SENTENÇA
REFORMA DA SENTENÇA
DOCUMENTO
Sumário

Sumário:
I. Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa – cfr. art. 613.º, n.º 1, do CPC.

II. Contudo, excepcionalmente, é lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença (ou despacho) quando, entre outros casos, por manifesto lapso do juiz, constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida – cfr. artigos 613.º e 616.º, do CPC.

III. O manifesto lapso na desconsideração de documentos do processo tem de ser flagrante e evidente, sem necessidade de elaboradas demonstrações, como sucede no caso concreto em que se admitiu o pagamento de multa como tempestivo por ter sido paga “dia 11” (último dia) quando no documento DUC consta expressamente que foi paga “dia 17”, portanto fora de prazo, justificativo de reforma.

Texto Integral

*

*


*

Apelação n.º 2104/22.0T8SLV-A.E1

(1.ª Secção Cível)

Relator: Filipe César Osório

1.º Adjunto: Filipe Aveiro Marques

2.º Adjunto: Francisco Xavier

*


*


*


ACORDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


*


I. RELATÓRIO


Acção Declarativa, Processo Comum


Instaurada no Juízo de Competência Genérica de ... - Juiz 2


Autores:


1. AA


2. BB


3. CC


4. DD


5. EE


6. FF


7. GG


8. HH


Réu – SPORT ALGOZ E BENFICA


*


1. Objecto do litígio1 – Efectivação de reivindicação e cessação de contrato de comodato, em contraponto, aquisição da propriedade por usucapião e, subsidiariamente indemnização, consubstanciadas nos seguintes pedidos:


Em sede de Acção:


“a. A R. ser condenada a reconhecer que os AA. são donos e legítimos proprietários do prédio urbano identificado no art. 1º desta petição, que inclui um logradouro com uma área atual registada de 622,88 m2.


b. Ser declarada a cessação do contrato de comodato existente com a R. sobre a área de logradouro do prédio dos AA. identificado no art.º 1.º supra, por efeito da comunicação dos AA. datada de 13.09.2021, recebida pela R. em 20.09.2021.


c. Ser a R. condenada a desocupar a área de logradouro emprestada pelos AA. e a restituí-la a estes, livre de pessoas e bens e no estado em que lhe foi entregue, sem quaisquer equipamentos ou benfeitorias.


d. Sendo ainda, a R. condenada a pagar aos AA. um montante diário de 51,00 Euros, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na entrega do imóvel após decisão judicial transitada em julgado.”.


Porquanto, os Autores alegam ser proprietários de determinado logradouro que havia sido emprestado à Ré, aqueles interpelaram esta para desocupar e restituir a área do logradouro ocupada até ao dia 31 de dezembro de 2021, tendo a Ré respondido que não ia desocupar o referido logradouro.


Em sede de Contestação-Reconvenção:


…reconhecendo-se que a Ré é a possuidora e proprietária do referido logradouro, por usucapião. Devendo para o efeito, determinar o cancelamento de todas e quaisquer inscrições e registos prediais referentes ao prédio em nome dos AA., passando as mesmas para nome da R.


Por mera cautela, caso assim não se entenda,


Devem os AA. ser condenados a pagar à R., solidariamente, a título de indemnização compensatórias pelos prejuízos, pelas benfeitorias e pelo trabalho de manutenção efectuado no prédio, numa quantia nunca inferior a € 200.000,00 (duzentos mil euros). 13


Deve o pedido reconvencional ser julgado procedente por provado, e em consequência serem os AA. condenados a pagar à R. a quantia de € 140.000,00 a título de compensação cláusula penal pelo incumprimento culposo dos AA. do contrato promessa de compra e venda de bem futuro”.


Para o efeito, a Ré alegou essencialmente que adquiriu a propriedade do logradouro por usucapião, subsidiariamente, alegou ainda que durante mais de 50 anos realizou melhoramentos e benfeitorias no prédio em causa, tendo direito a receber dos Autores indemnização que não deverá ser inferior a € 200.000,00 (duzentos mil euros).


Na Réplica, os Autores responderam concluindo o seguinte:


“i) Devem os pedidos formulados pela R. contra os AA. contestação ser rejeitados, por não serem legalmente admissíveis.


ii) Devem as exceções invocadas pela R. ser julgadas improcedentes, por não provadas.


iii) Deve o pedido reconvencional da R./Reconvinte ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, com a absolvição dos AA.


Caso assim não se entenda,


iv) Deve a excepção peremptória de abuso do Direito ser julgada procedente, por provada, e os AA. absolvidos do pedido reconvencional da Ré.


Sem conceder,


v) O pedido reconvencional deve improceder, por não provado, e, consequentemente, serem os AA. absolvidos do pedido.


vi) Mais sendo a Ré condenada nos autos como litigante de má-fé, em multa processual a determinar por este Tribunal.”


*


2. Por despacho de 01/08/2023 foi formulado convite ao aperfeiçoamento da Contestação.


*


3. Em 11/09/2023 a Ré apresentou novo articulado de Contestação.


*


4. Por Requerimento de 28/09/2023 os Autores alegam que não foram notificados do despacho de convite e invocam determinadas vicissitudes da Contestação aperfeiçoada.


*


5. Em 28/09/2023 os Autores apresentaram “Nova Réplica, em resposta ao aperfeiçoamento da Reconvenção da Ré.”.


*


6. Por sentença de 29/11/2023, decidiu-se «Nos termos expostos, declaro o presente Juízo de Competência Genérica de Silves incompetente em razão do valor da causa para apreciar e julgar os presentes autos declarativos e, em consequência, determino a remessa dos mesmos para o Juízo Central Cível de Portimão do Tribunal Judicial da Comarca de Faro.».


7. Por despacho de 10/01/2024, proferido pelo Juízo Central Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca de..., decidiu-se o seguinte:


«Contestação aperfeiçoada


Notificado do despacho que convidava ao aperfeiçoamento, veio o réu apresentar nova contestação, concluindo:


Nestes termos e nos melhores de Direito, deve a presente acção ser julgada improcedente por não provada, e consequentemente ser a Ré absolvida do pedido, reconhecendo-se que a Ré é a possuidora e proprietária do referido logradouro, por usucapião. Devendo para o efeito, determinar o cancelamento de todas e quaisquer inscrições e registos prediais referentes ao prédio em nome dos AA., passando as mesmas para nome da R.


Só depois autonomiza o pedido reconvencional (Deve o pedido reconvencional ser julgado procedente por provado, e em consequência serem os AA. condenados a pagar à R. as quantias de (…), quando aquele é já um pedido que se subsume à reconvenção.


Assim, uma última vez, é proferido convite ao aperfeiçoamento, advertindo de que o pedido não autonomizado não será considerado.».


*


8. Em 24/01/2024 a Ré apresentou Contestação aperfeiçoada.


*


9. Em 09/02/2024 os Autores responderam à nova Contestação e terminam do seguinte modo:


“O Tribunal até ao momento não se pronunciou quanto à isenção de custas invocada pela Ré no seu articulado, todavia a isenção não lhe é aplicável, conforme já decidido, como tal a R. não beneficia de qualquer isenção encontrando-se obrigada a proceder ao pagamento como qualquer parte, o que se invoca e requer.”


*


10. Por Despacho de 08/04/2024 decidiu-se o seguinte:


«(…)


II. QUESTÕES PRÉVIAS


1. Da isenção subjetiva de custas alegada pelo réu


O réu “Sport Algoz e Benfica” contestou. Alegando no final que estaria isento de custas. Fundamentou tal pretensão no seguinte: A R., por se tratar de uma pessoa coletiva sem fins lucrativos, nos termos do artigo 4.º do Regulamento das custas processuais, está mesma isenta do pagamento da taxa de justiça devida, em virtude de estar a atuar para a salvaguarda dos superiores interesses da respetiva associação (art. 82 da contestação). Os autores opuseram-se nos requerimentos de 9 de fevereiro e de 6 de março.


Considerando que:


- Em regra, todos os processos estão sujeitos a custas – art. 1.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais;


- As custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte – art. 3.º, n.º 1, do mesmo Regulamento;


- Estão isentos de custas: (…) As pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos, quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável– art. 4.º, n.º 1, al. f), do citado Regulamento;


- O réu não pagou taxa de justiça, alegando a referida isenção,


Notifique o réu no sentido de juntar aos autos elementos probatórios da condição que alega e que justificará a isenção subjetiva de custas: ser pessoa coletiva privada sem fins lucrativos; e estar a atuar exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável.


Nada vindo em dez dias, deverá ser junto comprovativo do pagamento da taxa de justiça, sob pena de ser dado cumprimento ao disposto no art. 570.º, n.º 3 e 4. Mantendo-se a falta desde já determino o cumprimento do n.º 5 (pelo mínimo), com a advertência do n.º 6.


(…)».


*


11. Por Requerimento de 18/06/2024 veio a Ré “…juntar o comprovativo do pagamento da multa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 570.º, n.º 5 do CPC, e mencionar que não o fez anteriormente por falta de provimento na tesouraria do clube que a Ré representa.”.


Resulta do comprovativo junto (DUC) que o pagamento da multa foi feito no dia 17/06/2024 (ref.ª citius 189443631).


*


12. Por Despacho de 25/06/2024 decidiu-se o seguinte:


«Requerimento de 11 de junho


Visto.


Taxa de justiça e multa devidas pelo réu


Requerimento de 18 de junho


Veio o réu juntar comprovativo de pagamento em falta relativo à apresentação da contestação, em concreto a multa a que alude o art. 570.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, após notificação do réu expedida a 28 de maio e com a advertência de que tal pagamento deveria ser feito em 10 dias, sob pena de desentranhamento da contestação.


Considerando que:


- A notificação se considera feita no dia 31 de maio;


- O prazo terminava no dia 11, segundo a guia;


- O pagamento foi feito no dia 11 e comprovado nos autos no dia 18,


Admito o pagamento.


Taxa de justiça do incidente motivado pela junção tardia: duas UCs.


Do valor da ação


Antes de mais, solicite dos autores esclarecimentos quanto aos critérios para a fixação do valor da ação.


Da reconvenção


Tendo em conta o já apreciado em anterior despacho - este pedido, porque não autonomizado, não será considerado como pedido reconvencional – não admito.


25 de junho de 2024».


*


13. Por Requerimento de 27/06/2024 vieram os Autores dizer o seguinte:


1.º


Este Douto Tribunal, por despacho de 25 de junho de 2024, admitiu o pagamento da multa a que alude o artigo 570.º, nº 5, do Código de Processo Civil, no montante de € 510,00, feito nos autos pela Ré, ao considerar que esse pagamento foi feito no dia 11.


2.º


Com o devido respeito, o referido despacho padece de um erro, relativamente à data do pagamento realizado pela Ré.


3.º


Conforme se pode confirmar pelo talão de multibanco que foi apresentado pela Ré, no requerimento de 18 de junho (Refª: 49238537), o pagamento da multa a que alude o artigo 570.º, nº 5, do Código de Processo Civil, foi feito apenas no dia 17-06-2024 (através de um Duc para depósito autónomo emitido no dia 11-06-2024), quando o seu prazo de pagamento, com a cominação de desentranhamento da contestação, terminava no dia 11, segundo a guia emitida pelo tribunal.


4.º


Tendo em conta efetivamente a data que consta do mencionado talão de pagamento por multibanco, entendemos que, importa a devida retificação do presente despacho quanto à data do pagamento que ali foi mencionada, por incorreta, sendo a sua data correta efetivamente o dia 17-06-2024.


5.º


Assim, estando esse pagamento, feito pela Ré, fora do prazo legal, não podia o mesmo ter sido admitido pelo Tribunal, como fez.


6.º


E, por consequência, tendo em conta o regime previsto no n.º 6 do artigo 570.º, do Código de Processo Civil, o qual estabelece que, «Se, no termo do prazo concedido no número anterior, o réu persistir na omissão, o tribunal determina o desentranhamento da contestação», não poderá este Tribunal admitir a contestação apresentada nestes autos pela Ré.


Veja-se que:


7.º


O próprio pagamento da taxa de justiça e multa do nº 3 do CPC feito pela Ré no dia 22 de maio (também por depósito autónomo), comprovado nos autos apenas no dia 06 de junho, também estava fora de prazo, uma vez que o seu prazo de pagamento terminava no dia 16 de maio, segundo a guia do tribunal.


Em face do exposto, requerem a V.Exa. a retificação do Douto despacho, datado de 25 de junho de 2024, quanto à data do pagamento da multa a que alude o artigo 570.º, nº 5, do Código de Processo Civil feito pela Ré.


E, em conformidade, requerem a V.Exa. seja aplicada a cominação prevista no n.º 6 do artigo 570.º, do Código de Processo Civil.”.


*


14. Decisão em Primeira Instância sobre que incidiu o recurso:


Foi proferido o seguinte Despacho datado de 23/09/2024:


«Reclamação de 27 de junho


Têm razão os autores quando afirmam que o pagamento das quantias em dívida por parte da ré foi feito em 17 de junho e não no dia 11 de junho.


Esse erro de apreciação ocorreu devido à sucessão de pagamentos por parte da ré e a referência ao DUC de 11 de junho, sem que o ato de 19 de junho (comprovativo de registo que junto) tivesse sido impresso.


Sucede que não se trata de erro material que possa ser corrigido, sem prejuízo do direito ao recurso.


Por isso, indefiro. (…)».


*


15. Recurso de apelação:


Inconformada com esta decisão, o 2.º Executado interpôs recurso de apelação com as seguintes conclusões:


«Conclusões:

a. Insurgem-se os Recorrentes contra o despacho de 23 de setembro de 2024, que indeferiu o pedido de retificação do erro constante do despacho de 25 de junho de 2024, no qual com base nesse erro admitiu o pagamento da multa prevista do artigo 570.º, nº 5, do CPC feito pela Ré/Recorrida.

b. No despacho recorrido, o Tribunal a quo reconheceu a existência do erro apontado pelos Recorrentes, dizendo que os autores têm razão quando afirmam que o pagamento das quantias que não se trata de erro material que possa ser corrigido.

c. Com o devido respeito, o Tribunal fez uma interpretação incorreta do disposto nos artigos 613.º e 614.º, do Código Processo Civil.

d. Senão vejamos,

e. A senhora mandatária da Ré/Recorrida, em 18-06-2024, deu entrada de requerimento (Ref.ª: 49238537), juntando o talão de multibanco comprovativo do pagamento da multa prevista do artigo 570.º, nº 5, do CPC, no montante de € 510,00, realizado no dia 17-06-2024, através de um Duc para depósito autónomo, cuja data-limite de pagamento terminava a 11-06-2024.

f. O douto Tribunal a quo, por despacho de 25 de junho de 2024, admitiu esse pagamento da multa, dizendo que o pagamento tinha sido efetuado no dia 11 de junho, ao invés do dia 17-06.

g. A data correta desse pagamento (17-06-2024) constava do talão de multibanco apresentado pela Ré/Recorrida no processo através do requerimento de 18-06-2024 (Ref.ª: 49238537), sobre o qual recaiu o mencionado despacho de 25 de junho de 2024.

h. No caso, escrever uma data diferente daquela que consta do respetivo documento comprovativo de pagamento apresentado por uma das partes no processo, não pode senão ser considerado como um erro, ou na letra da lei, um lapso manifesto por parte do Tribunal a quo, que pode ser corrigido pelo próprio Tribunal, sem necessidade de interposição de recurso.

i. A situação dos autos era, pois, subsumível a um caso de erro material com tratamento legal nos termos do art. 614.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, aplicável aos despachos ex vi art. 613.º, n.º 3 do referido diploma legal.

j. Com efeito, o despacho de 25 de junho de 2024 – inquinado de erro, não esgotou o poder jurisdicional do Tribunal a quo relativamente aos autos, pelo que o próprio Tribunal oficiosamente podia e devia ter retificado o lapso na data do pagamento que indicou no despacho de 25 de junho de 2024, conforme permite o n.º 2 do art. 613.º, do CPC e o n.º 1 e 3 do art. 614.º, aplicável aos despachos ex vi art. 613.º, n.º 3 do mesmo diploma legal.

k. Assim porque, efetivamente, a situação não é reconduzida a um erro de julgamento, que obrigasse os Recorrentes à interposição de recurso, tal como entendeu o Tribunal a quo.

l. Ademais, a lei permite, também, às partes suscitar no processo ao Meritíssimo Juiz, por requerimento, a correção, dentre outras, de quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, sem necessidade de interpor recurso, nos termos do art. 614.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, aplicável aos despachos ex vi art. 613.º, n.º 3 do referido diploma legal, o que ocorreu no caso dos autos.

m. A recusa do Tribunal a quo em corrigir o erro no despacho de 25 de junho de 2024 não tem suporte na lei, além de que põe em causa o próprio princípio da verdade material.

n. Pelo que o despacho recorrido viola o disposto nos artigos 613.º e 614.º, do Código Processo Civil.


Nestes termos, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido total provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o douto despacho de 23 de setembro de 2024, que indeferiu a reclamação dos AA. de 27 de junho de 2024, com as legais consequências.


Assim se fará justiça”.


*


16. Resposta:


Não foram apresentadas contra-alegações.


*


17. Objecto do recurso – Questões a Decidir:


Considerando que o objecto dos recursos está delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil – a única questão a decidir consiste em saber se estavam reunidos os pressupostos legais para se proceder à reforma do despacho datado de 25 de junho de 2024.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

18. Os factos a ter em conta são aqueles que resultam do relatório e que aqui se dão por reproduzidos.


*


19. Do mérito do recurso:


– Saber se estavam reunidos os pressupostos legais para se proceder à reforma do despacho datado de 25 de junho de 2024:


Sobre a extinção do poder jurisdicional e suas limitações, dispõe o art. 613.º, do CPC, o seguinte:


1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.


2 - É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.


3 - O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos.


Sobre a reforma da sentença (ou despacho – cfr. art. 613.º, n.º 3) o art. 616.º, do CPC, dispõe que:


1 - A parte pode requerer, no tribunal que proferiu a sentença, a sua reforma quanto a custas e multa, sem prejuízo do disposto no n.º 3.


2 - Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:


a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;


b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.


3 - Cabendo recurso da decisão que condene em custas ou multa, o requerimento previsto no n.º 1 é feito na alegação.


A este propósito, em anotação ao art. 616.º, do CC, Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 795, escreveram o seguinte:


“1. A regra sobre o esgotamento do poder jurisdicional encontra um desvio nos casos em que exista erro decisório em matéria de custas e de multa e ainda quando se verifique um lapso manifesto relativamente a algum dos aspetos referidos no n.º 2. O lapso a que se reporta o no 2 tem de ser evidente e incontroverso, revelado por elementos que são exteriores ao despacho, não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido (STJ 14-12-21, 63/13, STJ 2-12-21, 9/21, STJ 10-5-21, 1863/16, STJ 28-1-21, 214/17), tratando-se de um erro grosseiro, um evidente engano, um desacerto total no regime jurídico aplicável à situação ou na omissão ostensiva de observação dos elementos dos autos (STJ 28-1-21, 12380/17). Lapso manifesto não inclui erro judiciário, a corrigir por recurso, quando possível (STJ 9-2-21, 5835/16).


2. São considerados pertinentes para efeitos de admissibilidade da reforma (especialmente nos casos em que não é admissível recurso da decisão) os lapsos manifestos do juiz na determinação da norma aplicável ou na sua interpretação, a par das situações, seguramente patológicas também, em que tenham sido desconsiderados documentos com força probatória plena ou outros meios de prova com semelhante efeito (confissão, acordo das partes), com influência direta e causal no resultado.


3. Em qualquer dos casos, sendo admitido recurso ordinário, a reforma da sentença deve ser requerida nas alegações de recurso, apenas se admitindo que seja suscitada perante o juiz a quo nos demais casos, regime com o qual se pretendeu obstar a que fossem deduzidos incidentes com o mero objetivo de dilatar o prazo para a interposição de recurso e apresentação das correspondentes alegações.”.


No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/03/2006 (Duarte Soares, proc. n.º 05B3878)2 sumariou-se o seguinte:


«A reforma das decisões judiciais, exceptuadas as que respeitam a custas ou à aplicação de multas, só é permitida quando ocorram lapsos manifestos na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, ou ainda quando constarem do processo documentos ou quaisquer outros elementos que, por si só, impliquem, necessariamente, decisão diversa e que o juiz, por lapso manifesto, não haja tomado em consideração (art. 669.º, n.º 1, als. a) e b), do CPC).


II - Lapso manifesto é, em princípio, aquele que de imediato resulta do próprio teor da decisão ou, no caso de elementos ou documentos inconsiderados, que de modo flagrante e sem necessidade de elaboradas demonstrações, logo revelem que só por si a decisão teria de ser diferente da que foi proferida.».


No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/12/2021 (Fernando Samões, proc. n.º 9/21.0YFLSB)3 decidiu-se que «O lapso manifesto tem de ser evidente e incontroverso, revelado por elementos exteriores à sentença ou acórdão reformandos, não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido.».


E no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01/07/2004 (Bernardo Domingos, proc. n.º 1471/04-2)4:


«Nos termos do art.º 669º, n.º 2 al. a) do C.P.C. « é lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando tenha havido manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos ». E nos do art.º 669º, n.º 2 al. b) do C.P.C. « é lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando constem do processo documentos ou quaisquer elementos que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, igualmente por lapso manifesto, não haja tomado em consideração ».


Esta inovação introduzida no nosso direito processual pela reforma de 1995, prevê-se no primeiro caso [al. a)] a ocorrência de um erro de direito por manifesto lapso do juiz e no segundo caso [al. b)] um erro de facto por lapso manifesto do juiz.


Ocorre a primeira situação [al. a)] quando o juiz errou manifestamente no enquadramento jurídico dos factos que fez da questão a decidir, de modo a ter determinado como norma aplicável uma norma legal que não o é [9] , ou ter aplicado uma norma revogada ou omitido a existente [10] , ou quando o juiz, p. ex., tenha contabilizado o montante dos juros devidos através de uma taxa que não é a legal [11].


Está-se perante o segundo caso quando o juiz, por lapso manifesto, deixou de considerar documentos ou outros elementos probatórios existentes no processo que, só por si, impunham uma decisão diversa da proferida [12] . Trata-se essencialmente de um erro manifesto na apreciação das provas [13] , não se reparando, p. ex., que está feita a prova documental de certo facto [14] , ou quando, p. ex., na determinação do montante total dos danos não se somou uma das parcelas provadas [15] . Em todos os casos e sempre, o erro cometido tem, por si só, de implicar necessariamente uma decisão diversa da proferida.


E tanto no primeiro caso [al. a)] como no segundo [al. b)] exige-se que os erros sejam manifestos, isto é, que sejam evidentes, visíveis, bem patentes à vista, insofismáveis [16] . Não se trata, pois, dos erros ou inexactidões previstas no art.º 667º do Cód. Proc. Civil [17] . É preciso que sejam erros de tal modo grosseiros que saltem à vista, pelos menos de qualquer mediano jurista.».


Então, importa apurar no caso concreto se, por lapso manifesto do juiz, constam do processo documentos ou outros meios de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.


No caso concreto em apreciação, o lapso é de tal modo manifesto que resulta flagrante do teor objectivo do documento DUC que o pagamento da multa em causa foi feito no “dia 17” e não no “dia 11” como consta do despacho em crise.


E tal constatação resulta imediatamente e sem necessidade de elaboradas demonstrações.


Além disso, tais elementos exteriores logo revelam que só por si a decisão teria de ser diferente da que foi proferida, ou seja, ao invés de constar do despacho que se admitia o pagamento por ter sido realizado no “dia 11” (último dia do prazo), pelo contrário, deveria constar do despacho que o pagamento foi feito apenas no “dia 17” por isso está fora de prazo, aplicando-se consequentemente as cominações legalmente previstas.


Aliás, o referido erro foi reconhecido pela Mm.ª Juiz no despacho que proferiu em 23/09/2024 (sobre que incidiu o recurso).


Deste modo, em suma, verificam-se os necessários pressupostos para que em Primeira Instância seja proferida a reforma do despacho em crise datado de 25/06/2024.


*


14. Responsabilidade tributária


As custas do recurso de apelação são a cargo da Recorrida, contudo esta não deve taxa de justiça porque não apresentou contra-alegações.


*


III. DISPOSITIVO


Nos termos e fundamentos expostos,


- Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente procedente o recurso de apelação, revogando-se o despacho proferido pela Primeira Instância em 23 de setembro de 2024, que indeferiu a reclamação dos Autores de 27 de junho de 2024 e, em consequência, determina-se que a M.ª Juiz proceda à reforma do despacho de 25 de junho de 2024 em conformidade.


- Custas a cargo da Recorrida, contudo esta não deve taxa de justiça porque não apresentou contra-alegações.


- Registe e notifique.


*

Évora, data e assinaturas certificadas

*

Relator: Filipe César Osório

1.º Adjunto: Filipe Aveiro Marques

2.º Adjunto: Francisco Xavier

1. Todos os elementos elencados no relatório resultam do teor da certidão junta ao presente apenso e ainda da consulta electrónica do histórico do processo principal.↩︎

2. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/617045614b57c73e8025728000411033?OpenDocument↩︎

3. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9e5ef0327920850802587a70033980a?OpenDocument↩︎

4. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/3a2f1605c212138780257de100574757?OpenDocument↩︎