Sumário:
1. No âmbito de providência cautelar de arresto o justo receio deverá aferir‑se mediante critérios objectivos, basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com a experiência comum, aconselhem uma decisão cautelar imediata.
2. A idade do requerido ou o esfriar das relações com a requerente, sem se saber qual o valor do património e das dívidas daquele, não permitem antever o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito.
Relator: Filipe Aveiro Marques
1.º Adjunto: Filipe César Osório
2.º Adjunto: Fernando Marques da Silva
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I. RELATÓRIO:
I.A.
AA, requerente no procedimento cautelar que moveu contra BB e CC, veio recorrer da decisão proferida pelo Juízo Central Cível e Criminal de ... - Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., que terminou com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, com fundamento nos factos e no direito acima expendidos, o Tribunal julga totalmente improcedente o presente procedimento e consequentemente não decreta as providências requeridas.
Custas pela Requerente (cfr. artigo 539º, n.º 1, 1ª parte, do CPC).
Fixo à acção o valor de € 200.000,00.”
No seu requerimento inicial a requerente e ora apelante terminou com o seguinte pedido:
“Pelo exposto, deve a presente providência ser julgada procedente por provada e, SEM AUDIÊNCIA DA PARTE CONTRÁRIA (art. 393º, nº 1, do C.P.C.):
a. Deve ser decretado o arresto de créditos presente e futuros de que a Requerida seja beneficiária até perfazerem o valor da dívida para com o Requerente.
b. Ser decretado o arresto de bens móveis não sujeitos a registo e bens móveis sujeitos a registo, propriedade dos Requeridos, até perfazerem o valor da dívida para com o Requerente, seja na morada dos Requeridos, seja em qualquer outro local que se venha apurar que os mesmos possuam, bens móveis; elencados no ponto 27.
c. Ser ainda decretado o arresto de todas as contas bancárias da 2ª. Requerida até perfazerem o valor da dívida para com o Requerente- indicando-se desde já ...;
d. Ser autorizado o arrombamento de portas e fechaduras das moradas dos Requeridos com vista a realização das diligências de arresto, caso este venha a ser decretado.
e. Ser ordenado o auxílio das autoridades policiais, no decorrer das diligências de arresto de bens móveis, se este vier a ser decretado;”.
E, para tanto, alegou, em suma, que o primeiro requerido (pai da requerente) foi casado com DD no regime de comunhão geral de bens. Antes de esta falecer (deixando como herdeiros o primeiro requerido, a requerente e mais três filhos), juntamente com o primeiro requerido, os dois doaram à requerente três imóveis por conta da quota disponível e com reserva de usufruto. Na mesma data da escritura de doação, a ora requerente outorgou procuração ao primeiro requerido para, além do mais, vender esses imóveis, mas não atribuía poderes para receber o preço da venda nem para proceder à quitação do recebimento do mesmo em nome da requerente. O primeiro requerido, agora viúvo, mantém relacionamentos amorosos que o levam a realizar actos que lesam os seus interesses e da herança por óbito da falecida mãe da requerente. O primeiro requerido vendeu dois dos imóveis (entretanto anexados) que tinham sido doados à requerente sem conhecimento ou autorização desta. É urgente o decretamento da providência, atenta a idade avançada do primeiro requerido e por forma a garantia a devolução do preço da venda (200.000,00€), que não foi entregue à requerente, mas depositado em conta bancária da 2.ª requerida (advogada na Comarca). A requerente, assim que soube da venda, procedeu à revogação da referida procuração. O primeiro requerido é detentor de contas bancárias. Existe risco de que, sem a presente providência, os requeridos dissipem o produto da venda realizada e de outros bens passíveis de ressarcir a requerente. O requerido tem 91 anos e desconhece-se se a requerida possui bens capazes de garantir o valor em causa.
Realizadas as diligências instrutórias sem audição dos requeridos, foi proferida a decisão recorrida.
I.B.
A requerente/apelante apresentou alegações onde termina com as seguintes conclusões:
“1- os Fatos considerados não indiciados pelo tribunal a Quo, FORAM ERRADAMENTE DESCONSIDERADOS, sem qualquer sustentação lógica e plausível face a toda a prova documental e testemunhal ocorrida em inquirição de testemunhas.
2- Á Luz das regras da experiência, É CLARO que a ação declarativa ação principal, alternativa ao presente procedimento cautelar será complexa e demorada; um vez que terá por discussão a questão das representações em poderes,
3- a Idade do Requerido ( 91 anos) tem de ser considerado um factor-indice relevante e importante para se afigurar a Urgência da ação e o receio de que não se consiga acautelar o Direito da Requerente antes que ocorra o decesso do requerido.
4- Existiu prova sumária que resulte de uma cognição também sumária, assente num juízo de elevada probabilidade e não no juízo de certeza exigível nos processos principais – artigos 365.º, n.º 1 e 368.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
5- A meritíssima Juiz a Quo ao analisar a prova sumária que foi carreada para o processo, como foi o fato da junção das certidões de nascimento do requerido, que demonstra que o Requerido detém a idade de 91 anos, devceria contra por a mesma com o fato de que a esperança média de vida do homem comum em Portugal é de sensivelmente os 80 anos de idade; pelo que o requerido detém já mais 10 anos e padece de problemas de saúde, como referiu a Requerente nas suas declarações de Parte; (minuto 20,07 segs até minuto 20,30 segs),
6- O Tribunal a Quo; Deveria no mínimo ter solicitado informações á instituição bancária em causa; ou seja conta bancária da 2ª Requerida, no sentido de efetuar a prova da dissipação requerida pela Recorrente na sua petição inicial; o que não fez,
7- A Meritíssima Juiz a Quo quando considera, que “ indubitavelmente a quantia da venda deveria ter sido transferida para a esfera jurídica da Requerente e não o foi, tendo sido realizada para a conta bancária da 2ª requerida; Está implicitamente a afirmar que a Requerente detém um direito de crédito contra a 2ª requerida, que recebeu uma quantia que não lhe pertencia”;
8- A Meritíssima Juiz a Quo deveria ter considerado provado o credito da requerente perante a 2ª requerida, pois Se a 2ª requerida recebe dinheiro que não lhe era destinado, a obrigação legal que lhe impende é a de restituir esse montante ao verdadeiro titular, sob pena de incorrer em enriquecimento sem causa.
9- O tribunal A Quo deveria ter julgado provado o Direito de Crédito da Requente perante também a 2ª Requerida;
10- O tribunal a Quo deveria ter considerado provado que a 2ª requerida não agiu no âmbito das suas funções, pois como referido nos Fatos provados 7, o 1º requerido não detinha poderes para receber o valor da venda; pelo que não podia o 1º requerido ter contratado advogada para receber o valor em causa; pois o mesmo não detinha os necessários poderes para mandatar na 2ª requerida o poder de receber a quantia em causa;
11- a Meritíssima Juiz a Quo, DEVERIA TER CONSIDERADO COMO UM ATO DE DISSIPAÇÂO CLARA DO VALOR DE 200.000,00€ (duzentos mil euros); o valor da venda ser rececionado em conta Bancária da 2ª Requerida, por ordem do 1º Requerido que efetuou a escritura, não detendo nem um, nem outro qualquer poder para receber o valor em causa;
12- DEVERIA O JUIZ A QUO considerar que existe perigo de Dissipação do mesmo, pois tratando-se de fundos são facilmente movimentáveis, face á facilidade de transferência do referido valor para fora da esfera da 2ª Requerida, pois é do conhecimento do tribunal que a quantia em causa foi efetuada por transferência bancária para a Conta de um terceiro ( 2ª requerida) , que não o legitimo proprietário,
13- Deveria a Meretissima Juiz a Quo, atenta a existência do procedimento efetuado pelos requeridos contra a Requerente, de verificar indiciariamente provados, factos que por si só façam antever o perigo de no futuro se tornar impossível ou muito difícil a cobrança do crédito, correspondendo este requisito a um específico periculum in mora.
14- A Meretissima Juiz a Quo não deveria ter valorado as declarações de parte como um raciocínio de ciência, pois as declarações de Parte, não permitiam sequer a identificação cabal dos referidos bens , pois os imóveis têm de ser cabalmente identificados pelos artigos matriciais e descrição na Conservatória, em cumprimento dos arts. 391 n.º 2 e art. 755 n.º 1 do CPC, sendo apenas identificado a matricula de um veiculo automóvel; que o tribunal a quo também não pediu informações sobre a propriedade ou ónus existentes;
15- O Tribunal Quo não efetuou fundamentação a sua convicção para alem das declarações de parte; pois não obstante as mesmas terem sido claras e esclarecedoras, quando ao justo receio e forma como ocorreu o caso concreto, também se torna claro que a parte Requerente não mantem há muito contacto com o 1º requerido, o que faz com que o facto provado 13, de que o requerido detém 1 casa de habitação, 4 rústicos e 1 veiculo automóvel e maquinas agrícolas, esteja em contradição com o fato provado 4; / minuto 11,25 segs até minuto 11,39 segs- não fali com ele quási a 5 anos)
16- Não poderia a Meritíssima Juiz valorar as afirmações que a Requeente emanou, atribuindo credibilidade a uns fatos e não valorizar outros, como por exemplo a informação que a mesma lhe trouxe referente á idade do 1º requerido assim como quanto ao fato de não ter contratado a 2ª Requerida; cfr ( minuto 12,40 segs até 13,20 segs ) ( minuto 19,40 segs até minuto 20,05 segs);
17- O tribunal a Quo Deve revogar a sua decisão, substituindo a por um sentença de Arresto procedente; pois atenta a explanada tramitação efetuada pelo 1º e 2ª requerida, tal procedimento “fogem” a regra normal, ou seja constituiu um desvio á normal tramitação de uma compra e venda com recurso a procuração, o que por si só acrescenta maior risco, nem que seja pelo anómalo procedimento, considerando que a requerente como se provou, não detinha conhecimento de nada. ( facto provado e 10)
18- O tribunal Quo deve também considerar provado que a averiguação de existência de bens do requerido não é recente, como referiu a Requerente, sendo uma constatação da requerente há quase 5 anos atras, veja ( minuto 11,25 segs até minuto 11,39 segs);
19- O tribunal Quo deve também considerar provado que 1 casa de habitação + 4 rústicos ( coisas pequenas como referiu a requerente), NÂO É passivel de ser considerado suficientes para garantir o valor de 200.000,00€, sendo que caso o 1º requerido faleça a Requerente terá de ter a concorrência dos restantes herdeiros; pelo que a sua parte no património será mais reduzida, não existindo certeza de que a totalidade do património da 1º requerido seja suficiente para suprir o crédito da Requerente e a quota parte de todos os herdeiros; CORRENDO O RISCO DE A REQUERENTE TER DE CONCORRER COM OS SEUS IRMÂOS NA GARANTIA DO SEU CRÈDITO.
20- O tribunal Quo deve também considerar provado que existiu ocultação, disposição, alienação ou oneração do património do património pelo 1º Requerido, quando o mesmo, com procuração junta aos autos, esconde da Requerente a utilização a procuração- facto provado 9 e 10,
21- O tribunal Quo deve também considerar provado que ocultação, disposição, alienação ou oneração do património do património pelo 1º Requerido quando o 1º e 2ª Requeridos , “escondem” da Requerente ( proprietária do valor do preço); a existência do recebimento de 200.000,00€ ( duzentos mil euros); dissipando o património pois, acordam em receber o valor em conta bancária de terceiros, neste caso da 2ª requerida, que não detém qualquer relação com a requerente, ou quaisquer poderes para receber em seu nome quaisquer quantias;
22- O tribunal Quo deve também considerar provado que o recebimento por terceiro, a utilização a procuração sem conhecimento do mandante, a idade avançada do 1º requerido, o falta de poderes para receber quantias da procuração ao 1º requerido, a falta de poderes para recebimento de quantias pela 2ª requerida; o fato de não ter a requerente contratado os serviços da 2ª requerida; o risco de óbito do 1º requerido; o justo receio da requerente que imediatamente revogou a procuração; SÃO FATOS INDICIADORES DE JUSTO RECEIO PARA QUALQUER CREDOR COMUM,
23- O tribunal Quo deve também considerar provado que o recebimento do valor por uma entidade terceira, que acarretam uma maior delonga na resolução do litigio, como por exemplo o caso do terceiro de boa fé; sendo no presente caso de má fé, dado ao conhecimento privilegiado da 2ª requerida; o Que Aumenta o receio de que a requerente consiga efetivamente garantir o valor do seu crédito;
24- O tribunal Quo deve também considerar provado que o requisito do justo receito de perda da garantia patrimonial, verifica-se que os Requeridos, por diversas vezes e em vários momentos, agiram “encapotadamente” perante a Requerente.
25- O tribunal Quo deve também considerar provado que tudo Indicia que os Requeridos agiram de forma que as regras da experiência permitem conotar como o devedor que não planeia cumprir.
26- O tribunal Quo deve também considerar provado que a atuação dos requeridos concertados no procedimento explanado, se destinou a dissipação do património que poderia responder pelo crédito da Requerente;
27- O tribunal Quo deve também considerar provado que as conditas dos requeridos são tudo condutas que se associam, segundo as regras da normalidade, a procedimentos dilatórios, destinados a protelar o litígio no tempo, de forma a dificultar a atuação a Requerente na garantia do seu crédito;
28- O tribunal Quo deve também considerar provado que tal factualidade é suficiente, na perspetiva de qualquer destinatário normal, para considerar que existe um sério risco de que os Requeridos não vão conseguir cumprir com a obrigação que tem perante a Requerente – existindo aliás uma forte probabilidade de que o 1º Requerido possa falecer assim como a 2ª requerida possa dissipar o valor da venda, atenta a facilidade de movimentação do valor depositado na sua conta bancária;
29- O tribunal Quo deve também considerar provado que não existe apenas um mero receio subjetivo da parte da Requerente, mas sim um elevado, verdadeiro e sério risco de incumprimento, derivado da impossibilidade de os Requeridos solver as suas obrigações, quer por risco de falecimento quer por risco de dissipação total do valor em causa; o que exige atuação imediata para garantia dos direitos da requerente.
30- O tribunal Quo deve também considerar provado que RESULTA CLARAMANTE UM PERIGO E UM RISCO ELEVADO PARA A GARANTIA DO REQUERENTE; TOTALMENTE MERECEDOR DO PROVIMENTO DO PRESENTE ARRESTO DE BENS
31- O tribunal Quo deve também considerar provado que o Arresto a decretar, se trata de uma situação sui generis, que merece a tutela Urgente da Justiça, pois foi demonstrada a especificidade de como as coisas foram efetivadas pelos requeridos; merecedores no mínimo de extrema censura e atuação rápida pelo tribunal.
32- O tribunal Quo deve também considerar provado que A REVOGAÇÂO DA PROCURAÇÂO por receio que o 1º requerido lhe vendesse a sua casa, sem o seu conhecimento como o fez com os terrenos; ( minuto 18,30 segs até 9,20 segs),
33- O tribunal Quo deve também considerar provado que se demonstrou o justo receio da Requerente, o que a levou a de imediato efetuar a revogação da procuração passada ao 1º requerido;
34- O tribunal Quo deve também considerar provado que o 1º Requerido detém problemas de saúde, o que atenta á idade de 91 anos, pode, á luz das regras de experiência comum, ser também um risco acrescido para a garantia do crédito da requerente;
35- O tribunal Quo deve também considerar provado que Não estamos perante um RECEIO COMUM A QUALQUER CREDOR COMUM, pois toda a situação em concreto que foi narrada é “suigeneris”, sendo especialmente criada pelos recorridos, pelo que impera que a solução passe pelo presente incidente especial de Arresto.
36- O tribunal Quo deve também considerar provado o Justo receio da requerente, atestada pela revogação a procuração.
37- O tribunal Quo deve também considerar provado qua a conduta dos Requeridos é Demonstrativa do justo receto de perda da garantia patrimonial, pois verifica-se que poderiam os requerido fazer a venda dos prédios restantes , como possibilitava a procuração usada, não fosse a requerente ter imediatamente revogado a mesma.
38- Deverá ser REVOGADA A DECISÂO DE INDEFERIMENTO DO ARRESTO, SUBSTITUINDO POR DECISÂO DE PROCEDENCIA, decretando o ARRESTO DE BENS DOS REQUERIDOS TOTALMENTE EM TODOS OS SEUS PEDIDOS, sob pena de “os meios legais comuns de cobrança” se tornarem completamente vazios, inócuos e contraproducentes, dada a consciência e estratégia que a Requerida adota para protelar o pagamento das suas dívidas;
Por conseguinte
Requer-se a Vªas EXªas, a Revogação da Sentença proferida, na sua totalidade, Julgando o procedimento cautelar totalmente procedente por verificação justo receio de perda da garantia patrimonial da requerente, sob pena de “os meios legais comuns de cobrança” se tornarem completamente vazios, inócuos e contraproducentes, dada a consciência e estratégia que os Requeridos adotaram para impossibilitar a garantia do crédito da requerente.”
I.C.
Não havendo contraditório não houve resposta.
I.D.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Após os vistos, cumpre decidir.
As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Assim, no caso, impõe-se apreciar:
a. Impugnação da matéria de facto;
b. Verificação dos requisitos para a procedência da providência requerida.
III.A. Fundamentação de facto:
III.A.1 Impugnação da matéria de facto:
Quando impugna a matéria de facto, o recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil.
De tal preceito decorre que na impugnação da matéria de facto a lei exige o cumprimento pelo Recorrente dos seguintes requisitos cumulativos:
1. a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
2. a indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados;
3. a indicação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto aos indicados pontos da matéria de facto;
4. a indicação, com exatidão, das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, isto quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sem prejuízo da faculdade que a lei concede ao Recorrente de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Estes requisitos impostos para a admissibilidade da impugnação da decisão de facto têm em vista garantir uma adequada delimitação do objecto do recurso, não apenas para circunscrever o âmbito do poder de cognição do Tribunal de recurso, mas também para que a outra parte tenha a possibilidade de exercer o contraditório com o âmbito previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 640.º, designadamente indicando os meios de prova que, a seu ver, infirmem as conclusões do recorrente.
O que se visa é circunscrever a reapreciação do julgamento efetuado a pontos concretos da matéria controvertida, uma vez que os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto não visam a realização de um segundo julgamento de toda a matéria de facto, devendo consequentemente recusar-se a admissibilidade de recursos genéricos contra uma invocada errada decisão da matéria de facto.
Quando falte a especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, deve ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, o mesmo sucedendo quanto aos restantes dois requisitos, nomeadamente a falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos (ver António Abrantes Geraldes[1]).
Como se sumariou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/2022 (processo n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1[2]):
“I. Os ónus primários previstos nas alíneas a), b) e c) do art.º 640.º do CPC são indispensáveis à reapreciação pela Relação da impugnação da decisão da matéria de facto.
II. O incumprimento de qualquer um desses ónus implica a imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.”
No mesmo sentido, sumariou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/02/2024 (processo n.º 2351/21.1T8PDL.L1.S1[3]): “Para o cumprimento do ónus de especificação do art. 640.º, n.º 1, do CPC, os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios e à exigência da decisão alternativa, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação”.
Também para esta solução aponta a jurisprudência constante deste Tribunal, de que é exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10/10/2024 (processo n.º 1109/21.2T8ENT.E1[4]).
Não está prevista a possibilidade de convidar o recorrente a aperfeiçoar as alegações de recurso quanto ao incumprimento dos ónus impostos a quem impugne a decisão relativa à matéria de facto.
De todo o modo, a rejeição não opera em bloco. Deve avaliar-se cada um dos concretos pontos impugnados, só se rejeitando o recurso onde fique afectada gravemente a análise do recurso ou a contraditoriedade pela parte contrária (ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/01/2024, processo n.º 1007/17.4T8VCT.G1.S1[5]). Em suma, rejeita‑se a impugnação onde for inviável o seu conhecimento.
No caso concreto, à excepção do ponto 15 das suas conclusões, não indica quais os pontos concretos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, além de que mistura desnecessariamente e sob a mesma capa, manifestação de discordância quanto à matéria de facto e ao julgamento de direito.
Assim, apenas se apreciará a impugnação no tocante à matéria indicada no ponto 15 das conclusões: invoca a recorrente que o facto provado 13 está em contradição com o facto provado 4.
Tudo sem embargo de se dever considerar a prova plena que resulta dos autos para, pontualmente e quando for caso disso, se alterar a matéria de facto (neste sentido, ver Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02/11/2017, processo n.º 212/16.5T8MNC.G1[6]): “quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607º, nº 4 do C.P.C., aqui aplicável ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo diploma”).
Quanto ao facto indiciariamente provado sob o n.º 13 da decisão recorrida o mesmo é do seguinte teor: “O 1º Requerido é dono de uma casa de habitação, de quatro prédios rústicos, de um veículo automóvel e de máquinas agrícolas”. Já o ponto 4 desse mesmo elenco é o seguinte teor: “O contacto entre a Requerente e o 1ª Requerido tem vindo a deteriorar-se”.
Não se vê como é que um pode estar em contradição com o outro nem em que é que o pouco contacto entre pai e filha pode contender com o património daquele. Improcede, por isso, essa parte da impugnação.
Deve alterar-se, no entanto, o ponto 8 dos factos indiciariamente provados para nele fazer constar o facto e não uma conclusão, tal como deriva da certidão junta aos autos: o 1.º requerido nasceu no dia .../.../1934.
Igualmente resulta da certidão da escritura de 7/08/2024 junta aos autos que o valor da venda foi de 200.000,00€, mas sendo a nua propriedade pelo preço de 180.000,00€ e o usufruto pelo preço de 20.000,00€ (e, como tal, se deve alterar o ponto 6 dos factos indiciariamente provados).
Finalmente, haverá que rectificar o lapso de escrita que consta do ponto 12 dos factos indiciariamente provados e adequar a sua redacção ao que resulta da certidão junta: a requerente revogou a procuração por escritura de 2/10/2024.
Quanto ao mais, improcede a impugnação da matéria de facto.
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III.B.2. Factos provados:
Considera-se, por isso e com as alterações referidas, a seguinte matéria de facto indiciariamente provada:
1. O 1º Requerido foi casado com DD sob o regime da comunhão geral de bens, tendo a mesma falecido em .../.../2021, tendo deixado como herdeiros o 1º Requerido, a Requerente e mais três filhos;
2. No entanto, antes da morte daquela, em 18/12/2013 foi efetuado Escritura De Doação, onde a falecida e o 1º requerido doaram à Requerente, os prédios:
- Fração Autónoma, designada pela letra “ B”, correspondente ao rés do chão esquerdo, destinado a habitação, com entrada pelo nº 32 Esquerdo da ..., do prédio urbano sito na ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho, sob o número ..., inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo 1902 da união de freguesias de ... e ...);
- prédio rústico denominado “...”, com área de três hectares mil duzentos e cinquenta centiares, situado na freguesia de ...), concelho de ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de ..., sob o número ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 117 da seção A, da freguesia de ...) extinta;
- prédio rústico denominado “...”, com área de três hectares e seis centiares, situado na freguesia de ...), concelho de ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de ..., sob o número ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 114 da seção A, da freguesia de ...) extinta;
3. A referida Doação foi efetuada por conta da quota disponível, com reserva de usufruto para o 1º Requerido e falecida mulher;
4. O contacto entre a Requerente e o 1ª Requerido tem vindo a deteriorar-se;
5. Em .../.../2024 os prédios agora anexados no prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de ...; sob a ficha nº ..., denominado “...”, inscrito na matriz predial atual 212, seção A foram vendidos com recurso a uma procuração que a Requerente havia outorgado conferindo poderes ao 1º Requerido para além do mais vender os prédios doados;
6. O valor da venda foi de 200.000,00€, sendo a nua propriedade pelo preço de 180.000,00€ e o usufruto pelo preço de 20.000,00€.
7. A referida procuração não atribui ao 1º Requerido poderes para receber o preço da venda, assim como não atribui poderes para proceder à quitação do recebimento do mesmo, em nome da Requerente.
8. O 1º Requerido nasceu no dia .../.../1934;
9. A Requerente não tinha conhecimento nem autorizou a venda;
10. A Requerente não recebeu o produto da venda do imóvel;
11. O referido montante foi pago através de transferência bancária para o ..., titulada pela 2ª Requerida;
12. A Requerente revogou a procuração em 02/10/2024;
13. O 1º Requerido é dono de uma casa de habitação, de quatro prédios rústicos, de um veículo automóvel e de máquinas agrícolas;
14. A Requerente desconhece o atual património da 2ª Requerida;
15. A Requerente trabalha por conta própria como empregada de limpezas.
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III.B.3. Factos não provados:
Não existem factos não provados.
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III.C. Fundamentação jurídica:
Os procedimentos cautelares, em geral, são o tipo de medidas que são requeridas e decretadas tendo em vista acautelar o efeito útil de uma acção, mediante a composição dos interesses em conflito, mantendo ou restaurando a situação de facto antes da eventual realização efectiva do direito.
Neste sentido, ensina Antunes Varela[7] que: “As denominadas providências cautelares visam precisamente impedir que, durante a pendência da acção declarativa ou executiva (e antes mesmo da sua instauração), a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou perto dela. Pretende-se deste modo combater o periculum in mora (o prejuízo da demora inevitável do processo), a fim de que a decisão se não torne uma decisão puramente platónica”.
Dispõe o artigo 619.º do Código Civil que o credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto dos bens do devedor. No mesmo sentido vai o artigo 391.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
O arresto é um meio de conservação da garantia patrimonial dos credores e integra‑se na figura genérica do procedimento cautelar, porque se propõe afastar o perigo da demora da decisão a proferir.
Para que se decrete basta que, sumariamente, se conclua pela séria probabilidade da existência do crédito e ainda pelo justificado receio de que a natural demora na resolução definitiva do litígio conduza à perda da garantia patrimonial.
Resulta, assim e em suma, que são dois os requisitos exigidos por lei para o decretamento do arresto: a existência do crédito e o justo receio de perda da garantia patrimonial.
Ora, o receio justificado, o justo receio, deverá aferir-se mediante critérios objectivos, basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com a experiência comum, aconselhem uma decisão cautelar imediata, sob pena de total ineficácia da acção declarativa ou executiva.
A doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que a certificação deste segundo requisito não se basta com um juízo de probabilidade, tornando-se necessário um juízo de realidade ou certeza ou, pelo menos, um receio fundado. Não basta, portanto, um qualquer simples receio, que pode corresponder a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, num exame precipitado das circunstâncias.
Em anotação ao referido artigo 362.º do Código de Processo Civil, explicam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[8] que “não basta a prova sumária no que respeita ao periculum in mora, que deve revelar-se excessivo: a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer ação; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito”.
Nas palavras de Antunes Varela[9], “para que se prove o justo receio (como quem diz o receio justificado e não apenas receio) da perda da garantia patrimonial, não basta a alegação de meras convicções, desconfianças, suspeições de carácter subjectivo. É preciso que haja razões objectivas, convincentes, capazes de explicar a pretensão drástica do requerente, que vai subtrair os bens ao poder de livre disposição do seu titular”.
António Abrantes Geraldes[10] defende que o justo receio da perda de garantia patrimonial “pressupõe a alegação e prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito”.
Ora, em face dos factos que indiciariamente resultaram provados não se vislumbra que esteja reunido o segundo e decisivo requisito para que seja decretado o arresto.
A idade do requerido, só por si e sem se saber qual o valor do seu património e das suas dívidas, não constitui nenhum critério válido (pois, mesmo em caso de decesso, a sua herança sempre responderá pelas suas dívidas – cf. artigo 2068.º do Código Civil).
Naturalmente que o esfriar das relações familiares também não é suficiente para justificar qualquer dificuldade ou impossibilidade de cobrança do crédito.
Como se decidiu de forma lapidar no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26/05/2022 (processo n.º 2460/21.7T8STB.E1[11]): “Não fica indiciada a existência desse requisito se não forem demonstrados factos concretos de onde se possa concluir que é fundado o receio de perda da garantia patrimonial do crédito alegado, nomeadamente se nada se sabe sobre a situação patrimonial dos alegados devedores”.
A requerente nada provou quanto ao valor do património dos requeridos (sendo certo, quanto ao primeiro requerido, que tendo este 4 filhos, doou 3 imóveis à requerente – dois deles, rústicos, com valor actual de 200.000,00€ – por conta da quota disponível: a significar que terá um património total muito superior).
É que o crédito do credor é garantido por todo o património do devedor (cf. artigos 601.º e 817.º do Código Civil). E mesmo que o devedor venha a falecer, só depois de pagas as dívidas é que se vai partilhar o património pelos herdeiros (cf. o já citado artigo 2068.º do Código Civil), pelo que não procede, também, a argumentação da recorrente de que iria concorrer com os seus irmãos.
Assim, mesmo que se tenha por indiciariamente provada a existência de um crédito (que, no caso, seria de 180.000,00€, correspondente ao preço da nua propriedade que lhe pertencia e não do valor indicado pela requerente por abranger o usufruto, direito que não estava na sua esfera jurídica), não se podendo ter por verificado o outro dos requisitos de que, cumulativamente, depende o decretamento do arresto, nunca poderá este ser determinado, pelo que improcede a pretensão da requerente.
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As custas do presente recurso deverão ficar a cargo da recorrente, por ter ficado vencida, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
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IV. DECISÃO:
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirma-se a decisão recorrida.
Condena-se a apelante nas custas do recurso.
Notifique.
Évora, 13 de Fevereiro de 2025
Filipe Aveiro Marques
Filipe César Osório
Fernando Marques da Silva
1. Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição, Almedina, pág. 200 e ss..↩︎
2. Acessível em https://www.dgsi.pt/JSTJ.NSF/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/526a06e36e808e84802587e3003cb7ce.↩︎
3. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1007b672c0f9ed2980258ad6005cfad7.↩︎
4. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/009a5f03f424577380258bc5005038be.↩︎
5. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2d914831f90a3c4d80258aaf006040d2 e https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/1007-2024-877464275.↩︎
6. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/60b3c297e4f932ed8025820f0051557d.↩︎
7. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra Editora, Reimpressão, pág. 23.↩︎
8. Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3.ª Edição, Almedina, pág. 8.↩︎
9. Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª Ed., Almedina, pág. 465, nota 1.↩︎
10. Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, 2ª Edição, pág. 186.↩︎
11. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/f004c7fd7e0bfe01802588600031d397.↩︎