeu (art.º 1043º, n.º 1, do CC) não afecta a regra acerca do risco inerente ao direito de propriedade, que corre por conta do locador -se a casa ficar destruída, total ou parcialmente, por caso fortuito ou de força maior, o locatário não é obrigado a reconstruí-la ou a repará-la.

2 - O arrendatário também não é responsável pela reparação se as deteriorações do prédio arrendado provierem de facto seu mas não culposo.

3 - Ao conceito de caso de força maior são atribuídas as características da imprevisibilidade e da inevitabilidade e como consequência a impossibilidade de cumprir, constituindo uma causa exoneratóría de responsabilidade do devedor integrável numa categoria genérica mais ampla de facto não imputável ao obrigado (n.º 1 do art.º 790º, do CC).

20) No caso em apreço os imóveis onde se encontra instalado o estabelecimento comercial continuam a existir, o seu interior é que foi furtado e vandalizado por terceiros, sendo de salientar, que é público e notório, que o local onde se inserem os imóveis é uma zona problemática da cidade de ....

21) Ora, tendo a Ré atuado com diligência, sem culpa, porquanto o estabelecimento encontrava-se encerrado - a aguardar a venda por parte da A. - não se encontrando a Ré 24h sobre 24h em permanência no locado, não se pode assacar qualquer responsabilidade a esta, pela sua deterioração, a qual foi realizada por terceiros, de forma dolosa.

22) Isto porque, aquando dos assaltos ao imóvel o mesmo encontrava-se com as portas e janelas fechadas e apesar de a Ré não se encontrar no imóvel permanentemente, tomou todas as diligências necessárias para proteger o empreendimento, tendo o mesmo sido alvo de assaltos por caso furtuito, por imprevisibilidade dos acontecimentos.

23) Pelo que, deve nesta parte improceder o recurso interposto pela A., revogando-se totalmente o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, na parte em que condena a R. a indemnizar a A. pelos danos sofridos no empreendimento turístico e no prédio onde o mesmo se encontrava instalado, devendo a Ré ser totalmente absolvida do pagamento de qualquer indemnização à A.

Assim decidindo farão V. Exas, Srs. Juízes Conselheiros, inteira e devida Justiça.

A Ré beneficia de Apoio Judiciário nas modalidades de isenção do pagamento de taxas de justiça, custas e demais encargos”.

6. A autora apresentou contra-alegações, das quais se destacam os seguintes excertos:

Questão Prévia: da inadmissibilidade de parte do recurso:

Entende a recorrida que, na parte identificada pela ré, alegada em A, com a epígrafe “quanto à não verificação da condição suspensiva do acordo celebrado em setembro de 2020”, o presente recurso não pode ser admitido, atento o disposto no artigo 671º, do C.P.Civil.

É necessário que a solução jurídica dada pelas instâncias não coincidam ou tenham assentado, de modo radical ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam sido justificado e fundamentado a decisão recorrida e, salvo melhor opinião, tal não se verifica.

Para efeito de verificação da quebra da dupla conforme, é entendido que a decisão de recurso, quando coincidente com a da primeira instância, deva ter fundamentos essencialmente diferentes dos invocados antes.

Acresce ainda que a ré não argumenta justificação alguma que sustente a diversidade essencial de fundamentação apresentada pelas duas instâncias, limitando-se a transcrever partes do Acórdão recorrido, o que não é sustentação da eventual existência de fundamentação divergente ou de aplicação de normas jurídicas distintas.

Daí se entender inadmissível o recurso, nesta parte, enquanto revista ordinária, sustentada no artigo 671º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o que se pede seja proferido competente despacho de inadmissibilidade.

(….)

D - Conclusões

1- Atenta a matéria dada como assente, que resulta da sentença, ocorreu a manutenção da posse na ré dos imóveis e do empreendimento até à declaração de caducidade do contrato de cessão de exploração celebrado entre autora e ré.

2- Esta caducidade só ocorreu por prolação da sentença nestes autos.

3- Desde o início do contrato e até à declaração de caducidade incumbia-lhe o dever de entregar o empreendimento e seu equipamento no estado de conservação e limpeza em que foi recebido.

4- A ré não ilide a presunção de culpa derivada do artigo 1044º, do Código Civil.

5- Não foi feita prova nestes autos, por parte da ré/recorrente de factos pertinentes para o afastamento desta presunção.

6- A ré não adoptou medidas de vigilância efectivas que prevenissem a destruição dos imóveis e do estabelecimento que se veio a verificar, com o desaparecimento de todos os móveis que o compunham.

7- Não se verifica situação comparável a caso fortuito ou de maior maior para a verificação dos danos.

8- O ónus da prova competia à ré demandante, por força do disposto no artigo 344º, do Código Civil.

9- O Acórdão proferido, não merecendo qualquer censura, deverá ser mantido na íntegra”.

7. Na sequência de despacho proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 9.10.2024, veio a ré / recorrente pronunciar-se sobre a inadmissibilidade do recurso invocada pela recorrida assim:

A- Da invocada inadmissibilidade parcial do Recurso

Nas contra-alegações de Recurso, vem a A./Recorrida, sustentar que: “…, na parte identificada pela ré, alegada em A, com a epígrafe “quanto à não verificação da condição suspensiva do acordo celebrado em setembro de 2020”, o presente recurso não pode ser admitido, atento o disposto no artigo 671º, do C.P.Civil.”

Acrescentando a A./recorrida, nas suas contra-alegações que:

“É necessário que as soluções jurídicas dadas pelas instâncias não coincidam ou tenham assentado, de modo radical ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam sido justificados e fundamentados a decisão recorrida e, salvo melhor opinião, tal não se verifica.

“Para efeito de verificação da quebra da dupla conforme, é entendido que a decisão de recurso, quando coincidente com a da primeira instância, deva ter fundamentos essencialmente diferentes dos invocados antes.”

Sucede que,

Na 1ª instância, o Meritíssimo Juiz a quo limitou-se a proferir a seguinte decisão e respetiva fundamentação, quanto à não verificação da condição suspensiva do acordo celebrado em setembro de 2020:

“as partes subordinaram à venda do prédio a um terceiro a produção de efeitos jurídicos do acordo descrito na alínea n), do ponto II.1. “

“Não tendo logrado a Ré provar que a condição se verificou, improcede a sua pretensão de se ver paga das quantias de € 130.000,00 e de € 25.000,00 previstas no acordo descrito na alínea n), do ponto II.1.”

Por sua vez,

Interposto recurso da douta decisão, veio o Tribunal da Relação de Guimarães, acrescentar o seguinte, quanto à não verificação da condição suspensiva do acordo celebrado em setembro de 2020:

“Acresce ainda dizer que efetivamente recaia sobre a Ré o ónus de provar a verificação da condição suspensiva, em conformidade com o disposto no artigo 342º n.º 1 do CC, o que não logrou fazer, como a própria admite.

“Ademais, tendo, entretanto, ocorrido a perda do estabelecimento comercial, inevitável é considerar que a dita condição já não se poderá verificar (não pode a autora alienar o que já não existe).“

Ora, vejamos,

Com o Recurso de Revista interposto para o STJ, pretende a R./Recorrida, ver apreciada a questão de não verificação da condição suspensiva do acordo celebrado em setembro de 2020, precisamente, quanto à possibilidade, não apreciada pela 1ª instância, de a mesma ainda poder vir a ser verificada, nos termos do artigo 275º do CC.

E além disso, uma vez que apenas o Tribunal da Relação de Guimarães, se pronunciou quanto a essa possibilidade, não apreciada pela 1ª instância, pretende a R./recorrente, que o STJ se pronuncie quanto à clausula inserta no acordo de setembro de 2020 em si mesma considerada, ou seja, apreciar se a condição a que a partes subordinaram o acordo se refere à vendo do empreendimento turístico ou à venda do imóvel, condição a que subordinaram o negócio/acordo e que poderá ditar decisão essencialmente diferente da já proferida pelas instâncias.

Do exposto resulta, que não se verifica a alegada dupla conforme, invocada pela A./Recorrida, porquanto:

“O requisito de recorribilidade previsto no art. 671.º, n.º 3, do NCPC (2013), obstativo da dupla conformidade, não decorre do facto da decisão confirmatória da 2.ª instância conter fundamentação diferente, exige-se que seja "essencialmente diferente”.

“Essa essencialidade pressupõe novidade argumentativa e consideração de enquadramento factual e/ou jurídico diferente e decisivo, que se afasta distintamente da fundamentação da decisão apelada: não se verifica tal requisito quando o tribunal da Relação, dentro do enfoque jurídico da decisão recorrida, aduz argumentos relacionados com a questão decidida que apenas lhe emprestam maior solidez”.

A questão nova, apreciada pela 2ª instância, quanto à possibilidade da condição ainda se poder vir a concretizar, nos termos do artigo 275º do CC, traduz-se em elemento essencialmente novo, não apreciado pela 1ª instância, e que poderá conduzir ao desfecho da lide tal conforme pretendido pela R/Recorrente.

Assim, deverá o Recurso ser admitido, na íntegra, por não se verificar a dupla conforme quanto à não verificação da condição suspensiva do acordo celebrado em setembro de 2020, alegada pela R/Recorrente no ponto A. das suas alegações de Recurso, nomeadamente para apreciação da possibilidade da condição ainda se poder vir a verificar, devendo o Recurso interposto subir na sua totalidade para o STJ como de Revista e ser o mesmo apreciado e a final, ser julgado procedente e a decisão proferida na 1ª instância ser alterada em conformidade”.

8. Em 13.11.2024 o Tribunal da Relação de Guimarães proferiu despacho determinando a subida dos autos.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a única questão a decidir, in casu, é a de saber se a decisão de condenação da ré / recorrente na obrigação de indemnização deve manter-se.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

a) A Autora é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto a exploração de hotéis, motéis e indústria hoteleira, conforme se retira da cópia certidão permanente da Conservatória do Registo Comercial junta aos autos de fls. 7 a 9 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

b) A Ré é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto a prestação de serviços de hotelaria, restauração e similares, fabrico e venda de produtos alimentares pré-congelados, venda de refeições prontas a levar, organização de eventos, locação e sublocação de espaços e exploração de jogos Santa Casa, conforme se retira da cópia certidão permanente da Conservatória do Registo Comercial junta aos autos de fls. 9v a 10 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

c) No dia 1 de Fevereiro de 2016, no Cartório Notarial de BB, em acordo outorgado por escritura pública e apelidado pelas partes de cessão de exploração, a sociedade Oliveira & Marques, Lda. cedeu à sociedade Hotel do Cais, Lda. a exploração do empreendimento turístico Hotel de Duas Estrelas, a que corresponde o Alvará de Licenciamento Sanitário número 46/87, emitido pela Câmara Municipal de ..., em 31.07.1987, instalado nos imóveis descritos nessa escritura das alíneas a) a ac), nos termos que melhor surgem descritos na cópia da certidão junta aos autos de fls. 12 a 18 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

d) Nos termos da cláusula primeira do acordo supra referido, “a cessionária recebe o empreendimento no estado em que se encontra e não lhe pode dar outro uso ou destino, devendo, para o efeito, proceder a investimentos em mobiliário, decoração e equipamentos, com a finalidade de renovação do empreendimento. (…) § 1.º) Neste âmbito, são entregues nesta data os bens móveis e utensílios constantes de uma relação complementar, elaborada nos termos do número um, do art. 64º do Código do Notariado (…). (…) § 2.º) Estes bens são entregues nas condições que ficam descritas no referido documento complementar, devendo, em caso de caducidade deste contrato, ser devolvidos no estado em que se encontravam, ressalvado o desgaste proveniente da sua normal e prudente utilização e do decurso do tempo. (…) § 3.º) A substituição dos bens entregues implica a sua imediata incorporação no empreendimento ou a reposição dos bens anteriormente existentes. (…) § 4.º) Todos os bens que não puderem ser retirados ou levantados pela representada do segundo outorgante, em caso de cessação deste contrato, serão objecto de avaliação por perito nomeado entre as partes, para efeito de ressarcimento do valor investido pela representada do mesmo segundo outorgante”;

e) Nos termos da cláusula quarta do supra referido acordo, “no caso de ocorrer o termo do presente contrato por qualquer forma, a cessionária entregará o empreendimento e seu equipamento no estado de conservação e limpeza em que foi recebido, ressalvado o desgaste proveniente da sua normal e prudente utilização e do decurso do tempo, e tal entrega será precedida de vistoria prévia do local por ambas as partes ou por alguém por si nomeado. (…) § 1.º A entrega do empreendimento será efectivada mediante vistoria prévia, e sem quaisquer ónus, encargos, contratos de trabalho, de prestação de serviços ou contratos de exclusividade com marcas ou fornecedores. (…) § 2.º Mediante comunicação prévia, com antecedência de sessenta dias, por carta registada com aviso de recepção, a cessionária poderá entregar o empreendimento, sem invocação de qualquer motivo. (…) § 3.º Mediante comunicação prévia, com antecedência de sessenta dias, por carta registada com aviso de recepção, a cedente poderá fazer cessar este contrato, em caso de compra e venda dos imóveis”;

f) Nos termos da cláusula sexta do acordo citado, “para efeito de adaptação do empreendimento aos fins pretendidos, a cessionária fica desde já autorizada a iniciar todos os procedimentos tendentes à reconversão e adaptação das instalações aos fins pretendidos. (…) § 1.º) Fica, ainda, a cessionária autorizada, para efeito de adaptação do local aos fins pretendidos, a realizar as obras necessárias, devendo as mesmas ser do prévio conhecimento dos proprietários e ficarão a fazer parte integrante dos prédios, operando-se o acordo constante do parágrafo quarto da cláusula primeira, em caso de cessação. (…) § 2.º) Todas as despesas referidas nesta cláusula são da inteira responsabilidade da cessionária”;

g) Por acordo escrito datado de 26 de Outubro de 2017, as partes outorgantes do acordo celebrado em 01.02.2016, procederam à alteração da cláusula terceira deste, nos termos que melhor surgem reproduzidos a fl. 22 dos presentes autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

h) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número .55/......27, da freguesia de ..., um prédio urbano, sito em ..., composto de 24 edifícios, conforme se retira da cópia da certidão da referida Conservatória junta aos autos de fls. 10v a 11v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

i) A aquisição do direito de propriedade incidente sobre o descrito prédio encontra-se inscrita na referida Conservatória a favor de CC, DD, EE e FF, por compra, mediante a Ap. ..58 de 2012/02/08, conforme se retira da cópia da certidão da referida Conservatória junta aos autos de fls. 10v a 11v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

j) Em consequência da pandemia de Covid-19, a Ré encerrou o estabelecimento que funcionava nos imóveis que compõem o prédio descrito na alínea h);

k) Autora e Ré acordaram que as rendas dos meses de Abril, Maio e Junho de 2020 não seriam devidas;

l) A Ré não pagou as rendas de Julho de 2020 e seguintes, nem reabriu o estabelecimento, devido à falta de procura;

m) A Autora enviou, em 14.09.2020, a GG, HH e AA, registadas com aviso de recepção, as missivas cujas cópias se encontram junta aos autos de fls. 19 a 21 e cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos;

n) Em 22 de Setembro de 2020, a sociedade Oliveira & Marques, Lda., CC e DD, como primeiros outorgantes, e a sociedade Hotel do Cais, Lda., como segunda outorgante, outorgaram, por escrito e com as assinaturas autenticadas, o acordo, apelidado pelas partes de confissão de dívida e acordo de pagamento, cuja cópia se encontra junta aos autos de fls. 130v a 136 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;

o) Nos termos da cláusula terceira do supra mencionado acordo, “os primeiros outorgantes, sócios-gerentes da sociedade cedente, pretendem denunciar antecipadamente o contrato de cessão de exploração celebrado, porquanto pretendem vender o respectivo empreendimento turístico a terceiros”;

p) Nos termos da cláusula quarta do supra mencionado acordo, “os primeiros outorgantes e a sociedade por si representada (…) obrigam-se solidariamente a pagar à segunda outorgante, a título de compensação, para minimizar os danos verificados na esfera jurídica desta para ressarcimento dos lucros cessantes associados à antecipada e abrupta cessação do contrato a quantia de € 130.000,00, acrescido de todo o recheio existente no empreendimento turístico”;

q) Nos termos da cláusula quinta do supra mencionado acordo, “1. A referida quantia de € 130.000,00 será paga pelos primeiros outorgantes à segunda outorgante no dia da celebração da escritura de compra e venda do imóvel identificado, através de cheque bancário, mantendo-se o contrato de cessão de exploração, plenamente válido e eficaz até confirmação bancária da boa cobrança do aludido cheque. (…) 2. Os primeiros outorgantes obrigam-se a comunicar à segunda outorgante, com a antecedência mínima de 10 dias, por carta registada com aviso de recepção, a data, hora e local onde se irá realizar a escritura pública de compra e venda do imóvel. (…) 3. O não pagamento da compensação na data acordada implica, para além do capital em dívida de € 130.000,00, o pagamento de juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento, os quais serão calculados à taxa comercial legal aplicável à data do pagamento. (…) 4. O não cumprimento dos primeiros outorgantes do presente acordo de forma pontual e tempestiva implica ainda o pagamento da quantia de € 25.000,00 (…), a título de cláusula penal. (…) Os primeiros outorgantes, caso não liquidem a referida quantia em dívida, reconhecem expressamente à segunda outorgante o direito de retenção do empreendimento em causa pelo não pagamento decorrente da denúncia antecipada do contrato de cessão de exploração, suspendendo-se a obrigação de restituir o empreendimento, enquanto não for paga à segunda outorgante a compensação acordada, juros e cláusula penal convencionada”;

r) Os imóveis onde funcionava o estabelecimento encontram-se devassados e vandalizados, nomeadamente, com as portas exteriores e interiores partidas, vidros partidos, caixilharias partidas e/ou danificadas, estores partidos e/ou danificados, caixa de estores partidas, espelhos partidos, revestimento do pavimento em soalho partido e/ou com infiltrações de humidade, revestimento dos tectos e paredes em gesso cartonado partido e/ou com infiltrações de humidade, rodapés partidos e/ou com infiltrações de humidade, revestimento em material cerâmico partido, louças sanitárias partidas, instalação eléctrica vandalizada, instalação telefónica e de telecomunicações vandalizada, instalação de gás vandalizada, rede predial de água e esgotos vandalizada e móveis partidos;

s) Os bens móveis que foram entregues à Ré aquando da celebração do acordo mencionado em c) já não existem por terem sido levados por terceiros do imóvel onde funcionava o estabelecimento;

t) A Ré despendeu, em obras de melhoramento do telhado (isolamento em roofmate) e do piso exterior (cubo de cimento mecan) do imóvel onde funcionava o estabelecimento, a quantia de € 12.551,84;

u) Em 13.06.2021, 28.08.2021, 05.09.2021, 06.04.2022 e 14.03.2022, AA, sócio-gerente da Ré, participou à Polícia de Segurança Pública os factos que melhor se acham descritos nas cópias de fls. 232v a 234v dos presentes autos e cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos.

E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido1:

Da petição inicial: artigos 6º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea c), 16º, 20º, 23º, 24º e 31º.

Da contestação: artigos 8º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea k), 13º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea l), 14º a 17º, 19º a 27º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea n), 30º, 31º, parte final, 41º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea t).

Da réplica: inexistem factos a que cumpra, neste âmbito, responder.

O DIREITO

Questão prévia – Da admissibilidade do presente recurso

A recorrente suscita, no recurso que interpôs, duas questões.

Apreciar-se-á, porém, uma única questão, qual seja a já referida antes, respeitante à condenação da ré / recorrente na obrigação de indemnizar a autora pelos danos sofridos. Isto porque a outra questão suscitada (autónoma ou independente daquela), relativa à verificação da condição suspensiva do acordo celebrado em Setembro de 2020, foi decidida pelo Tribunal recorrido, sem voto de vencido, em sentido convergente e sem fundamentação essencialmente diferente com a decisão do Tribunal de 1.ª instância.

Veja-se que o Tribunal de 1.ª instância decidiu que “[n]ão tendo logrado a Ré provar que a condição se verificou, improcede a sua pretensão de se ver paga das quantias de € 130.000,00 e de € 25.000,00 previstas no acordo descrito na alínea n), do ponto II.1.” e o Tribunal recorrido decidiu que “nenhuma censura pode merecer a decisão que julgou improcedente a reconvenção quanto aos peticionados valores de € 130.000,00 e de € 25.000,00”.

Assim sendo, verifica-se a dupla conformidade de decisões referida no artigo 671.º, n.º 3, do CPC, que impede a admissibilidade do recurso nesta parte e só poderia ser superada pela via excepcional da revista (ordinária), prevista no artigo 672.º do CPC (tivesse a ré / recorrente exercido o respectivo ónus – que não exerceu).

Nada disto é contrariado pela afirmação da recorrente, na resposta ao despacho de 9.10.2024, de que “[c]om o Recurso de Revista interposto para o STJ, pretende a R./[Recorrente], ver apreciada a questão de não verificação da condição suspensiva do acordo celebrado em setembro de 2020, precisamente, quanto à possibilidade, não apreciada pela 1ª instância, de a mesma ainda poder vir a ser verificada, nos termos do artigo 275º do CC” e que “[a] questão nova, apreciada pela 2ª instância, quanto à possibilidade da condição ainda se poder vir a concretizar, nos termos do artigo 275º do CC, traduz-se em elemento essencialmente novo, não apreciado pela 1ª instância, e que poderá conduzir ao desfecho da lide tal conforme pretendido pela R/Recorrente”.

Deve esclarecer-se que a referência ao disposto no artigo 275.º do CC (de que a certeza de que a condição se não pode verificar equivale à sua não verificação), através da afirmação de que “[a]demais, tendo, entretanto, ocorrido a perda do estabelecimento comercial, inevitável é considerar que a dita condição já não se poderá verificar (não pode a autora alienar o que já não existe), não configura decisão de uma questão nova, não apreciada pelo Tribunal de 1.ª instância (caso contrário nunca o Tribunal recorrido poderia apreciá-la).

É, sim, um argumento, mas um argumento adicional da decisão sobre a mesma questão que foi posta a ambas as instâncias – numa palavra – um esclarecimento feito à recorrente –, pelo que não acarreta divergência essencial da fundamentação apresentada pelas instâncias. Quer dizer: o argumento fundamental da decisão é, manifestamente, o de que, in casu, a ré não logrou provar que a condição se verificou, acrescentando apenas o Tribunal recorrido a ideia de que nunca lograria provar que a condição se verificou.

Da questão – Da decisão de condenação da ré / recorrente em indemnização por danos no locado

O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão assim:

Diverge, por último, a autora do segmento da sentença que não lhe reconheceu o direito de ser indemnizada pelos danos ocorridos no empreendimento e no prédio onde o estabelecimento comercial se encontrava instalado; argumentando que a ré não logrou afastar a sua responsabilidade pela perda da coisa de acordo com a disciplina do art.º 1044º, do CC.

Segundo o art.º 1043º, nº 1, do CC, “na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.”

A salvaguarda da coisa, como afirma Menezes Cordeiro, “está a cargo do locatário (…) uma vez que, na generalidade das locações, o locatário fica com o controlo material da coisa, só ele pode protege-la e usá-la de modo adequado. (…) Os riscos inerentes ao gozo da coisa situam-se na esfera do locatário. Assim, a responsabilidade de reparar os danos, causados por assalto, num edifício arrendado para comércio, cabe ao comerciante-inquilino e não ao proprietário-senhorio.” [in, Leis do Arrendamento Urbano anotadas, 2014, p. 78].

Ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, incumbe ao locatário manter a coisa no estado em que a recebeu o que implica, para si, não só o dever de fazer dela um uso prudente em vista dos fins a que se destina, como a guardá-la e vigiá-la, por forma a zelar pela sua manutenção a fim de a restituir no estado em que a recebeu.

As deteriorações da coisa inerentes ao risco da sua utilização inserem-se, como é evidente, no âmbito dos deveres de manutenção da coisa que incumbem ao locatário e, assim, é ele o responsável pela reparação.

Com efeito, como resulta do art.º 1044º, do CC, o locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não exceptuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela.

À semelhança do que se estabelece para o devedor inadimplente (art.º 799 do CC) a norma estabelece uma presunção de culpa do locatário por perdas e deteriorações da coisa que, objectivamente, não resultem de deteriorações inerentes a uma prudente utilização, o que significa que incumbe ao locatário demonstrar, nas configuradas situações, que a perda ou deterioração da coisa não procede de culpa sua (nem de terceiro a quem tenha permitido a utilização desta).

Mas assim sendo, afigura-se-nos que não basta afirmar que uma determinada deterioração da coisa foi causada por terceiros desconhecidos para necessariamente se concluir que não é imputável ao locatário (como defendeu a ré).

Concorda-se, por isso, com entendimento propugnado no ac. da RE de 19.11.2020, relatado por Francisco Matos e acessível in www.dgsi.pt, quando afirma que a norma tem em vista a causalidade normativa, não a causalidade natural, a deterioração da coisa é imputável ao locatário quando resulte de acção ou omissão sua, ou seja, é-lhe imputável quando directamente causada por ele mas também quando resulte de violação de deveres inerentes à sua posição jurídica, como ocorre, v.g., com a inobservância dos deveres de vigilância da coisa.

Na verdade, “defender o oposto implicaria esvaziar de conteúdo a obrigação de manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, uma vez que, deixando de vigiar a coisa ou, no limite, abandonando-a nunca seria responsável por deterioração dela, necessariamente, causadas por terceiros.

A salvaguarda da coisa, repete-se, constitui encargo do locatário, o que significa que a vandalização da coisa, por terceiros, representa uma (presumida) violação dos seus deveres de vigilância que lhe incumbe ilidir, por forma a afastar a sua responsabilidade pela perda ou deterioração da coisa que não resultem de uma prudente utilização, sem prejuízo do direito de acção contra os terceiros responsáveis.”.

Isto posto, e voltando ao caso que nos ocupa, afigura-se-nos que tem razão a apelante quando afirma que a ré não logrou ilidir a presunção estabelecida no aludido art.º 1044º, do CC, não sendo minimamente suficiente para concluir pelo cumprimento dos deveres de vigilância que incumbiam à ré, ter-se apurado que o gerente desta participou às autoridades por diversas vezes a ocorrência dos assaltos ao estabelecimento.

Note-se que, como salientamos supra, ficou provado terem as partes acordado que enquanto o empreendimento não fosse vendido a terceiro o contrato se mantinha plenamente válido e eficaz.

Deste modo, mantendo-se tal contrato em vigor, mantinha-se a ré sujeita a tais deveres de vigilância, deveres que impunham, no caso, que a mesma tivesse adoptado medidas de vigilância efectivas que prevenissem ou ao menos mitigassem a possibilidade de assaltos ao local e sobretudo que não permitissem o grau de destruição do estabelecimento que se veio a verificar, com o desaparecimento de todos os móveis que o compunham.

Neste conspecto, afigura-se-nos ser inexorável concluir pela procedência do recurso da autora nesta parte, revogando-se parcialmente a decisão recorrida e condenando-se a ré a indemnizar a autora pelos danos sofridos no empreendimento turístico e no prédio onde o mesmo se encontrava instalado, a liquidar posteriormente (cfr. art.º 609º, nº 2, do NCPC)”.

Nada há a apontar à decisão (e à fundamentação da decisão) do Tribunal da Relação de Guimarães, subscrevendo-se aqui as explicações e observações adicionais feitas no Acórdão recorrido.

Reiterar-se, de uma forma esquemática ou sintética, que o artigo 1043.º, n.º 1, do CC é claro no sentido de que “[n]a falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato”.

Da mesma forma o artigo 1044.º do CC não deixa dúvidas quanto a que “[o] locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não exceptuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela”.

Ora, a ré / recorrente não logrou provar, como lhe competia (cfr. artigos 342.º e s. do CC), que os danos não resultaram de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela.

O problema do ónus da prova consiste “na atribuição dos resultados da incerteza da prova; noutros termos, trata-se de decidir qual é a parte que perderá o processo se o juiz – que deve pronunciar uma decisão – não pôde formar a sua convicção por não dispor de provas suficientes2.

Postas as coisas de outro modo, “na falta ou insuficiência de provas, o julgador rejeita a pretensão deduzida pela parte sobre a qual deva entender-se que recaía, no caso concreto, o onus probandi”3.

O princípio relevante está, de alguma forma, formulado no artigo 414.º do CPC: a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.

Aplicando todos estes ensinamentos ao caso em apreço, não resta confirmar a decisão de condenação da ré / aqui recorrente na obrigação de indemnização à autora / aqui recorrida.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pela ré / recorrente, sem prejuízo do apoio beneficiário de que eventualmente beneficie.

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Lisboa, 13 de Fevereiro de 2025

Catarina Serra (relatora)

Ana Paula Lobo

Orlando Nacimento

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1. Isto, segundo o Tribunal recorrido, “com exclusão dos enunciados fácticos de carácter conclusivo, dos enunciados fácticos irrelevantes e dos enunciados descritores de matéria de direito”.

2. Cfr. Walther J. Habscheid, Droit judiciaire privé suisse, Georg — Librairie de l'Université, Genève, 1981 (2.ª ed.), p. 425.

3. Cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume III, Coimbra, Coimbra Editora, 1981 (reimpressão), p. 272. Referindo esta passagem, observa Nuno Manuel Pinto Oliveira [Estudos sobre o não cumprimento das obrigações, Coimbra, Almedina, 2009 (2.ª edição), p. 111] que esta é a regra de julgamento decorrente da repartição do ónus da prova.