CONTRATO DE ARRENDAMENTO
OBRAS
RENDA
ABUSO DO DIREITO
EQUILÍBRIO DAS PRESTAÇÕES
PERDA DA COISA LOCADA
CADUCIDADE
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário


I. De acordo com a jurisprudência reiterada do STJ, o direito a exigir do locador a realização de obras no locado é considerado abusivo (art. 334.º do CC) quando ocorra uma enorme desproporção entre o diminuto valor das rendas pagas pelos locatários ao longo de décadas e o custo das obras necessárias.
I. Se o exercício do direito de os locatários exigirem dos locadores a realização de obras no locado é considerado abusivo e, consequentemente, é paralisada a produção dos efeitos desse direito, não podem os mesmos locatários opor-se à declaração de caducidade por perda da coisa locada (art. 1051.º, al. e), do CC) com fundamento em que essa perda é imputável à falta de realização de obras por parte dos senhorios.
II. Pela mesma razão tem também de improceder o pedido indemnizatório formulado pelos locatários quanto aos danos não patrimoniais resultantes da necessidade de se mudarem para casa de uma filha devido à situação de inabitabilidade do locado, pedido esse que cumularam com o pedido de condenação dos réus na realização de obras no locado.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. AA intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e mulher, CC, formulando, com base no contrato de locação existente entre as partes, os seguintes pedidos:

a) Serem os réus condenados a realizar todas as obras necessárias a repor o locado em condições de normal segurança e salubridade, designadamente reparando as causas e danos das infiltrações, reparando os tectos, paredes e caixilharia; e cumulativamente,

b) Serem os réus condenados a pagar ao autor uma indemnização, por danos não patrimoniais, no valor de € 10.000,00 (dez mil euros), acrescida dos legais juros de mora, contados desde a data da interpelação dos réus para realizar as obras, 29.10.2019, até efectivo e integral pagamento;

e,

c) Serem os réus condenados no pagamento ao autor de uma sanção pecuniária compulsória, nos termos do disposto no artigo 829.º-A do Código Civil, de valor não inferior € 100,00 (cem euros), por cada dia de atraso no cumprimento da condenação supra peticionada em a).

Os réus contestarem, deduzindo reconvenção, pedindo que seja declarada a caducidade do contrato de arrendamento em vigor, e, consequentemente, a extinção do contrato de arrendamento, com a consequência de o autor ser condenado a entregá-lo imediatamente aos réus livre de pessoas e bens.

Entretanto, foi requerida e admitida a intervenção principal de DD, a fim de assegurar a legitimidade activa.

Veio a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os réus do pedido. Mais julgou o pedido reconvencional procedente, declarando a caducidade do contrato de arrendamento em vigor entre autores e réus, e, consequentemente, a sua extinção, condenando os reconvindos a entregá-lo imediatamente aos réus livre de pessoas e bens.

Inconformados com a sentença, interpuseram os autores recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que foi julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

2. Novamente inconformados, os autores vieram interpor recurso de revista, por via excepcional, para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

“1.ª – Uma vez que objeto do presente se atém com a casa de morada de família dos Recorrentes, que dela estão a ser extirpados pelas instâncias, e que o direito à habitação é um direito basilar estruturante do ordenamento jurídico português, constitucionalmente consagrado, é admissível recurso de revista excecional, ao abrigo do disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil;

2.ª – O Venerando Tribunal da Relação do Porto, salvo o muito respeito que é devido, comete diversos erros na legal subsunção do acervo material apurado nas instâncias, violando a lei;

3.ª – A sua motivação resume-se numa penada: o inquilino só paga 4 euros de renda, o orçamento das obras são milhares de euros, e, se o inquilino quisesse, ele que fizesse as obras e exigisse o ressarcimento ao senhorio;

4.ª – O Venerando Tribunal da Relação do Porto admite a preclusão de um direito pelo não exercício de um outro direito, que é facultativo, e nem sequer atentou no facto de os recorrentes litigarem com apoio judiciário, precisamente porque são pobres;

5.ª – E se são pobres, se reúnem condições para que lhes seja arbitrado tal benefício, obviamente que não poderiam custear ab initio o exercício do direito a fazer obras em substituição do senhorio;

6.ª – A Justiça não pode premiar quem adquire um valiosíssimo prédio – bem sabendo que o mesmo está parcialmente onerado com um contrato de arrendamento – e se abstém de promover pela sua normal manutenção, ficando a aguardar pela ruína para assim se livrar do ónus do arrendamento;

7.ª – Conforme resulta claro do ponto 4 do acervo de factos julgados provados, quando os recorridos adquiriram o prédio fizeram-no bem sabendo que o rés-do-chão se encontrava onerado com um contrato de arrendamento, que o contrato de arrendamento era antigo – com as naturais contingências normativas em termos de resolução -, que os inquilinos eram idosos e que a renda era de um valor manifestamente desadequado;

8.ª – Ao adquirirem a propriedade sobre o prédio, os RR. sucederam aos ante proprietários na posição contratual de senhorios no contrato, com a inerente vinculação aos pontuais termos do mesmo;

9.ª – O imóvel estar, ou não, onerado com um contrato de arrendamento como o que é objeto destes autos é um fator determinante na valorização do prédio, na altura em que os recorridos o adquiriram, como quando o pretenderem vender ou locar;

10.ª – Ao optar por não fazer quaisquer obras de manutenção e conservação, no locado, no piso superior ao locado e no telhado, os recorridos violaram o disposto no n.º 1 do artigo 1.074.º do Código Civil;

11.ª – A responsabilidade dos recorridos advém-lhes não só da qualidade de senhorios, mas também, por efeito do disposto no n.º 1 do artigo 492.º do Código Civil, de proprietários da parte do prédio que fica por cima do rés-do-chão arrendada aos Recorrentes, e, obviamente do telhado por cima do primeiro piso, sendo que a leitura perfilhada pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto quanto à repartição do ónus da prova viola frontalmente esta norma;

12.ª – O douto decisório recorrido vem a enquadrar a pretensão dos recorrentes, num exercício abusivo do direito, o que configura um verdadeiro paradoxo, conquanto foram os recorridos, quem atuou abusivamente, valendo-se da sua inércia, da vetustez do prédio e do rigor das condições climatéricas para, praticamente, enxotar os inquilinos e assim desonerar o seu prédio;

13.ª – Note-se, aqui, a evidente falácia que é um dos seminais argumentos invocados pelos recorridos, e asseverado pelas instâncias, e que é o tempo que os recorridos demorariam a recuperar o valor pago pelas urgentes obras que o locado exige;

14.ª – Os recorrentes são pessoas já muito idosas (cfr. pontos 6 e 18 da matéria de facto provada), são os únicos residentes no imóvel, e o contrato de arrendamento foi celebrado antes da entrada em vigor do antigo Regime do Arrendamento Urbano, o que significa que, nos termos do disposto no artigo 57.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, o arrendamento caducará à morte dos AA.;

15.ª–Com a caducidade do contrato de arrendamento, serão os recorridos investidos na plena posse do rés-do-chão do prédio, podendo usá-lo, vendê-lo, ou locá-lo ao preço de mercado aquando do infortúnio (infortúnio para os recorrentes) ocorrer;

16.ª – Sempre salvo o muito respeito que é devido, é um flagrante erro, e um fator gerador de uma clara injustiça, postergar da apreciação da justa comparação entre o valor da renda e o valor das obras a variável da duração expectável do arrendamento, e, bem assim, postergar desta equação o reflexo da existência do ónus decorrente da existência do contrato de arrendamento no valor de aquisição do imóvel pelos Recorridos;

17.ª – No que concerne à indemnização impetrada pelos AA., entendeu o douto aresto recorrido não existirem danos “que justifiquem a intervenção judicial no sentido de ver compensados tais estados de alma.”;

18.ª – O objeto da ação, mais do que um “prédio urbano”, um “imóvel” ou um “locado”, é uma casa de família com cinquenta anos de vivência e de histórias, a casa dos pais, a casa dos avós EE e FF onde cresceram e se fizeram quem são os membros da família C...(AA/DD;

19.ª – É neste enquadramento, e por apelo às regras da experiência comum e ao teor dos factos 6 a 20, que se deverá medir a pertinência e adequação da intervenção judicial na reparação dos danos;

20.ª – Para os recorrentes, octogenários, humildes e leigos na matéria, os “danos que [para o douto aresto recorrido] não justificam a intervenção judicial” são ver a degradar-se até à ruína aquele que é o seu lar, a casa onde sempre residiram, desde o seu casamento, há mais de cinquenta anos e da qual são agora escorraçados;

21.º - Ao contrário do que sustenta o Venerando Tribunal Recorrido na sua errada conceção da repartição do ónus da prova – estão plenamente verificados todos os legais fundamentos da responsabilidade civil extracontratual, antes resultando a decisão recorrida ilegal por violação do n.º 1 do artigo 492.º do Código de Processo Civil;

22.ª – A condenação na reconvenção, é afastada, em primeira linha, pela procedência das questões já acima suscitadas, e, concomitantemente, por manifestamente ilegal e infundada;

23.ª – É um claro abuso de direito permitir aos proprietários de um imóvel centenário, onerado com um contrato de arrendamento conhecido em momento anterior à aquisição, utilizar a “técnica” de abstenção de quaisquer obras de manutenção e conservação, incluindo no telhado do piso situado por cima da casa dos recorrentes, aguardando que as condições climatéricas vão, paulatinamente, tornando o imóvel inabitável;

24.ª – Permitir que um senhorio obtenha a declaração de caducidade de um contrato de arrendamento nos termos do disposto da alínea e) do artigo 1.051.º do Código Civil, quando a ruína é a si estritamente imputável é – ao contrário do sustentado na jurisprudência referida no douto aresto recorrido – um flagrante abuso de direito;

25.ª – A douta decisão recorrida viola as normas contidas nos artigos 1.031.º e 1.032.º, no n.º 1 do artigo 1.074.º, no n.º 1 do artigo 492.º, nos artigos 496.º, 562.º e 798.º, e na alínea g) do artigo 1.051.º, todos do Código Civil.”.

Os recorridos contra-alegaram, pugnando, no que ora importa, pela confirmação da decisão do acórdão recorrido.

3. O recurso foi admitido por acórdão da Formação prevista no n.º 3 do art. 672.º do CPC com fundamento na alínea b) do art. 672.º do CPC.

4. Vem provado o seguinte:

1. Os RR. são proprietários do imóvel com entrada pelos n.ºs 43 e 45 da Rua ..., sito na união de freguesia da ..., neste concelho e comarca ....

2. Por acordo entre o A. e os anteriores proprietários do imóvel, em Fevereiro de 1969, estes deram de arrendamento àquele, que o tomou de arrendamento, o rés-do-chão do referido prédio, com entrada pelo n.º 43 do arruamento indicado acima.

3. Mediante o pagamento de uma renda mensal no valor, em escudos, correspondente a €4,00.

4. Os RR. adquiriram o prédio em causa no ano de 2009, sendo os seus actuais proprietários e tendo sucedido ao anterior proprietário na posição de senhorios no contrato de arrendamento em que o A. é inquilino.

5. Desde Janeiro de 2010 que o A. procede ao pagamento da renda mensal aos RR., que a recebem e dela dão a respectiva quitação.

6. O A. reside no identificado imóvel, o n.º 43, que é a sua casa de morada de família, desde a data da celebração do contrato de arrendamento, em Fevereiro de 1969.

7. Pelo menos desde os inícios de 2019, que o piso da habitação sita por cima da habitação do A., que se encontra devoluta, abateu e ficou assente sobre os tectos da casa do A.

8. Os tectos interiores ruíram parcialmente, encontrando-se todos em risco de ruína completa e de queda de mais elementos do revestimento.

9. O que oferece risco para a segurança do A. e da sua família, bem como de visitas que receba.

10. Quando chove, chove dentro de casa, entrando a água pluvial através dos tectos acima identificados, em grande quantidade.

11. O que provoca focos de humidade e degrada os materiais, criando uma atmosfera de insalubridade.

12. As paredes interiores estão severamente degradadas e em permanente risco de ruína e queda de elementos que as integram.

13. As caixilharias interiores e exteriores encontram-se degradadas, não estando aptas ao fim a que se destinam.

14. Por carta registada enviada pelo A. ao R. marido a 29.10.2019, denunciando a situação e interpelando o senhorio para a realização das obras de reparação do imóvel e danos decorrentes da ruína e das infiltrações.

15. Os RR., em resposta, por carta enviada por Ilustre Mandatário a 13.11.2019, declararam expressamente a sua recusa à realização das obras.

16. Invocando que o A., por pagar um valor de renda reduzido, agia em abuso de direito ao reclamar a reparação das graves incidências verificadas no locado, cuja reparação da “…cobertura do imóvel…” orçava em €36.854,00 acrescido de IVA à taxa legal.

17. Em Outubro de 2019, perante o estado de perigo e insalubridade do locado, o A. viu-se obrigado a alojar-se em casa da sua filha, conforme aliás ordens da Protecção Civil, que havia sido chamada ao local conjuntamente com os bombeiros aquando da chuvada.

18. O facto de ter sido obrigado a deixar o seu lar, a casa que habita há mais de 50 anos,

19. Onde criou ou filhos e as netas.

20. Causa ao A. desgosto.

21. A casa da filha é uma casa de ilha, com quatro divisões e um anexo, e onde reside esta, o marido e duas filhas.

22. Os RR contactaram um Construtor Civil para proceder às obras no prédio em causa nos autos, incluindo a necessária substituição do telhado.

23. As mesmas foram orçadas em € 105.000,00 acrescido de IVA.

Não se provaram mais factos alegados com relevo para a boa decisão da causa, nomeadamente que:

A. A situação do imóvel obrigou o A. a acomodar e empacotar para evitar a sua destruição, bem como a desfazer-se de diversos pertences por não ter onde os guardar.

B. O que sucedeu, por exemplo, com livros, retratos, peças de decoração, recordações e mesmo roupas.

C. A acomodação provisória do A. em casa da filha obriga a grandes constrangimentos na organização do agregado familiar, que se viu obrigado a encaixotar diversos pertences para permitir acomodar os pais e avós.

5. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.

Deste modo, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

• Erro de julgamento ao ter o acórdão recorrido, mantendo a decisão da 1.ª instância, considerado constituir exercício abusivo do direito que os autores locatários exijam aos réus locadores a realização de obras no locado, atenta a desproporção entre o valor da renda e o custo das obras necessárias;

• Erro de julgamento ao ter o acórdão recorrido, mantendo a decisão da 1ª instância, julgado procedente o pedido reconvencional de declaração de caducidade do contrato de arrendamento existente entre as partes;

• Erro de julgamento ao ter o acórdão recorrido, mantendo a decisão da 1ª instância, julgado improcedente o pedido dos autores de serem indemnizados por danos não patrimoniais.

6. Primeira questão: erro de julgamento ao ter o acórdão recorrido considerado constituir exercício abusivo do direito que os autores locatários exijam aos réus locadores a realização de obras no locado, atenta a desproporção entre o valor da renda e o custo das obras necessárias

Consideremos a fundamentação do acórdão recorrido, na parte relevante:

“O Autor, na qualidade de arrendatário, pretende, em primeira linha, que os senhorios sejam condenados a executar “todas as obras necessárias a repor o locado em condições de normal segurança e salubridade, designadamente reparando as causas e danos das infiltrações, reparando os tectos, paredes e caixilharia”.

Confrontados com a pretensão apresentada pelo arrendatário, os Réus, senhorios, explicaram que, face ao valor irrisório da renda paga por aquele - €4,00 - não têm capacidade económica para suportar os custos elevados advenientes da execução dessas obras.

A noção de locação consta expressamente do art.º 1022.º do C.Civil como o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição.

Nesta conformidade, uma das principais obrigações que incumbem ao senhorio, com a celebração de um contrato de arrendamento, prevista no art.º 1031.º, al. b) do C.Civil, consiste em assegurar o gozo da coisa locada para os fins a que se destina.

Como explica Edgar Martins Valente “a amplitude de sentidos que tal obrigação envolve é vasta (…) razão pela qual o legislador sentiu a necessidade de densificar, nos preceitos compreendidos entre o artigo 1032.º e o artigo 1037.º, algumas das várias manifestações daquilo que deverá ser entendido pela obrigação do senhorio de “assegurar o gozo da coisa”.”

A celebração do contrato de arrendamento com os anteriores proprietários do imóvel ocorreu em Fevereiro de 1969, comprometendo-se o Autor a pagar uma renda mensal no valor, em escudos, correspondente a €4,00.

Os Réus adquiriram o prédio em causa no ano de 2009, e decorridos dez anos de relação contratual, o piso da habitação, situado por cima da habitação arrendada, que se encontra devoluta, abateu e ficou assente sobre os tectos da casa habitada pelos Autores.

Consequentemente, os tectos interiores ruíram parcialmente, encontrando-se todos em risco de ruína completa e de queda de mais elementos do revestimento, o que oferece risco para a segurança do Autor e da sua família, bem como de visitas que receba. Chove dentro de casa, entrando a água pluvial através dos tectos acima identificados, em grande quantidade, o que provoca focos de humidade e degrada os materiais, criando uma atmosfera de insalubridade. As paredes interiores estão severamente degradadas e em permanente risco de ruína e de queda de elementos que as integram. As caixilharias interiores e exteriores encontram-se degradadas, não estando aptas ao fim a que se destinam.

O Autor comunicou ao Réu a situação acima descrita interpelando-o para a realização das obras de reparação do imóvel bem como dos danos decorrentes do estado de ruína do prédio e das infiltrações ocorridas.

Todavia, os Réus não assentiram na pretensão do Autor invocando que a renda é de valor reduzido, razão pela qual entenderam que agia em abuso de direito ao reclamar a reparação das graves incidências verificadas no locado, cuja reparação da “…cobertura do imóvel…” orçava em €36.854,00 acrescido de IVA à taxa legal.

Mesmo assim, contactaram um construtor civil para proceder às obras no prédio em causa nos autos, incluindo a necessária substituição do telhado, que foram orçadas em € 105.000,00 acrescido de IVA.

Face ao quadro factual apurado, não há qualquer dúvida de que o imóvel não se encontra com condições mínimas de habitabilidade, carecendo de reparações urgentes, algumas estruturais, sem as quais a segurança das pessoas que nele habitam ou aí entram corre sério risco.

(…)

Os Autores não optaram por serem eles a executar as obras urgentes que o arrendado necessita para se tornar habitável, em substituição dos senhorios, exigindo, ao invés, que estes cumprissem essa obrigação, pese embora lhes ter sido comunicado que o valor da renda de 4,00€ não lhes permite custear o orçamento no montante de 36.854,00€ obtido apenas para a reparação do telhado e que foi actualizado para €105.000,00 para a reparação global do imóvel.

Como se esclareceu no Acórdão desta Relação do Porto, de 24/10/2016 “fruto da degradação do parque habitacional (em decorrência do congelamento legal de boa parte das rendas, impossibilitando aos senhorios a realização de obras de conservação dos prédios) e da própria desvalorização do montante das rendas (fruto do mesmo fenómeno de congelamento das rendas), os tribunais superiores têm vindo a ser chamados, de forma reiterada, a pronunciar-se sobre a sobredita questão, qual seja a de saber se, não obstante o direito do arrendatário à realização de obras de conservação (ordinária ou extraordinária) no locado, esse seu direito, em face da exiguidade da contrapartida/renda, se mostra exercido em termos clamorosamente desproporcionados ou excessivos, de tal modo que se impõe que esse direito (reconhecido, em tese geral) seja paralisado, sob pena de se criar uma tal desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito, por parte do seu titular e as consequências que outros têm de suportar, de onde derive, necessariamente, clamorosa ofensa da justiça.”

Neste sentido tem sido concordante a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça como se refere no sumário do Acórdão de 19/01/2017 “Constitui jurisprudência reiterada do STJ, a respeito da proporcionalidade entre o valor das rendas pagas pelo arrendatário e o custo das obras a suportar pelo senhorio, que o valor ínfimo da renda se apresenta, em certos casos, como impedimento a que se possa exigir ao senhorio a realização de obras cujo montante ascende a valores elevados.”

Noutro caso similar, o Acórdão do STJ de 28/11/2002, fazendo referência a arestos anteriores proferidos sobre esta temática, consignou “Assim, entende-se que a desproporção entre o valor da renda mensal e o do custo das obras provoca um desequilíbrio das posições jurídicas da Autora e dos Recorridos e tornam desmesuradamente desproporcionada à vantagem económica que, para os senhorios, decorre do contrato de arrendamento invocado em relação às desvantagens dele decorrentes; Ou seja, o acolhimento da pretensão formulada pela ora Recorrente provocaria uma clamorosa injustiça.

De facto, pretendendo a lei que as contraprestações dos contratos onerosos tenham o maior equilíbrio (art. 237º do Cód. Civil), a pretensão formulada pela ora Recorrente, por não ser um exercício moderado, equilibrado, lógico e racional do seu direito, constitui um abuso de direito e, como tal, tornou-a ilegítima e equivalente à falta de direito, tornando legítima a oposição que se faça a uma tal pretensão.”

Pinto Furtado reconhece que “Tradicionalmente, não se estabelecia expressamente na lei qualquer exigência de proporcionalidade entre a obrigação do senhorio de realizar as prestações de facere destinadas a assegurar ao arrendatário o gozo da coisa e a renda paga por este, mas a nossa jurisprudência foi sensível a tal aspecto, numa assinalável intuição da jurisprudência comparada.”

Os arestos acima mencionados fundamentaram-se, como tivemos oportunidade de verificar, no disposto no art. 334º do C. Civil referente ao enquadramento legal da figura do abuso de direito.

Segundo o referido preceito legal é considerado ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico e social desse direito.

A boa fé, nesta norma, tem o sentido de princípio normativo de actuação. Significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros.

As exigências éticas da ordem jurídica que subjazem ao instituto do abuso do direito ao considerar ilegítimo o exercício do direito quando o titular excede manifestamente a boa-fé, impedem, neste caso, a condenação dos Réus na realização de obras avultadas no imóvel quando recebem dos Autores, em contrapartida do uso do locado, um valor praticamente simbólico-quatro euros por mês.

Portanto, acolhendo, como se impõe, a orientação uniforme nesta matéria, propugnada na jurisprudência, concluiu-se acertadamente na sentença que “no caso vertente, ponderando a renda actual de €4,00 (quatro euros), e o valor de €36.854,00 acrescido de IVA – necessário para repor as condições de habitabilidade da fracção dada de arrendamento ao autor – segue-se que para a recuperação do capital que os réus teriam que despender com a execução das obras em apreço seriam necessários, portanto, cerca de 11.330 meses (!), o que perfaz um total de cerca de 944 (novecentos e quarenta e quatro) anos para a recuperação de um tal investimento!”

Acompanhando o raciocínio exposto na sentença, devemos também reconhecer que, atendendo ao custo elevado das obras de que o prédio carece (€105.000,00) e à renda paga pelos Autores, cujo valor manifestamente diminuto é de €4.00 euros por mês, o direito que os Autores se arrogam traduzido na exigência de execução das obras, reconhecido na lei, deve ser neutralizado com fundamento no instituto do abuso do direito por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim social e económico desse direito-v.art. 334.º do C.Civil.”. [negritos nossos]

Insurgem-se os autores recorrentes contra esta decisão, invocando os seguintes argumentos jurídico-normativos:

“– Ao optar por não fazer quaisquer obras de manutenção e conservação, no locado, no piso superior ao locado e no telhado, os recorridos violaram o disposto no n.º 1 do artigo 1074.º do Código Civil;

– A responsabilidade dos recorridos advém-lhes não só da qualidade de senhorios, mas também, por efeito do disposto no n.º 1 do artigo 492.º do Código Civil, de proprietários da parte do prédio que fica por cima do rés-do-chão arrendada aos Recorrentes, e, obviamente do telhado por cima do primeiro piso, sendo que a leitura perfilhada pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto quanto à repartição do ónus da prova viola frontalmente esta norma”.

No que respeita ao regime do art. 492.º, n.º 1, do Código Civil (“O proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos”), e ainda que, em abstracto, se afigure de admitir a sua aplicabilidade no âmbito das relações contratuais, não tem o mesmo relevância no que se refere à questão em apreciação, uma vez que tal regime se reporta aos deveres do proprietário de edifício pelos danos que a ruína deste possa causar a pessoas ou coisas e não ao próprio edifício. No caso concreto, estando provado que os réus são proprietários de todo o edifício (cfr. factos provados 1, 2 e 4), carece de fundamento a alegação dos recorrentes de que haveria que distinguir entre a propriedade do andar locado e a propriedade da cobertura do edifício; desta construção jurídica apenas derivaria que os réus seriam simultaneamente credores e devedores pelos danos que o abatimento do telhado causou ao andar locado.

Quanto ao disposto no art. 1074.º do Código Civil (“Cabe ao senhorio executar todas as obras de conservação, ordinárias ou extraordinárias, requeridas pelas leis vigentes ou pelo fim do contrato, salvo estipulação em contrário”), as instâncias não puseram em dúvida que dele decorre o direito que os autores, na qualidade de locatários, vêm exercer ao intentar a presente acção contra os réus, na qualidade de senhorios. Contudo, é precisamente esse direito cujo exercício é considerado abusivo (cfr. art. 334.º do CC) em função da enorme desproporção entre o diminuto valor das rendas pagas pelos locatários ao longo de décadas e o custo das obras necessárias para recuperar o locado.

Como se afirma no acórdão recorrido, tal posição corresponde à orientação da jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal, que encontramos, por exemplo, explanada na seguinte passagem do acórdão de 05/02/2013 (proc. n.º 1235/07.0TVPRT.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt:

“Entre os campos de aplicação relevantes do abuso de direito, englobam-se as situações de desequilíbrio no exercício de posições jurídicas (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português I – Pare Geral, Tomo I, 1999, p 221-212), que este Autor desdobra em três sub-hipóteses: a de exercício danoso inútil, a de exigir o que de seguida se deve restituir e a de desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem, equacionando-as nos seguintes termos: Trata-se duma fórmula antiga e intuitiva de abuso do direito: mercê de conjunções extraordinárias, ocorre um exercício jurídico, aparentemente regular, mas que desencadeia resultados totalmente alheios ao que o sistema poderia admitir, em consequência do exercício e acrescentando que a redução dogmática do desequilíbrio faz apelo, consoante as circunstâncias, ora ao princípio da confiança, ora ao da primazia da materialidade subjacente. O primeiro dá cobertura a actuações anormais e inesperadas, que se tornam danosas por apanhar desprevenidas as pessoas que contavam (justificadamente) com uma actuação mais comedida. O segundo reporta-se a exercício de puro equilíbrio objectivo. A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores. Em suma, o direito não pode ser exercido de forma arbitrária, exacerbada ou desmesurada, mas antes de um modo equilibrado, moderado, lógico e racional. No que respeita ao direito do arrendatário à realização de obras pelo senhorio, considerando o cariz sinalagmático do vínculo contratual e não obstante o disposto nos arts. 1031º, al. b), do Código Civil, e 12º do RAU importa – por respeito ao princípio geral de direito do equilíbrio das prestações – que exige certa proporcionalidade entre os valores das obras e das rendas – cf. artigos 237º e 994º C. Civil (…). Havendo, assim, casos em que o valor ínfimo da renda se apresenta manifestamente insuficiente para que se possa exigir ao senhorio a realização de obras cujo montante ascende a valores elevados.”

No mesmo sentido, ver os acórdãos de 26/10/1999 (proc. nº 740/99), de 28/11/2002 (proc. nº 3436/02), de 11/10/2005 (proc. nº 2274/05), de 14/11/2006 (proc. nº 3597/06), de 24/05/2007 (proc. nº 582/07), de 24/05/2007 (proc. nº 1060/07), de 30/09/2008 (proc. nº 2259/08), de 20/01/2009 (proc. nº 3810/08), de 19/11/2009 (proc. nº 812/03.3TVPRT.S1) e de 11/12/2012 (proc. nº 655/06.2TBCMN.G1.S1), todos consultáveis na base dos sumários da jurisprudência cível, in www.stj.pt; assim como os acórdãos de 16/12/2004 (proc. nº 3903/04), de 08/06/2006 (proc. nº 1103/06), de 31/01/2007 (proc. nº 4404/06) e de 02/06/2009 (proc. nº 256/09.3YFLSB), de 05.05.2015 (proc. n.º 3820/07.1TVI.SB.L2.S1) e de 19.01.2017 (proc. n.º 1381/13.1TBVIS.C1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt.

Conclui-se, assim, pela improcedência desta pretensão dos recorrentes.

6. Segunda questão: erro de julgamento ao ter o acórdão recorrido julgado procedente o pedido reconvencional de declaração de caducidade do contrato de arrendamento existente entre as partes

Pronunciou-se o acórdão recorrido nos termos seguintes:

“Os Réus, em reconvenção, pediram que fosse declarada a extinção do contrato de arrendamento por caducidade, o que foi acolhido na sentença.

Uma das formas de extinção do contrato de arrendamento, previstas no artigo 1079.º do C.Civil, é justamente a caducidade cujas causas estão enumeradas no artigo 1051.º do C.Civil.

A perda da coisa locada determina, nos termos da alínea e) do mencionado preceito legal, a caducidade do contrato de arrendamento que corresponde à impossibilidade objectiva da prestação prevista no artigo 790.º, n.º 1 do C.Civil como causa de extinção das obrigações.

A questão que surge nesta problemática, e que concretamente nos interessa, é a de saber se ocorre a caducidade do contrato de arrendamento na hipótese de o arrendado não ficar totalmente destruído.

Como refere Pinto Furtado a jurisprudência nacional e alguma doutrina tem seguido “a tendência para se lançar mão de um critério aferidor, à primeira vista razoável: é o critério funcional”.

Explicando que “Haverá, assim, perda do prédio arrendado não apenas quando ele ou todo o espaço arrendado se tenha materialmente destruído, mas ainda quando, deteriorado apenas em parte, a perda sofrida seja tão significativa que determine a impossibilidade de aplicação desse espaço ao fim para que foi arrendado.”

No mesmo sentido, Januário C. Gomes enfatiza que “à luz desta concepção funcional, poderá não ser necessário aguardar que um prédio caia como baralho de cartas para se concluir pela perda do mesmo.”

Por conseguinte, independentemente da eventual culpa do senhorio na falta de conservação do prédio, tem sido reconhecido que não sendo possível continuar a assegurar o gozo do arrendado para o fim convencionado, o qual, no nosso caso, consiste no seu uso como habitação dos Autores, extingue-se essa obrigação, por caducidade, que opera op legis, bem como o compromisso de pagar a renda, por parte do arrendatário, por se tratar de obrigações sinalagmáticas.”.

Perante a factualidade dada como provada (cfr. factos 7 a 13 e facto 17), os recorrentes não põem em causa que a gravidade da deterioração do imóvel locado e a impossibilidade da sua utilização constituam uma situação de “perda da coisa locada”, a qual, de acordo com o previsto na alínea e) do art. 1051.º do Código Civil, faz caducar o contrato de locação.

O que os recorrentes invocam é antes o seguinte.

“– É um claro abuso de direito permitir aos proprietários de um imóvel centenário, onerado com um contrato de arrendamento conhecido em momento anterior à aquisição, utilizar a “técnica” de abstenção de quaisquer obras de manutenção e conservação, incluindo no telhado do piso situado por cima da casa dos recorrentes, aguardando que as condições climatéricas vão, paulatinamente, tornando o imóvel inabitável;

– Permitir que um senhorio obtenha a declaração de caducidade de um contrato de arrendamento nos termos do disposto da alínea e) do artigo 1051.º do Código Civil, quando a ruína é a si estritamente imputável é – ao contrário do sustentado na jurisprudência referida no douto aresto recorrido – um flagrante abuso de direito”.

Temos, pois, que os autores, ora recorrentes, se opõem à decisão de procedência do pedido reconvencional dos réus (pedido de declaração de caducidade do contrato) não por considerarem que esse direito é inexistente, mas por entenderem que o mesmo foi abusivamente exercido pelos réus reconvintes, na medida em que, alegam, a perda da coisa locada é imputável ao não cumprimento do dever de realização de obras na coisa locada a que estes últimos se encontram obrigados.

Esta argumentação não pode deixar de ser rejeitada. Se, como se concluiu anteriormente, o exercício do direito dos autores locatários a exigirem dos réus locadores a realização de obras no locado foi tido como abusivo (cfr. ponto anterior do presente acórdão) e, consequentemente, foi paralisada a produção dos efeitos desse direito, não podem os autores opor-se à declaração de caducidade por perda da coisa locada com fundamento em que essa perda é imputável à falta de realização de obras por parte dos senhorios. Isso mais não seria do que, afinal, atribuir efeitos àquele direito cujo exercício foi declarado como sendo abusivo.

Improcede assim, também nesta parte, a pretensão dos recorrentes.

7. Terceira questão: erro de julgamento ao ter o acórdão recorrido julgado improcedente o pedido dos autores de serem indemnizados por danos não patrimoniais

Na apreciação desta questão, considera-se necessário começar por clarificar quais são os danos não patrimoniais alegados e provados na presente acção, na medida em que, da análise do processado, resultam dúvidas sobre se está em causa um pedido indemnizatório pelos danos não patrimoniais resultantes da necessidade de, em Outubro de 2019 e devido à situação de inabitabilidade do locado, os autores se mudarem para casa da sua filha (cfr. facto provado 17), ou, diversamente, pelos danos não patrimoniais resultantes da caducidade do contrato de arrendamento.

Vejamos.

Em sede de petição inicial, alegaram os autores o seguinte:

“35.º Por um lado, estão os RR. legalmente obrigados a realizar as obras de reparação do imóvel, de forma a que este volte a estar apto a ser utilizado para o fim a que se destina e que é a habitação pelo inquilino.

36.º E, por outro lado, incorrem os RR. na obrigação de indemnizar os danos emergentes do não cumprimento da sua obrigação referida no artigo que antecede.

Efectivamente,

37.º Em Outubro de 2019, perante o estado de perigo e insalubridade do locado, o A. viu-se obrigado a alojar-se em casa da sua filha, conforme aliás ordens da Protecção Civil, que havia sido chamada ao local conjuntamente com os bombeiros aquando da chuvada registada no ficheiro de vídeo que vai junto à presente peça.

38.º O facto de ter sido obrigado a deixar, ainda que provisoriamente, o seu lar, a casa que habita há mais de 50 anos,

39.º Onde criou ou filhos e as netas,

40.º Causa ao A. um profundo desgosto e infelicidade.

41.º Assim como o causa o ver-se privado da utilização e normal fruição dos bens móveis que foi juntando ao longo da vida e que consubstanciam o recheio da sua casa,

42.º E que a situação do imóvel obrigou a acomodar e empacotar para evitar a sua destruição, bem como a desfazer-se de diversos pertences por não ter onde os guardar.

43.º O que sucedeu, por exemplo, com livros, retratos, peças de decoração, recordações e mesmo roupas.

44.º De igual modo, relevará considerar que o A. está provisoriamente instalado em casa da filha por não dispor de meios que lhe permitam alojar-se num hotel ou arrendar provisoriamente uma habitação.

45.º A casa da filha é uma casa de ilha, com apenas quatro divisões e um anexo, e onde reside esta, o marido e duas filhas.

46.º A acomodação provisória do A. em casa da filha obriga a grandes constrangimentos na organização do agregado familiar, que se viu obrigado a encaixotar diversos pertences para permitir acomodar os pais e avós.

47.º O que, também, causa grande consternação e preocupação ao A.

48.º Bem como o causa o facto de o espaço que a filha amavelmente lhe faculta não lhe permitir mais do que ter uma pequena mala de roupa para o dia a dia.

49.º O que, tudo, são danos indemnizáveis, com génese no incumprimento, pelos RR., da obrigação legal que sobre eles impende, de levar a efeito as obras necessárias a, no cumprimento do contrato, disponibilizar o locado apto à sua utilização para o fim a que se destina.

50.º Razão pela qual, cumulativamente com a condenação na realização das obras, deverão os RR. ser condenados a indemnizar o A. por tais danos.”. [negritos nossos]

Relativamente aos danos não patrimoniais alegados pelos autores, foi dado como provado o seguinte:

17. Em Outubro de 2019, perante o estado de perigo e insalubridade do locado, o A. viu-se obrigado a alojar-se em casa da sua filha, conforme aliás ordens da Protecção Civil, que havia sido chamada ao local conjuntamente com os bombeiros aquando da chuvada.

18. O facto de ter sido obrigado a deixar o seu lar, a casa que habita há mais de 50 anos,

19. Onde criou ou filhos e as netas.

20. Causa ao A. desgosto.

21. A casa da filha é uma casa de ilha, com quatro divisões e um anexo, e onde reside esta, o marido e duas filhas.

E foram dados como não provados os seguintes factos alegados:

A. A situação do imóvel obrigou o A. a acomodar e empacotar para evitar a sua destruição, bem como a desfazer-se de diversos pertences por não ter onde os guardar.

B. O que sucedeu, por exemplo, com livros, retratos, peças de decoração, recordações e mesmo roupas.

C. A acomodação provisória do A. em casa da filha obriga a grandes constrangimentos na organização do agregado familiar, que se viu obrigado a encaixotar diversos pertences para permitir acomodar os pais e avós.

A sentença julgou improcedente o pedido de indemnização com fundamentação do seguinte teor:

“No que respeita à compensação dos danos não patrimoniais que o autor igualmente peticiona dos réus, cumpre sublinhar que não logrou aquele demonstrar (pontos A. a C. dos factos não provados) que da desocupação do locado a que se viu obrigado em virtude da degradação da fracção que tomou de arrendamento lhe tenha causado desgosto e infelicidade tais que justifiquem a intervenção judicial no sentido de ver compensados tais estados de alma.

Assim, também este segmento do seu petitório não pode merecer provimento.”.

E, mais à frente, após apreciar e julgar procedente o pedido reconvencional de declaração da caducidade do arrendamento, acrescentou o seguinte:

“[O] autor-reconvindo não deduziu nos autos qualquer pedido contra os demandados, baseado na responsabilidade deles pela caducidade do arrendamento da fracção que tinha tomado de arrendamento; o pedido indemnizatório que formulou, conforme se referiu supra, tem como fundamento factos diversos, os quais, aliás, não se demonstraram.

Por isso, ainda que possa, em tese, afirmar-se que sobre os réus impenda a obrigação de compensar o autor pela cessação do contrato de arrendamento, decorrente da perda do locado, considerando que não foi deduzido qualquer pedido por aquele nesse sentido, nada mais resta senão declarar, aqui e agora, a caducidade do referido contrato.”.

Já no acórdão da Relação (cfr. páginas 23 a 25) o pedido indemnizatório por danos não patrimoniais foi apreciado como sendo reportado aos danos dessa natureza resultantes da caducidade do contrato de arrendamento, tendo sido rejeitado por não ter sido “demonstrada (…) a causa do abatimento do pavimento, razão pela qual não é possível estabelecer um nexo de causalidade entre esse evento e uma eventual inacção dos actuais senhorios na execução de obras destinadas a evitá-lo.”.

Nas conclusões de recurso, insurgem-se os recorrentes contra a decisão de improcedência do pedido indemnizatório pelas seguintes razões:

– “No que concerne à indemnização impetrada pelos AA., entendeu o douto aresto recorrido não existirem danos “que justifiquem a intervenção judicial no sentido de ver compensados tais estados de alma.”;

– O objeto da ação, mais do que um “prédio urbano”, um “imóvel” ou um “locado”, é uma casa de família com cinquenta anos de vivência e de histórias, a casa dos pais, a casa dos avós EE e FF onde cresceram e se fizeram quem são os membros da família C...;

– É neste enquadramento, e por apelo às regras da experiência comum e ao teor dos factos 6 a 20, que se deverá medir a pertinência e adequação da intervenção judicial na reparação dos danos;

– Para os recorrentes, octogenários, humildes e leigos na matéria, os “danos que [para o douto aresto recorrido] não justificam a intervenção judicial” são ver a degradar-se até à ruína aquele que é o seu lar, a casa onde sempre residiram, desde o seu casamento, há mais de cinquenta anos e da qual são agora escorraçados;

- Ao contrário do que sustenta o Venerando Tribunal Recorrido na sua errada conceção da repartição do ónus da prova – estão plenamente verificados todos os legais fundamentos da responsabilidade civil extracontratual, antes resultando a decisão recorrida ilegal por violação do n.º 1 do artigo 492.º do Código de Processo Civil”.” [negrito nosso]

Quid iuris?

Antes de mais, importa deixar claro que os elementos expostos demonstram que os danos não patrimoniais alegados e parcialmente provados correspondem aos danos resultantes da necessidade de, em Outubro de 2019, os locatários se mudarem para casa da sua filha devido à situação de inabitabilidade do locado; e não a eventuais danos não patrimoniais derivados da caducidade do contrato de arrendamento. Verifica-se, aliás, que, nas conclusões do recurso de revista acima reproduzidas, ao alegarem que «entendeu o douto aresto recorrido não existirem danos “que justifiquem a intervenção judicial no sentido de ver compensados tais estados de alma.”», incorreram os recorrentes no lapso de impugnar o teor da fundamentação da sentença (também acima reproduzido) e não o teor do acórdão da Relação do qual não consta tal afirmação.

Deste modo, e em conformidade com o princípio ínsito no n.º 1 do art. 609.º do CPC, apenas cabe pronúncia sobre o pedido indemnizatório pelos danos não patrimoniais resultantes da necessidade de, em Outubro de 2019, os locatários se mudarem para casa da sua filha devido à situação de inabitabilidade do locado, pedido esse que os autores cumularam com o pedido de condenação dos réus na realização de obras no locado.

Sobre tais danos não patrimoniais, e independentemente do juízo a fazer sobre o entendimento da sentença da 1ª instância segundo o qual os danos efectivamente provados (cfr. factos 17 a 21) não justificariam tutela jurídica (assim como independentemente da consideração da eventual relevância do invocado regime do art. 491.º, n.º 2, do CC, no âmbito da responsabilidade contratual), sempre o referido pedido indemnizatório terá de improceder. Com efeito, tal pedido, que os autores expressamente cumularam com o pedido de condenação dos réus na realização de obras (Cfr. o artigo 50.º da petição inicial: “Razão pela qual, cumulativamente com a condenação na realização das obras, deverão os RR. ser condenados a indemnizar o A. por tais danos.), não poderá proceder uma vez que o exercício do direito correspondente ao pedido de condenação dos réus a realizarem obras no locado foi considerado abusivo.

Decaindo, por abuso do direito (cfr. art. 334.º do CC), o dever de prestar (no caso, a obrigação de realização de obras por parte dos senhorios), não pode subsistir o dever de indemnização, sucedâneo do dever de prestar.

Conclui-se, assim, pela total improcedência das pretensões dos recorrentes.

8. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2025

Maria da Graça Trigo (relatora)

Catarina Serra

Afonso Henrique (com declaração de voto de vencido )


***


VOTO POR VENCIMENTO

Como se constata, a figura central que importa trazer à colação para o caso vertente é a do abuso de direito previsto no artº 334º do Código Civil/CC.

O abuso de direito tem como principal escopo impedir que a estrita aplicação da lei conduza a notória ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, comportando, nomeadamente, situações de desproporção grave entre o exercício do direito e o sacrifício por ele imposto a outrem.

É inquestionável, in casu, a desproporcionalidade entre a obrigação do senhorio em proporcionar ao inquilino o gozo temporário do locado e fazê-lo quando a retribuição pelo arrendamento é no valor de quatro euros/€4.

Contudo, essa desproporção é imputável a um arrendatário que começou a pagar essa quantia há mais de 50 anos?

Pensamos que não.

Deve-se sim, ao congelamento de rendas que vingou desde cerca de metade do século passado até aos anos 90 do mesmo século.

A Constituição da República estabelece no nº 3 do seu artº 65º que: “O Estado adoptará uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação”.

Provou-se que: “o facto de ter sido obrigado a deixar o seu lar, a casa que habita há mais de 50 anos, onde criou ou filhos e as netas, causa ao A, desgosto e que a casa da filha para onde foi viver num anexo é uma casa de ilha”cfr. motivação dos factos apurados.

Estando provado que o arrendatário não está condições económicas de proceder às obras urgentes que o locado obriga, e posteriormente exigir o seu ressarcimento ao senhorio, como compatibilizar o seu direito a viver no arrendado com a impossibilidade de exigir ao proprietário as obras que o locado necessita para ser dignamente habitável?

É neste ponto que discordamos do decidido nas instâncias, pois, embora julguemos inevitável a caducidade do contrato de arrendamento face à ruína do locado, não podemos deixar de reconhecer que o arrendatário sempre cumpriu a sua obrigação consubstanciada no pagamento duma renda.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça/STJ debruçou-se repetidamente sobre o instituto de abuso de direito, em situações em que se verifica o assinalado desequilíbrio entre os contratantes do arrendamento.

Temos como paradigmático, comparativamente com o caso em apreço, o acórdão do STJ de 5-5-2015, o qual reconhecendo abuso de direito na exigência de obras também conclui que: “Se a ré vive, há vários anos, sobressaltada, na sua casa de habitação – sítio privilegiado para o descanso e repouso –, com receio de quedas de estuque dos tectos, sofre dano não patrimonial, cuja gravidade, objectivamente considerada, com reflexos no seu bem-estar físico e psíquico, justifica e impõe a tutela do direito, mediante a fixação equitativa da quantia de € 4000, tal como arbitrado pela Relação.” – vide, https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0d5ddc4c0f41c06d80257e3d003c4b3c?OpenDocument

Mutatis mutandis, embora registada a notória desproporcionalidade entre o valor da renda e as obras necessárias para que a fracção em causa seja habitável, justifica-se, por maioria de razão, que o arrendatário seja indemnizado pelo constrangimento decorrente da perda de habitação, com tudo que isso tem de significante em termos de dignidade humana, num estado muito avançado da sua idade, nos termos do artº 486º nº 1 do CC (danos não patrimoniais).

Recorrendo à equidade computamos a indemnização no valor pedido de dez mil euros/€10.000,00, a que acrescem juros de mora, desde a citação dos RR até ao trânsito em julgado do presente acórdão.

Pelo exposto, decidia no sentido da procedência parcial da revista, e consequentemente:

1 – Declarava a caducidade do contrato de arrendamento em vigor, entre A. e RR., com a sua consequente extinção;

2 – E procedente a reconvenção, condenando os RR. a pagar ao A. uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, no valor de €10.000,00 acrescidas de juros de mora, devidos desde a citação até ao trânsito em julgado deste aresto.

Lisboa, 13-02-2025.

Afonso Henrique