Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
- existindo incompatibilidade entre factos, ou obscuridade na descrição factual, deve o tribunal da Relação procurar corrigir oficiosamente o vício, podendo, em caso de também ocorrer dúvida fundada sobre a prova produzida, determinar a produção de novos meios de prova e com base neles (e não apenas nos elementos de prova já existentes no processo) sanar o vício.
- o património sucessório é objecto de um direito uno, encabeçado em conjunto por todos os herdeiros (ou titulares do direito), sem a atribuição de participações ou quotas ideais nesse direito ou em cada concreto bem do património hereditário.
- alegando-se que certo bem integrado numa herança foi vendido e que o preço foi entregue aos herdeiros, que fizeram sua parte do preço de um dos interessados, importa aferir a realidade de tais factos a fim de verificar se a herança do interessado preterido integra um direito a tal valor.
I. O presente processo de inventário foi instaurado por óbito de:
- AA, falecida em ........1998, e
- BB, falecido em ........2000 (os quais foram casados entre si), e ainda
- CC, filho daqueles e falecido, no estado de viúvo, em ........2021.
A AA e BB sucederam, além daquele CC, DD (requerente e cabeça-de-casal) e EE, seus filhos.
CC deixou, em testamento, o usufruto do seu quinhão hereditário na herança dos seus pais a FF, e o remanescente da sua herança aos seus sobrinhos GG, HH e II
A interessada FF deduziu reclamação à relação de bens alegando, no essencial, que:
- CC deixou testamento onde lhe legou o usufruto do quinhão hereditário a que tem direito na herança deixada por óbito de seus pais ou, em alternativa, no caso do imóvel já se encontrar partilhado, o usufruto do prédio urbano para habitação, sito em ..., descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2885.
- sendo a intenção do de cujus que o remanescente do acervo que constitui a sua herança fosse objecto de partilha com os seus irmãos,
- sendo o usufruto do imóvel a partilhar atribuído à reclamante.
- a relação de bens estaria incompleta por não contemplar o prédio urbano, composto por lote de terreno, sito em ..., descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 2886, o qual faria parte do «acervo que constitui a herança dos falecidos».
- o qual foi vendido em 29.09.2020 por (i) JJ, (ii) KK, (iii) LL, (iv) CC, (v) EE, (vi) DD e (vii) MM por 72.000 euros.
- assim, tem direito ao usufruto sobre os 72.000 euros na parte que deveria ter sido entregue ao CC e que os demais herdeiros de AA e BB fizeram sua.
Terminou pedindo que seja aditada à relação de bens o referido prédio urbano composto por lote de terreno e, em consequência, corrigidos os créditos da herança, passando os mesmos a incluir o montante de 72.000 euros de que a interessada é usufrutuária na parte não entregue pelos demais herdeiros a CC.
O cabeça-de-casal respondeu, pugnando pelo indeferimento da reclamação, alegando em especial que a reclamante pede algo que CC não detinha no momento da sua morte, e que, a ser considerado, seria apenas o valor que efectivamente recebeu, valor que não existe.
De seguida foi proferida decisão que julgou improcedente a reclamação.
Desta decisão vem interposto o presente recurso, no qual a reclamante/recorrente formula as seguintes conclusões:
A. A Recorrente impugna a decisão judicial que julgou totalmente improcedente, por não provada, a reclamação apresentada pela interessada FF, condenando a mesma nas custas do incidente, em virtude da mesma, salvo o devido respeito, aplicar erroneamente o Direito ao caso em apreço – cfr. a Sentença Judicial (Ref.ª CITIUS 9892101053, de 28.02.2024).
B. A conclusão sustentada pelo Tribunal a quo no que tange ao usufruto sobre o crédito no montante de € 72.000,00 (setenta e dois mil euros) em nada se coaduna com o alegado pela Recorrente na sua Reclamação, porquanto a mesma apenas pretende que (i) a herança reflita o crédito de € 72.000,00 (setenta e dois mil euros) decorrente da venda do imóvel descrito na alínea 3) da Matéria de Facto, e (ii) se reconheça que a Recorrente é usufrutuária de tal valor na parte não entregue pelos demais herdeiros a CC em virtude de ser essa a intenção manifestada pelo de cujus no seu testamento.
C. Ao contrário do entendimento sufragado pelo Tribunal a quo, e salvo o devido respeito, não recaia sobre a Recorrente qualquer ónus de alegação de que a retenção integral do crédito de € 72.000,00 (setenta e dois mil euros) pelos demais herdeiros de AA e BB foi realizada contra a vontade do de cujus,
D. Sendo certo, porém, que tal facto negativo se retira do contexto da reclamação apresentada, e que a tal respeito foram apresentados meios probatórios.
E. A decisão judicial proferida violou, salvo o devido respeito, o disposto nos arts. 1098.º, n.º 3, e 1105.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, devendo assim ser revogada.
O cabeça de casal respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Foi, nesta instância determinada a junção de certidão do registo predial, sobre a qual as partes se não pronunciaram.
Facultado o contraditório quanto à existência de possível contradição ou obscuridade na descrição dos factos provados, com possível alteração dos factos provados no quadro do art. 662º n.º2 al. c) do CPC, recorrente e recorrido pronunciaram-se, tendo a recorrente sustentado a procedência do recurso e o recorrido sustentado a sua improcedência.
II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».
Assim, importa avaliar se se mostra justificada a exclusão do crédito que a recorrente descreve.
III. Foram tidos por assentes os seguintes factos:
1) O inventariado CC faleceu em .../.../2022.
2) Por testamento datado de 09/01/2014, o inventariado CC legou a FF o usufruto do quinhão hereditário a que tem direito na herança deixada por óbito de seus pais – AA e BB – ou, em alternativa, no caso do imóvel já se encontrar partilhado, o usufruto do prédio urbano, composto de edifício de rés-do-chão, para habitação, e logradouro, sito em ..., descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 2885, anteriormente inscrito na matriz sob p artigo 3835 da extinta freguesia.
3) Por Escritura Pública de Compra e Venda, outorgada no dia 29/09/2020, por JJ, KK, LL, CC, o de cujus, EE, DD e MM à compradora NN, pelo preço de € 72.000.00, foi vendido o imóvel correspondente ao prédio urbano, composto por lote de terreno para construção urbana, sito em ... e ...), concelho de Setúbal, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 2886, da extinta freguesia de ..., inscrito na matriz urbana respetiva sob o artigo 4219, da mencionada União das Freguesias.
4) Os outorgantes vendedores declararam na referida escritura ter recebido preço.
5) O referido bem imóvel fazia parte integrante da herança dos inventariados AA e BB.
IV.1. Atendendo ao teor dos factos provados, verifica-se que em 5 se afirma que o prédio indicado em 3 dos factos provados (descrito na CRP sob o n.º 2886) fazia parte da herança dos inventariados AA e BB. Tal equivale a afirmar que lhes pertencia (o que supõe também uma relação de exclusividade).
Já em 3 se afirma que o mesmo prédio foi vendido por JJ, KK, LL, CC, EE, DD e MM, o que equivale a atribuir a propriedade (1) do bem a todos os intervenientes na venda.
A intervenção de OO explica-se (pese embora o facto em causa não o refira) por ter sido casada na comunhão geral com DD (como decorre da escritura de compra e venda). Já a intervenção, como vendedores e assim como putativos proprietários do prédio, de JJ, KK e LL não se mostra factualmente explicitada e, em especial, contraria o facto 5 pois estes não são sucessores de quem, em 5, se afirma serem donos, exclusivos, do prédio (e em cuja herança, por isso, o bem se integraria).
O que indicia uma tendencial incompatibilidade lógica entre os factos 3 e 5, capaz de sustentar a afirmação de uma relação de oposição entre eles (partindo do princípio que se não afirma, nem se pode presumir, que aqueles JJ, KK e LL não estavam a alienar bem alheio). Ou seja, o que a descrição factual revela, em si (e dado o seu carácter fechado ou auto-suficiente, sem apelo a outros elementos), é uma efectiva disparidade lógica entre os dois factos no que à titularidade do prédio concerne, e assim a existência de uma contradição. Mas ainda que se não afirmasse uma verdadeira contradição, sempre existiria ao menos uma manifesta obscuridade factual, pois o alcance daqueles factos é reciprocamente incongruente ou não compatível, permanecendo uma indefinição relevante sobre o exacto estatuto do prédio: não seria, a final, clara ou segura qual a titularidade do prédio.
Ora, quer a contradição quer a obscuridade na definição do quadro factual relevante constituem vício da decisão (analisado em erro de julgamento) que autoriza a intervenção deste tribunal, mesmo oficiosamente, com vista à sanação do vício (art. 662º n.º2 al. c) do CPC).
Este vício só determina a anulação da decisão proferida se aquela não puder ser alterada com base nos elementos do processo (art. 662º n.º2 al. c) e n.º1 do CPC), o que postula a avaliação desses elementos.
Atendendo à motivação da decisão recorrida, verifica-se que esta fixou ambos os factos fazendo apelo à escritura pública de compra e venda, afirmando que esse documento detém «força probatória plena, que in casu não foi ilidida». A escritura pública constitui um documento autêntico, revestido de força probatória especial, mas esta especial força probatória apenas abrange aquilo que o notário atesta com base na sua própria percepção, e assim apenas atesta o teor das declarações das partes perante si produzidas (mormente as declarações de vontade) e as afirmações do notário quando se reporta ao que observou em outros documentos (ao que afirma ter verificado no registo predial e a partir de escrituras de habilitação) (art. 371º n.º1 do CC). Assim, a escritura não tem especial força probatória quanto ao descrito em 5 dos factos provados porquanto o que nela se descreve, quanto à titularidade do bem, não corresponde a algo que o notário ateste com base na sua percepção mas apenas a dados que derivariam do que diz ter consultado no registo predial e em escrituras de habilitação. Acresce que em momento algum da escritura se encontra suporte directo para a asserção descrita em 5: aquela integração do bem em certa herança não é na escritura directamente afirmada. Não se trataria nunca, pois, de facto (2) que esteja plenamente provado por aquele documento, o qual, no limite, apenas prova plenamente que o notário consultou os documentos que refere e deles retirou os dados que descreve.
E o que se refere na escritura quanto à titularidade do bem (sem ter aqui, repete-se, valor probatório acrescido), não só não esclarece a contraditoriedade ou obscuridade, como até acentua o contraste entre aqueles dois factos. Pois sendo certo que na escritura as pessoas elencadas em 3 dos factos provados aparecem a declarar vender o prédio em causa (emissão de declarações de vontade que, esta sim, está coberta pela força probatória acrescida do documento), do título também deriva que essas pessoas seriam, sem determinação de parte ou direito, todas elas titulares do prédio vendido. Com efeito, e nesta parte, do teor da escritura (daquilo que o notário afirma ter colhido do registo e de escrituras de habilitação) decorre que o prédio vendido estava registado, sem determinação de parte ou direito, a favor de JJ, casada na comunhão geral com PP, o qual faleceu, sucedendo-lhe, também sem determinação de parte ou direito, aquela JJ e KK e LL; e também a favor de CC, EE e DD e MM (esta por ter sido casada com aquele DD na comunhão geral, estando à data da escritura divorciados). Abstraindo desta MM (que seria titular por via do casamento com DD), dos dados em causa derivam duas coisas: que o prédio estaria integrado em comunhão hereditária (inscrição sem determinação de parte ou direito), e que dessa comunhão hereditária era também titular JJ (e seu marido, por força do regime de bens), a qual não é herdeira dos inventariados. Tal logo indica que a escritura, a partir dos elementos que o notário descreve, não permite dizer que o prédio em causa se integrava no património destes inventariados dada a sua atribuição também a JJ e marido (falecido (3)), sendo que esta não é sucessora daqueles. E permite dizer, pela mesma razão (pela intervenção desta JJ), que o prédio não pertencia, ou não pertencia apenas, àqueles inventariados AA e BB, tendo que ter outra ou outras titularidades. Acresce que a menção à titularidade «sem determinação de parte ou direito» vem associada a todos os inscritos e não apenas aos herdeiros em causa neste inventário, também assim indicando que está em causa situação que excede o património dos aqui inventariados AA e BB. Logo, é patente que a escritura não apenas não confirma o facto 5 (titularidade exclusiva do prédio pelos aqui inventariados AA e BB) como, em especial, não permite esclarecer a articulação entre aqueles factos 3 e 5.
O esclarecimento cabal da situação passaria pelo acesso aos dados do registo predial para aferir os termos da efectiva titularidade do prédio, elementos estes que não constavam do processo (4), pelo que, face ao regime da norma em causa, se deveria considerar que não existiam no processo elementos probatórios que permitissem realmente esclarecer a contradição/obscuridade. O que deveria conduzir à anulação da decisão recorrida para produção de novos elementos probatórios, nos termos lineares do citado art. 662º n.º2 al. c) do CPC. Sucede que também se pode afirmar que existe uma dúvida fundada sobre a prova invocada, analisada justamente na indefinição do alcance daquela escritura quanto à forma como define a titularidade do prédio vendido (5), autorizando assim que nesta sede se ordenasse a produção de novos meios de prova, nos termos do art. 662º n.º2 al. b) do CPC (evitando a anulação da decisão e o retrocesso do processo). Foi, pois, neste quadro que se determinou a junção de certidão do registo predial completa do prédio em causa, a qual foi junta e notificada às partes (que sobre ela nada disseram). O que, deste modo, permite proceder à dilucidação da questão nesta sede, atendendo também a este novo elemento documental.
2. Analisando a certidão junta (6), verifica-se que o prédio foi inicialmente inscrito a favor de AA (casada com BB na comunhão geral - ambos aqui inventariados), mas também a favor de QQ, viúva, e de JJ (casada com PP na comunhão geral), inscrição esta, «em comum e sem determinação de parte ou direito», que teve origem no óbito de RR (o qual foi casado com aquela QQ na comunhão geral). Esta origem daquela inscrição revela que o prédio não pertencia aos inventariados (em cujo património não se integrava), pertencendo antes a RR e QQ. E que por óbito daquele RR passou a integrar-se na herança indivisa aberta por força de tal óbito (relevando ainda a meação derivada da dissolução do casamento com QQ, igualmente sucessora daquele RR). Nesta herança, a inventariada AA participava apenas como herdeira (sendo titular, juntamente com o seu marido dado o regime de bens do casamento, de direito sucessório naquela herança - coisa diferente de um direito específico ao próprio prédio em causa).
Situação esta que não se altera subsequentemente, ocorrendo apenas modificações na titularidade daquela herança (onde se integra o imóvel).
Assim, por óbito de QQ sucedem-lhe as mesmas AA e JJ. Ou seja, consolida-se a integração do prédio naquela herança, passando apenas a posição sucessória de QQ a ser ocupada pelos seus herdeiros AA e JJ (a intervenção, na venda. de KK e LL, não constante do registo predial, é justificada, segundo a escritura de venda, pelo óbito do cônjuge de JJ, com quem esta estava casada na comunhão geral - pois este regime de bens tornava o direito hereditário de que SS era titular um bem comum do casal, pelo que por morte de um dos titulares tal direito passa a caber também aos herdeiros do cônjuge falecido).
Significa isto, em último termo, que o prédio não se integra, nem nunca integrou, no património dos aqui inventariados QQ e TT. Em tal património apenas se integrou o direito a participarem na herança aberta por óbito de RR e depois QQ (herança esta na qual o prédio se integrava).
Direito este que se não confunde com um direito ao próprio bem (ao prédio) pois, como se sabe, o direito ao património hereditário, ainda que definido na partilha em função da quota sucessória do herdeiro em tal património, não é titulado pelos herdeiros através da atribuição de quotas. Trata-se de um património colectivo, em que o direito que sobre ele incide tem por objecto todo o património, sendo tal direito encabeçado pelos herdeiros de forma paritária e sem atribuição de quotas (ideais) sobre aquele património. Por isso, mas também pelo direito ao património não equivaler a um direito individual a cada bem que faz parte de tal património hereditário, aquele direito não se traduz numa participação ideal (numa quota) em cada bem da herança: o herdeiro participa no património global, não em cada bem desse património, e participa naquele património sem distinção de quotas mas como co-titular indiviso do património (e isto é ainda assim mesmo quando aquele património seja constituído apenas por um bem) (7). O que explica, aliás, porque tem o direito ao património ou a bens determinados (alienação de herança ou de bem determinado dela) que ser exercido pelo conjunto dos herdeiros (rectius, dos titulares do património (8)) - é o conjunto dos herdeiros que congrega todo o direito à herança, e como o património hereditário abrange situações singulares, que mantêm autonomia, aquele direito conjunto permite dispor destas situações pela intervenção conjunta de todos os titulares, como manifestação ou expressão particular do direito comum ao património (e não como expressão de um direito próprio a cada bem da herança). Assim, enquanto não ocorrer a partilha, inexiste qualquer participação no próprio bem. Tal é, repete-se, corolário da natureza do património hereditário enquanto propriedade colectiva, em que os herdeiros são co-titulares do direito à herança e, ao contrário da compropriedade, não são titulares de qualquer quota (ideal) nos bens integrados nessa herança (9). Como referia UU, os herdeiros «são titulares de um direito indivisível, enquanto se não fizer a partilha, que recai sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados desta. Logo, não pode atribuir-se aos co-herdeiros, antes da partilha, a qualidade de proprietários de qualquer bem da herança» (ou, concretizando, de co-proprietários de qualquer bem da herança) (10). Existe, em suma, um direito uno, detido em globo, e não um direito dividido por quotas em que a titularidade se reporta a estas quotas e não ao direito global.
Assim, o que integrava o património dos agora inventariados AA e BB não era aquele prédio, ou uma sua quota ideal, mas o direito a participarem na herança onde tal prédio se integrava. Asserção que se não altera com a posterior venda do prédio, realizada por todos os herdeiros, ou melhor, por todos os titulares de direito hereditário ao património indiviso (pois os herdeiros de AA e BB, incluindo o CC, não participam na venda como herdeiros dos donos do prédio mas como sucessores da herdeira AA e seu cônjuge BB). Pois a venda apenas conduz à substituição, no património hereditário, do prédio pelo valor pecuniário recebido com a venda (o preço), passando esta quantia a integrar-se naquela herança (naquele património indiviso) [como refere O. Ascenção, «o preço fica sub-rogado no lugar do imóvel» (11)]. Alterou-se, com a venda, o conteúdo da herança mas não o direito dos herdeiros, que continuaram a ter apenas um direito a participarem naquela herança (herança cuja composição se ignora) - salvo se ocorresse partilha subsequente à venda, ainda que parcial (que alteraria a titularidade do preço, mas não do prédio).
O que revela que a descrição «factual» contida em 5 dos factos provados, reportado ao prédio referido, está incorrecta, resolvendo-se a apontada incompatibilidade ou obscuridade entre os factos 3 e 5 com a prevalência do descrito em 3 e a eliminação do descrito em 5.
3. Assim, subsistem como factos provados apenas os descritos em 1) a 4) do elenco supra.
4. Resta avaliar o mérito do recurso, à luz daqueles factos mas, sobretudo, à luz do objecto da reclamação (agora não ofuscada por aquele facto 5).
No recurso, a recorrente abandonou a pretensão de ver descrito, como bem dos inventariados, o prédio em causa (o que também, dado o exposto, não era sustentável), passando a defender apenas o relacionamento, como crédito do inventariado CC, do direito que este CC teria no preço da venda («na parte [do preço] que deveria ter sido entregue ao falecido CC»). Como resulta do já exposto, aquele CC não tinha um direito próprio ou directo, que pudesse ser partilhado, naquele preço. Ele interveio na venda apenas enquanto co-titular da posição sucessória na herança de RR e QQ, integrando-se o direito ao preço nesta herança. E em tal herança não tinha, como também já se explicitou, o CC direito a bens específicos, ou a parte de bens específicos (e por isso a parte do preço). Só assim não será após a partilha de tal herança, pela qual a sua posição sucessória (indirecta, enquanto herdeiro da herdeira e seu cônjuge QQ e TT) se concretize na participação em bens concretos. Deste modo, só se poderia falar de um direito próprio do CC a parte do preço se este tivesse sido logo partilhado entre os interessados.
Com relevo nesta parte, a reclamante alega que teria direito aos 72.000 euros «na parte que deveria ter sido entregues ao falecido CC, Havendo os demais herdeiros de AA e BB feito sua, integralmente, tal importância pecuniária.».
Esta alegação exprime, de forma directa, que o dinheiro foi entregue aos herdeiros (não ficando entregue ao cabeça de casal, administrador da herança de QQ e RR) e que a parte do CC lhe não foi entregue, tendo sido retida pelos herdeiros de AA e BB.
Ora, se o dinheiro foi entregue aos herdeiros, isto inculca a existência de uma repartição do dinheiro (de uma partilha), pois estes herdeiros só devem recebê-lo em função de tal repartição. E a existência dessa partilha é ainda sustentada, na alegação, pelo facto de se afirmar que parte dos vendedores (DD e EE (12), que não são todos os interessados que venderam o bem) ficaram com o dinheiro que cabia ao CC: tal também inculca que o dinheiro foi repartido pois só assim parte dos vendedores poderia ficar com a parcela de um desses vendedores. Isto significa que ainda decorre da alegação que o dinheiro em causa teria sido partilhado pelos intervenientes (13).
Além disso, a alegação sustenta ainda que aqueles «demais herdeiros de AA e BB» fizeram sua a importância pecuniária que cabia ao CC. Ora, fazer sua tal importância implica apropriar-se, reter sem título mas com vontade de apropriação, a quantia em causa: o que se alega é que haveria que entregar certo valor ao CC mas tal não foi feito, apropriando-se os demais herdeiros desse valor. O que contraria a objecção da decisão recorrida, quando afirma que cabia à recorrente alegar que tal ocorreu contra a vontade do de cujus, pois essa contrariedade pode ver-se implícita na alegação. De qualquer modo, perante aquela alegação cabia aos demais interessados, querendo, invocar excepção assente na existência de vontade translativa do CC. Mesmo na lógica da argumentação da decisão recorrida, se se prova que herdeiro ficou com bem que pertence a outro herdeiro, tem que o entregar (de forma mais simples, quem retém o valor é que terá, nas circunstâncias do caso, que demonstrar a existência de título para tanto). Tal deriva desde logo da teoria das normas e do disposto no art. 342º n.º1 do CC: se o dinheiro pertencia, pela putativa partilha, ao herdeiro CC e está em poder de outro herdeiro, aquele poderia reclamar a entrega com base no seu título, sem mais. Aliás, a objecção também não parece muito curial quando o cabeça de casal não discute o título da apropriação, apenas a negando (art. 15º da resposta): neste contexto, a provar-se a apropriação, não parece que releve autonomamente a falta de demonstração da inexistência de título.
Assim, a terem aqueles herdeiros, na sequência da repartição do dinheiro (partilha parcial amigável) ficado com a parte do dinheiro que cabia ao CC, poderia ter este um direito de crédito sobre aqueles que, por seu óbito, se integrou no seu património hereditário.
Já a ter ocorrido a repartição mas sem apropriação, inexiste tal crédito e nada há a aditar (pois a reclamante não sustenta que o próprio dinheiro se encontrava em poder do CC na data do seu óbito). E a não ter ocorrido a repartição, permanecendo o dinheiro integrado na herança indivisa aberta por óbito de RR (e QQ), então o único bem relevante é o direito a participar nessa herança, cujo relacionamento se não discute.
5. Donde se justificar discutir probatoriamente a alegação da recorrente (impugnada - art. 14º e 15º da resposta), cabendo ao reclamante a sua demonstração, a fim de aferir se existe ou não o bem (o crédito) invocado.
É certo que a alegação se mostra (muito) contida mas ainda contém elementos bastantes para permitir discernir o cerne factual da questão. De qualquer modo, não está excluída a possibilidade de, se assim se entender, se promover uma melhor caracterização factual da alegação, ao abrigo do art. 590º n.º2 al. b) e 4 do CPC (cuja aplicação ao processo de inventário, enquanto processo especial, decorreria directamente do art. 549º n.º1 do CPC, ou seria sustentada por analogia, caso se entendesse que a reclamação de bens constitui um incidente (14)). Mas é esta questão que excede o objecto do recurso, no qual apenas se constata a necessidade de prosseguimento do processo para discutir factualmente a reclamação e depois avaliar o seu mérito
6. Contra esta conclusão também não vale a outra objecção invocada pela decisão recorrida, assente na afirmação de que o crédito (a existir) «não integraria o quinhão hereditário por morte de AA e BB, mas sim o demais acervo hereditário de CC, sobre o qual não recai o usufruto.».
O que se discute na reclamação é se o bem em causa (o crédito) faz parte de alguma das heranças a partilhar, a fim de ser relacionado. E a fazer parte da herança de CC (que também está a ser partilhada neste processo), justifica-se o seu relacionamento por se tratar de bem a partilhar (isto independentemente da forma como a reclamante considera dever ser relacionado o bem: nessa parte a pretensão não delimita a decisão, pois o que se analisa é essencialmente a existência, ou não, do bem, sendo a forma de relacionamento mero efeito, em grande medida jurídico, dessa questão). E justifica-se tal relacionamento quer o bem seja abrangido ou não pelo usufruto a que a reclamante teria direito, pois o relacionamento depende da inclusão do bem no património hereditário e não do facto de o direito da reclamante abranger tal bem. A própria discussão sobre o sentido ou alcance do direito de usufruto da reclamante não tem espaço próprio neste incidente, onde apenas se discute a pertinência dos bens à herança e já não o direito dos interessados a tal herança (ou a extensão de tal direito, o que ele inclui). Esta é questão diferente, e posterior, a avaliar, já depois de definidos os bens a relacionar, em sede de forma à partilha (15).
7. Não pode, pois, manter-se a decisão impugnada, devendo o incidente prosseguir com a produção de prova pertinente.
8. Decaindo, suporta o recorrido as custas do recurso (art. 527º n.º1 e 2 do CPC).
V. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente e revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento do incidente.
Custas pelo recorrido.
Notifique-se.
Datado e assinado electronicamente.
Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).
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1. Isto atendendo aos termos literais em que o facto vem descrito.↩︎
2. O facto tem, na verdade, uma feição algo genérica ou até normativa, mas justifica-se aceitá-lo como tal atendendo aos termos do litígio.↩︎
3. E, porque falecido, no título intervêm os seus herdeiros.↩︎
4. Pese embora a reclamante, na reclamação que apresentou, associe o prédio 2886 a uma certidão do registo predial que junta, a certidão que apresenta respeita antes ao prédio 2885.↩︎
5. Não se trata, obviamente, de deficiência da escritura, em si regular, mas dos seus limites quanto à prova de circunstâncias que excedem aquele título (que a escritura, na sua funcionalidade própria, não tinha que esclarecer).↩︎
6. Sendo que o registo tem um valor presuntivo (art. 7º do CRPredial) que as partes, notificadas da certidão, não contestaram.↩︎
7. Por isso que seja incorrecta a posição do recorrido quando sustenta que por morte da QQ 1/2 indiviso do prédio fica a pertencer «ao casal cuja herança está agora em partilha (...) e a outra metade indivisa ao casal JJ e marido PP». Sem ocorrer uma partilha, o prédio continuava integrado na herança original, sem que quer o prédio, quer aquela herança, sejam objecto de um direito a qualquer quota ideal, e sem que se transmita o prédio, ou quotas ideais dele, para titulares subsequentes (e incorrecta também porque ignora a meação do segundo falecido). Pela mesma razão, não foi vendida a metade indivisa do casal inventariado (metade que eles não tinham) mas um bem integrado na herança de RR e QQ, bem de que todos os titulares da herança, em conjunto, podem dispor.↩︎
8. O cônjuge de herdeiro, casado na comunhão geral, é (co-)titular do direito à herança mas não é herdeiro.↩︎
9. V. L. M. T. Menezes Leitão, Direito das Sucessões, Almedina 2023, pág. 377.↩︎
10. In Herança Indivisa - Sua Natureza Jurídica. Responsabilidade dos Herdeiros pelas Dividas da Herança, ROA 1986 II, pág. 575/6. De forma análoga, v. João Gomes da Silva, Herança e Sucessão por Morte, UCE 2002, pág. 165 (que também afirma que o código não considera, em regra, a existência de quotas no interior da herança, até à partilha). Mesmo quem recusa a existência de uma propriedade colectiva, admite que na herança concorrem aspectos daquela forma de propriedade, existindo um direito referido ao conjunto patrimonial e inexistindo qualquer direito, mesmo a título de quota, sobre bens determinados do conjunto (C. Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, Quid Juris 1999, pág. 309/310).↩︎
11. Direito Civil, Sucessões, Coimbra Editora 1989, pág. 496.↩︎
12. Os «demais herdeiros de AA e BB» de que a reclamação fala.↩︎
13. Titulares, note-se, da herança de QQ e RR (é desta herança que a divisão do dinheiro, a ter ocorrido, será partilha parcial, embora conduzindo a que o direito do CC a participar nessa herança se concretize em direito próprio à parte que lhe cabia no dinheiro repartido).↩︎
14. Tem sido admitido, embora não de forma pacífica, que a reclamação de bens não constitui um incidente do processo de inventário; mas ainda que fosse qualificado como um incidente (para o qual não vale a norma extensiva do art. 549º n.º1 do CPC), aquele regime geral do art. 590º do CPC seria aplicável por analogia (sustentando a aplicação, por analogia, das regras do processo comum aos incidentes, L. Freitas e I. Alexandre, CPC Anotado, vol. 2º, Almedina 2022, pág. 475).↩︎
15. O título de intervenção da interessada poderia ser discutido em oposição (art. 1104º do CPC), mas, não o tendo sido, terá que ser avaliado na forma à partilha, por nela se definirem os direitos dos interessados na partilha.↩︎