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DECISÃO SURPRESA
Sumário
I – Existe decisão-surpresa quando embora a decisão tomada pelo tribunal fosse juridicamente possível, as partes não tinham obrigação de a prever e de, consequentemente, quanto a ela tomarem posição, porque essa questão não fora suscitada por nenhuma delas, sequer pelo tribunal, e coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que as partes o haviam feito. II – Existe decisão surpresa quando o tribunal, em sede de despacho-saneador, julga inepta a petição inicial por ausência de alegação de factos essenciais e por falta de pedido, quando a R. no seu articulado havia tão-só suscitado a questão da ineptidão da petição inicial por inteligibilidade do pedido e na contradição deste com a causa de pedir e não tendo o Tribunal, na audiência prévia, confrontado as partes do processo com a possibilidade de vir a julgar inepta a petição inicial por falta de alegação de factos essenciais e por falta de pedido.
Texto Integral
Relator: Des. José Cravo
1º Adjunto: Desª Ana Cristina Duarte
2º Adjunto: Des. Joaquim Boavida
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
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1 – RELATÓRIO
Na presente acção declarativa com processo comum[1], que AA, viúva, residente na Rua ..., ..., BB, divorciado, residente na Rua ..., ..., ..., CC, casado, residente na Rua ... cv, ..., DD, divorciada, residente em Avenida ... – CV, ... e EE, casado, residente na Rua ..., ..., instauraram em 31-12-2020 contra EMP01... & C.ª, S.A., com sede em ..., ..., findos os articulados, em 26-09-2024, foi proferido o seguinte despacho:
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- Adequação formal dos autos -
Considerando que, por um lado, os autos contêm todos os elementos necessários à decisão da causa e, por outro lado, que às partes já foi dada oportunidade de se pronunciar sobre a excepção de que se conhecerá, procede-se, ao abrigo do disposto nos art.ºs 6.º e 547.º do Código de Processo Civil, à adequação formal dos mesmos proferindo-se, imediatamente, despacho saneador – art.º 595.º do diploma em referência.
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- Valor da causa -
Em conformidade com o disposto nos art.ºs 296.º, 297.º n.ºs 1 e 2, 299.º n.º 1 e 306.º n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, fixa-se o valor da causa em 15.351,13 € (quinze mil trezentos e cinquenta e um euros e treze cêntimos).
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- Despacho saneador -
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território.
O processo é o próprio e as partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária.
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- Da nulidade do processado por ineptidão da petição inicial - AA, viúva, contribuinte fiscal n.º ...69, residente na Rua ..., ..., BB, divorciado, contribuinte fiscal n.º ...34, residente na Rua ..., ..., ..., CC, casado, contribuinte fiscal n.º ...50, residente na Rua ... cv, ..., DD, divorciada, contribuinte fiscal n.º ...44, residente em Avenida ... – CV, ... e EE, contribuinte fiscal n.º ...66, casado, residente na Rua ..., ..., intentaram a presente acção declarativa com processo comum contra EMP01... & C.ª, S.A., pessoa colectiva n.º ...17, com sede em ..., ....
Alegaram ser os únicos herdeiros de BB.
Que a Ré adquiriu à sociedade comercial AA EMP02..., S.A., pelo preço de 14.700,00 € (catorze mil e setecentos euros), o prédio rústico com a área de 30.000 m2 (trinta mil metros quadrados), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ...64 de ... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...60.º e na matriz predial urbana sob o artigo ...49.º da dita freguesia ....
No prédio supra descrito é granjeada vinha.
Por sua vez, a herança indivisa de BB, representada pelos Autores, é dona e legitima possuidora de um prédio rústico, com a área aproximada de 100.000 m2 (cem mil metros quadrados), com vinha e mato e com dois edifícios em ruínas, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ...05 de ... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...13.º da mesma freguesia, a confrontar, actualmente, do Norte com Quinta ... e FF, do Sul com Quinta ... e o prédio adquirido pela Ré, de Nascente com herdeiros de BB e de GG, com a Quinta ... e o prédio adquirido pela Ré, e de Poente com herdeiros de CC.
Que o prédio adquirido pela Ré é, como sempre foi, um prédio encravado e sem comunicação directa com qualquer caminho público, sendo que o acesso à via pública sempre se fez à custa do prédio dos Autores acima melhor identificado. E sempre, assim, por ali passaram, a pé e por veículo automóvel, os trabalhadores, colaboradores ou administradores da extinta A.A. EMP02..., S.A. ou a pessoa ou pessoas e seus trabalhadores ou colaboradores a quem esta cedeu a exploração da propriedade adquirida pela Ré, fosse para plantar a vinha, para cuidar da mesma ou colher os seus frutos e isto, continuamente e ao longo de mais de quarenta anos, à vista de toda a gente, com o conhecimento de todos, inclusive dos Autores e sem oposição destes ou de qualquer um dos seus antecessores, isto é, do referido BB e dos seus irmãos CC e BB ou da sua mãe GG, invocando, assim, a constituição de direito de servidão de passagem a favor do prédio adquirido pela Ré por usucapião fundada em posse contínua por mais de oitenta anos, com sinais visíveis e aparentes, pública, pacífica e de boa-fé.
Nem a vendedora, sociedade A.A. EMP02..., S.A. nem a compradora Ré EMP01... & C.ª, S.A. deram conhecimento aos Autores, antes da celebração do contrato de compra e venda por escritura pública, do projecto de venda, nem de qualquer das cláusulas do contrato, tão pouco a identificação do adquirente.
Terminaram peticionando:
a) Julgar-se que à herança indivisa de BB, NIF ...53..., aqui representada por todos os seus herdeiros e aqui AA., assiste o direito de preferência na venda efetuada do prédio identificado no artigo 3.º da petição;
b) Julgar-se vendido este mesmo prédio à herança indivisa de BB, representada pelos AA., mediante sub-rogação desta na posição jurídica da Ré EMP01..., SA, pela quantia de 14.700,00 € (catorze mil e setecentos euros) e condenar-se a Ré a reconhecer o direito de propriedade plena da herança indivisa de BB, aqui representada pelos AA., sobre o mesmo, mediante o reembolso à Ré EMP01..., SA da quantia supra mencionada, acrescida das despesas do ato da escritura, no montante de 306,53 €, imposto do selo, no montante de €117,60 e do IMT, no montante de 227,00 €, tudo o que perfaz o montante global de 15.351,13 € (quinze mil trezentos e cinquenta e um euros e treze cêntimos);
c) Julgar-se nulos todos os registos efetuados com base na escritura de compra e venda mencionada e, em consequência, ordenando o seu cancelamento.
Foi chamada a EMP03... S.A., pessoa colectiva número ...15, como interveniente principal na qualidade de única sócia da extinta sociedade A. A. EMP02..., S.A., por despacho datado de 14.06.2022, tendo aquela aderido, no essencial, à contestação da Ré primitiva.
Vejamos.
Nos presentes autos a questão está em saber se a herança indivisa de BB, aqui representada pelos Autores, tem o direito a adquirir o prédio identificado no artigo 3.º da petição inicial por força do direito de preferência invocado – previsto no art.º 1555.º do Código Civil.
Para ser possível a apreciação de tal direito, necessário se mostraria nos presentes autos que, primeiramente, se apurasse da existência do direito de servidão que está na base da causa de pedir; são os Autores que se apresentam a invocar a dita servidão de passagem a favor do prédio alienado sobre um prédio de sua propriedade – servidão a qual, de resto, os Réus refutam.
Ora, no que concerne a tal servidão verifica-se, por um lado, que os Autores não alegaram factos essenciais à respectiva constituição; por outro lado, não pediram, como corolário da acção, a constituição da servidão.
Prescreve o art.º 1543.º do Código Civil que a servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente, dizendo-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.
As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família (art.º 1547.º n.º 1 do Código Civil). Porém, as servidões legais (ou coactivas), sendo susceptíveis de serem coactivamente impostas, podem ainda ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa (art.º 1547.º n.º 2, do Código Civil), na falta de constituição voluntária[2].
Quanto às servidões coactivas, o art.º 1550.º n.º 1 do Código Civil consagrou o princípio de que os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos. Deste normativo resulta a exigência da verificação de três pressupostos, cabendo ao autor alegar e provar os factos idóneos ao seu preenchimento: a) a dominialidade do prédio dominante; b) que se trate de um prédio absoluta ou relativamente encravado; c) que o prédio serviente constitua um prédio rústico vizinho.
Quanto aos critérios legais de selecção do prédio sobre o qual poderá ser constituído um direito de servidão e do concreto trajecto por onde esta se desenvolverá rege o art.º 1553.º do Código Civil, o qual dispõe que a passagem deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram menor prejuízo, e pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios onerados, o que implica, como salientam Pires de Lima e Antunes Varela[3], que“(…) são dois os princípios estabelecidos neste artigo 1553.º. O primeiro refere-se à determinação do prédio por onde há-de estabelecer-se a comunicação com a via pública; o segundo ao lugar e ao modo de exercício da servidão uma vez fixado o prédio onerado. Amplia-se desta forma a doutrina do artigo 2310.º do Código de 1867, o qual, referindo-se apenas ao lugar por onde deveria efectuar-se a passagem, não resolvia directamente a questão prévia da escolha do prédio onerado, sempre que a comunicação com a via pública possa estabelecer-se por mais do que um prédio. Quando assim seja, e as duas das mais comunicações possíveis não envolvam excessivo incómodo ou dispêndio, compreende-se que a lei adopte, como critério selectivo ou de prioridade, o do menor prejuízo para o prédio onerado. Uma vez salvaguardado o interesse fundamental do proprietário do prédio dominante, não há, de facto, inconveniente nenhum em que se atenda aos legítimos interesses dos donos dos prédios sacrificados ou ameaçados pela passagem. Mas tanto para saber se há incómodo ou dispêndio excessivo numa ou noutra comunicação, como para determinar a suficiência ou insuficiência da comunicação, há que partir do uso efectivo dado ao prédio encravado (…)”.
Resulta assim que o art.º 1553.º do Código Civil pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos, por referência ao uso efectivamente dado ao prédio encravado: a) tratar-se do prédio (ou prédios) que sofra(m) menor prejuízo; b) escolhido o prédio, a servidão deverá desenrolar-se pelo modo e lugar menos inconvenientes para o prédio onerado.
Dito isto, refira-se que tem sido entendimento jurisprudencial maioritário[4] que cabe ao autor, por constituírem factos constitutivos do direito potestativo de constituição coactiva de uma servidão de passagem (cfr art.ºs 5.º n.º 1 do Código de Processo Civil e 342.º n.º 1 do Código Civil), alegar e provar factos susceptíveis de permitirem concluir que a solução que perfilha visa o prédio que sofre menor prejuízo e que o trajecto defendido se desenrolará pelo modo e lugar menos inconvenientes para o prédio onerado, a par da demonstração do uso efectivamente dado ao imóvel.
As servidões são reguladas, no que respeita à sua extensão e exercício, pelo respectivo título (cfr art.º 1564.º do Código Civil), compreendendo tal direito tudo o que é necessário para o seu uso e conservação (art.º 1565.º n.º 1 do Código Civil).
Ora, analisando a petição inicial vemos que os Autores não mencionam ser o seu prédio o qual sofre menores prejuízos com a alegada passagem nem concretizam o trajecto da servidão a constituir.
Ademais, não peticionam a constituição da servidão a qual, na sua tese, fundamenta o direito de preferência que se consubstancia na causa de pedir da presente acção.
Do que fica exposto facilmente se conclui que qualquer convite ao aperfeiçoamento da petição inicial nos termos do previsto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 590.º do Código de Processo Civil seria estéril e dilatório. Com efeito, a mesma padece de vícios com tal gravidade que tornam impossível a prolação de decisão definidora do conflito de interesses.
A causa de pedir corresponde aos factos jurídicos concretos de que emerge o direito invocado pelo autor, incumbindo-lhe expô-los na petição inicial (art.º 552.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil).
O pedido deve ser indicado com clareza, identificar o que se pretende com o procedimento submetido a juízo e ser o culminar lógico das razões alegadas. “A petição, tal como a sentença final, deve apresentar-se sob a forma de um silogismo, ao menos implicitamente enunciado, que estabeleça um nexo lógico entre as premissas e a conclusão” (António Santos Abrantes Geraldes in Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2.ª Edição revista e ampliada, Almedina, página 129).
Na petição inicial deve o autor expor os factos que fundamentam a sua pretensão e formular o pedido. Tais factos consubstanciam a causa de pedir, tal como prevista nos art.ºs 5.º e 552.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil. No caso dos autos verifica-se a falta de alegação de factos integradores dos fundamentos do pedido e do próprio pedido.
A fase dos articulados encontra-se finda e às partes já foi possibilitada a pronúncia quanto ao conhecimento da excepção em questão.
Face ao que se deixa exposto, por ausência de alegação de factos essenciais e falta de pedido, julgo inepta a petição inicial, nos termos do art.º 552.º n.º 1 alíneas d) e e) do Código de Processo Civil.
Nos termos do art.º 186.º n.º 1, do Código de Processo Civil, é nulo todo o processo quando seja inepta a petição inicial, o que se verifica, entre outras situações, quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir (n.º 2 alínea a) do referido preceito legal) ou ainda quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir (n.º 2 alínea b) do referido preceito legal). Trata-se de uma nulidade de conhecimento oficioso a qual, por constituir excepção dilatória, implica a absolvição do réu da instância, ao abrigo do disposto nos art.ºs 196.º, 278.º n.º 1 alínea b), 576.º n.º 2 e 577.º alínea b), todos do Código de Processo Civil.
Concluindo, julgo verificada a excepção dilatória de nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial e, em consequência, absolvo os Réus da instância.
Custas a suportar pelos Autores – art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.
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Inconformados com essa decisão, vieram os AA. interpor recurso de apelação contra a mesma, cujas alegações finalizaram com a apresentação das seguintes conclusões:
I - Não tendo o Tribunal confrontado as partes do processo, na audiência prévia, com a possibilidade de vir a julgar inepta a petição inicial por falta de alegação de factos essenciais e por falta de pedido, nem tendo essa questão sido suscitada por qualquer das partes, nem sido discutida nos articulados ou na audiência prévia, a decisão proferida é uma verdadeira “decisão surpresa”, uma vez que o Tribunal se pronunciou sobre algo que não podia conhecer sem ouvir as partes sobre a matéria em questão; II - A proibição da “decisão surpresa” reporta-se, fundamentalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo Tribunal, como é o caso dos presentes autos, já que nenhuma das rés suscitou a questão da ineptidão da p.i. com esses fundamentos: ausência de alegação de factos essenciais e falta de pedido. III - A violação do princípio do contraditório do artigo 3º, nº 3 do CPC, origina a nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, uma vez que o Tribunal não podia conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão, sem a prévia audição das partes – Cfr. o nº 1, alínea d) do artigo 615º do CPC. IV - O pedido é o efeito jurídico pretendido pelo autor (artº 581, nº 3 do CPC); “é a pretensão do autor (artº 552º do CPC); o direito para que ele solicita ou requer a tutela judicial e o modo por que intenta obter essa tutela (a providência judicial requerida)”. V - Nas ações de preferência o pedido a formular é, em primeiro lugar, o do reconhecimento do direito de preferência e, depois, o direito do autor de haver para si a coisa alienada. VI - A existência de uma servidão de passagem constituída, constitui um pressuposto, um dos fundamentos do direito de preferência e, como tal, os factos a ela relativos integram a causa de pedir e não o efeito jurídico que se pretende com a ação (o pedido). VII - Cabe aos autores a alegação dos factos constitutivos do efeito jurídico pretendido – o direito de preferência –, isto é, “dos factos que integram a previsão da norma ou normas materiais que estatuem o efeito pretendido” – cfr. o artº 342, nº 1 do CPC. VIII - Nos artigos 3º a 15º da p.i. os AA. alegaram os factos relativos à venda do prédio dominante, os factos demonstrativos do encrave e da constituição da servidão legal de passagem por usucapião e, ainda, que os preferentes são proprietários do prédio onerado com a servidão constituída (Cfr. os artºs 3º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º e 13º da p.i. e os artºs 94º a 112º da réplica). IX - Nos artigos 14º e 15º da p.i. os AA. alegaram que não lhes foi dado conhecimento do projeto e das condições essenciais do negócio e que só tomaram conhecimento dessa venda no decurso do segundo semestre do ano de 2020, ou seja, menos de seis meses antes da propositura da presente ação. X - Nos artigos 9º a 13º da p.i. os AA. descreveram pormenorizadamente o leito e os percursos da servidão de passagem, a forma como esta onera o seu terreno e o modo como ela se estabeleceu ao longo dos anos com o conhecimento e o consentimento dos antepassados dos AA., tendo até junto aos autos documentos demonstrativos dessa servidão de passagem e das suas características e percursos. XI - “O conceito de servidão legal, para os fins previstos no art. 1555º do CC, abrange as servidões constituídas por qualquer título, mas que, se não fosse a existência desse título, podiam ser judicialmente impostas, e não apenas as que tenham por título a sentença, concedendo-se, nessa medida, o direito de preferência aos proprietários de prédios onerados com o encargo legal de constituição de servidão, encontrando-se esta efetivamente constituída, qualquer que tenha sido o título, nomeadamente por usucapião”. XII - A factualidade alegada nos artigos 8º a 13º da p.i. demonstram inequivocamente a constituição de uma servidão de passagem por usucapião, uma vez que o prédio alienado não confronta com qualquer caminho público, sendo, por isso, um prédio encravado. XIII - O Despacho Saneador/Sentença de que ora se recorre violou as normas dos artigos 3º, nº 3 e 615º, nº 1, alínea d); os artigos 552º e 581º, nº 3, todos do Código do Processo Civil e os artigos 342º, nº 1, 1555º e 1410º do Código Civil. Nestes termos e com o douto suprimento do muito omitido, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o despacho saneador/sentença recorrido, com o que se fará JUSTIÇA
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Notificada do recurso apresentado pelos AA., a R. apresentou a sua resposta, que finalizou com a apresentação das seguintes conclusões:
A) A decisão recorrida ao julgar inepta a petição inicial por falta de alegação de factos essenciais e por falta de pedido, não incorreu em nulidade por violação do princípio do contraditório consignado no art.º 3.º, 3, do Código de Processo Civil (CPC), uma vez que não houve qualquer decisão surpresa. B) A Ré EMP01... havia na sua contestação, nos art.ºs 96.º a 100.º, suscitado a questão de que não haviam sido alegados pelos Autores factos suficientes para que fosse possível determinar a servidão de passagem e o direito que os autores se arrogam. C) Os Recorrentes, na sua réplica (nomeadamente nos art.ºs 93.º a 121.º) pronunciam-se, em primeiro lugar, sobre a “inexistência de encrave” e de seguida sobre a “alegada inexistência de servidão legal de passagem”. D) As partes tiveram a oportunidade de, sem qualquer limitação, se pronunciar oralmente na audiência prévia sobre exceções que conduziriam à decisão imediata da causa, tendo sido alertadas para isso, abrangendo todos os pressupostos substanciais do direito de preferência, nomeadamente, e no que respeita ao caso em apreço, quanto à (eventual) constituição da servidão de passagem. E) Não houve surpresa alguma: as partes tinham sido advertidas de que o Tribunal estava em condições de proferir decisão que poria termo à causa e discutiram essas matérias também na audiência de partes, nomeadamente a constituição da servidão. F) No caso concreto, como vimos, as partes configuraram a questão adotada pelo Tribunal, tendo podido contrapor os seus argumentos.
Por outro lado, G) Os Recorrentes entendem que não existe qualquer ineptidão da petição inicial, pois teriam alegado os factos devidos e formularam os pedidos corretos, atendendo ao efeito jurídico que pretendiam alcançar. H) As servidões legais (ou coactivas), sendo susceptíveis de serem coactivamente impostas, são constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa (art.º 1547.º n.º 2 do Código Civil), na falta de constituição voluntária. I) Cabe assim ao autor, «alegar e provar factos susceptíveis de permitirem concluir que a solução que perfilha visa o prédio que sofre menor prejuízo e que o trajecto defendido se desenrolará pelo modo e lugar menos inconvenientes para o prédio onerado, a par da demonstração do uso efectivamente dado ao imóvel». J) Como referem Antunes Varela e Pires de Lima (Código Civil anotado, III, pág. 628), “as servidões legais (…) podem converter-se em verdadeiras servidões por uma de três vias: por negócio jurídico, se as partes acordam na sua constituição; por decisão judicial (sentença constitutiva), na falta de acordo; por decisão administrativa, quando o suprimento do acordo, nos termos da lei, compete às autoridades administrativas». K) Mesmo que a servidão tivesse sido - e não foi - constituída por usucapião, então claramente não há direito de preferência, porque não estamos perante uma servidão legal de passagem, como refere Menezes Cordeiro (Servidão Legal de Passagem e Direito de Preferência, na Revista da Ordem dos Advogados, 50º, 1990, III, pp. 574 e ss), e jurisprudência dos Tribunais superiores. L) Como decidiu lapidarmente o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24/Fev/2015 (proc. 357/13.3TBTND.C1): “A usucapião não origina servidões legais, não lhes sendo, por isso, aplicável o regime próprio das servidões dessa espécie” (destaque nosso). M) Acresce que a constituição da servidão por usucapião sempre seria uma faculdade que poderia ser imposta pelo prédio dominante (neste caso, o da Ré Recorrida) ao prédio serviente (o dos Autores Recorrentes), e nunca o inverso. N) Porém, o certo é que os Recorrentes não alegaram fosse o que fosse quanto a saber (i) que o seu prédio é aquele que sofre o menor prejuízo para uma eventual passagem, relativamente a outros prédios vizinhos aí existentes, nem (ii) qual o trajeto por onde se desenvolverá(ria) a passagem e que seria a menos inconveniente para o prédio serviente. O) E uma vez que a servidão legal de passagem, nos termos do previsto no art.º 1547.º, 2, do Código Civil, na falta de constituição voluntária (não alegada), só se constituiria através de sentença judicial, teria de haver um pedido formulado para esse efeito, que não foi feito. P) Se o exercício do direito de preferência depende forçosamente do facto que o prédio dos preferentes esteja onerado com servidão de passagem, então, nesse caso, tem que ser formulado pedido de declaração e reconhecimento que o prédio dos recorrentes está onerado com essa servidão. Q) Não tendo sido formulado o pedido quanto ao reconhecimento da constituição da servidão, não pode o Tribunal dele conhecer e declarar a sua existência, ao abrigo do artigo 608.º, n.º 2 do CPC. R) Em suma, a mera alegação da existência e constituição de um direito sem alegação de factos que permitam chegar a tal conclusão e sem o peticionar do reconhecimento da existência desse direito, torna a Petição Inicial inepta como bem concluiu a sentença recorrida.
Nestes termos, e nos mais de Direito, aplicáveis, deve o presente recurso ser considerado totalmente improcedente, e em consequência ser confirmada a sentença recorrida, assim se fazendo sã e correcta J U S T I Ç A !
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A Exmª Juiz a quo proferiu despacho a admitir o interposto recurso, tendo-se pronunciado quanto à questão da suscitada nulidade da sentença[5], providenciando pela subida dos autos.
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Foram facultados os vistos aos Exmºs Adjuntos.
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Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2 – QUESTÕES A DECIDIR
Como resulta do disposto no art. 608º/2, ex vi dos arts. 663º/2, 635º/4, 639º/1 a 3 e 641º/2, b), todos do CPC, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Assim, para além da questão suscitada da nulidade da sentença por constituir uma “decisão-surpresa” e por violação ao disposto no art. 615º/1, d) do CPC, a questão a decidir consiste em aferir se o despacho supra descrito deve ser revogado e substituído por outro, nos termos pedidos pelos recorrentes.
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3 – OS FACTOS
Os pressupostos de facto a ter em conta para a pertinente decisão são os que essencialmente decorrem do relatório que antecede, passando a transcrever-se os termos da petição inicial aqui em causa, bem como da contestação (na parte em que é invocada a Nulidade por ineptidão da petição inicial) e da réplica (na parte da pronúncia quanto à excepção da ineptidão da p.i.), para melhor compreensão:
AA, viúva, portadora do cartão de cidadão n.º ... válido até 23/06/2022 e número de identificação fiscal ...69, residente em Rua .... ... ...; BB, divorciado, portador do cartão de cidadão n.º ... válido até 31/10/2028 e número de identificação fiscal ...34, residente em Rua ..., ..., ... ...; CC, casado, portador do cartão de cidadão n.º ... válido até 09/05/2028 e número de identificação fiscal ...50, residente em Rua ... cv, ... ...; DD, divorciada, portadora do cartão de cidadão n.º ... válido até 12/07/2029 e número de identificação fiscal ...44, residente em Avenida ... – CV, ... ...; EE, portador do cartão de cidadão n.º ... válido até 02/01/2030 e número de identificação fiscal ...66, casado, residente em Rua ..., ... .... VÊM PROPOR CONTRA
“EMP01... & Cª, SA”, Pessoa Coletiva n.º ...17, com sede em ..., freguesia ..., concelho ... e Comarca do Porto;[6] AÇÃO DECLARATIVA CONSTITUTIVA, COM PROCESSO COMUM E SOB FORMA ÚNICA (Artºs 10º, nº 3, alínea c), 546.º e 548.º do CPC),
nos termos e com os seguintes fundamentos: 1.º
No passado dia ../../2015 faleceu, no estado de casado com a 1ª Autora, BB, NIF ...47, com última residência na Rua .... na Cidade ..., o qual deixou como sucessores, além da sua mulher (1º Autora), os seus filhos BB, CC e DD (os 2º a 4º Autores) e o seu neto EE (5º Autor), filho do seu filho pré-falecido HH, - cfr. Docs. nºs 1 e 2 ao diante juntos e aqui dados por reproduzidos 2º
Pelo que os Autores são todos e os únicos herdeiros de BB, assim cabendo a todos eles (na qualidade de mulher, filhos e neto do autor da sucessão) exercerem, em conjunto, os direitos relativos à herança indivisa de BB e daí a sua legitimidade para a presente ação - cfr. o art.º 2091.º do Código Civil e os Docs. nºs 1 e 2 ao diante juntos e aqui dados por integrados; Isto posto, 3.º
No dia 30 de outubro de 2015, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial da Notária II, a Ré “EMP01..., S.A.” adquiriu à, entretanto extinta, sociedade “A.A. EMP02..., SA”, que usou o número de pessoa coletiva ...72 e teve a sua sede no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., pelo preço de €14.700,00 (catorze mil e setecentos) euros, o prédio rústico ( erradamente designado por prédio misto), com a área de 30.000 M2, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ...64 de ... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...60 e na matriz predial urbana sob o artigo ...49 da dita freguesia ... - cfr. Docs. n.ºs 3 a 6 ao diante juntos e aqui dados por reproduzidos, 4.º
Sendo que, então e agora, a natureza e a composição do referido prédio estão erradas uma vez que este é um prédio rústico, com vinha duriense e monte e dois ou três edifícios completamente em ruínas, isto é, com paredes derrubadas, sem telhado, portas, janelas, soalho, instalações sanitárias, cozinha, canalização de água, rede elétrica ou de saneamento e, por isso mesmo, totalmente impróprios para qualquer utilização e muito menos para neles se poder habitar - cfr. Docs. 7 a 9 ao diante juntos 5.º
Estado de degradação esse que dura há mais de 40 e 50 anos, pelo que os referidos edifícios, desde pelo menos há 50 anos que não são objeto de utilização alguma, seja como edifícios de habitação ou para qualquer outro fim. - cfr. Docs. nº 7 a 9 juntos; 6º
Sendo que, pelo contrário, a vinha ali existente – plantada pelos finais dos anos 70 – continua, ano após ano, a ser granjeada e a produzir uvas de boa qualidade. Por sua vez, 7.º
A herança indivisa de BB, aqui representada pelos Autores, é dona e legitima possuidora de um prédio rústico, com a área aproximada de 100.000 M2, a vinha e mato e com dois edifícios em ruínas, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a ficha n.º ...05 de ... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...13 da mesma freguesia, a confrontar, atualmente, do norte com Quinta ... e FF; do sul com Quinta ... e o prédio melhor identificado no artigo 3.º desta p.i.; do nascente com herdeiros de BB e de GG, com a Quinta ... e o prédio melhor identificado no artigo 3º desta p.i. e do poente com herdeiros de CC - cfr. docs. nºs 10 a 12 ao diante juntos e aqui dados por reproduzidos. Acontece que, 8.º
O prédio adquirido pela Ré “EMP01..., S.A.” é, como sempre foi, um prédio encravado e sem comunicação direta com qualquer caminho público, pois confronta pelo norte e poente com prédio rústico que é pertença da herança indivisa de BB e supra melhor identificado; pelo nascente com a Quinta ... e pelo Sul com a Quinta ... - cfr. docs. nºs 4 e 10 a 12 ao diante juntos e aqui dados por reproduzidos; 9.º
Sendo que o acesso à via pública sempre se fez à custa do prédio dos Autores acima melhor identificado, primeiro e até 1978/1980 por um caminho de servidão de passagem com a largura média de 1,5/ 2 m, e uma extensão aproximada, dentro do prédio dos AA., de 400 metros lineares, com a orientação sul-norte, que se iniciava a sul no prédio melhor identificado no artigo 3º desta p.i. e seguia, dentro do prédio dos AA., no sentido do norte até junto de dois edifícios em ruínas que ainda pertencem aos AA. e daí em diante e sempre em direção ao norte, pelos prédios de outros proprietários e até à sua confluência com a Estrada ..., ... que liga .... - cfr. doc. nº 13 ao diante junto; 10.º
Passando a servidão de passagem, pelo menos a partir de 1978/80, a fazer-se por um caminho com a largura média de 2,5/3m que tem seu início a poente do prédio da Ré na dita Estrada ..., ... e daí em direção ao nascente por 460 metros lineares, fletindo depois para nordeste (junto ao prédio de FF) numa extensão aproximada de 400 metros lineares e até ao terreno dos AA. e dos edifícios em ruínas de sua propriedade e daí, e em grande parte por leito novo, em direção ao nascente, sempre na confrontação do prédio dos AA. com o leito do antigo caminho de servidão e com a Quinta ..., por uma extensão de 450 metros lineares e daí, igualmente sempre dentro do prédio dos AA., em direção a sul numa extensão aproximada de 140 metros lineares até ao acesso de entrada ao prédio melhor identificado no artigo 3.º desta p.i. - cfr. Docs. nºs 14, 15 e 16 ao diante juntos e aqui dados por integrados; 11.º
E sempre, assim, por ali passaram, a pé e por veículo automóvel, os trabalhadores, colaboradores ou administradores da extinta A.A. EMP02..., S.A. ou a pessoa ou pessoas e seus trabalhadores ou colaboradores a quem esta cedeu a exploração da propriedade melhor identificada no artigo 3º desta p.i., fosse para plantar a vinha, para cuidar da mesma ou colher os seus frutos e isto, continuamente e ao longo de 1, 5, 10, 20, 30 e mais de 40 anos, à vista de toda a gente, com o conhecimento de todos, inclusive dos AA. e sem oposição destes ou de qualquer um dos seus antecessores, isto é, do referido BB e dos seus irmãos CC e BB ou da sua Mãe D.ª GG e, 12.º
Assim se constituiu, por usucapião fundada em posse continua por mais de 15, 20, 30, 50 e 80 anos, com sinais visíveis e aparentes, pública, pacífica e de boa fé, o direito de servidão de passagem a favor do prédio melhor identificado no artigo 3.º desta p.i., o qual foi propriedade primeiro, da senhora D.ª JJ que o vendeu, em 1949, à “Sociedade dos Vinhos EMP04..., Sucessor limitada”, que por sua vez o vendeu, em 1973, à sociedade “A..A EMP02..., S.A” que, finalmente, cedeu a titularidade do direito de propriedade à Ré “EMP01..., S.A” a qual, contudo, nunca o ocupou ou agricultou até agora, uma vez que o dito prédio está na posse e fruição de uma terceira pessoa. - cfr. Docs. nºs 14 a 16 ao diante juntos; 13.º
Ora, esta servidão de passagem onera o prédio dos AA. desde tempos imemoriais, mas certamente, pelo menos, há mais de 10, 30, 40, 50 e 80 anos, em virtude do prédio identificado no artigo 3.º desta p.i. não ter acesso direto à via pública estando, assim e desde sempre, encravado. 14.º
Acontece que nem a vendedora – a extinta sociedade “A.A. EMP02..., SA” – nem a compradora a aqui Ré “EMP01..., S.A”, deram conhecimento aos AA., antes da celebração de escritura do contrato de compra e venda referida no artigo 3.º desta p.i., do projeto de venda, como não lhes comunicaram, por qualquer forma, as cláusulas (preço, condições de pagamento, etc.) do respetivo contrato nem, tão pouco, a identificação do terceiro adquirente. 15.º
E foi só no decurso do segundo semestre do ano de 2020 que, com grande espanto seu, os AA. tomaram conhecimento que a Ré “EMP01..., S.A” havia adquirido, por meio de contrato de compra e venda e pelo preço de €14.700,00 (catorze mil e setecentos euros), o prédio supra identificado no artigo 3.º desta p.i. - cfr Doc.s nºs 3 e 4 ao diante juntos. 16.º
Tendo a Ré “EMP01..., S.A.” despendido, a título de despesas devidas pela realização da escritura pública e do imposto do selo devido, respetivamente, as quantias de €306,53 (trezentos e seis euros e cinquenta e três cêntimos) e €117,60 (cento e dezassete euros e sessenta cêntimos) - cfr. Docs. nºs 17 e 18 ao diante juntos e aqui dados por integrados e, 17.º
Pagando, ainda, a Ré “EMP01..., S.A.”, a título de IMT, pelos atos que a este imposto estavam sujeitos, a quantia de €227,00 (duzentos e vente e sete euros). - cfr. Doc. nº 19 ao diante junto e aqui dado por reproduzido. Desta forma, 18.º
A, hoje extinta, sociedade “A.A. EMP02..., S.A” vendeu à Ré “EMP01..., S.A.” o prédio melhor identificado no artigo 3º desta p.i., pelo que, os proprietários do prédio onerado com a servidão de passagem, tem direito de preferência no caso de venda, como aconteceu, do prédio dominante. - cfr. o artigo 1555º do Código Civil. Pelo que, 19.º
Nos termos do artigo 1410.º do Código Civil têm os AA. “o direito de haver para si” o prédio alienado, o que pretendem efetuar com a presente ação, em relação ao prédio rústico melhor identificado no artigo 3.º desta p.i., uma vez que este foi objeto de venda e por se tratar de um prédio encravado que beneficia de uma servidão de passagem constituída, por usucapião, e que onera à mais de 5, 10, 20, 40 e mais de 60 anos o prédio dos AA. melhor identificado no artigo 7º desta p.i.
Nestes termos e nos demais do Direito, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada e por via dela:
a) Julgar-se que à herança indivisa de BB, NIF ...53..., aqui representada por todos os seus herdeiros e aqui AA., assiste o direito de preferência na venda efetuada do prédio identificado no artigo 3º desta petição; b) Julgar-se vendido este mesmo prédio à herança indivisa de BB, representada pelos AA., mediante sub-rogação desta na posição jurídica da Ré EMP01..., SA, pela quantia de €14.700,00 (catorze mil e setecentos euros) e condenar-se a Ré a reconhecer o direito de propriedade plena da herança indivisa de BB, aqui representada pelos AA., sobre o mesmo, mediante o reembolso à Ré EMP01..., SA da quantia supra mencionada, acrescida das despesas do ato da escritura, no montante de €306,53 euros, imposto do selo, no montante de €117,60 e do IMT, no montante de €227,00 euros, tudo o que perfaz o montante global de €15.351,13 ( quinze mil trezentos e cinquenta e um euros e treze cêntimos); c) Julgar-se nulos todos os registos efetuados com base na escritura de compra e venda mencionada e, em consequência, ordenando o seu cancelamento; Para Tanto: Requerem a citação da Ré para contestar, querendo, no prazo de trinta dias e sob cominação legal. Valor: €15.351,13 (quinze mil trezentos e cinquenta e um euros e treze cêntimos); Juntam: Cinco procurações, DUC e comprovativo de pagamento da taxa de justiça que é devida; Mais declaram que, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 1410º do Código Civil, irão proceder ao depósito do preço devido, acrescido das despesas com a escritura, Imposto do Selo e IMT; Requerimento Probatório: A) Requerem a junção aos autos de 20 documentos; B) Requerem, nos termos dos artigos 490.º e seguintes do CPC, a Inspeção Judicial ao local; C) Requerem o depoimento das testemunhas infra identificadas, cuja notificação desde já se requer:
(…)
* * *
EMP01...., S.A., Ré nos autos de acção com processo comum, em que são autores AA, BB, CC, DD, EE,
apresenta,
ao abrigo do disposto no art.º 569.º do Código de Processo Civil,
a sua CONTESTAÇÃO,
nos termos e com os seguintes fundamentos:
I – POR EXCEPÇÃO Nulidade por ineptidão da petição inicial 1.º
A presente acção visa exercer um pretenso direito preferência de que os autores afirmam ser titulares, na sua qualidade de herdeiros de BB. 2.º
Assim, pretendem que a propriedade que foi transmitida para a aqui contestante passe, por força de sentença, a ser sua. 3.º
Contudo, não é isso que peticionam. 4.º
Os autores requerem que, na procedência da acção, venha a:
«a) Julgar-se que à herança indivisa de BB, NIF ...53..., aqui representada por todos os herdeiros e aqui AA, assiste o direito de preferência na venda efectuada do prédio identificado no artigo 3.º desta petição; «b) Julgar-se vendido este mesmo prédio à herança indivisa de BB, representada pelos AA., mediante sub-rogação desta na posição jurídica da EMP01..., S.A. (…). 5.º
Porém tal afigura-se impossível. 6.º
A herança indivisa não pode ser objecto dessa atribuição, nem a herança indivisa poderia comprar o prédio. 7.º
Apenas os titulares da herança poderiam comprar o prédio, pois a herança indivisa não tem personalidade jurídica nem pode ser objecto de direitos e deveres. 8.º
Aliás, a herança indivisa mas já aceite (o que aparentemente seria o caso), nem sequer goza de personalidade judiciária [art.º 12.º, a) do Código de Processo Civil]. 9.º
Deste modo, ainda que se verificasse a procedência da causa de pedir, nunca poderia o pedido proceder pois não poderia atribuir-se o prédio a uma entidade que não tem personalidade jurídica. 10.
Assim, a petição é inepta não só porque o pedido é ininteligível, como também é contraditório com a causa de pedir [art.º 186.º, 2, al. a) e b), do Código de Processo Civil], 11.º
O que é causal de nulidade de todo o processo (art.º 186.º, 1, do mesmo Código). 12.º
A nulidade do processo por ineptidão da petição inicial é uma excepção dilatória que conduz à abstenção do conhecimento do mérito da causa e à absolvição dos Réus da instância e tal excepção é de conhecimento oficioso pelo tribunal, conforme os artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil.
(…)
* * *
(…) 50.º
Uma vez que os AA. “apenas podiam exercer o direito de preferência em questão em nome e em representação da herança, que não em nome e no interesse pessoal”, logo o prédio alienado – uma vez que o direito de preferência pertence à herança – tem de ingressar no património da herança[7], e terá, assim, de improceder a invocada nulidade da petição inicial.
(…)
* * *
Transcreve-se, ainda, da acta da audiência prévia o seguinte:
(…)
De seguida pela Mm.ª Juiz foi ordenado que se consigne o seguinte:--- Por forma a evitar uma decisão surpresa, proibida por lei, propõe-se aos Ilustres Mandatários das partes que, aproveitando-se a convocatória e a sua presença, se alargue o objecto da presente diligência por forma a poderem debater as suas posições nos termos previstos pela al. b), n.º 1 do art.º 591º do C.P.C..
*
Pelos Ilustres Mandatários presentes foi referido, não obstante não terem sido convocados para o efeito, aderirem à proposta do Tribunal.
*
Na sequência, pela Mm.ª Juiz foi proferido o seguinte despacho:---
Determino que a presente audiência prévia se destine, também, à finalidade prevista na alínea b) do al. b), n.º 1 do art.º 591º do C.P.C..
Notifique.
Do anterior despacho foram todos os presentes devidamente notificados.---
*
De seguida, a Mm.ª Juiz questionou os Ilustres Advogados se precisavam de algum tempo para preparar as suas intervenções, ao que os mesmos responderam pretender dispor de cerca de dez minutos, o que lhes foi concedido.
Passados alguns minutos, pela Mm.ª Juiz foi concedida a palavra a cada um dos Ilustres Mandatários, seguindo-se um breve debate o qual foi gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal.---
(…)
*
4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Da nulidade da sentença, por constituir uma “decisão-surpresa”
Entendem os recorrentes ser nula a sentença recorrida, que constituiu uma decisão surpresa.
Com o que discorda a recorrida.
Quid iuris?
Como é sabido o princípio do contraditório é um dos princípios basilares que norteiam o processo civil nacional e em si mesmo é uma decorrência do princípio da igualdade das partes.
Por via deste princípio exige-se, antes de mais, que instaurada determinada acção, o demandado tenha conhecimento de que contra si foi formulado um pedido, dando-lhe oportunidade de defesa. Esta finalidade é atingida pela citação do demandado para a acção ou para a execução ou com a notificação do mesmo para o incidente que contra ele é instaurado.
Depois exige-se que ao longo de toda a tramitação do processo, qualquer das partes tenha conhecimento das iniciativas ou pretensões deduzidas pela outra parte, com a inerente possibilidade de se pronunciar antes de ser proferida a respectiva decisão.
Como é bom de ver, só mediante a realização destas duas exigências que se acabam de enunciar se logrará assegurar uma efectiva igualdade de tratamento das partes ao longo de todo o processo.
A razão de ser do princípio do contraditório radica, ainda, na circunstância de perante a “estruturação dialética ou polémica do processo”, em que os pleiteantes apresentam interesses ou opiniões contraditórias, se esperar que da “discussão nasça à luz” e que, consequentemente, “as partes (ou os seus patronos), integrados no caso e acicatados pelo interesse ou pela paixão, tragam ao debate elementos de apreciação (razões e provas) que o juiz, mais sereno mas mais distante dos factos e menos activo, dificilmente seria capaz de descobrir por si”[8], pelo que, além de ser condição para se assegurar a igualdade de tratamento dos litigantes, o princípio do contraditório traz vantagens inequívocas em sede de descoberta da verdade material.
Esta vertente do princípio do contraditório, entendido como o direito de conhecimento de pretensão contra si deduzida e o direito de pronúncia prévia à decisão, corresponde à concepção tradicional deste princípio e tem consagração legal na segunda parte do nº 1 e no nº 2 do art. 3º do actual vigente CPC[9].
Nesta concepção tradicional o princípio do contraditório tem como escopo principal a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia.
No entanto, como tem sido posto em destaque pela doutrina e pela jurisprudência, embora a concepção tradicional do princípio do contraditório continue válida e tenha acolhimento legal no actual vigente processo civil, nele adoptou-se uma concepção ampla de contrariedade ao estatuir-se no art. 3º/3 do CPC que “o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Mediante a consagração desta norma consagra-se no âmbito do processo civil o princípio constitucional da proibição da indefesa, associada à regra do contraditório, visando-se conferir às partes uma efectiva participação no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão, proibindo-se ao juiz a prolação de qualquer decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferido às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efectiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar[10].
Nesta concepção ampla do princípio da igualdade, em que se proíbe a indefesa e, nessa medida, a prolação de decisões-surpresa, visando-se assegurar às partes o direito de influenciarem o rumo do processo e a decisão nele a proferir, o escopo principal do princípio do contraditório, contrariamente ao que acontece na concepção tradicional deste princípio, deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo do direito das partes de influírem activa e decididamente no desenvolvimento e no êxito do processo[11].
Esta vertente positiva do princípio do contraditório, tal como todos os outros princípios, não tem, no entanto, um sentido absoluto e inelutável.
Na verdade, é o próprio art. 3º/3 do CPC que admite que esse princípio possa ser afastado nos casos de “manifesta desnecessidade”.
Note-se que a lei não esclarece quais são os casos em que o juiz pode afastar o princípio do contraditório por o respectivo cumprimento ser manifestamente desnecessário, cumprindo à doutrina e à jurisprudência preencher este conceito indeterminado, tendo sempre presente a finalidade central por ele prosseguido no âmbito do processo e as finalidades que o legislador visa acautelar com a consagração legal do mesmo.
Nesta sede, Abrantes Geraldes sustenta que são limitadas as situações enquadráveis nesse conceito genérico, em que o juiz fica legitimado a afastar o cumprimento do princípio do contraditório com fundamento em “manifesta desnecessidade”, apontando como exemplos do afastamento legítimo do mesmo: a) o indeferimento de qualquer nulidade invocada por uma das partes; b) em matéria de procedimentos cautelares, quando seja necessário prevenir a violação do direito ou garantir o resultado útil da demanda[12].
Por sua vez, Lebre de Freitas, João Rendinha e Rui Pinto sustentam que o contraditório prévio pode ser dispensado em procedimentos cautelares, na execução, em que a penhora é, em certos casos, realizada sem audiência prévia do executado, propugnando que igualmente não deve ter lugar o convite dirigido às partes para discutirem uma questão de direito quando as mesmas “embora não tenham invocado expressamente nem referido o preceito legal aplicável, implicitamente o tiveram em conta sem sombra de dúvida, designadamente, por ter sido apresentada uma versão fáctica não contrariada que manifestamente não consentia outra qualificação”[13].
Como é bom de ver, a observância do principio do contraditório nesta dimensão positiva “tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que o tribunal possa conhecer oficiosamente e que nenhuma das partes suscitou ao longo dos autos: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com a concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso – que nelas entenda dever basear a decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa seja no plano meramente processual, deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta necessidade”[14].
No entanto, se o princípio do contraditório nesta dimensão positiva de conferir às partes o direito de poderem influenciar activamente o rumo do processo e a decisão a proferir assume especial relevância no âmbito das questões de conhecimento oficioso do tribunal, o seu campo de aplicação não se esgota nesses casos, na medida em que esta dimensão positiva do princípio do contraditório é aplicável ao longo de todo o processo.
Além disso, impõe-se afinar o conceito de “manifesta desnecessidade” tendo presente que casos existem em que, não obstante se tratar de questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, estas tinham obrigação de prever que o tribunal podia decidir tais questões em determinado sentido, como veio a decidir, pelo que se não as suscitaram e não cuidaram em as discutir no processo, sib imputet, não podendo razoavelmente considerar-se que, nesses casos, a decisão proferida pelo tribunal configure uma decisão-surpresa.
Deste modo é que a jurisprudência nacional tem considerado que a decisão-surpresa a que se reporta o art. 3º/3 do CPC, pressupõe que a parte seja apanhada em falta por uma decisão que embora pudesse ser juridicamente possível, não estivesse prevista nem tivesse sido configurada por aquela[15].
Se por hipótese, numa acção para ressarcimento de um lesado com fundamento na responsabilidade civil extracontratual decorrente de acidente de viação, o autor pede, com base na culpa efectiva do demandado, o pagamento de determinada quantia, e o tribunal, na sequência da audiência de julgamento e após alegações de direito das partes em que cada uma sustenta que a culpa deve ser atribuída à contraparte, acaba por decidir que cada uma delas contribuiu com uma quota de 50% para a produção do evento danoso e fixa em metade a indemnização da quantia peticionada pelo demandante, ou conclui que, em caso de colisão de veículos em que não logrou apurar as concretas circunstâncias em que se deu essa colisão, concluiu pela aplicação ao caso das regras do instituto da responsabilidade pelo risco, e condena o demandado a indemnizar o demandante em função dessas regras, nestes casos, não existe qualquer decisão-surpresa que exigisse a observância do princípio do contraditório a que alude o art. 3º/3 do CPC.
Com efeito, a decisão tomada pelo tribunal não só é emanação dos factos alegados e debatidos pelas partes, em que o tribunal se cingiu a esses factos, sem recurso a factos novos não alegados por aquelas, como o enquadramento jurídico feito pelo tribunal consubstancia algo que aquelas previram ou, pelo menos, tinham a obrigação legal de prever como possível, uma vez que quem instaura uma acção de indemnização tendo em vista obter a indemnização pelos danos sofridos emergentes de acidente de viação com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, imputando ao demandado a culpa exclusiva pelo acidente, que nega essa culpa, antes a imputando ao demandante, não pode apartar-se da hipótese de o tribunal, em face da discussão da causa, vir a optar por uma partição de culpas ou pelo risco na produção do acidente.
Da mesma forma, instaurada uma determinada acção com fundamento no incumprimento de um contrato-promessa e imputando cada um dos pleiteantes esse incumprimento à sua contraparte, tendo cada uma delas a possibilidade de esgrimir os seus argumentos para defesa da respectiva posição processual, era previsível que o tribunal pudesse vir a enveredar por uma posição em que a atribuição da responsabilidade pelo incumprimento fosse parcial.
Deste modo, tem-se entendido que apenas ocorre uma decisão-surpresa quando a solução seguida pelo tribunal se desvincula “totalmente do alegado pelas partes na sua substancialidade ou na sua adjectividade, isto é, se a decisão não se ativer, com um mínimo de arrimo, ao que foi alegado e sufragado pelas partes durante o curso do processo. Assim, se as partes não tiveram hipótese de aportar e debater factos – novos e condizentes com a realidade jurídica prefigurada pelo tribunal antes da decisão – que poderiam trazer alguma luz sobre a “questão nova” oficiosamente assumida pelo tribunal, então as partes terão o direito de tentar refazer a actividade do tribunal de modo a encarrilar e adequar a estrutura do processo ao resultado decisório”. Nesta situação poderemos dizer que “o tribunal apartou-se do dever de cooperação, colaboração e boa-fé que deve nortear o princípio de imparcialidade e de posição super partes constitucionalmente atribuído ao julgador”[16].
Nesta perspetiva, segundo a jurisprudência, não existirá decisão-surpresa quando a decisão, rectius os seus fundamentos, estejam ínsitos ou relacionados com o pedido formulado e se situem dentro do geral e abstratamente permitido pela lei e que de antemão possa e deva ser conhecido ou perspectivado como possível e em relação ao que, consequentemente, a parte podia ter-se pronunciado, pelo que se não o fez, sib imputet.
Ao invés, estaremos perante uma decisão-surpresa para efeitos do art. 3º/3 quando ela comporte uma solução jurídica, que embora juridicamente possível, as partes não tinham obrigação de prever, isto é, quando não fosse exigível que as partes tomassem oportunamente posição sobre essa concreta questão jurídica que acabou por ser sufragada pelo tribunal ou, no mínimo, quando a decisão coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que as partes o haviam feito[17].
Finalmente, a violação do princípio do contraditório mediante a prolação de uma decisão-surpresa insere-se na cláusula geral das nulidades processuais prevista no art. 201º/1 do CPC onde se prevê que “a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Dada a importância do contraditório é indiscutível que a omissão do cumprimento desse princípio, isto é, quando ocorra a prolação de uma efectiva decisão-surpresa é susceptível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que a decisão-surpresa assim proferida encontra-se eivada de nulidade.
Essa nulidade não é do conhecimento oficioso do tribunal, carecendo de ser invocada pelo interessado na omissão da formalidade ou na repetição desta ou na sua eliminação (art. 197º/1 do CPC).
O interessado terá de invocar a nulidade no prazo de dez dias após a respectiva intervenção em algum acto praticado no processo (art. 199º/1 do CPC), sob pena desta ficar sanada.
No entanto, estando essa decisão-surpresa coberta por decisão judicial, como é entendimento pacífico da jurisprudência, nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso[18].
Assentes nestas premissas, in casu, os apelantes AA. invocam que ocorreu nulidade da sentença por excesso de pronúncia, sustentando, grosso modo, que nunca lhes foi dada a conhecer a possibilidade de ocorrer uma ineptidão da petição inicial por ausência de alegação de factos essenciais e por falta de pedido, mas tão-só por ininteligibilidade do pedido e na contradição deste com a causa de pedir (invocada pela R. no seu articulado). Entendendo que ocorre uma nulidade da decisão decorrente de uma nulidade processual, pois, na sua alegação, a sentença proferida nos autos consubstancia uma decisão-surpresa, com excesso de pronúncia [cfr. art. 615º/1, d) do CPC].
Ora, na contestação, a R. arguiu que a petição inicial era inepta, «não só porque o pedido é ininteligível, como também é contraditório com a causa de pedir [art.º 186.º, 2, al. a) e b), do Código de Processo Civil]». Tendo os AA. aproveitado o articulado da réplica para se pronunciarem quanto à nulidade do processo por verificação de uma ineptidão da petição inicial, pugnando pela sua improcedência (cfr.art. 50.º da réplica). Em sede de audiência prévia, que ocorreu em 25-05-2023, consta da respectiva acta que «Por forma a evitar uma decisão surpresa, proibida por lei, propõe-se aos Ilustres Mandatários das partes que, aproveitando-se a convocatória e a sua presença, se alargue o objecto da presente diligência por forma a poderem debater as suas posições nos termos previstos pela al. b), n.º 1 do art.º 591º do C.P.C.», o que não mereceu qualquer oposição, tendo sido concedido às partes a discussão de facto e de direito a que se refere o aludido normativo. Tendo na decisão recorrida que se seguiu, proferida em 26-09-2024, sido julgada inepta a petição inicial, por ausência de alegação de factos essenciais e falta de pedido, nos termos do art. 552º/1, d) e e) do CPC.
Os apelantes insurgem-se contra a sentença, que constituirá decisão-surpresa, porquanto nenhuma das rés suscitou a questão da ineptidão da p.i. com esses fundamentos: ausência de alegação de factos essenciais e falta de pedido.
Será que a circunstância de o tribunal ter decidido pela nulidade do processo com fundamento na ineptidão da petição inicial, pese embora com motivos distintos dos invocados pela R., nos permite concluir que proferiu uma decisão-surpresa, com a qual os AA. não podiam contar?
Como já vimos, verifica-se efectivamente que nunca nenhuma das partes, sequer o tribunal a quo suscitou, em algum momento, a questão da ineptidão da petição inicial com fundamento na ausência de alegação de factos essenciais e falta de pedido. Sendo indiscutível que tendo sido suscitada e sindicada nos autos a questão da ineptidão da petição inicial por inteligibilidade do pedido e na contradição deste com a causa de pedir, verifica-se que o tribunal a quo proferiu o despacho saneador recorrido, em que suscitou e conheceu ex officio da excepção da ineptidão da petição inicial, por ausência de alegação de factos essenciais e falta de pedido, julgando verificada a excepção dilatória de nulidade de todo o processo e absolvendo, em consequência, os RR. da instância.
Ao assim proceder, é indiscutível que o tribunal a quo conheceu de questão que nunca tinha sido suscitada por nenhuma das partes, nem o tribunal, na audiência prévia, as confrontou com a possibilidade de vir a julgar inepta a petição inicial por falta de alegação de factos essenciais e por falta de pedido, pelo que é apodíctico que aquela decisão configura uma indiscutível decisão-surpresa e como tal nula.
Como assim, porque o despacho-saneador suscitou e conheceu ex officio da excepção de ineptidão da petição inicial por alegada ausência de alegação de factos essenciais e falta de pedido e absolveu os RR. (apelados) da instância, o que consubstancia efectivamente uma decisão-surpresa, procede este fundamento de recurso, impondo-se anular o despacho saneador nesta parte, devendo os autos prosseguirem os seus legais termos, sem prejuízo do tribunal a quo dever notificar as partes para se pronunciarem, querendo, quanto à eventual ocorrência de uma ineptidão da petição inicial por ausência de alegação de factos essenciais e por falta de pedido.
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6 – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação procedente, e, em consequência, revogam o despacho saneador na parte em que julgou inepta a petição inicial por alegada ausência de alegação de factos essenciais e falta de pedido e absolveu os RR. (apelados) da instância, ordenando o prosseguimento dos autos os seus legais termos, sem prejuízo do tribunal a quo dever notificar as partes para se pronunciarem, querendo, quanto à eventual ocorrência de uma ineptidão da petição inicial por ausência de alegação de factos essenciais e por falta de pedido.
Custas pela parte vencida a final.
Notifique.
[1] Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, V.Real - JL Cível - Juiz ... [2] Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição, 1987, Coimbra Editora, página 627. [3] Idem, página 642. [4] Cfr entre outros, o Ac. do S.T.J. de 28/05/1991, rel. Jorge Vasconcelos, proc. n.º 079824; o Ac. do S.T.J. de 02/10/2010, rel. Teixeira Ribeiro, proc. n.º 5202/04.8TBLRA.C1.S1; o Ac. do Trib. da Rel. de Guimarães de 25/02/2016, rel. António Santos, proc. n.º 260/13.7TBPTB.G1; o Ac. do Trib. da Rel. do Porto de 16/06/2011, rel. Maria Amália Santos, proc. n.º 47/07.6TBVLC.P2; o Ac. do Trib. da Rel. de Lisboa de 13/10/2005, rel. Ana Paula Boularot, proc. n.º 6865/2005-2; o Ac. do Trib. da Rel. de Lisboa de 22/11/2011, rel. Conceição Saavedra, proc. n.º 91/10.6TBVLS.L1-7; o Ac. do Trib. da Rel. de Coimbra de 10/05/2011, rel. Alberto Ruço; o Ac. do Trib. da Rel. de Coimbra de 27/05/2014, rel. Maria Domingas Simões, proc. n.º 401/12.1TBAGN.C1; o Ac. do Trib. da Rel. de Évora de 27/03/2003, rel. Alexandra M. Santos, proc. n.º 1134/02-3; in www.dgsi.pt. [5] O que fez nos seguintes termos: Da nulidade suscitada (cf. artigos 615.º, n.º 4 e 617.º, n.º 1, do Código de Processo Civil):
Invocam os Autores que ocorreu a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, sustentando, grosso modo, que nunca lhes foi dada a conhecer a possibilidade de ocorrer uma ineptidão da petição inicial por ausência de alegação de factos essenciais e por falta de pedido, mas tão-só por inteligibilidade do pedido e na contradição deste com a causa de pedir (invocada pela Ré no seu articulado).
Em síntese, entendem que ocorre uma nulidade da decisão decorrente de uma nulidade processual, pois, na sua alegação, a sentença proferida nos autos consubstancia uma decisão-surpresa, com excesso de pronúncia (cf. artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil).
Pois bem, coligidos os autos logo se constata que não lhes assiste razão, não se verificando a nulidade invocada.
Senão, vejamos:
Na contestação a Ré arguiu que a petição inicial era inepta, «não só porque o pedido é ininteligível, como também é contraditório com a causa de pedir [art.º 186.º, 2, al. a) e b), do Código de Processo Civil]».
Os Autores aproveitaram o articulado réplica para se pronunciarem quanto à nulidade do processo por verificação de uma ineptidão da petição inicial, pugnando pela sua improcedência (vide artigo 50.º da réplica).
Em sede de audiência prévia (25-05-2023) e «Por forma a evitar uma decisão surpresa, proibida por lei, (…)», propôs-se aos Ilustres Mandatários que a diligência se destinasse aos termos e efeitos previstos no artigo 591.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil, o que não mereceu qualquer oposição, tendo-se concedido às partes a discussão de facto e de direito a que se refere o aludido normativo.
Por despacho de 26-09-2024, decidiu-se julgar inepta a petição inicial, por ausência de alegação de factos essenciais e falta de pedido, nos termos do artigo 552.º, n.º 1 alíneas d) e e) do Código de Processo Civil.
Isto posto, será que a circunstância de o tribunal ter decidido pela nulidade do processo com fundamento na ineptidão da petição inicial, pese embora com motivos distintos dos invocados pela Ré, nos permite concluir que proferiu uma decisão-surpresa, com a qual os Autores não podiam contar (sendo que já tinham exercido o contraditório quanto à ineptidão da petição inicial na réplica)?
Pois bem, entendemos que não, tanto mais que, em sede de contraditório e no debate que se proporcionou na audiência prévia, os Autores poderiam ter se munido de todos os argumentos para afastar a aludida nulidade.
Apesar de o julgador ter optado por proceder a nulidade do processo pela verificação da ineptidão da petição inicial esgrimindo argumentos diferentes daqueles que foram invocados pela Ré, a verdade é que tal opção se demonstra fundamentada ao abrigo da norma que estabelece que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cf. artigos 5.º, n.º 3 e 607.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil).
A propósito e com pertinência para a questão a apreciar, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão datado de 15-03-2018, proferido no âmbito do processo n.º 2057/11.0TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt, que «Assim se enuncia o princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos trazidos pelas partes – e que se exprime no brocado latino Iura novit Curia, – atualmente consagrado no n.º 3 do artigo 5.º do Código de Processo Civil. Continua, pois, a prevalecer a máxima “da mihi factum dabo tibi ius” (“dá-me os factos e dou-te o direito”). Ao abrigo deste princípio, o tribunal pode e deve apreciar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões jurídicas distintas daquelas que foram concitadas pelas partes. Sendo correntemente tido como uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão (cfr. artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa), tal princípio deve-se também ter como tributário do princípio dispositivo vigente no processo civil – serão as partes a introduzir na causa os factos e o conhecimento oficioso do direito cingir-se-á sempre ao objeto da causa».
Ante o exposto e com esses fundamentos, decide-se julgar não verificada a nulidade arguida pelos Recorrentes/Autores nas alegações de recurso (nulidade da sentença por excesso de pronúncia/decisão-surpresa).
Notifique. [6] A presente ação vai apenas contra a sociedade adquirente, porquanto a sociedade alienante foi, entretanto, liquidada e extinta como se pode ver pela certidão do registo comercial que se junta como Doc. nº 20. [7] Cfr. Acórdão do STJ de 04/10/2018 (Acácio das Neves), páginas 13 e 14, in www.dgsi.pt. [8] Vd. Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 379. [9] Vd. Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, Almedina, 2014, pág. 24. [10] Cfr. Ac. da RC de 20-09-2016, proferido no Proc. nº 1215/14.0TBPBL-B.C1 e acessível in www.dgsi.pt. [11] Vd. Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 1996, págs. 96 e 97. [12] Vd. Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, Almedina, 2006, pág. 82. [13] Vd. Lebre de Freitas, João Rendinha e Rui Pinto, “Código de processo Civil Anotado”, vol. 1º, 1999, pág. 10. [14] Vd. Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto”, 1996, Almedina, págs. 102 a 103, lendo-se na nota 24 que é “manifestamente desnecessário convidar as partes a pronunciar-se sobre a qualificação dum contrato, integrando a causa de pedir, como compra e venda, se o autor, embora não invocando explicitamente esta qualificação, o descreveu facticamente como tal, em termos inequívocos e não contrariados, de facto nem de direito, pelo réu. Mas já será necessário o convite se o juiz entender que, não obstante as partes, explicita ou implicitamente, terem tomado o contrato como de compra e venda ao longo de todo o processo, a sua qualificação jurídica correta é de empreitada ou de doação; ou ainda se, concordando embora com a qualificação que as partes lhe atribuíram, o juiz se propuser aplicar uma norma jurídica, específica ou genérica, do respetivo regime (por exemplo, o art. 895º CC ou o art. 280-2 cc) que as partes durante o processo não tiveram em conta. A falta deste convite, quando deva ter lugar, gera a nulidade (art. 201). No mesmo sentido, Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed. revista e ampliada, janeiro/2014, Ediforum, pág. 18, onde se lê: “A proibição das decisões-surpresa (art. 3º, 3) constitui uma garantia cuja manifestação predominantemente se situa no âmbito das questões de conhecimento oficioso não levantadas no decurso do processo, das quais o tribunal se propõe conhecer no momento da decisão. Verificando-se em concreto uma situação deste tipo, deve o tribunal criar condições para o exercício do contraditório sobre o ponto em causa, relativamente a ambas as partes, em momento anterior à decisão e seja qual for a fase que o processo esteja a atravessar. Se, p. ex., o tribunal «ad quem» entender que os factos apurados nos autos devem ser submetidos a enquadramento normativo diverso daquele que foi considerado pelas partes e pelo tribunal «a quo», a vinculação do julgador ao contraditório – princípio que «o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo», conforme preceitua o n.º 3 do art. 3º - impõe-lhe que adapte a tramitação do recurso, de maneira a que nela se encaixe a tomada de posição das partes sobre a mudança a efetuar na qualificação jurídica da matéria de facto”. [15] Cfr. Acs. do STJ de 14-05-2002, proferido no Proc. nº 02A1353 e de 24-02-2015, proferido no Proc. nº 116/14.6YLSB, ambos acessíveis in www.dgsi.pt. [16] Cfr. Ac. do STJ de 27-09-2011, proferido no Proc. nº 2005/03.0TVLSB.L1.S1 e acessível in www.dgsi.pt. [17] Cfr. Ac. da RC de 13-11-2012, proferido no Proc. nº 572/11.4TBCND.C1 e acessível inwww.dgsi.pt. Também neste sentido, o Ac. desta RG de 19-04-2018, proferido no Proc. nº 75/08.4TBFAF.G1e também acessível inwww.dgsi.pt. [18] Cfr. Acs. do STJ de 13-01-2005, proferido no Proc. nº 04B4031 e da RP de 18-06-2007, proferido no Proc. nº 0733086, ambos acessíveis in www.dgsi.pt.