MATÉRIA DE FACTO
USUCAPIÃO
Sumário

Sumário:
1. Não será de admitir na resposta à matéria de facto expressão que contenda directamente com o objecto da causa e com uma análise jurídica que não pode ser feita nesse âmbito.
2. A usucapião é uma forma de aquisição originária da propriedade que se abstrai por completo do direito do proprietário anterior.

Texto Integral

Apelação n.º 831/18.5T8TMR.E1
(1.ª Secção)




Relator: Filipe Aveiro Marques


1.º Adjunto: Filipe César Osório


2.ª Adjunta: Sónia Moura






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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO:

I.A.


AA intentou acção declarativa contra HERANÇA ILIQUIDA e INDIVISA aberta por óbito de BB, representada pela cabeça de casal, CC e demais herdeiros DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, CC, KK.


Atento o falecimento do Réu LL foram habilitados os seus herdeiros: o cônjuge sobrevivo DD e os filhos LL; MM; e NN ROCHA.


Atento o falecimento do Réu EE foram habilitados OO e PP.


Atento o falecimento da Ré CC foi habilitada KK.


Atento o falecimento da Autora QQ foram habilitados RR e SS.


Após julgamento, foi proferida sentença pelo Juízo Local Cível de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., que terminou com o seguinte dispositivo:

Por tudo o exposto, julgo a ação totalmente procedente e, em consequência, decide-se:

a) declarar que a Autora (agora os habilitados RR e SS) é dona do um prédio urbano composto de casas com sete divisões no 1º andar e cinco divisões no rés do chão e talho de terra pegado com 10 oliveiras, uma figueira e um poço, sito no lugar de ..., freguesia de ..., correspondente a metade do artigo urbano nº 923 e ao artigo rústico nº 8959, ambos da freguesia de ..., que fazem parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob a descrição nº 24277, da mesma freguesia, e corresponde às áreas dos artigos 139 H e 140-H, com as áreas de 4.039,82m2 e de 8.571,18 m2, a confrontar do norte com EE, a sul com TT e UU, a nascente com estrada e a poente com ribeiro;

b) determinar a retificação matricial aos serviços da AT e o registo predial em conformidade.

c) declarar que a Autora (agora os habilitados RR e SS) é também dona da parcela de terreno identificada no ponto 20 dos factos provados (parcela de terreno, situada a nascente da estrada que liga as localidades de ... a ... da atual freguesia de ..., com a área de 250m2, destinada a logradouro do mesmo) e que a mesma constitui o logradouro da casa de habitação correspondente ao mencionado artº 1908º.

Custas a cargo dos RR (artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil).

I.B.

Os réus vieram recorrer e apresentaram alegações que terminam com as seguintes conclusões:

A – Recorre-se da decisão que pôs termo ao processo.

B.- É que, salvaguardando o mui e elevado respeito que nutrimos pela Exma Juiz e pelo Tribunal, esta decisão e douta sentença desconsiderou a prova documental constante dos autos, fez uma errónea interpretação da prova produzida e carreada para o processo, incorreu em erro na aplicação do direito ao caso concreto por oposição entre a fundamentação e a decisãoe ainda em omissão de pronúncia e excesso de pronúncia; erro na aplicação do direito ao caso e ainda de violação do artigo que resulta na sua Nulidade.

C.- A censura à douta sentença corporiza-se na circunstância do tribunal ter incorrectamente julgado os Factos Provados sob n.º 11, 12 segunda parte a partir de “ e na realidade …”14º a 17º, 18º quanto à palavra “invadir”, 19º a partir de “ embora fosse sempre…” 21º, 22º 27º, até “ da Ré CC”, 31º, 34º, 35º a partir de “ quando…” a 42 da matéria de facto dada como provada, e ter dado como não provada a matéria inserta nos ponto I A VIII dos Factos não provados, o que expressamente se impugna pelo presente recurso. Isto porque a douta sentença se encontra em desconformidade com a prova documental, com a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento e ainda com a que consta dos demais elementos dos autos, devidamente ponderados e conjugados com as presunções judiciais decorrentes das regras da experiência e do normal decidir;

D.- Uma vez que resulta, nomeadamente, da escritura de doação de 16/03/1951, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, das inscrições matriciais, das descrições prediais constanes deste processo, das reclamações cadastrais feitas pela própria então autora e entretanto falecida QQ, do teor das declarações, tomadas como de parte, dos ora Recorrentes FF, GG e KK e dos depoimentos prestados pela testemunha VV e até mesmo das restantes, que o Tribunal de Primeira Instância não poderia ter dado como provado tais factos, isto é, que os recorridos são donos e legitimos proprietários de um prédio urbano composto de casas com sete divisões no rés do chão e talho de terra pegado com dez oliveiras, uma figueira e um poço, sito no lugar de ..., freguesia de ..., correspondente a metade do artigo urbano nº923 e ao artigo rústico nº 8959, ambos da freguesia de ..., que fazem parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob a descrição nº24277, da mesma freguesia, e corresponde às áreas de 4.039,82m2 e de 8.571,18m2, a confrontar do norte com EE, a sul com TT e UU, a nascente com estrada e a poente com ribeiro e da parcela de terreno com plantação de eucaliptos situada a nascente da estrada que liga as localidades de ... a ... da atual freguesia de ..., com a área de 250 m2, destinada a logradouro do mesmo e que constitui o logradouro da casa de habitação correspondente ao artigo 1908º.

E.- Pois que, a própria confissão feita pela então autora, mãe dos habilitados e ora recorridos, nos requerimentos de reclamação ao cadastro datados de 1996 e 2010 juntos aos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, demonstram ser proprietária apenas do que lhe foi efetivamente doado por escritura de 16/03/1951, isto é, metade do artigo urbano nº 923 e do talho de terra pegado correspondente ao antigo artigo rústico da freguesia das areias sob o artigo 8959, reconhecendo e declarando por escrito, que ao prédio que lhe havia sido doado em 1951, não pertencia a parcela com 7.000 m2, que pertence á herança iliquida e indivisa da BB, nem a área sobrante de 13.400m2, cuja desanexação pediu, o que corresponde à realidade e foi aceite na contestação.

F. E por isso pediu a retificação, desanexação e redução dessa área, o que depois registou na conservatória do registo predial de ..., em conformidade sob a descrição 24277.

G.- Cotejando o teor literal da escritura pública de doação outorgada a seu favor, pela falecida BB, no estado de viúva e dos demais documentos, extrai-se a verdade factual com interesse para a decisão que se censura, isto é, deles resulta claramente o conhecimento por parte dos recorridos, das áreas concretas que foram efetivamente adquiridas pela autora, por escritura de doação; correspondente a uma casa e um talho de terra conforme consta, aliás, dos factos provados, descrito na Conservatória do Registo Predialde ... sob o nº 24277.

G.- Dai que, também nunca poderia essa autora, nem os recorridos ter adquirido por usucapião tais áreas, que lhe não pertencem só a si, mas a todos os herdeiros da dita herança indivisa, a partir da data desse reconhecimento, isto é, depois de 2010, uma vez que desde daí até à data da entrada da presente ação - até 2018- passaram apenas cerca de sete anos, de uma eventual posse não titulada e de má fé.

H. Em suma, da análise daquelas declarações e dos citados documentos, verifica-se que foi a Autora, mãe dos recorridos, quem indicou precisamente ao Serviço de Finanças qual a área que lhe pertence, sendo que nunca adquiriram quer por escritura quer por usucapião, os prédios com os artigos matriciais 139º e 140º com as áreas de 4.039,82 m2 e de 8.571,18m2, tendo o douto Tribunal recorrido errado ao não valorar ao não valorar os elementos documentais juntos, sobretudo do procedimento cadastral.

I.- No caso em apreço, a posse dos recorridos terá de haver-se como não titulada, porque do titulo- escritura de doação e da descrição registral, não constam as áreas a que se arroga, e a usucapião de imóveis, não havendo título, dá-se ao termo de vinte ou quinze anos, consoante a posse seja de má fé ou de boa fé, respectivamente - art. 1296º C.Civil. No caso dos autos, estando-se perante uma posse não titulada, a mesma presume-se de má-fé, nos termos do art 1260º, nº2 do CC, sendo que essa presunção é ilidível e não o foi.

J.- Resumindo:

-Em 2010, a autora confessa e declara por reclamação cadastral, que as àreas sobrantes, que agora reclama nesta ação, não integram o imóvel objecto da escritura de doação outorgada em 1951, por fazerem parte da herança iliquida e indivisa por óbito de BB;

-O recorrente EE, neto da doadora BB, filho da falecida WW, que era irmã da Autora- facto provado sob o ponto 18- sempre usou e desfrutou dessa área sobrante pertencente à herança, em causa, procedendo à poda das oliveiras e cortava a relva, ainda que deste ponto conste que invadiu desde há 5 , 6 anos..

- Pelo que, quem se lembrou e decidiu invadir a área pertencente à herança em causa, há cerca de 5, 6 anos, depois de 2010 e antes da 2018- data de entrada da presente ação, foi a autora e os seus filhos os ora recorridos e não este EE, este,enquanto herdeiro daquela herança indivisa, como claramente decorreu de toda a prova produzida e decorre até dos factos 18 e 28, 29, 30 da fundamentação de facto. Sendo esta posse, dos recorrentes sim, titulada;

-Sendo que, por outro lado, a data do inicio da contagem da alegada situação possessória invocada pelos recorridos,com vista à aquisição do direito de propriedade por usucapião das áreas em litigio, se fixa sempre depois de 2010; isto é, depois da confissão e reconhecimento acima referido, ainda que em clara contradição com a mesma;

- Enquanto que a posse dos recorridos, se existisse era sempre não titulada;

L.- A que acresce o facto de, quanto mais não fosse, mesmo que se admitisse que a demonstração da oposição por parte dos recorrentes tinha ocorrido só há cerca de 5, ou 6 anos, antes da entrada em juízo da presente ação em 2018, o que apenas por exercicio académico se equaciona, sempre teria esta alegada posse de reunir as características que permitissem ilidir a presunção de má-fé, resultante da ausência de título. Sim, porque o título que possuem – escritura de doação e registo predial - não se se reportam às áreas que agora reclamam, mas só ao que lhes foi doado.

M.- Por esta razão, a alegada posse exercida pelos recorridos sobre tais áreas/parcelas em disputa, só podia ter sido qualificada como uma posse de má-fé, com inicio por volta 2003 (depois de 2010- data das declarações cadastrais e 5, 6 anos e antes da entrada da ação em juízo), pelo que, terão passado apenas 5, 6 anos e não os 20 anos que a lei exige para a aquisição, por usucapião, de um imóvel, quando não existe registo do título, – art.º 1296º do C. Civil, à data da instauração da presente ação em juízo.

N.- Aliás, os Apelados actuaram mesmo com manifesto abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, ao terem deduzido a presente pretensão por via desta ação, tendo oito anos antes subscrito as sobreditas declarações/reclamações cadastrais, fazendo acreditarão Tribunal, que as áreas e parcelas da herança ainda por partilhar da falecida BB também lhe pertenciam, no intuito de subverter a vontade desta doadora e locupletar-se à custa dos irmãos e demais herdeiros. O que surpreende e injustamente logrou conseguir, dai a necessidade do presente recurso.

O.- E assim, este douto Tribunal, a não ter julgado improcedente a pretensão dos ora recorridos, revela-se incorrecta, por lhes reconhecer aquele direito à extensa área de terreno que pertence à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB e assim a todos os seus herdeiros, CC, DD Pimenta Rocha, EE, FF, GG, HH, II, JJ, CC, KK. à revelia de toda a prova produzida e em detrimentos do direito destes seus verdadeiros e legitimos proprietários dos prédios descritos nas alineas a) e c) da decisão final ora impugnada.

P.- Ademais, mesmo tendo em consideração os factos dados como provados na douta sentença proferida pela 1ª Instância, sob os pontos 18º, 28º, 29º e 30º da fundamentação de facto, a sua valoração sempre teria que ter conduzido a uma decisão de improcedência desta ação e não o tendo feito, violou a douta sentença, as disposições conjugadas dos artigos 608º, 1251º, 1259.°, 1260.°, 1287.°, 1288º, e 1294º, 1295.°, nº 1, aLa), 1296º, todos do Código Civil e 195º e 615º números 1 d) e e)do Cpcivil..

Q.- Pelo que, deve ser determinada a modificação da matéria de facto, designadamente devendo constar como não provados os factos constantes da fundamentação de facto sob os pontos 17), 21) a 27) ) do segmento da decisão recorrida nos termos propugnados nestas alegações, em termos de serem considerados como não provados, devendo ser retirado do ponto 18) o verbo invadir” , do facto 19) ” embora fosse sempre a A. que efectuava o respetivo amanho da terra, e ali efectuava as sementeiras atrás referidas”.

R.- Quanto aos factos dados como não provados sob os números I a VII dos” devem estes ser dados como provados e, por consequência de tal modificação, deve ser concedido provimento ao recurso, com as legais consequências;

S.- Verificadas as nulidades enunciadas, deve decretar-se a nulidade da sentença ora recorrida, com as legais consequências;

T. .- Ou, quando assim se não entenda,

U.- Deve ser concedido provimento à presente Apelação,

Termos em que, e nos demais de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser declarada nula a sentença recorrida, julgando totalmente improcedente a presente ação,

Fazendo-se assim a habitual e necessária justiça!

I.C.

Não houve resposta.


I.D.


O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.


Após os vistos, cumpre decidir.



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II. QUESTÕES A DECIDIR:

As conclusões das alegações de recurso delimitam o respetivo objecto de acordo com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, mas não haverá lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).


Assim, no caso, impõe-se apreciar:

a. Invocadas nulidades da sentença;

b. Impugnação da matéria de facto;

c. Eventual erro de julgamento quanto aos requisitos da aquisição originária da propriedade.



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III. FUNDAMENTAÇÃO:

III.A. Apreciação das invocadas nulidades da sentença recorrida:

Invocam os recorrentes (alíneas B) e S) das suas conclusões) a nulidade da decisão recorrida.


Pela simples análise da redacção de grande parte da pretensão dos recorrentes nesse domínio (onde alude a “errónea interpretação”, “erro na aplicação do direito” e “violação do artigo” sem dizer qual ele seja…), bem se vê que não está em causa nenhuma das alíneas do artigo 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, mas uma simples manifestação de descontentamento relativamente ao sentido da decisão.


Estabelece o indicado artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que:

É nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”.

Em face da letra e espírito da lei não pode confundir-se entre a nulidade da decisão e a discordância quanto ao resultado. E entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida.


Apenas será nula a sentença, ao abrigo da alínea b), quando não especifique os fundamentos de facto e direito. Apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão pode incluir-se na previsão legal (neste sentido ver António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa[1] e, entre muitos outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/06/2016, processo n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1[2]).


Perante o teor da decisão recorrida bem se vê que ali consta o elenco dos factos pertinentes e a análise do direito que se considerou aplicável. A discordância da recorrente não acarreta a nulidade da decisão, como bem se compreende, pelo que improcede a sua alegação nesta parte.


Invocam os recorrentes, mas sem concretizar, que ocorre “oposição entre a fundamentação e a decisão”.


Quanto à nulidade prevista na referida alínea c), do artigo 615.º do Código de Processo Civil, a mesma ocorre quando exista ininteligibilidade (o que, no caso, não se verifica, dada a clareza da decisão) ou quando a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final (o que, evidentemente, também não ocorre – pois toda a argumentação, quer de facto, quer de direito, aponta no sentido da decisão que veio a ser tomada). Esta nulidade não se pode confundir com o eventual erro de julgamento, pelo que igualmente improcede a alegação da recorrente nesta parte.


Finalmente, invocam os recorrentes (mais uma vez sem concretizar) que ocorreu, ao mesmo tempo, omissão de pronúncia e excesso de pronúncia.


A omissão de pronúncia está relacionada com o disposto no artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, onde se exige ao juiz que resolva todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cujas decisões estejam prejudicadas pela solução dada a outras.


Mas são coisas diferentes deixar de conhecer de questão de que devia conhecer‑se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Na verdade, “importa não confundir questões colocadas pelas partes, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido. As questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as exceções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio” (nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/04/2024, processo n.º 1610/19.8T8VNG.P1.S1[3]).


O excesso de pronúncia ocorre quando o tribunal conhece de questões que, não tendo sido colocadas pelas partes, não são de conhecimento oficioso. E essas questões são as que integram matéria decisória, os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções (neste sentido, por exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/11/2005, processo n.º 05S2137[4]).


Não se vislumbra, nem os recorrentes o dizem, que a sentença tenha deixado de conhecer alguma questão relevante para apreciação do pedido ou que tenha conhecido de alguma questão (pedido ou excepção) que não tenha sido expressamente invocada.


Improcede, por isso, esta parte da apelação.



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III.B. Fundamentação de facto:

III.B.1 Impugnação da matéria de facto:

Quando impugna a matéria de facto, o recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição, conforme preceituado no artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil.


De tal preceito decorre que na impugnação da matéria de facto a lei exige o cumprimento pelo Recorrente dos seguintes requisitos cumulativos:

1. a indicação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

2. a indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados;

3. a indicação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto aos indicados pontos da matéria de facto;

4. a indicação, com exatidão, das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, isto quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sem prejuízo da faculdade que a lei concede ao Recorrente de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.


Estes requisitos impostos para a admissibilidade da impugnação da decisão de facto têm em vista garantir uma adequada delimitação do objecto do recurso, não apenas para circunscrever o âmbito do poder de cognição do Tribunal de recurso, mas também para que a outra parte tenha a possibilidade de exercer o contraditório com o âmbito previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 640.º, designadamente indicando os meios de prova que, a seu ver, infirmem as conclusões do recorrente.


O que se visa é circunscrever a reapreciação do julgamento efetuado a pontos concretos da matéria controvertida, uma vez que os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto não visam a realização de um segundo julgamento de toda a matéria de facto, devendo consequentemente recusar-se a admissibilidade de recursos genéricos contra uma invocada errada decisão da matéria de facto.


Quando falte a especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, deve ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, o mesmo sucedendo quanto aos restantes dois requisitos, nomeadamente a falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos (ver António Abrantes Geraldes[5]).


Como se sumariou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/2022 (processo n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1[6]):

I. Os ónus primários previstos nas alíneas a), b) e c) do art.º 640.º do CPC são indispensáveis à reapreciação pela Relação da impugnação da decisão da matéria de facto.

II. O incumprimento de qualquer um desses ónus implica a imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.

No mesmo sentido, sumariou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/02/2024 (processo n.º 2351/21.1T8PDL.L1.S1[7]): “Para o cumprimento do ónus de especificação do art. 640.º, n.º 1, do CPC, os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios e à exigência da decisão alternativa, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação”.


Também para esta solução aponta a jurisprudência constante deste Tribunal, de que é exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10/10/2024 (processo n.º 1109/21.2T8ENT.E1[8]).


Não está prevista a possibilidade de convidar o recorrente a aperfeiçoar as alegações de recurso quanto ao incumprimento dos ónus impostos a quem impugne a decisão relativa à matéria de facto.


De todo o modo, a rejeição não opera em bloco. Deve avaliar-se cada um dos concretos pontos impugnados, só se rejeitando o recurso onde fique afectada gravemente a análise do recurso ou a contraditoriedade pela parte contrária (ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/01/2024, processo n.º 1007/17.4T8VCT.G1.S1[9]). Em suma, rejeita‑se a impugnação onde for inviável o seu conhecimento.


No caso concreto, impõe-se verificar que os recorrentes apenas em parte cumprem os requisitos principais para a impugnação da matéria de facto (artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).


Na verdade, na conclusão C) das suas alegações os recorrentes vêm dizer que o Tribunal a quo julgou incorrectamente os factos provados n.ºs 11, 12, 14.º a 17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, 27.º, 31.º, 34.º, 35.º a 42.º e os pontos I a VIII dos factos não provados.


Já nas conclusões Q) e R) das suas alegações é que vêm dizer que devem “constar como não provados os factos constantes da fundamentação de facto sob os pontos 17), 21) a 27) do segmento da decisão recorrida nos termos propugnados nestas alegações, em termos de serem considerados como não provados, devendo ser retirado do ponto 18) o verbo “invadir”, do facto 19) “embora fosse sempre a A. que efectuava o respetivo amanho da terra, e ali efectuava as sementeiras atrás referidas”” e que quanto aos “factos dados como não provados sob os números I a VII (…) ” devem estes ser dados como provados”.


Ora, percorrendo as restantes conclusões e todas as alegações dos recorrentes, em lado algum se diz o que pretendem quanto aos pontos 11, 12, 14 a 16, 31, 34, 35 a 42 do elenco dos factos provados. Nessa parte, por falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos, impõe-se a rejeição imediata da impugnação quanto à matéria de facto (ressalvado o que mais à frente se dirá quanto ao ponto 12).


Quanto aos restantes pontos (17, 18, 19 e 21 a 27 do elenco dos provados e I a VIII do elenco dos não provados), em que dizem expressamente qual a alteração pretendida, pode dizer-se estarem cumpridos os ónus principais a cargo dos recorrentes.


Importa considerar, por outro lado, que para fundar a sua discordância conjunta a todos esses factos os recorrentes invocam (ver alínea D) das suas conclusões e que reproduz o segundo parágrafo da terceira folha das suas alegações) o teor de uma escritura e as declarações de parte e os depoimentos da “testemunha VV” e “até mesmo das demais”. No último parágrafo da folha cinco das suas alegações, os recorrentes acrescentam a essa fundamentação os documentos 1 e 2 juntos com a contestação.


Ora, em relação às declarações de parte e depoimentos das testemunhas, os recorrentes limitam-se a uma remissão genérica que não cumpre minimamente a intenção legal, pois deixam indefinidas quais as efectivas declarações e, daquelas que indicam, quais os momentos relevantes em que foram produzidas (com relação à indicação da passagem da gravação) e devolvem ao Tribunal a sua completa identificação. E, no caso, até deixam em aberto a identificação de quais as testemunhas a que se referem, tornando impossível a tarefa de perceber quais serão as passagens dos respectivos depoimentos.


Desse modo, a impugnação não corresponde à exigência decorrente da alínea a), do n.º 2, do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o que sempre implicaria a rejeição do recurso também nesta parte.


Ainda que se possa fundar a impugnação da matéria de facto na simples remessa para determinada prova documental junta aos autos e, desse modo, considerar válida a impugnação feita neste caso (ou seja, quando os recorrentes indicam uma escritura e requerimentos de reclamação ao cadastro), a verdade é não foi essa a intenção dos recorrentes (pois sempre conjugam esses documentos com depoimentos e declarações).


De todo o modo, não se tratando da invocação de uma aquisição derivada (em que a prova documental pode assumir importância crítica) mas de uma aquisição originária (bastando ver a fundamentação feita na sentença recorrida), naturalmente que os documentos indicados, só por si, não bastam nem para demonstrar, nem para infirmar os efectivos actos de posse que foram praticados sobre os imóveis pelos interessados. Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/06/2006 (processo n.º 06A1471[10]): “Invocada a usucapião como forma de aquisição, justamente porque de aquisição originária se trata, irrelevam quaisquer irregularidades precedentes e eventualmente atinentes à alienação ou transferência da coisa para o novo titular, sejam vícios de natureza formal ou substancial. O que passa a relevar e a obter tutela jurídica é a realidade substancial sobre a qual incide a situação de posse”.


Não pode, por isso e quanto aos factos em causa, bastar-se essa prova documental para se alterar a resposta dada pelo Tribunal a quo (que fundou a sua decisão na conjugação dos documentos com os depoimentos das testemunhas que, conforme se fundamentou, “frequentaram o local, esclareceram o modo como a A e os antepossuidores usavam o prédio, o que era respeitado por todos”).


Assiste, porém, razão aos recorrentes quanto à inclusão da expressão “começou a invadir o terreno da A.” que foi levada ao ponto 18 dos factos provados, pois contém clara matéria conclusiva (saber-se se o terreno é da autora contende directamente com o objecto da causa e com uma análise jurídica que não pode ser feita na resposta à matéria de facto) e, por isso, deve ser eliminada.


E o mesmo se diga, de resto, da expressão “os atrás referidos prédios são exclusivamente pertença da autora” (que foi levada ao ponto 12 dos factos provados da sentença).


Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1/10/2019 (processo n.º 109/17.1T8ACB.C1.S1[11]): “São de afastar expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam susceptíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, que invadam o domínio de uma questão de direito essencial (…). A natureza conclusiva do facto pode ter um sentido normativo quando contém em si a resposta a uma questão de direito ou pode consistir num juízo de valor sobre a matéria de facto enquanto ocorrência da vida real. No primeiro caso, o facto conclusivo deve ser havido como não escrito. No segundo, a solução depende de um raciocínio de analogia entre o juízo ou conclusão de facto e a questão de direito, devendo ser eliminado o juízo de facto quando traduz uma resposta antecipada à questão de direito”.


Devendo alterar-se essa parte (pontos 12 e 18), improcede a demais impugnação da matéria de facto.



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III.B.2. Factos provados:

Considera-se, por isso, a seguinte matéria de facto provada:

1. A A. é irmã da Ré - CC, e ambas são filhas da falecida BB, que, por sua vez é tia dos demais Réus.

2. Por escritura de doação realizada no Cartório Notarial de ..., no dia 16/03/1951, a A. recebeu de sua mãe, BB, esta no estado de viúva e como doadora e com reserva de usufruto, para si, o seguinte prédio, que esta doadora adquiriu no inventário orfanológico ocorrido por óbito de seu marido XX e que correu termos sob o nº 110 do ano de 1930 - “ um prédio urbano composto de casas com sete divisões no 1º andar e cinco divisões no rés do chão e talho de terra pegado com 10 oliveiras, uma figueira e um poço, sito no lugar de ..., freguesia de ...”, tudo conforme consta da escritura que se junta.”

3. O referido prédio composto pelas casas corresponde a metade do prédio - à data correspondente ao artigo urbano inscrito na matriz sob o artº nº 923 - e o talho da terra pegado corresponde ao artigo rústico identificado pelo antigo artigo matricial nº 8959, ambos da freguesia de ....

4. Estes dois referidos prédios (casas e talho de terra), que se encontram identificados na mencionada escritura de doação, fazem parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 24277.

5. O mencionado artº rústico nº 8959, e correspondente ao talho de terra, objeto da dita doação, o qual se encontra pegado ao prédio urbano pelo lado poente, foi declarado, à data da doação outorgada a favor da A., como composto por dez oliveiras, uma figueira e um poço, sito no lugar de ..., da extinta freguesia de ..., mas na realidade as oliveiras existentes eram em número superior ao indicado.

6. O dito prédio rústico (talho de terra doado) nos termos descritos na mencionada escritura de doação e correspondente, à data da outorga desta, ao artº rústico nº8959, confrontava do norte com a doadora (mãe da A.) e agora com o Réu EE, a sul com TT e UU, a nascente com estrada e a poente com ribeiro, embora na realidade a área de tal artº rústico correspondesse à área dos atuais artigos rústicos nºs 139 e 140.

7. Em consequência da constituição do cadastro geométrico para o concelho de ..., ocorrido da década de 1970 a 1980, passou este prédio rústico a ser identificado na matriz rústica da agora extinta freguesia de ..., sob o artº 98- secção H, com a área de 20.400m2, o qual englobava um outro talho de terra, que na atual planta cadastral lhe foram atribuídos os artºs 133 – Sec. H e 134 sec. H

8. Sendo o art 133º sec. H pertencente, por inventário por óbito de XX, à ora A. e sua irmã CC, e, por sua vez, o artº 134º sec. H passou a pertencer à ora A.

9. Posteriormente, em consequência da reclamação cadastral, este mesmo prédio (artº 98-H) deu origem aos dois artigos matriciais atrás referidos e o identificado sob o artº 134 sec H foi dividido em duas novas parcelas de terreno, atualmente inscritas na matriz sob os artigos nº 139 e nº 140, mercê do requerido pela Ré CC e pela Autora, para concretização da partilha havida no inventário, ou seja passaram a constituir dois prédios autónomos e distintos, embora sem que no local existam quaisquer marcos divisórios.

10. O talho de terra doado à ora A. corresponde à área dos atuais e referidos artigos nº 140 - secção H e 139 – secção H, apesar de, aquando do pedido de desanexação que a A. e as suas irmãs formularam junto da Repartição de Finanças de ..., houvessem indicado áreas não coincidentes com a realidade que se verificava no local.

11. A área deste artº matricial nº 139º sec. H corresponde exclusivamente à área de terreno apta a cultura, e à restante área ocupada por eucaliptal, onde existia e existe de permeio, uma parcela de terreno de sequeiro com uma laranjeira e algumas oliveiras e onde a A. sempre semeou tremoço, lentilha, chícharo, feijão frade, etc., e outras culturas de sequeiro, até há cinco seis anos.

12. Estes dois prédios (artº 139 e 140) foram declarados como pertencentes à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB, representada esta pela Ré – CC, filha mais velha.

13. A área de terreno adquirida pela A., pela mencionada escritura de doação datada do ano de 1951, corresponde às áreas dos artºs 139 H e 140-H, com as áreas de 4.039,82m2 e de 8.571,18 m2.

14. Em toda esta parcela de terreno, correspondente atualmente a parte do artigo 139-H e à totalidade do artº 140-H, desde o ano de 1951 até à presente data, continua e ininterruptamente, à vista de toda a gente e dos RR., passou a ser pela A. ,amanhada, lavrada, semeada, plantada, arroteada e plantada parte com eucaliptos, arrancou e cortou pinheiros, mato para os animais e tudo isto, quer por si, quer pelos seus antepossuidores ou através de pessoas por si contratadas ou com a colaboração de familiares e, na parte de cultura, passou a plantar couves, nabos, nabiças, cenouras, feijões, batatas, milho e todos os demais produtos hortícolas necessários ao sustento do seu agregado familiar e,

15. Igualmente cuidava e cuida das oliveiras existentes no terreno, podando-as, lavrando o terreno, apanhando a azeitona, cuidado da vinha que antes existia, apanhando as uvas, fazendo a poda,

16. Bem como na demais terra de amanho e apta a cultura, semeava milho, grão de bico, semeava e cortava aveia, e outras ervas que utilizavam para alimentação dos animais ovinos e caprinos de que eram proprietários e ainda do animal mular que utilizavam para puxar e transportar a carroça até à morte do seu marido e após esta por si própria e pelos familiares, seus filhos.

17. Estes atos foram praticados pela A. de forma exclusiva e continuada pela A.. até há cerca de 5 a 6 anos, na convicção de ser proprietária.

18. A partir do ano de 2012, data em que faleceu a irmã da A. – WW, um dos seus herdeiros, o seu filho – EE e aqui Réu, passou a proceder à poda das oliveiras existentes na faixa de terreno, situada mais a norte que termina no ribeiro e que separa o artº 140º (doado) do artº 139ºH a poente,

19. Bem como começou ainda a cortar a erva nascediça existente em parte da área de terreno que constitui o artº 140ºH, parcela esta contigua com a casa de habitação que ali ocupa, embora fosse sempre a A. que efetuava o respetivo amanho da terra, e ali efetuava as sementeiras atrás referidas.

20. Na parcela de terreno identificada, procedeu a A. há cerca de 7 anos a uma plantação de eucaliptos, após ter arroteado, preparado a terra e adquirido as plantas e delas tem vindo a cuidar por forma a proceder ao seu corte.

21. A A. recebera ainda pela escritura de doação referida, metade do artigo urbano nº 923, composta esta metade por sete divisões no 1º andar e cinco no rés do chão, as quais correspondem à mencionada metade do artigo urbano nº 923 da freguesia de ....

22. A esta metade, que corresponde à parte do dito prédio urbano nº 923 e situada a sul e sempre habitada de forma exclusiva pela A., encontrava-se agarrado a norte um outro aposento cujo rés do chão estava destinado à recolha dos animais, e o 1º andar a cozinha e sala, e sobre o mesmo situavam-se às escadas de acesso ao 1º andar.

23. Esta parte veio a ruir e em consequência da reconstrução ser onerosa para a A. procedeu esta à limpeza dos respetivos escombros, passando a constituir, o espaço de construção que ruiu o acesso da A. ao prédio rústico objeto da doação e atualmente pertença da A.., ou seja ao prédio correspondente ao artº 139º H e ao artº 140ºH e com a área total de 12.611m2, atrás referida.

24. Além da metade do mencionado prédio urbano doado à A., este era constituído ainda pela restante metade e correspondente esta à parte, que a sua falecida irmã – WW, passou a ocupar juntamente com o seu marido e filhos, ou seja, os RR EE, FF e GG.

25. A qual se situa a norte da parte pertencente à A. ou seja, do espaço que passou a mediar os dois prédios urbanos que se situam a poente da estrada principal e agora tal espaço o acesso aos identificados prédios rústicos.

26. Portanto, em consequência da ruina do telhado e da ruina da parede frontal, confinante com a estrada e bem assim parte da parede poente, e mercê da retirada dos respetivos escombros,

27. A metade do prédio urbano que foi doada à A., passou a ficar totalmente separada da restante metade e, a constituir um prédio autónomo e distinto da restante metade e se encontrava ocupada pela irmã – WW, e atualmente pelo Réu, EE, pelo que passou a confrontar a nascente com a estrada e dos restantes lados com a própria, a A.

28. Em consequência da morte da referida Emília e seu marido, EE, os seus filhos, ou seja, EE, FF, GG, apesar de saberem que a parte do prédio que ocupavam os seus pais, não lhes pertencia mas pertencia à YY aberta por óbito de BB, mercê de inexistência de partilha da herança aberta por óbito da avó – ZZ, mãe da ora A. e da Ré CC, passaram a habitá-lo, arrogando-se donos do mesmo.

29. Os pais de EE, FF, GG – o dito EE e WW procederam, no ano de 1992, à inscrição na matriz da metade da parte do prédio urbano que estava identificado sob o artº 923, em seu nome, quando não receberam qualquer doação da mesma.

30. Como se tratasse de um prédio omisso e autónomo e pertencente à herança aberta por óbito dos referidos EE e WW, o que não era o caso e indicaram as seguintes confrontações: - norte- serventia - sul e poente – herdeiros de BB; - nascente – estrada,

31. Isto, quando sabiam que a sul e poente confrontava e confronta e sempre confrontou com a ora A., mercê da aqui identificada doação.

32. Em consequência desta participação junto da Repartição de Finanças de ..., a metade do prédio urbano ocupada pelos pais dos EE, FF, GG passou a ter o artigo urbano 2014, e posteriormente passou a ter o artigo 2939 e agora possui o artº 1757, da atual União de Freguesias de ....

33. Por sua vez, à metade do prédio urbano objeto da doação e pertencente à A. à qual foram atribuídos os artigos 3120 e 3121, foram agora atribuídos os artºs 1908 e 1909, da dita União de Freguesias, embora este se encontre como ruína na matriz, e na realidade já não exista, mercê da retirada dos escombros,

34. Os ditos artigos urbanos 3120 e 3121 constituem o mesmo prédio urbano e representavam a metade que a A. adquiriu pela doação,

35. Também os atuais artigos 1908 e 1909 constituem atualmente um único prédio urbano totalmente autónomo e distinto daquele que os pais dos EE, FF, GG se arrogaram donos e que inscreveram nas finanças como se tratasse de prédio omisso e correspondente atualmente ao artº urbano nº 1757, quando o urbano correspondia à restante metade do artigo urbano identificado na doação sob o artº 923º, e pertença da herança ilíquida e indivisa.

36. No que diz respeito ao artigo urbano nº3121, que na matriz figuram como seus titulares inscritos, os herdeiros de BB, na realidade o prédio correspondente a este artigo já não existe, pois é a parte que ruiu e que fazia parte do prédio que a A. adquiriu pela doação, e sempre ocupou até à data em que ruiu e agora constitui o seu espaço o acesso ao prédio rústico situado a poente,

37. Ou seja, constitui um único prédio autónomo e distinto correspondente este à metade transmitida pela doação referida nesta petição, a favor da A.

38. Os pais dos EE, FF, GG os referidos EE e WW, apesar de bem saberem que o prédio rústico situado a poente do prédio urbano de que se arrogam donos, não lhes pertence, mas pertence sim à A. porque o adquiriu pela já mencionada escritura de doação, procederam à apropriação de uma parcela de terreno situada à retaguarda do mencionado prédio urbano inscrito na matriz, sob o artº 1757, com a área aproximada de 500 m2, e delimitaram-na através da edificação de um muro de blocos de cimento, com a altura aproximada de 1m a 1,5m,

39. Fizeram-no sabendo que tal parcela de terreno pertence e sempre pertenceu ao prédio rústico propriedade da A. e que recebera pela já mencionada doação e correspondente ao artº 140ºH e 139ºH.

40. O prédio urbano recebido pela A. pela mencionada escritura de doação e situado a nascente dos prédios rústicos atrás referidos é composto ainda por uma outra parcela de terreno, situada a nascente da estrada que liga as localidades de ... a ... da atual freguesia de ..., e, portanto, separada do prédio urbano da A.,

41. Parcela esta com a área de 250m2, sempre destinada que foi para constituição do logradouro do mesmo, mas sem qualquer inscrição matricial

42. Nesta parcela a A. depositava e sempre depositou as lenhas para consumo na sua habitação e aí aparcava a carroça do animal mular de que era dona, e tudo desde a data da doação em 1951 até à presente data, igualmente, de forma continua e ininterrupta, à vista de toda a gente e dos próprios RR., sempre na convicção de que não lesava nem lesa direitos de quem quer que seja, atuando como sua dona exclusiva.

43. A autora da herança, BB, era dona de um prédio urbano, composto de uma casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, a Sul, de uma casa (velha) que era dos avós paternos do marido da doadora, esta situada a Norte da anterior e composta por rés-do-chão e 1º andar, e ainda por um barracão situado a Norte desta casa velha.

44. Em 1945, a autora da herança BB, doou verbalmente à filha WW, mãe dos RR, FF, EE e GG, o barracão acima referido.

45. Neste barracão que remodelou, construiu a filha WW a sua casa de habitação, que passou a habitar com o seu marido.

46. Esta casa já era habitada pela Emília e marido pelo menos desde 1948, data em que nela nasceu o agora Réu - EE.

47. Esta casa foi sempre ocupada, primeiro pela Emília e marido, e depois da morte destes, após a partilha do seu património, pelo Réu EE, a quem tal casa coube em partilha, e a qual corresponde o artigo 2939 urbano da freguesia de ....

48. O prédio urbano que atualmente se acha inscrito na matriz sob o artigo 1757 tem como dono o Réu EE.



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III.B.3. Factos não provados:


Do elenco dos factos não provados continuará a constar:

I. Há cerca de 8 anos atrás, e após o desmoronamento da casa velha, a A., sem autorização dos demais herdeiros, implantou nesta parcela resultante do desmoronamento desta casa velha, uma escada de acesso ao 1º andar da sua casa, tendo aberto para tal efeito há 8 anos aí, nessa parede, uma porta a deitar diretamente para a escada que construiu,

II. Quando antes, só tinha acesso ao 1º andar por uma escada existente a Sul, não tendo a casa qualquer abertura para a parte Norte onde existia a casa velha dos avós do marido da BB.

III. O artigo urbano 1909 da União das Freguesias e que corresponde à parte da casa velha que era dos pais da BB, está na titularidade da herança da Joaquina Marques Freitas, que é o seu legitimo proprietário.

IV. A parcela a que a A se refere era o “cerrado do poço”, onde existia um poço, 3 oliveiras, 2 figueiras, os currais do gado e uma barraca onde se guardava a carroça e o burro da BB,

V. Esta parcela fazia parte da casa velha dos avós do marido da BB e que se desmoronou

VI. Tais prédios e parcelas não faziam parte, nem fazem, do prédio que em 1951 foi doado à A. pela BB,

VII. Em 1945, a autora da herança BB, doou verbalmente à filha WW mãe dos RR, FF, EE e GG o logradouro anexo ao barracão, que se estendia até onde hoje se encontra um muro de alvenaria.

VIII. O terreno anexo à casa descrita em 47 foi sempre ocupado, primeiro pela WW e marido, e depois da morte destes, após a partilha do seu património, pelo Réu EE, a quem tal casa coube em partilha, e a qual corresponde o artigo 2939 urbano da freguesia de ....



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III.C. Fundamentação jurídica:


Mantida a matéria de facto no seu essencial, não se pode afirmar que exista o invocado erro de julgamento quanto à natureza e efeitos do instituto da usucapião, como forma de aquisição da propriedade.


A usucapião é uma forma de aquisição originária da propriedade que se abstrai por completo do direito do proprietário anterior. É uma forma de aquisição de um direito real de gozo, pela posse do mesmo, mantida por certo lapso de tempo (artigo 1287.º do Código Civil). A usucapião serve, mesmo, para legalizar situações de facto ilegais, mantidas durante longos períodos de tempo, inclusive até a apropriação ilegítima ou ilícita de uma coisa (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/04/2017, processo n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1[12]).


A posse é o poder que se manifesta com a prática de actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real de gozo (o corpus), com a intenção de exercício desse direito como seu titular (o animus) – artigo 1251.º do Código Civil. E importa salientar a doutrina que o Acórdão para fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 14/05/1996 (processo n.º 085204[13]) veio estabelecer: “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa”.


No caso concreto ficou provado que a autora e seus sucessores (cf. 1255.º do Código Civil) têm usufruído do prédio em causa (ver pontos 14. a 16. dos factos provados) pelo que ficou provado o corpus da posse. Igualmente provaram o animus dessa posse, face ao que ficou a constar do ponto 17. dos factos provados.


Ou seja, provaram-se os factos que levam à aquisição originária, por usucapião, da propriedade do terreno, tal como este vem configurado na PI.


A posse que pode conduzir à usucapião tem de ser pública e pacífica, sendo que as características dessa posse (ser de boa ou má fé, sendo titulada ou não, havendo registo ou não) importa para a determinação do prazo para que tenha susceptibilidade de produzir plenos efeitos jurídicos.


Ora, esse prazo é de 15 anos, não havendo registo do título nem de mera posse e se a posse for de boa fé, e de 20 anos, se for de má fé – artigo 1296.º do Código Civil.


Tendo presente que a posse se prolongou desde 1951 (ponto 14. dos factos provados), é evidente que os autores adquiriram tal prédio, com a configuração invocada, por usucapião.


Improcede, por isso, a apelação.



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As custas do presente recurso deverão ficar a cargo dos recorrentes, por terem ficado vencidos, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.



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IV. DECISÃO:


Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirmar a decisão recorrida.


Condenam-se os apelantes nas custas do recurso.


Notifique.




Évora, 13 de Fevereiro de 2025


Filipe Aveiro Marques


Filipe César Osório


Sónia Moura


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1. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, Almedina, pág. 763.↩︎

2. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/627963eb32586aac80257fc700392a00.↩︎

3. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/cb9583125d0cc62b80258afc004cdfc9.↩︎

4. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/37d58e1f5ea473228025712a00549398.↩︎

5. Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição, Almedina, pág. 200 e ss..↩︎

6. Acessível em https://www.dgsi.pt/JSTJ.NSF/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/526a06e36e808e84802587e3003cb7ce.↩︎

7. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1007b672c0f9ed2980258ad6005cfad7.↩︎

8. Acessível em https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/009a5f03f424577380258bc5005038be.↩︎

9. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2d914831f90a3c4d80258aaf006040d2 e https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/1007-2024-877464275.↩︎

10. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5078c2502b24acaf802571a7005026e3 e Colectânea de Jurisprudência STJ, Tomo 2, 2006, pág. 133.↩︎

11. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/145403b19257017d80258486004a6c59.↩︎

12. Acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e323f88e0e8408da802580fa005d1f7f.↩︎

13. Publicado no Diário da República, 144/96, IIª série, de 24/06/1996 e também acessível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/31350a32365fdb9c802568fc003b1bae.↩︎