ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PRESUNÇÃO DECORRENTE DO REGISTO
FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
USUCAPIÃO
Sumário


I – Sendo a usucapião uma forma de aquisição originária que surge “ex novo” na titularidade do sujeito, unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, é, por isso, absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios que afectem o acto ou negócio gerador da posse.
II - Pelo que, mesmo no caso de ser nulo o fraccionamento de terreno apto para a cultura que despoletou o início da posse, tal vício não é susceptível de interferir negativamente na faculdade de usucapir por parte do possuidor de parcela emergente dessa divisão ilegal.

Texto Integral


Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA,
instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra
Herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB e CC e herdeiros DD e EE; FF, GG; e HH e II,
pedindo a condenação dos réus:

- no reconhecimento do direito de propriedade da Autora sobre o prédio rústico, sito no ..., composto de terra de monte, com a área de 800 m2, inscrito na matriz sob o artigo ...62 e descrito na CRPredial sob o nº ...92, restituindo-o à Autora;
- na reposição das terras que foram removidas desse prédio rústico e na reposição dos marcos que aí existiam;
- na abstenção da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização do prédio rústico.
Para tanto, alegou, em síntese, que, no ano de 1956, o marido da autora adquiriu verbalmente a BB e mulher CC uma parcela de terreno, com a área de 800 m2, desagregada do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ...12º que era propriedade daqueles, tendo procedido à sua demarcação material no terreno, com a colocação de marcos, mas sem qualquer formalização de pedido de destaque; que, desde então, a autora e o falecido marido JJ, por si e por terceiros a seu mando, passaram a cultivar a parcela, semeando, lavrando, colhendo os frutos e outros produtos, à vista de todos, sem oposição de ninguém, na convicção de serem exclusivos donos, tendo, em 2002, inscrito na matriz a referida parcela, dando origem ao prédio inscrito sob o artigo ...62; que, em 2021, os réus lavraram o terreno, procederam à remoção de terras, apoderando-se delas e anexando-as ao seu prédio, e removeram os marcos, com o fim de o integrar no seu prédio, impedindo e impossibilitando a autora de entrar na parcela e de a utilizar.
Citados, os réus herdeiros apresentaram contestação, invocando a ilegitimidade da ré Herança e do herdeiro DD e impugnaram de forma motivada os factos alegados pela autora, acrescentando que o prédio que a autora se arroga dona não respeita a qualquer parcela do prédio dos réus, o qual têm vindo a possuir de forma pacífica, pública, titulada e incontestada, há mais de 60 anos.
A autora respondeu à matéria de excepção.
Por despacho de 15.11.2023, foi julgada procedente a excepção de ilegitimidade da ré Herança, com a sua absolvição da instância.
Designada data para a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual se considerou o herdeiro réu DD parte legítima e se procedeu à identificação do objeto do litígio, selecção dos temas de prova e admissão dos meios de prova.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, constando do respectivo dispositivo o seguinte:

VI. Decisão
Pelo exposto, julga-se a ação parcialmente procedente por provada e, em consequência:
a) - Condena-se os Réus DD e mulher EE, FF, GG, HH e marido II a reconhecer o direito de propriedade da Autora AA, sobre o prédio rústico, composto de terra de monte e com a área de 800 m2, sito no ..., inscrito na matriz sob o artigo ...62º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...92, e, com a consequente:
b) - Condena-se os Réus a restituir à Autora o prédio referido em a);
c) – Condena-se os Réus a absterem-se da prática de qualquer ato que impeça ou diminua a utilização do prédio referido em a) pela Autora;
d) – Absolve-se os Réus do demais peticionado, concretamente do pedido de condenação na reposição de terras removidas e da colocação dos marcos.
Custas pelos Réus na sua totalidade, uma vez que os pedidos elencados na alínea d) do dispositivo não têm, por si, autonomia em termos de determinação do valor da ação (artigo 527º, nº 1 e 2 do CPC).”.
Inconformados com a referida decisão, os réus interpuseram recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:
«A. Salvo o devido respeito, a sentença recorrida não procede a um correto enquadramento jurídico dos factos que julga como provados. De facto,
B. A parcela de terreno que a autora alega ter adquirido por usucapião não se encontra delimitada, nem com muros, nem com marcos, nem tão pouco a autora ou quaisquer testemunhas foram capazes de a delimitar no prédio dos réus, limitando-se a sentença recorrida a considerar que existe uma parcela de 800 m², inserida no prédio dos réus, que terá sido usucapida pela autora, sendo certo que a sua concreta configuração não se encontra demonstrada nem provada. Assim,
C. Considerando que a usucapião só pode incidir sobre coisas certas, individuais e determinadas, a não autonomização material da parcela de terreno em análise não permite concluir que estejamos perante uma “coisa” para efeitos jurídicos, pois o que a lei define como prédio rústico é precisamente “uma parte delimitada no solo” (artigo 204.º, n.º 2, do cc) – cf. Ac. Trg de 2020-10-15 (margarida almeida fernandes).
D. Por estas razões é forçoso concluir que a referida parcela, não delimitada no solo e não identificável na sua morfologia ou delimitações, não pode ser usucapida, razão pela qual o pedido da autora não pode ser julgado procedente.
Sem conceder,
E. Como resulta da factualidade assente, nunca a autora ou o seu falecido marido procederam ao pedido de destaque da parcela de 800 m² junto da câmara municipal, nem esse pedido poderia ser procedente por ser violadora das regras preceptivas que regulam o fracionamento de prédios rústicos.
F. Deste modo, quando a aquisição por usucapião infrinja regras precetivas relacionadas com o fracionamento de prédios rústicos, nos termos do artigo 1379.º, n.º 1, do código civil, é insuscetível de fundamentar a aquisição originária do direito de propriedade – cf., entre outros, o ac. Relação de lisboa, de 30/04/2002 (abrantes geraldes).
Sem prescindir,
G. Não é lícito conceder à autora, como se faz na douta sentença recorrida, a presunção decorrente de registo, uma vez que a inscrição no registo predial feita pela autora foi feita somente com base num processo de inventário e se encontra em direto conflito com o registo predial de que beneficiam os réus, desde data muito anterior, mais concretamente, 1957 – cf. Caderneta predial junta com a contestação. Assim,
H. “em caso de duplicação parcial de descrições prediais (quando determinada porção de terreno no sistema registral é simultaneamente tratada como prédio e como parte integrante de prédio) nenhum dos titulares registais pode invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7º do código do registo predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo.” – cf. Acórdão do trg de 2020-10-15 (margarida almeida fernandes), devendo também por esta razão improceder a ação.
Ainda sem conceder,
I. Ainda que se admita que a autora adquiriu a referida parcela de terreno por usucapião, ainda assim seria forçoso concluir que os réus voltaram a adquiri-la com o mesmo fundamento pois, como se encontra assente, os réus tiveram a posse desta parcela de terreno desde 2004,
J. O que fizeram na convicção de que a mesma integrava o prédio rústico descrito na conservatória sob o n.º ...57 e inscrito na respetiva matriz predial rustica sob o artigo ...12º, com a área de 9.992 m2, que fazia parte da herança de seus pais.
K. De resto, nunca os pais dos réus, ou quem quer que fosse, deram a conhecer aos réus qualquer transmissão da propriedade da dita parcela que, segundo a autora, terá sido adquirida por venda verbal e nunca até hoje registada, destacada ou materialmente delimitada;
L. Pelo que foi de plena boa fé, convictos que a referida parcela integrava o prédio herdado de seus pais, que os réus passaram a usar como sua também a referida parcela, dando autorização para a sua limpeza, autorizando a construção do nicho e cedendo terreno para o efeito.
M. De resto, nunca a autora ou o falecido marido invocaram o alegado direito de propriedade perante os réus, pelo que os mesmos ignoravam estar a lesar os direitos de terceiros.
N. Acresce que não só a posse dos réus é, de facto, de boa fé, como a mesma deve ser presumida, uma vez que a posse dos réus se funda num ato jurídico concreto que consubstancia um modo legítimo de aquisição de propriedade, a sucessão por morte de seus pais, em cujo nome o prédio se encontrava validamente registado.
O. De facto, em 2004 os réus iniciaram uma nova posse, que se sucedeu no tempo à da autora, com base num facto jurídico novo – a sucessão mortis causa - como de resto consta da inscrição ap ...2 de 2007/11/08 (cf. Doc. 1 junto com a contestação): aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito.
Assim,
P. Como resulta do artigo 1259.º, n.º 1, do código civil, a posse dos réus deve qualificar-se como titulada e fundada em justo título, o qual se encontra registado desde ../../2007;
Q. Pelo que, decorridos mais de 15 anos desde o inicio da posse dos réus, mesmo contando da data do registo, dúvidas não pode haver que os réus adquiriram por usucapião a parcela de terreno que se discute nos autos – artigo 1294.º, do código civil;
R. Também por esta razão a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente o pedido da autora.
S. Ao não ter julgado improcedente a presente ação a sentença recorrida violou, além do mais, o disposto nos artigos 204.º. N.º 2, 1259.º, n.º 1, 1260.º, 1287.º, 1294.º e 1379.º, n.º 1, todos do código civil.».
Foram apresentadas contra-alegações, nas quais a autora pugnou pela improcedência do recurso.
Remetidos que foram os presentes autos de apelação a este Tribunal da Relação, foi proferida decisão singular pela aqui Relatora que julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida e condenando os recorrentes nas custas.
Notificados vieram os recorrentes reclamar para a conferência nos termos do disposto no art.º 652, nº 3 do NCPC, reiterando os argumentos esgrimidos no recurso.
Pugnam, assim, os recorrentes/reclamantes pela procedência da reclamação e do recurso.
A parte contrária pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

*
*
II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
No caso vertente, a questão a decidir, tendo em conta o teor da reclamação e das conclusões de recurso formuladas pelos recorrentes é a de saber se a sentença recorrida incorreu em errónea subsunção dos factos ao direito ao ter concluído que a autora beneficia da presunção do registo da propriedade a seu favor e adquiriu a parcela de terreno em discussão por usucapião.
*
*
III. Fundamentação

3.1. Fundamentação de facto
Com interesse para a decisão relevam as incidências fáctico-processuais que se evidenciam no relatório supra e ter-se-á ainda em consideração a factualidade dada como provada e como não provada nos autos, nos seguintes termos:
«Factos Provados
1. Os Réus são donos e legítimos proprietários do prédio rústico, de pinhal e monte, sito no ..., inscrito na matriz rústica sob o artigo ...12º, da Freguesia ..., e registado na CRPredial ... sob o n.º ...57, em nome dos Réus, em comum e sem determinação de parte ou direito, por sucessão hereditária de seus pais BB, falecido em ../../1990 e mulher de CC, falecida em ../../2004.
2. O prédio dos Réus é um pinhal, composto de terreno árido, rochoso e não lavrável.
3. Existe um prédio rústico, sito no ..., na aldeia de ..., composto de terra de monte, a confrontar a Norte com caminho público e outro, a Sul e Poente com caminho público e a Nascente com Herdeiros de FF, com a área de 800 m2, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...62º da Freguesia ... e descrito na CRPredial ..., sob o nº ...92, em nome da Autora, pela Ap. ...58 de 2013/06/06.
4. Os prédios referidos em 1 e 3 localizam-se no mesmo lugar, sendo contíguos entre si.
5. Em data não concretamente apurada, mas antes do ano de 1960, JJ, marido da Autora, adquiriu, por compra e venda meramente verbal, a BB e mulher CC, uma parcela de terreno com a área de 800 m2, que foi desagregada do prédio rústico referido em 1.
6. JJ e BB nunca procederam a pedido de destaque da parcela junto da Câmara Municipal.
7. Desde a data da compra e de forma ininterrupta durante mais de 40 anos, JJ e sua mulher, a aqui Autora, por si e por terceiros a seu mando ou por si autorizados, limpavam a parcela, cortando as giestas e mato que nascia, guardavam lá lenha e colhiam os produtos que a terra fornecia, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de que a mesma lhes pertencia.
8. Em 2002, foi inscrita, no serviço de Finanças ..., em nome do marido da Autora, a referida parcela, atribuindo-se-lhe o artigo nº 2362º.
9. Em 11 de Agosto de 2003, JJ, através de Mandatário, remeteu ao Presidente da Junta de Freguesia ... uma carta na qual referia que: “fui contactado pelo Sr. JJ com vista a representar os interesses relativamente à tentativa de ocupação do ..., em .... Teve o Sr. JJ conhecimento que os herdeiros de BB haviam dado autorização à Junta de Freguesia para aí ser construído um Nicho. Pelo que me foi comunicado, o Sr. JJ adquiriu por compra, há mais de 40 anos, a aludida parcela de terreno ao referido BB, tendo-a, desde então, vindo a possuir. Assim, encarrega-se o Sr. JJ de lhe comunicar, Sr. Presidente, que a autorização de ocupação daquele terreno, seja para que fim for, deverá ser-lhe solicitada a ele”.
10. No ano de 2006, foi concluída, numa parte do prédio referido em 3, a construção de um Nicho, com a imagem de Santo António, pela Junta de Freguesia ....
11. A construção do Nicho naquele local teve na base a cedência de uma parcela de cerca de 50 metros quadrados, pelo Réu DD, que se declarou como dono, no ano de 2006.
12. A Autora, aquando da construção do Nicho, manifestou, junto do Presidente da Junta de Freguesia ..., a sua oposição à referida construção, por não lhe terem pedido autorização.
13. JJ faleceu, no estado de casado com a Autora, em ../../2004.
14. No âmbito do processo de inventário por óbito de JJ, que correu termos no Tribunal Judicial de Chaves, sob o nº 127/07...., foi relacionado sob a verba nº 4, como parte integrante do património do inventariado, o prédio rústico referido em 3, o qual foi adjudicado à Autora na sua totalidade.
15. Após a morte de JJ, em data não concretamente apurada, mas sempre depois do ano de 2004, os Réus, como donos e através de KK, à vista de todos, procedem à limpeza do terreno, e, há menos de meia dúzia de anos, colocaram lenha, trator e alfaias agrícolas no terreno, procurando apoderar-se do mesmo e integrá-lo no seu prédio.
16. A Autora, nessa sequência, apresentou queixa na GNR contra KK, por ocupação de terreno da sua propriedade.
17. Em 2021, foram realizadas obras pela Junta de Freguesia para a colocação de uma conduta de água potável para abastecimento da população na valeta da estrada que confina com os prédios referidos em 1 e 3.
*
Factos Não Provados:

a) A área do prédio dos Réus é de 9.992 m2.
b) BB e mulher CC e JJ procederam à delimitação do trato de terreno de 800 m2, com a colocação de marcos.
c) Os Réus, no ano de 2021, retiraram os marcos existentes naquele terreno.
d) Os Réus, no ano de 2021, procederam à remoção de terras, integrando-as no seu prédio.
e) Os Réus impedem e impossibilitam a Autora de entrar e utilizar o terreno.
f) Os Réus exercem os atos de posse, descritos em 15, sobre o prédio referido em 3, há mais de 60 anos.
g) Os Réus exercem aqueles atos de posse indicados em 15 de forma incontestada e na convicção de não lesarem direito de terceiro.».
*
3.2. Fundamentação de direito

Como se referiu supra, cumpre decidir se a sentença recorrida incorreu em errónea subsunção dos factos ao direito ao ter concluído que a autora beneficia da presunção do registo da propriedade a seu favor e adquiriu a parcela de terreno em discussão por usucapião.
Ou seja, importa aferir se deve ou não ser mantida a decisão singular proferida pela relatora que julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão recorrida.
Note-se que nenhum argumento/fundamento novo foi aduzido na reclamação que importe uma nova ou diferente abordagem quanto aos fundamentos do recurso, pelo que, em nosso entender a decisão reclamada deve ser mantida pelos exactos fundamentos e argumentos nele já expendidos.
Nesta conformidade, por razões de economia processual e a fim de evitar repetições desnecessárias, aderimos e reiteramos os seus termos que aqui passamos a transcrever:
«Na presente acção, a qual se trata de uma típica acção de reivindicação, foi proferida sentença a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre determinada parcela de terreno, mormente, por beneficiar da presunção do registo prevista no art.º 7º, do CRP e a haver adquirido por usucapião e, em consequência, foram os réus condenados a restituir a referida parcela à demandante.
Os réus, ora recorrentes, insurgem-se contra a decisão assim proferida, sendo de salientar, porém, que não se mostra impugnada a decisão sobre a matéria de facto.
Com efeito, lidas as conclusões, os recorrentes limitaram-se a invocar que “a sentença recorrida não procede a um correto enquadramento jurídico dos factos que julga como provados” (cfr. conclusão A).
Isto assente, constata-se que os recorrentes pugnam pela improcedência da acção, dizendo, para além do mais, que “não é lícito conceder à autora, como se faz na douta sentença recorrida, a presunção decorrente de registo, uma vez que a inscrição no registo predial feita pela autora foi feita somente com base num processo de inventário e se encontra em direto conflito com o registo predial de que beneficiam os réus, desde data muito anterior, mais concretamente, 1957 – cf. Caderneta predial junta com a contestação.” – cfr. conclusões G e H.
Ora, com efeito, “[v]erificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7.º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções”, conforme decorre do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência nº 1/2017 (relatado no processo nº 1373/06.7TBFLG.G1.S1-A e acessível in www.dgsi.pt).
Sendo esta a situação dos autos, é manifesto que têm razão os recorrentes quando afirmam que a autora não pode beneficiar da presunção do registo, como também não o podem os réus/recorrentes.
Deste modo e na procedência deste segmento recursório, importa averiguar se, ainda assim, resultou demonstrada a aquisição pela autora da parcela de terreno em questão, através do instituto da usucapião. 
E quanto a este particular, constata-se que os recorrentes defendem, em primeira linha, que a parcela de terreno reivindicada pela autora não se encontra delimitada no solo, nem é identificável na sua morfologia ou delimitações, pelo que não é susceptível de ser adquirida por usucapião. E citam, em abono da sua posição, o ac. desta Relação de Guimarães, datado de 15.10.2020 e relatado por Margarida Almeida Fernandes, consultável in www.dgsi.pt (cfr. conclusões B a D)
Mas sem razão.
Na verdade, de acordo com a matéria de facto provada (que, reitera-se, não foi objecto de impugnação) a parcela de terreno objecto da presente acção, embora não tenha sido objecto de uma operação de destaque formal, encontra-se perfeitamente identificada, quer quanto à área, quer quanto às suas delimitações, constituindo uma parcela de terreno autonomizada do prédio pertencente aos réus – cfr. pontos 3 a 8 do elenco dos factos provados.  
E não chegamos a conclusão diversa lendo integralmente o aresto citado pelos recorrentes. Muito pelo contrário.
Vejamos o que aí se escreveu a este propósito e que subscrevemos na íntegra: 
«Começam [os recorrentes] por defender que o prédio objecto de justificação notarial não existia autónoma e separadamente na data desta escritura, nem até à data da propositura da acção, concluindo pela nulidade da escritura de justificação e doação, bem como pela impossibilidade da sua transferência nos termos do art. 280º do C.C..
Ora, contrariamente ao defendido pelos apelantes, da matéria de facto dada como provada resulta que, em 30/09/2004, data da escritura de justificação e doação, o prédio objecto desta existia.
O Código Civil não fornece um conceito de prédio pelo que o mesmo terá que ser obtido pelo elemento comum às noções dadas no art. 204º nº 2 do C.C. - que dispõe: “Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe serviam de logradouro.”. E esse elemento comum é: “uma parte delimitada do solo”.
A distinção de prédio rústico e de prédio urbano é feita casuisticamente, tendo subjacente um critério de destinação ou afectação económica.
O conceito civil de prédio rústico acima referido não corresponde à noção de prédio na linguagem comum que tem uma conotação rural. Também não corresponde ao conceito tributário de prédio rústico, no qual assentam as matrizes prediais. Estas são “registos de que constam, designadamente a caracterização dos prédios, a localização e o seu valor patrimonial tributário, a identidade dos proprietários (…)” conforme dispõe o art. 12º nº 1 do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), aprovado pelo Dec.-Lei nº 287/03 de 12/11, diploma que procedeu à reforma da tributação do património, alterando vários códigos e aprovando igualmente o Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT). Da leitura do art. 3º do CIMI e art. 1º nº 2 do CIMT verificamos a referida não coincidência de conceitos sendo o conceito tributário bem mais vasto. E também não corresponde ao conceito de prédio rústico resultante do Código de Registo Predial, aprovado pelo Dec.-Lei nº 224/84 de 06/07. Nos termos do art. 79º nº 1 deste diploma a descrição predial tem por finalidade a identificação física, económica e fiscal dos prédios e nos termos do art. 91º a inscrição a definição da situação jurídica dessas descrições. Com efeito, o registo tem por função essencial dar publicidade aos direitos reais inerentes às coisas imóveis pretendendo-se com o mesmo patentear a história da situação jurídica destas desde o momento em que foram descritas até ao presente (1º) e não garantir tais elementos de identificação sendo jurisprudência pacifica, como já referido, que a presunção a que alude o art. 7º do C.R. Predial não abrange os factores descritivos como as confrontações, limites ou áreas dos prédios.
Contudo, “quer da descrição predial, quer da inscrição matricial, podem resultar elementos de facto úteis, para o julgador, no que toca ao conhecimento das realidades prediais que lhe cumpre qualificar” – Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Tomo II, 2ª ed, p. 123.
In casu verificamos que o prédio objecto de justificação e doação – “terreno de cultura arvense de regadio, sito no Lugar de ..., freguesia de X, concelho ..., com a área de 1020 m2, a confrontar a norte com caminho vicinal, sul e nascente com M. C. e poente Igreja, não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na matriz em nome do justificante sob o artigo ...” – corresponde a um prédio rústico nos termos do art. 204º nº 2 do C.C. uma vez que é uma parte fisicamente delimitada do solo susceptível de destinação ou afectação económica. Defender que não existe um prédio rústico quando uma determinada parcela de terreno não seja ainda autónoma da parcela maior no qual se integra equivale a defender a impossibilidade dessa autonomização, o que não tem qualquer base legal. Igualmente a lei não veda a doação de parcela de terreno a autonomizar de outra sendo aquela um objecto física e legalmente possível nos termos do art. 280º do C.C..
Acresce que a doutrina e jurisprudência admitem a invocação da usucapião em relação a uma parcela de um prédio.» (o sublinhado é nosso).
Transpondo estes considerandos para o caso em apreço e resultando demonstrado que a parcela de terreno identificada nos pontos 3 e 4 do elenco dos factos provados vinha sendo utilizada como coisa autónoma e desagregada do prédio rústico referido em 1 (cfr. pontos 5 e 7 da matéria de facto provada), nada obsta à sua aquisição através do instituto da usucapião (desde que verificados os demais requisitos).
Veja-se, ainda, a este propósito o ainda recente ac. desta Relação de Guimarães de 2.05.2024, processo nº 2.05.2024, consultável in www.dgsi.pt.  
Improcede, pois, o aludido segmento recursório.
Defendem ainda - e pela primeira vez nos presentes autos - os recorrentes que a aquisição da aludida parcela de terreno por usucapião nunca poderia proceder por ser violadora de regras imperativas que regulam o fraccionamento de prédios rústicos, mormente o disposto no art.º 1379º, nº 1, do CC (conclusões E e F).
Apreciando.
O referido nº 1 do art.º 1379º, do CC, na redacção introduzida pela Lei nº 111/2015 de 27.08, dispõe que: “São nulos os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º” (o sublinhado é nosso).
Estabelecendo ainda, para o que agora importa, o art.º 1376º, nº 1, do mesmo diploma que: “Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País; importa fraccionamento, para este efeito, a constituição de usufruto sobre uma parcela do terreno.”.
Todavia, temos que ter presente que o acto de fraccionamento em questão ocorreu com os actos de divisão material do prédio inicial, e tendo essa divisão ocorrido em data anterior a 1960, é aplicável ao caso não o disposto no art.º 1379º, do CC, mas antes o prescrito no art.º 107º do Decreto n° 16731, de 13.04.1929, que também estabelecia ser “proibida, sob pena de nulidade … a divisão de prédios rústicos de superfície inferior a 1 hectare ou de que provenham novos prédios de menos de ½ hectare”. (sublinhado nosso).
Por outro lado, há que ter em atenção o art.º 1288º do CC no qual se dispõe que, invocada a usucapião, os seus efeitos se retrotraem à data do início da posse.
Significa isto que a aquisição da propriedade se tem por verificada à data do início da posse, desde que verificados os demais pressupostos de relevância dessa posse.
Então, o regime legal em face do qual se deve aferir a validade ou invalidade do fraccionamento de um prédio rústico, por resultar em parcelas de área inferior à unidade mínima de cultura, há-de ser aquele que vigorava à data da produção dos efeitos desse fraccionamento, o que corresponde ao acto por via do qual se opera a aquisição da propriedade, ou seja, ao do início da posse.
É, aliás, essa a solução que deriva do nº 1 do art.º 12º do CC [A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.]
Feita esta precisão, como se diz no muito esclarecedor ac. do STJ de 21.02.2019, (proferido no processo nº 7651/16.0T8STB.E1.S3, que seguiremos de perto), no campo dos actos de fracionamento levados a cabo com violação de normas de natureza imperativa reguladoras da gestão do património, assistiu-se a alguma divisão doutrinal e jurisprudencial, quanto à admissibilidade da invocação da usucapião como meio de superar os obstáculos legais criados à realização desses fracionamentos.
Com efeito, foi defendida por alguma da nossa doutrina a inadmissibilidade de tal invocação, como é o caso de Fernando Pereira Rodrigues [in, “Usucapião, Constituição Originária de Direitos através da Posse”, p. 32 e seguintes] e Mónica Jardim e Dulce Lopes [in, “Acessão industrial imobiliária e usucapião parciais versus destaque”, em Da Intersecção entre o Direito Civil e o Direito Urbanístico, p. 810].
Mas não é este o entendimento maioritariamente acolhido pela nossa doutrina.
Na verdade, mesmo em casos de posse fundada em negócio de que resulte um fraccionamento proibido por lei e que por esta seja cominado com o vício da nulidade, como o sob apreciação, tem a doutrina entendido que nada obsta à invocação da usucapião.
Neste sentido ensinam Mota Pinto [in, “Teoria Geral do Direito Civil, p. 470 e Castro Mendes [in, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, p. 291, nota 731], dizendo que a possibilidade de invocação perpétua da nulidade do negócio pode ser precludida pela verificação da prescrição aquisitiva.
Igualmente Pires de Lima e Antunes Varela [in, Código Civil Anotado, 4ª edição, vol. I, p. 263] defendem que o não estabelecimento de um prazo para a arguição da nulidade “não afecta os direitos que hajam sido adquiridos por usucapião”.
Oliveira Ascenção, por sua vez, afirma que: “A usucapião representa (como aliás a ocupação e a acessão) uma forma de aquisição originária. O novo titular recebe o seu direito independentemente do direito do titular antigo. Em consequência, não lhe podem ser opostas as excepções de que seria passível o direito daquele titular” [in, “Direitos Reais”, Lisboa 1971, p. 337].
Também segundo Abílio Vassalo Abreu [in, “Titularidade Registral do Direito de Propriedade Imobiliária vs Usucapião”, Coimbra, p. 19] “o direito adquirido por usucapião surge ex novo na esfera jurídica do sujeito, pois não depende geneticamente de um direito anterior, depende tão só, do facto aquisitivo em que o processo de usucapião se analisa”.
Por fim, Durval Ferreira [in, “Posse e Usucapião”, 3ª ed., p. 525 e segs] salienta que a aquisição do direito por usucapião é originária, genética e endógena, na medida em que tem por causa, tem na sua génese, apenas a posse; esta e a “aquisição do direito por usucapião são originárias, agnósticas e bastam-se com certo senhorio de facto, tal como é, por certo lapso de tempo.” E ainda que, visando a usucapião satisfazer o interesse público “da certeza da existência dos direitos reais sobre as coisas e da respetiva titularidade e de a conseguir através da respetiva prova – «pela posse» (…)”, o possuidor que invoca a usucapião apenas tem de se preocupar com a posse que alega e respectiva demonstração.
Refere ainda o facto de, à data, não existir nos diplomas legais sobre loteamentos, destaques ou fraccionamento de prédios rústicos “a disposição em contrário”, exigida pelo art.º 1287º, do CC para que a posse exercida por certo lapso de tempo não faculte ao possuidor a aquisição do direito por usucapião.
E porque esta se funda directamente na posse, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes tenham incidido sobre a coisa, este autor conclui que a ilegalidade do fracionamento de prédio rústico carece de idoneidade para interferir, excluindo, na aquisição, por usucapião, de parcela de terreno resultante daquela divisão.
A nossa jurisprudência sobre a matéria adopta, igualmente em larga maioria, esta segunda posição, considerando que a usucapião prevalece sobre fraccionamento ilegal de terreno apto para cultura, como nos dão conta os acórdãos do STJ de 19.10.2004 (processo nº 04A2988); de 27.06.2006 (processo nº 06A1471); de 4.02.2014 (processo nº 314/2000.P1.S1); de 6.04.2017 (processo nº 1578/11.9TBVNG.P1.S1); de 1.03.2018 (processo nº 1011/16.OT8STB.E1.S2); de 3.05.2018 (processo nº 7859/15.5T8STB.S1); de 12.07.2018 (processo nº 7601/16.3T8STB.E1.S1) e de 8.11.2018 (processo nº 600/16.1T8STB.E1.S1), todos acessíveis in www.dgsi.pt, tendo este último sido relatado pelo Conselheiro Abrantes Geraldes (citado nas alegações de recurso, como defendendo posição contrária).
Deste modo, e como é salientado nos já referidos acs. do STJ de 6.04.2007 e de 1.03.2018, sendo a usucapião uma forma de aquisição originária que surge “ex novo” na titularidade do sujeito, unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, sendo, por isso, absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios que afectem o acto ou negócio gerador da posse, afigura-se-nos também a nós que mesmo sendo nulo o fraccionamento de terreno apto para a cultura que despoletou o início da posse, tal vício não é susceptível de interferir negativamente - excluindo-a - na faculdade de usucapir por parte do possuidor de parcela emergente dessa divisão ilegal.
Por conseguinte, uma vez verificados os requisitos da posse conducentes à aquisição do direito de propriedade a que se arroga a autora sobre a parcela em causa, nada impede a eficácia de tal posse, mesmo tratando-se de área inferior à unidade de cultura legalmente prevista.
E, salvo o devido respeito, outra não pode ser a solução, atenta a função, natureza e objectivos da posse que conduz à aquisição de um determinado direito, que nasce na esfera do titular, de forma originária, isto é, independentemente do existente na esfera do anterior(es) titular(es).
Improcede, pois, igualmente este segmento recursório.
Por fim, argumentam ainda os recorrentes que, ainda que se admita que a autora adquiriu a referida parcela de terreno por usucapião, é necessário concluir que os réus voltaram a adquiri-la com o mesmo fundamento pois, como se encontra assente, os réus iniciaram uma nova posse desta parcela de terreno em 2004, com base num facto jurídico novo - sucessão por morte de seus pais -, devendo-se considerar tal posse titulada e fundada em justo título e de boa fé. Concluem, assim, que tendo decorrido mais de 15 anos desde o inicio da posse dos réus, dúvidas não pode haver que os réus adquiriram por usucapião a parcela de terreno que se discute nos autos, ao abrigo do disposto no art.º 1294º, do CC (conclusões I a R).
Vejamos.
É pacífico que a usucapião mais não é do que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, desde que se revista de determinadas características e durante certo período temporal – cfr. art.º 1287º do CC.
Por seu turno, a posse, nos termos do art.º 1251º do mesmo diploma legal é o poder que se manifesta (exercício de poderes de facto) sobre uma coisa, em termos equivalentes ao direito de propriedade ou de outro direito real, traduzindo-se no corpus: elemento material, que mais não é do que a assunção de poderes de facto sobre a coisa e no animus: o exercício de tais poderes de facto como titular do respectivo direito de propriedade ou de outro direito real.
Como é sabido, o nosso Código Civil, consagrou uma concepção subjectiva da posse, no sentido de que não basta o exercício de poderes de facto, de dominialidade sobre a coisa, exige-se, também, a intenção de os exercer pela forma correspondente à do direito real invocado.
A usucapião traduz-se numa forma originária de aquisição do direito, ou seja, em que o titular recebe o seu direito independentemente do direito do anterior titular, pelo que para a mesma poder ser eficaz necessário se torna avaliar se existem actos de posse e se os mesmos foram exercidos em moldes conducentes à aquisição do direito, isto é com a intenção de corresponder ao direito real invocado, in casu, o direito de propriedade, durante um certo lapso de tempo e com determinadas características.
No que às características da posse tange, de acordo com o disposto nos art.ºs 1258º a 1262º, do CC, pode a mesma ser titulada/não titulada, de boa ou má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, o que tem relevância para a quantificação do prazo reputado de suficiente para que se verifique a usucapião – cfr. art.ºs 1294º a 1296º, CC, sendo que o prazo para que a usucapião se possa iniciar não se conta enquanto permanecer uma situação de posse violenta ou tomada ocultamente – cfr. o art.º 1297º do CC.
Revisitada a factualidade dada como provada, resulta evidente (nem os recorrentes o infirmam) que a autora logrou demonstrar, como diz na sentença recorrida:
“[E]starem verificados os elementos constitutivos da posse, conducente à usucapião: corpus, por um período de tempo de 20 anos, com animus, de forma pública e pacífica.
Por um lado, o corpus, na medida em que ficou comprovado que a Autora e seu marido, por si ou por terceiros a seu mando ou com sua autorização, praticaram atos materiais sobre o prédio com a área de 800 m2, como limpar o terreno, cortar as giestas e mato, guardar lenha e colher os produtos que a terra fornecia.
Por outro lado, verifica-se também o animus, já que esses atos eram exercidos na convicção de a parcela lhes pertencer, enquanto titulares do direito de propriedade próprio e exclusivo.
Além disso, esses atos foram exercidos por mais de 20 anos, pois, desde a aquisição meramente verbal, ocorrida antes de 1960 e durante toda a vida de JJ (que falecera em Janeiro de 2004) foram esses atos materiais praticados sobre o prédio, de forma ininterrupta e com o animus de serem os donos do prédio.
Comprovada a posse material, também resultou demonstrado que foi exercida sem oposição de ninguém (pacificamente) e à vista de toda a gente (publicamente), de acordo com os artigos 1261º e 1262º do CC. Efetivamente, esses atos de posse nunca foram exercidos de modo violento, ou seja, com coação física ou moral sobre os Réus ou terceiros, nem de modo oculto, isto é, de forma a não serem conhecidos pelos interessados.”.
Todavia, ainda de acordo com a factualidade provada e constante dos itens 10 e 11 e 15 dos factos provados, demonstrou-se que os réus, passaram a fruir da dita parcela, nos moldes e pelo período de tempo, ali referidos, pelo menos, desde 2005, de forma a adquirirem o respectivo direito de propriedade, através da usucapião.
No entanto, como já vimos, para que a posse possa conduzir à usucapião, tem de revestir determinadas características (as descritas no art.º 1258º do CC) e se manter durante determinado lapso de tempo.
A usucapião tem em vista a resolução do conflito de interesses que surge entre o titular inerte do direito de propriedade, que dispõe apenas de um poder jurídico simples (ou tão só formal-jurídico), porque desprovido da correspondente posse (causal) – e o sujeito activo – ou seja, o possuidor formal ou autónomo e acima de tudo, satisfazer a exigência de que, após um certo lapso de tempo, a situação de direito se adeqúe à situação de facto, que a posse é de harmonia com o «ordo ordinatus querido pela lei», assim se visando almejar a «ordenação dominial definitiva», ou seja que se conjuguem na mesma pessoa a titularidade do direito (maxime de propriedade) e a correlativa posse causal, com a disponibilidade fáctica ou empírica que a caracteriza como «faculdade jurídica secundária» englobada no conteúdo desse direito, consagrando-se a posse como um caminho para a autêntica dominialidade, assim acabando com a indesejada discrepância entre o direito real, v.g. de propriedade e o poder de facto a que o mesmo tende, que por vezes pode ser conflituosa – neste sentido, veja-se Vassalo de Abreu, Titularidade Registral Do Direito De Propriedade Imobiliária Versus Usucapião (“Adverse Possession”), Coimbra Editora, Março de 2013, p. 145 a 147.
Como acima referido, a posse exercida durante certo lapso de tempo conduz à aquisição do direito correspondente.
Quanto aos imóveis, tal ocorre, nos termos consignados nos art.ºs 1293º e seguintes do CC.
Assim, ao contrário do que os recorrentes afirmam, não resulta da factualidade provada que a posse exercida pelos réus, ora recorrentes, sobre a parcela de terreno em questão seja de boa fé (cfr. art.º 1260º, do CC).
Nomeadamente, não consta dos factos provados que os apelantes passaram a usar como sua a referida parcela, dando autorização para a sua limpeza, autorizando a construção do nicho e cedendo terreno para o efeito, porquanto estavam “convictos que a referida parcela integrava o prédio herdado de seus pais”. Aliás, o tribunal recorrido deu expressamente como não provado, que “Os Réus exercem aqueles atos de posse indicados em 15 de forma incontestada e na convicção de não lesarem direito de terceiro.» (cfr. alínea g) do elenco dos factos não provados).
Por outro lado, também não podemos acompanhar o entendimento dos réus quando dizem que a sua posse é titulada e que, portanto, se presume de boa fé (cfr. o nº 2, do art.º 1260º).
Aliás, neste ponto a alegação dos recorrentes encerra em si mesma uma flagrante contradição, pois ao mesmo tempo que afirmam que, em 2004, iniciaram uma nova posse da parcela, que sucedeu no tempo à da autora, acabam por basear tal aquisição na sucessão mortis causa.
Ora, como é bom de ver, a aquisição da posse por sucessão não consubstancia uma posse ex novo.
Com efeito, “Por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa, o que significa que a transferência da posse se verifica por mero efeito da lei e que, com a abertura da herança, não se inicia uma nova posse, formando antes a posse dos sucessores e a do de cujus um todo (art. 1255.º do CC).” – cfr. ac. do STJ de 23.06.2016, processo nº 581/07.8TBTVR.E1.S1, consultável in www.dgsi.pt.
Deste modo, a posse apenas iniciada sobre a parcela de terreno após 2004 não se baseou, nem se podia basear na sucessão por morte dos pais dos réus.
Note-se que dos factos provados ressalta que os réus, ora recorrentes, apenas sucederam aos seus pais na posse/propriedade do prédio identificado no ponto 1 do elenco dos factos provados e quando deste já não fazia parte integrante a aludida parcela por ter sido adquirida pela autora (por usucapião) e constituir assim um prédio autónomo. Ora, se este bem imóvel já não integrava o património dos de cujus, não podia ser adquirido pelos réus através da via sucessória.
Destarte, a “nova” posse dos réus não se mostra titulada, nem se presume de boa fé, pelo que só seria boa para a usucapião se tivesse perdurado durante mais de 20 anos, sem oposição (cfr. art.ºs 1294º e 1296º, do CC), o que manifestamente não sucedeu.  
Consequentemente, igualmente, quanto a esta questão, improcede o recurso.».
*
Ante todo o exposto, entendemos ser de confirmar a decisão singular proferida pela Relatora e, consequentemente, julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
As custas da reclamação e do recurso são da responsabilidade dos reclamantes/recorrentes atento o seu integral decaimento (art.º 527º do NCPC).
*
*
IV. Decisão

Pelo exposto, acordam em conferência os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em confirmar a decisão singular proferida pela Relatora e, consequentemente, em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida. 
Custas pelos reclamantes/recorrentes.
*
Guimarães, 13.02.2025
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Maria dos Anjos Melo Nogueira
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Paulo Reis