LEGITIMIDADE PROCESSUAL
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
Sumário

Sumário:
I. Tem legitimidade processual activa, à luz do disposto no art.º 30º do CPC, o reconvinte que peticiona a declaração de nulidade do fraccionamento de um prédio e da compra e venda do mesmo, no qual interveio como comprador o reconvindo que, como autor, intentou uma acção de preferência na aquisição do prédio contíguo.
Não se pode invocar o disposto no nº3 do art.º 1379º do Cód. Civil para declarar a ilegitimidade processual do reconvinte pois essa norma está conexionada com a titularidade de um direito, i.e. com legitimidade substantiva deste, no caso o direito a pedir a anulação de determinado fraccionamento, respeitando, assim, ao mérito da reconvenção.

Texto Integral

Processo: 582/22.6T8ELV-A.E1
1. RELATÓRIO

1. “AA, LDA”, co-Ré e Reconvinte nos autos de “acção de Preferência”, à margem identificados, que a si e a outrem, lhes move o A. BB, notificada do Despacho Saneador que, dentre outras decisões, absolveu da instância o Autor e os intervenientes da instância reconvencional, dela veio recorrer, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:


“1. NOS TERMOS DO ART. 635º, N.º 2 DO CPC, A RECORRENTE RESTRINGIU O ÂMBITO DO PRESENTE RECURSO, À PARTE DISPOSITIVA DO DESPACHO SANEADOR, PROFERIDO PELA MERITÍSSIMA JUÍZA “AQUO” EM SEDE DE AUDIÊNCIA PRÉVIA:


- PELO QUAL DECIDIU ABSOLVER DA INSTÂNCIA O AUTOR E OS CHAMADOS, ORA APELADOS, DA INSTÂNCIA RECONVENCIONAL, QUANTO AO PEDIDO RECONVENCIONAL DEDUZIDO A TÌTULO PRINCIPAL, PELA AÍ RECONVINTE E ORA APELANTE, ATENTA A AÍ DECIDIDA VERIFICAÇÃO DE ILEGITIMIDADE PROCESSUAL ATIVA DESTA:


2. PEDIDO RECONVENCIONAL ESTE, QUE HAVIA SIDO FORMULADO, PELA RECONVINTE E ORA APELANTE, DA SEGUINTE FORMA:


“I) SER RECONHECIDA E DECRETADA A NULIDADE, PARA TODOS OS EFEITOS LEGAIS, DO FRACIONAMENTO E DO NEGÓCIO JURIDICO DE COMPRA E VENDA, SUBJACENTE AO PRETENSO TÍTULO AQUISITIVO DO IDENTIFICADO PRÉDIO RÚSTICO DENOMINADO “PONTE DAS GRADES”; FORMALIZADOS PELO “CONTRATO DE COMPRA E VENDA”, CELEBRADO EM 02.12.2021, ENTRE O ORA RECONVINDO, BB E ORA CHAMADOS, CC E DD;


II) SEREM CONDENADOS O RECONVINDO E OS ORA CHAMADOS, NAS CUSTAS E DEMAIS ENCARGOS LEGAIS DESTE PEDIDO RECONVENVIONAL.”


3. DISCORDA TOTALMENTE A RECORRENTE COM A DECISÃO ORA RECORRIDA, PROFERIDA PELA MERITÍSSIMA JUÍZA AQUO, BEM COMO COM A FUNDAMENTAÇÃO DA MESMA, POR SI EXPENDIDA, QUE EXPRESSA:


- “PERANTE A INDICAÇÃO EXPRESSA DA LEI SOBRE QUEM SE CONSIDERA TITULAR DO INTERESSE RELEVANTE PARA O EFEITO DE LEGITIMIDADE (CF. ARTIGO 1379,º, N.º 3, DO C,CIV.) E RESULTANDO INEQUÍVOCO DOS AUTOS QUE A 1ª RÉ/RECONVINTE, POR NÃO SER PROPRIETÁRIA QUE GOZASSE DE DIREITO DE PREFERÊNCIA NOS TERMOS DO ARTIGO 1380.º, N.º 1, DO C. CIV.. É MANIFESTO QUE LHE FALECE LEGITIMIDADE PROCESSUAL ATIVA PARA DEDUZIR O PEDIDO RECONVENCIONAL QUE FORMULOU A TÍTULO PRINCIPAL…. EM CONFORMIDADE COMO DISPOSTO NO ARTIGO 30.º, N.º 3, PRIMEIRA PARTE DO C.P.C.”


4. O ART. 1379º DO CC, QUE ESTABELECE AS SANÇÕES PARA O NÃO CUMPRIMENTO DAS NORMAS RELATIVAS AO FRACIONAMENTO E TROCAS DE PRÉDIOS RÚSTICOS, FOI ALTERADO COMPLETAMENTE PELA LEI N.º 111/2015, SENDO COM QUE A NATUREZA DAS SANÇÕES AI PREVISTAS, MUDOU RADICALMENTE;


5. E POR TAL VIA, TAMBÉM MUDOU RADICALMENTE, A LEGITIMIDADE, DE QUAIS OS “INTERESSADOS” PARA PODEREM ARGUIR O NÃO CUMPRIMENTO DOS DITAMES LEGAIS AÍ ESTABELECIDOS;


6. NA SUA VERSÃO ATUAL, O ART. 1379º DO CC, DESTRINÇA DOIS TIPOS DIFERENTES DE ATOS, QUE ORA SANCIONA COM A NULIDADE:


- OS ATOS DE FRACIONAMENTO CONTRÁRIOS AO DISPOSTO NO ART. 1376º DO CC – (QUE SÃO OS ALEGADOS PELA APELANTE, NESTES AUTOS, NO SEU PEDIDO RECONVENCIONAL PRINCIPAL), DEVENDO SER ASSIM APLICÁVEL IN CASU;


- OS ATOS DE TROCA CONTRÁRIOS AO DISPOSTO NO ART.º 1378º DO CC;


7. SENDO QUE, TAMBÉM E AINDA, NA SUA VERSÃO ATUAL, O ART. 1379º DO CC, MANTÊM EM VIGOR UM OUTRO TIPO DE ATO, DE FRACIONAMENTO, EFETUADO AO ABRIGO DA ALÍNEA C) DO ART.º 1377º, DO CC, QUE SANCIONA COM A ANULABILIDADE DO ATO:


- OS ATOS DE FRACIONAMENTO, QUE TIVEREM POR FIM A DESINTEGRAÇÃO DE TERRENO PARA CONSTRUÇÃO OU RETIFICAÇÃO DE ESTREMAS, SE A CONSTRUÇÃO NÃO FOR INICIADA NO PRAZO DE TRÊS ANOS CONTRÁRIOS AO DISPOSTO NO ART.º 1378º DO CC;


8. SENDO QUE, NA SUA VERSÃO INICIAL, DO ART. 1379º DO CC - (QUE JÁ NÃO SE ENCONTRA EM VIGOR) - TODOS OS ATOS AÍ PREVISTOS ERAM TODOS ELES SANCIONADOS COM A ANULABILIDADE DOS MESMOS;


9. E AGORA NA VERSÃO ATUAL DO ART. 1379º DO CC, SOMENTE UM DESSES ATOS MANTEVE VIGENTE A SANÇÃO DA ANULABILIDADE, PASSANDO TODOS OS DEMAIS ATOS – (INCLUINDO O APRECIADO NESTE RECURSO) - A SEREM SANCIONADOS COM A NULIDADE;


10. O REGIME SANCIONATÓRIO, HOJE EM DIA PREVISTO NO ART. 1379º DO CC, CONFIGURA, DO PONTO DE VISTA DA APELADA, UM REGIME DE INVALIDADE MISTO;


11. COM CATEGORIAS DISTINTAS E AUTÓNOMAS; APLICÁVEL EM SITUAÇÕES DISTINTAS E DIFERENTES;


12. SANCIONANDO COM A NULIDADE, NOS TERMOS DO ART. 1379º, N.º 1, DO CC E APLICANDO-SE O RESPETIVO REGIME GERAL DE ARGUIÇÃO PREVISTO NO ART. 286º, DO CC:


A) AOS ATOS DE FRACIONAMENTO CONTRÁRIOS AO DISPOSTO NO ART. 1376º DO CC – (QUE SÃO OS ALEGADOS PELA APELANTE, NESTES AUTOS, NO SEU PEDIDO RECONVENCIONAL PRINCIPAL), DEVENDO SER ASSIM APLICÁVEL IN CASU;


B) AOS ATOS DE TROCA CONTRÁRIOS AO DISPOSTO NO ART.º 1378º DO CC;


13. SANCIONANDO COM A ANULABILIDADE, NOS TERMOS DO ART. 1379º, N.º 2, DO CC E APLICANDO-SE O RESPETIVO REGIME DE ARGUIÇÃO ESPECIALMENTE PREVISTO NO N.º 3 DO MESMO ART. 1379º.


C) OS ATOS DE FRACIONAMENTO, QUE TIVEREM POR FIM A DESINTEGRAÇÃO DE TERRENO PARA CONSTRUÇÃO OU RETIFICAÇÃO DE ESTREMAS, SE A CONSTRUÇÃO NÃO FOR INICIADA NO PRAZO DE TRÊS ANOS CONTRÁRIOS AO DISPOSTO NO ART.º 1378º DO CC;


14. ATENTO O DISPOSTO NO ART. 59º DO RJEF, QUE DEU NOVA REDAÇÃO AO ART. 1379 N.º 1 DO CC, PELO QUAL PASSOU A SANCIONAR COM A NULIDADE, (O QUE ANTES ERA TÃO SÓ ANULÁVEL) O ATO DE FRACIONAMENTO DO PRÉDIO, QUE SE ALEGA TER SIDO CELEBRADO ENTRE O AUTOR E OS CHAMADOS:


- DETERMINA E TEM COMO CONSEQUÊNCIA TAMBÉM, O ALARGAMENTO DA LEGITIMIDADE DOS “INTERESSADOS” QUE PODERIAM E PODEM INVOCAR A NULIDADE DO INVOCADO FRACIONAMENTO;


15. DEVENDO EM CONFORMIDADE SER DECLARADA A ORA APELANTE, RECONVINTE DO PEDIDO RECONVENCIONAL PRINCIPAL, COMO PARTE “INTERESSADA” E COM LEGITIMIDADE, PARA ARGUIR O RECONHECIMENTO DA NULIDADE, DO ALEGADO FRACIONAMENTO;


16. SENDO TAL NULIDADE INVOCÁVEL A TODO O TEMPO POR QUALQUER INTERESSADO E PODE SER DECLARADA OFICIOSAMENTE PELO TRIBUNAL – COMO ESTATUI O ART.º 286 DO CC.


17. SENDO QUE A NULIDADE OPERA,”IPSO JURE”.


18. SENDO QUE A NULIDADE PODE SER INVOCADA, POR QUALQUER “INTERESSADO” E EM PARTICULAR, DEVERÁ SER CONSIDERADO “INTERESSADO”, O TITULAR DE QUALQUER RELAÇÃO CUJA CONSISTÊNCIA, TANTO JURÍDICA, COMO PRÁTICA, SEJA AFETADA PELO NEGÓCIO JURIDICO EM CAUSA COMO MANIFESTA E INDUBITAVELMENTE É O CASO DA ORA APELANTE NOS PRESENTES AUTOS A QUE SE REPORTA O PRESENTE RECURSO;


19. EM SEDE DESTE RECURSO, DEVE SER ADMITIDA E CONSIDERADA A LEGITIMIDADE ATIVA DA RECONVINTE, ORA APELANTE, DEVENDO EM CONSEQUÊMCIA SER APRECIADO E DECIDIDO O PEDIDO RECONVENCIONAL, POR SI FORMULADO A TÍTULO PRINCIPAL NA SUA RECONVENÇÃO.


20. CONCEDENDO-SE PROVIMENTO AO RECURSO, DEVERÁ SER REVOGADA A DECISÃO PROFERIDA NO DESPACHO SANEADOR PELA MERITISSIMA JUÍZA “AQUO” E, EM CONSEQUÊNCIA, SUBSTITUÍ-LA NO ACÓRDÃO A PROFERIR POR ESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO, POR DECISÃO QUE JULGUE PROCEDENTE O PEDIDO DA RECORRENTE.


21. RECONHECENDO-SE EM CONFORMIDADE A LEGITIMIDADE DA APELANTE, PARA ARGUIR A NULIDADE INVOCADA NO SEU PEDIDO RECONVENCIONAL PRINCIPAL, E EM CONSEQUÊNCIA SER DECRETADO O PROSSEGUIMENTO DA APRECIAÇÃO DO RESPETIVO PEDIDO RECONVENCIONAL PRINCIPAL,


22. CONSIDERANDO A APELANTE, QUE O PRESENTE RECURSO INCIDE SOBRE MATÉRIA DE DIREITO, ATENTO O DISPOSTO NO ART. 639º DO CPC:


23. NOS TERMOS DA SUA ALINEA A), DO CITADO ARTIGO, CONSIDERA A APELANTE QUE FORAM VIOLADAS NA DECISÃO RECORRIDA, AS SEGUINTES NORMAS:


- ART. 1379º, N.º 1, DEVIDAMENTE CONJUGADO COM O ART.º 1376º n.ºs 1 e 3, AMBOS DO CC;


- ARTS. 1º; ART.º 3º, N.º 1, ALÍNEA C) E Nº 2; ART.º 48, NS.º 1 E 5; ART.º 49, - TODOS DA LEI N.º 111/2015, DE 27 DE AGOSTO, QUE ESTABELECEU O RJEF-REGIME JURÍDICO DA ESTRUTURAÇÃO FUNDIÁRIA, ALTERADA PELA LEI N.º 82/2019 DE 3 DE SETEMBRO;


- PORTARIA N.º 219/2016 DE 9 DE AGOSTO E PORTARIA N.º 19/2019 DE 15 JANEIRO – QUE FIXARAM AS “ÁREAS MÍNIMAS DE CULTURA” PARA CADA REGIÃO DO PAÍS;


- ARTS. 285º, 286ºº E 294º TODOS DO CC;


- ARTS. 30º, N.º 3, 576º, Nº 2, 577º, ALINEA E) E 578º TODOS DO CPC;


24. NOS TERMOS DA SUA ALINEA B), DO CITADO ARTIGO 639º DO CPC, INDICA A APELANTE QUE AS NORMAS QUE CONSTITUÍRAM O FUNDAMENTO JURIDICO DA DECISÃO RECORRIDA, DEVERIAM TER SIDO APLICADAS NO SENTIDO DE QUE:


- A SANÇÃO DE NULIDADE ESTABELECIDA NO N.º 1, DO ART. 1379º DO CC, PARA OS ATOS DE FRACIONAMENTO DE PRÉDIOS RÚSTICOS, CONTRÁRIOS AO DISPOSTO NO ART.º 1376º DO CC, É ARGUIDA E REGIDA ATENTAS AS REGRAS CONSIGNADAS NOS ART. 286º E 294º DO MESMO CC.


- NÃO SE LHE APLICANDO, COMO O FEZ A DECISÃO RECORRIDA, AS NORMAS SANCIONATÓRIAS E RESPETIVO REGIME DE ARGUIÇÃO, DOS N.ºS 2 E 3, DO ART.º 1379º DO CC, QUE SÓ SE APLICAM AOS ACTOS DE FRACIONAMENTO ANULÁVEIS AÍ PREVISTOS QUE CARECEM DE ACÇÃO DE ANULAÇÃO PRÓPRIA PARA O SEU RECONHECIMENTO.


25. NOS TERMOS DA SUA ALINEA C), DO CITADO ARTIGO 639º DO CPC, UMA VEZ QUE CONSIDERA A APELANTE, QUE HOUVE ERRO DA MERITISSIMA JUÍZA “A QUO”, NA DETERMINAÇÃO DA NORMA APLICÁVEL, NA DECISÃO RECORRIDA, NO ENTENDIMENTO DA RECORRENTE DEVERIA TER SIDO APLICADA:


- AS REGRAS DO REGIME GERAL DA NULIDADE CONSIGNADAS NOS ART. 286º E 294º DO CC, ATENTO A INVOCADA NULIDADE ESTABELECIDA NO N.º 1, DO ART. 1379º DO CC, PARA OS ATOS DE FRACIONAMENTO DE PRÉDIOS RÚSTICOS, CONTRÁRIOS AO DISPOSTO NO ART.º 1376º DO CC; ASSIM EXERCENDO VOSSAS EXCELÊNCIAS, COMO HABITUALMENTE E SEMPRE – A MAIS COSTUMADA JUSTIÇA.”.

2. O autor/reconvindo contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

3. Considerando que a questão a decidir é simples passa-se a proferir, ao abrigo do disposto art.º 656º do CPC, decisão singular.

4. O recurso foi admitido com o efeito correcto e modo de subida adequado, sendo que o seu objecto- delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr.art.ºs 608ºnº2,609º,635ºnº4,639ºe 663º nº2, todos do CPC) reconduz-se à apreciação da questão de saber se o Reconvinte carece de legitimidade processual face ao pedido reconvencional de declaração de nulidade do fraccionamento e do negócio de compra e venda ajustado entre o Autor e os intervenientes relativos ao prédio rústico que justifica o exercício do direito de preferência pelo Autor na presente acção.


II. FUNDAMENTAÇÃO

5. Os factos a considerar no âmbito deste recurso são os que se deixaram exarados no antecedente relatório, sendo o seguinte o teor da decisão recorrida:


“Da ilegitimidade processual activa da 1.ª Ré/Reconvinte AA, Lda. (quanto ao pedido reconvencional deduzido a título principal)


I – Na sua réplica, o Autor/Reconvindo invoca a ilegitimidade da 1.ª Ré/Reconvinte para arguir a nulidade do negócio celebrado entre os Autores e os Chamados com fundamento na circunstância de do mesmo e em face da falsidade das declarações ali prestadas ter resultado uma fracionamento proibido por lei, sustentando que apenas o Ministério Público e qualquer proprietário que goze de direito de preferência tem legitimidade para a arguir, sendo que a 1.ª Ré/Reconvinte não é, nem nunca foi proprietária de qualquer terreno confinante com o prédio que o Autor adquiriu aos Chamados, mais defendendo a inaplicabilidade do regime geral da nulidade previsto no artigo 286.º do C. Civ., o qual prevê que a nulidade pode ser invocada a todo tempo e por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, em face do regime especial previsto no artigo 1379.º, n.º 3, do C. Civ. e do disposto no artigo 285.º, n.º 1, primeira parte, do C. Civ..


Notificada para se pronunciar (também) quanto à excepção de ilegitimidade deduzida pelo Autor na sua réplica, a 1.ª Ré/Reconvinte não se pronunciou quanto verificação de tal excepção.


II – Cumpre apreciar e decidir.


Com efeito, sob a epígrafe «Fracionamento», o artigo 1376.º do C. Civ. Preceitua que «(…) 1. Os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura, fixada para cada zona do País; importa fracionamento, para este efeito, a constituição de usufruto sobre uma parcela de terreno. (…) 3. O preceituado neste artigo abrange todo o terreno contíguo pertencente ao mesmo proprietário, embora seja composto por prédios distintos. (…)»..


O artigo 1379.º, n.º 1, do C. Civ., sob a epígrafe «Sanções», dispõe que «(…) São nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º.


(…) 3. Tem legitimidade para a ação de anulação o Ministério Público ou qualquer proprietário que goze do direito de preferência nos termos do artigo seguinte. (…)».


Sob a epígrafe «Direito de preferência», o artigo 1380.º, n.º 1, do C. Civ. Estatui que «(…) Os proprietários de prédios rústicos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante. (…)».


Por outro lado, sob a epígrafe «Disposição geral», o artigo 285.º do C. Civ. prescreve que «(…) Na falta de regime especial, são aplicáveis à nulidade e à anulabilidade do negócio jurídico as disposições dos artigos subsequentes. (…)», dispondo o artigo 286.º, n.º 1, do C. Civ., sob a epígrafe «Nulidade», que «(…) A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal. (…)».


Como acertadamente se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09-01-2024 (1), «(…) As nulidades têm um regime geral. Mas há nulidades que não estão sujeitas a esse regime. São as nulidades especiais, admissíveis por força do art. 285º do CC (que prevê que os artigos seguintes, 286º a 294º apenas são aplicáveis na falta de regime especial).


Uma das formas de estabelecer um regime especial da nulidade é a lei prever expressamente aqueles que a podem arguir, restringindo assim os que o podiam fazer pela norma geral do art. 286º do CC (vide nesta linha sobre nulidades e nulidades especiais/atípicas/mistas, Castro Mendes, T.G. Direito Civil, Vol. III, Ed. 1979, pág. 697, Oliveira Ascensão, D. Civil, Teoria Geral, Vol. II, 2ª Ed., págs. 374 a 376, 379 a 381 e 383 a 389, Carvalho Fernandes, T.G. Direito Civil, Vol. II, 2ª Ed., págs. 382 a 391, Menezes Cordeiro, Tratado, II, Parte Geral, 4ª Ed., págs. 921 a 924, 942 a 945, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos V, Invalidade, Ed. 2017, págs. 13 a 15, 230 a 234 e 236 a 239, Maria Clara Sottomayor, Comentário aos artigos 285º e 286º do CC, Parte Geral, U. Católica, 2014, págs. 706 a 709, Jorge Morais Carvalho, Os Limites à Liberdade Contratual, 2016, págs. 194 a 199). (…)».


Donde, e seguindo de perto a argumentação expendida no aresto acabado de citar, quando, no artigo 1379.º, n.º 3, do C. Civ., o legislador delimita os legitimados para a arguição da nulidade (in casu, actos de fracionamento contrários ao disposto no artigo 1376.º do C. Civ.), está, no fundo, a dizer que o critério da legitimidade activa para a arguição da nulidade (relativa, por se reportar a determinadas entidades e pessoas) não é o do artigo 286.º do C. Civ., mas sim o que essa norma estatui especialmente para o efeito, afastando a legitimidade de «qualquer interessado», ou seja, sujeito de qualquer relação jurídica afectada.


Com efeito e como é consabido, o regime da nulidade em apreço encontra o seu fundamento teleológico em motivos de predominante interesse público, sendo que as restrições ao fracionamento de prédios rústicos aptos para cultura decorrem, essencialmente, de razões relacionadas com a defesa da sua viabilidade e rentabilização económica, pretendo evitar-se a criação de mircro-parcelas pouco rentáveis, e com o ordenamento do território. Pelo que, considerando que a 1.ª Ré/Reconvinte não era, à data da celebração do negócio cuja nulidade pretende ver declarada (02-12-2021), proprietária de prédio rústico confiante com o prédio que foi objecto do negócio em apreço (denominado «...») de área inferior à unidade de cultura, tendo adquirido os prédios rústicos objecto dos presentes autos (denominados «...» ou «...» e «...») apenas em 05-05-2022, é forçoso concluir que, à data da celebração do referido negócio, não gozava de qualquer direito de preferência.


Por conseguinte, perante a indicação expressa da lei sobre quem se considera titular do interesse relevante para o efeito de legitimidade (cf. artigo 1379.º, n.º 3, do C.Civ.) e resultando inequívoco dos autos que a 1.ª Ré/Reconvinte, por não ser proprietária que gozasse de direito de preferência nos termos do artigo 1380.º, n.º 1, do C. Civ., é manifesto que lhe falece legitimidade processual activa para deduzir o pedido reconvencional que formulou a título principal (reconhecimento e decretamento da nulidade, para todos os efeitos legais, do fraccionamento e do negócio jurídico de compra e venda, subjacente ai pretenso título aquisitivo do identificado prédio rústico denominado «...» formalizado pelo contrato de compra e venda celebrado em 02-12-2021 entre BB e CC e EE), em conformidade com o disposto no artigo 30.º, n.º 3, primeira parte, do C.P.C.. Adjectivamente, a ilegitimidade processual configura excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, conforme as disposições conjugadas dos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, al. e), e 578.º, todos do C.P.C..


III – Pelo exposto, e ao abrigo das disposições legais citadas supra, julgando-se verificada a excepção de ilegitimidade processual da 1.ª Ré/Reconvinte para deduzir o pedido reconvencional deduzido a título principal, absolvem-se o Autor e os Chamados da instância reconvencional quanto a este pedido.”

6. Do mérito do recurso


Entendeu o Tribunal “ a quo” carecer a Ré /apelante de legitimidade processual para pedir a declaração de nulidade do fraccionamento do prédio de que o Autor se arroga proprietário e que justifica o direito de preferência que através da presente acção pretende exercer pois perante a indicação expressa da lei sobre quem se considera titular do interesse relevante para o efeito de legitimidade (cf. artigo 1379.º, n.º 3, do C.Civ.) , a mesma não era, à data do negócio jurídico em causa, proprietária que gozasse de direito de preferência nos termos do artigo 1380.º, n.º 1, do C. Civ..


A ser correcto o raciocínio do Tribunal “a quo” estar-se-á perante uma questão de ilegitimidade processual?


Cremos que não.


A legitimidade, enquanto pressuposto processual, vê o seu conteúdo definido no art. 30º, o qual estabelece, no seu nº 1, que o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer, sendo que o interesse em demandar, de acordo com o nº2, se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.


Por conseguinte, o Autor é parte legítima se da procedência da acção advier, para si, utilidade. O Réu é parte legítima se da procedência da acção advier, para si, prejuízo.


No caso, é manifesta a utilidade adveniente para o Reconvinte/apelante da procedência do pedido formulado na reconvenção: Logrando ver declarada a nulidade do fracionamento do prédio rústico subsequentemente adquirido pelo autor/ apelado, com fundamento na violação do disposto no art.º 1376º do Cód. Civil, claudica o direito de preferência que o mesmo, através da presente acção, pretende exercer.


E, por isso, lhe assiste inegável legitimidade processual face ao disposto no art. 30º, nº1 e nº2 do CPC.


O Tribunal “a quo” louvou-se no nº3 do art.º 1379º do Cód. Civil para declarar a ilegitimidade processual do Reconvinte/apelante sendo que, a nosso ver, tal norma se conexiona com a titularidade de um direito, i.e. com legitimidade substantiva deste, no caso o direito a pedir a anulação1 de determinado fraccionamento, respeitando, assim, ao mérito da reconvenção. Aliás, a verificação da falta desta legitimidade substantiva levaria à absolvição do pedido reconvencional.


As figuras da legitimidade processual e da legitimidade substantiva são, pois, realidades diversas, não se confundindo entre si.


Assim, perante a manifesta legitimidade processual da Reconvinte/apelante para deduzir o pedido reconvencional deduzido a título principal não pode manter-se a decisão de se absolver da instância reconvencional o Autor e os Chamados da instância reconvencional quanto a este pedido.


III. DECISÃO


Por todo o exposto se julga procedente a apelação e, revogando a decisão recorrida, se declara que a reconvinte/apelante tem legitimidade processual para deduzir o pedido reconvencional deduzido a título principal.


Custas pelo apelado.


Évora, 5.II.2025


Maria João Sousa e Faro

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1. Sendo ademais controversa a aplicabilidade de tal norma à situação dos autos.↩︎