Sumário (da responsabilidade do relator - art. 663º n.º7 do CPC):
- a regra da precipuidade constante do art. 451º do CPC vale para qualquer forma de alienação do bem penhorado, quer se trate de venda quer corresponda a uma adjudicação, sendo as custas da execução pagas pelo produto da alienação daquele bem.
- a ter ocorrido o depósito do valor correspondente às custas prováveis pelo exequente, deve tal valor ser-lhe devolvido se o produto da venda é suficiente para cobrir o pagamento das custas.
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:
I. A presente execução foi movida pelo Instituto de Financiamento e Apoio ao Turismo contra AA e BB e CC, assentando em mútuo concedido ao primeiro executado, mútuo este garantido por hipotecas sobre prédio de cuja nua propriedade eram titulares os segundos executados, cabendo o usufruto ao primeiro executado.
Penhorado o imóvel, diligenciou-se pela sua venda.
Frustrada a venda por abertura de propostas em carta fechada, foi determinada a realização da venda por negociação particular (em Junho de 2006).
Entretanto foi determinada a suspensão da execução quanto ao executado AA por ter sido declarado insolvente.
Foi promovido incidente de habilitação de cessionário pelo qual a exequente original foi substituída por BVF – Buena Vista Flaig – Organização de Eventos, Lda..
Tendo falecido o executado AA, foram BB e CC habilitados como sucessores daquele AA.
A CCAM do Algarve, CRL., deduziu reclamação de crédito, tendo sido proferida decisão que graduou, quanto ao imóvel em causa, os créditos nos seguintes termos:
- Em 1º lugar, o crédito exequendo, no que se refere a capital e juros vencidos relativos a três anos;
- Em 2º lugar, o crédito reclamado pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Algarve, no que se refere a capital e juros vencidos relativos a três anos;
- Em 3º lugar, o crédito exequendo, no que se refere aos demais juros vencidos.
As custas da execução sairão precípuas do produto dos bens penhorados (art. 455º do Código de Processo Civil).
A exequente apresentou propostas de aquisição do prédio, acabando por ser autorizada a venda à exequente.
Foi depois proferido despacho nos seguintes termos:
«Verifique-se se estão depositadas as custas prováveis e se há credores graduados a pagar com preferência sobre a Exequente por referência ao prédio urbano penhorado.
D.N.. com vista à finalização da adjudicação, à luz do actual regime processual civil, aplicável ao caso.».
De seguida, e de forma sequencial:
i. a exequente apresentou requerimento discutindo os valores que lhe eram devidos (capital e juros).
ii. foi efectuado o cálculo do valor provável das custas (fixado em 9.252,51 euros).
iii. a CCAM respondeu à exequente, sustentando ser-lhe devido outro valor.
iv. a exequente procedeu ao depósito do valor das custas calculadas.
v. a exequente voltou a discutir os valores que lhe seriam devidos.
vi. a CCAM voltou a responder, pugnando por solução diversa.
vii. foi proferido despacho nos seguintes termos:
«Nesta execução que se arrasta há mais de 18 anos pelo Tribunal, o incidente, agora, prende-se com o valor da liquidação da quantia devida à Exequente e Credora Reclamante “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Algarve C.R.L.” (CCAM).
Por requerimento de 27 de Janeiro de 2021, a Exequente liquidou o valor da dívida dos Executados para consigo em € 395.084,33.
Liquidou tal valor nos seguintes termos:
- 326,464,23 € (trezentos vinte e seis mil quatrocentos sessenta e quatro euros e vinte e três cêntimos), de capital, juros de capital e juros de mora contados até 12.07.2011;
- os três últimos anos de juro na quantia de 68.620,10 € (sessenta e oito mil seiscentos e vinte euros e dez cêntimos).
Insurgiu-se aquela Credora Reclamante contra tal liquidação chamando à colação o valor de capital peticionado na acção, os juros de capital e juros de mora à taxa peticionada, o valor máximo garantido pela garantia hipotecária e o que consta da sentença de verificação e graduação de créditos.
Isto posto.
A Exequente vai ser paga, em duas fases, intercaladas entre si.
A primeira fase, por via da garantia hipotecária.
A terceira fase, por via da penhora obtida nos autos.
O valor do capital é que que consta do requerimento executivo.
A esse valor somam-se juros de três anos.
Esse é o valor do crédito hipotecário da Exequente - € 189.465,98 -, acrescido dos juros de mora de 3 anos, à taxa de 6,9%, conforme peticionado no artigo 8.º.
Como refere a Credora, estão em causa € 39.219,45.
Em suma: primeiro crédito a pagar à Exequente - € 228.685,43.
Este valor é inferior ao montante máximo garantido pela hipoteca – cfr. artigo 9.º do requerimento executivo.
Em segundo lugar, pagar-se-á o crédito da CCAM, restrito ao valor de capital e juros de mora de 3 anos.
Em terceiro lugar, pagar-se-á o remanescente do crédito exequendo, garantido por penhora.
Há que ter em conta quais as garantias hipotecárias que foram consideradas na sentença de verificação e graduação de créditos – “o crédito exequendo mostra-se garantido por hipoteca, registada em 20 de Janeiro de 1995, e pela penhora efectuada em 26 de Maio de 2003”.
Em suma:
I. A Exequente está dispensada de proceder ao depósito do preço até ao valor de € 228.685,43; fica paga nesse montante pela adjudicação.
II. A Exequente tem de depositar a quantias necessária para pagar à CCAM, até ao limite do valor total do seu crédito (que liquidou em € 395.084,33), e não mais do que isso.
III. De qualquer modo, o depósito das custas prováveis é prioritário no processo e, como do mesmo consta, já se encontra perfeito.
Notifique-se e considere-se.
viii. foi de seguida proferido novo despacho nos seguintes termos:
Em complemento do despacho anterior, e a fim de evitar mais incidentes e mais dilações nos autos, desde já se esclarece a Exequente de que o que está em causa é a necessidade de proceder ao depósito do preço da adjudicação a si do imóvel penhorado, preço esse de € 365.000,00.
Assim sendo, tem de depositar, para pagar à Credora Reclamante, a quantia remanescente de € 136.314,57 (que é de montante inferior ao que tem a receber nestes autos).
Notifique-se.».
ix. a exequente apresentou requerimento discutindo os valores em causa, tendo, nomeadamente requerido que «o montante de 9.252,51 € – apuramento custas da execução – que foi depositado, deva ser suportado pelo quantitativo apurado no processo executivo e, em consequência, devolvido à ora requerente».
x. foi proferido despacho que não avaliou o requerimento por já se ter pronunciado «sobre o valor devido e a depositar pela Exequente».
xi. a exequente procedeu ao depósito dos 136.314,57 euros.
xii. foi realizada escritura pública de compra e venda pela qual a exequente comprou o imóvel penhorado, pelo preço de 365.000 euros.
xiii. a exequente, considerando que as custas processuais «não devem ser assacadas à exequente nem à reclamante, tão pouco à adjudicante mas devem ser assacadas ao valor apurado no processo de execução», requereu «que o apuramento custas da execução deve ser definitivamente calculado e ser suportado pelo apurado no processo executivo e, em consequência, devolvido à ora requerente BVF – Buena Vista Flaig, e– Organização de Eventos Lda - o montante de 9.252, 51 € (indevidamente depositado).».
xiv. Tal pretensão foi objecto, em 04.10.2021, do seguinte despacho:
«O requerido é anómalo e até imperceptível para o Tribunal. Pretende a Exequente ficar com o imóvel adjudicado e a devolução do valor das custas prováveis apuradas? A primeira pergunta que nos vem ao espírito é: como ficam pagas as custas? O imóvel não foi vendido; a Exequente/adquirente fica com o imóvel, tal como se encontra, e não retribui no processo o valor das custas; o processo fica sem imóvel…e sem custas pagas.
O artigo 541.º do actual Código de Processo Civil determina que o valor das custas sai precípuo do valor do produto dos bens penhorados. Reporta-se a norma aos casos típicos da venda executiva do bem, em que o preço é depositado (neste tipo de execução antiga) à ordem do Tribunal. O Tribunal retém logo o valor das custas prováveis e paga ao exequente o remanescente. Se o crédito deste não ficar integralmente satisfeito, resta prosseguir com a execução para outras penhoras de bens.
No caso concreto, não houve nenhuma venda do bem mas a entrega do bem à Exequente. Sem mais, “in totum”, com o valor de mercado que lhe é inerente. Portanto, nestes casos, é evidente que a precipuicidade tem de ser garantida por quem está embolsado pelo imóvel. Dito doutra forma: se o imóvel foi para a esfera da Exequente, como se respeita a precipuicidade do pagamento das custas pelo mesmo imóvel, se o Tribunal não o vendeu para se pagar a si primeiro? E que fundamento existe para vir agora a Exequente pedir a devolução do valor das custas? Mantendo o imóvel na sua posse? Nada disto faz qualquer sentido.
Caso a Exequente se não encontre satisfeita no seu crédito face ao Executado (contemplando, nomeadamente, as custas que teve de garantir – bem como as que ainda irão ser apuradas na conta final), resta-lhe requerer o prosseguimento da execução.
Sem necessidade de mais considerações, indefere-se o pretendido pela Exequente.
Custas do incidente pela Exequente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC – artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, e 7.,º n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais, conjugado com a tabela II anexa.
Notifique-se.».
xv. deste despacho interpôs a exequente recurso.
xvi. o recurso não foi admitido por não ser legalmente admitido recurso autónomo.
xvii. a exequente, pronunciando-se novamente sobre a situação, requereu o prosseguimento da execução com vista à sua extinção a fim de poder recorrer da decisão que recusou a entrega do valor depositado.
xviii. após vicissitudes, foi lavrado termo no qual se consignou a extinção da execução.
xix. a exequente apresentou reclamação, solicitando diligências que acautelassem a sua posição.
xx. interpôs a exequente recurso do despacho de 04.10.2021, formulando as seguintes conclusões:
1. O prédio penhorado nesta execução foi adjudicado pelo preço de 365.000 €.
2. O prédio foi objecto de venda por negociação particular e foi outorgada a competente escritura de compra e venda.
3. A adjudicante, exequente no processo, foi dispensada de proceder ao depósito do preço até ao valor de 228.685,43 €, por corresponder ao valor que lhe foi reconhecido e a ser liquidado em primeiro lugar;
4. BVF – Buena Vista Flaig – Organização de Eventos Lda, adjudicante, exequente e ora recorrente, depositou a quantia remanescente de 136.314,57 €, perfazendo o preço de venda do bem que lhe foi adjudicado em venda por negociação particular por 365.000 €.
5. Está em depósito à ordem deste processo, produto de venda do bem penhorado, a quantia 136.314,57 €.
6. Nos precisos termos do artigo 541º do CPC “as custas da execução … saem precípuas do produto dos bens penhorados”.
7. O Despacho ora posto em causa confundiu a venda do imóvel à adjudicante (que assegurou pagamento do preço pelo seu crédito a que como exequente tinha direito e depósito posterior que efectuou) com a entrega sem mais, in totum.
8. É o produto da venda do bem penhorado que garante as custas da execução.
9. É na quantia depositada de 136.314,57 € que devem são assacadas as custas da execução.
10. Pagas as custas, satisfeito o crédito exequente reconhecido em primeiro lugar o remanescente é para pagar a reclamante CCAM, cujo crédito foi reconhecido em segundo lugar.
11. BVF – Buena Vista Flaig – Organização de Eventos Lda foi notificada, pelo Sr. Oficial de Justiça – referências 119430023 e 119429799 – em 5 de Março de 2021, para assegurar as custas prováveis do processo.
12. A ora recorrente, adjudicante do prédio na venda por negociação particular ordenada pelo Tribunal, depositou a quantia de 9.252,51 €, montante então calculado como custas prováveis na notificação de 5 de Março de 2021.
13. Ao arrepio do disposto no artigo 541º do CPC, a exequente e adjudicante está desembolsada da quantia de 9.252,51 € que anteriormente foi depositada e que lhe deve ser restituída.
14. Não pode ser a exequente e/ou a adjudicante a desembolsar as custas do processo, existindo em depósito à ordem deste processo ainda a quantia 136.314,57 €.
15. A quantia de 9.252,51 €, o então cálculo de custas prováveis, (notificação de 5de Março de 2021), deve ser restituído à exequente e adjudicante, BVF – Buena Vista Flaig – Organização de Eventos Lda.
16. O recorrente foi condenado em custas pelo “incidente” a que alegadamente teria dado lugar ao informar o tribunal da quantia depositada a título de custas prováveis e solicitar a sua restituição.
17. Ora, tendo razão ao requerer a devolução da quantia indevidamente depositada como custas prováveis;
18. Deve ser considerado que não houve qualquer facto anómalo e/ou incidente merecedor de reparo e como tal das custas inerentes.».
xx. foi indeferida a reclamação apresentada.
xxi. não foram apresentadas respostas ao recurso.
xxii. o recurso foi admitido.
II. O objecto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 635º n.º4 e 639º n.º1 do CPC), «só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa».
Importa assim avaliar se a exequente tem direito à devolução do valor que depositou a título de custas prováveis da execução (o que passa por verificar se o valor assim depositado deve ser usado para pagar as custas do processo).
III. Os factos relevantes, na avaliação a realizar, têm natureza exclusivamente processual, mostrando-se descritos no relatório elaborado (a partir dos dados documentados do próprio processo).
IV.1. Como já foi assinalado no processo, é-lhe aplicável o regime processual vigente (art. 6º n.º1 da Lei 41/2013, de 26.06), regime este já em vigor aquando da prática da generalidade dos actos processuais relevantes para a avaliação a realizar.
2. Procurando condensar os dados que se revelam essenciais na avaliação, verifica-se que:
- determinada a venda do imóvel penhorado por negociação particular, a exequente apresentou várias propostas, sendo aceite a última, por 365.000 euros;
- antes da realização da venda foi proferido despacho que mandou verificar se estavam depositados as custas prováveis e se havia credores preferenciais.
- efectuado o cálculo das custas prováveis, foi a exequente notificada para proceder ao depósito do correspondente valor, o que fez.
- foi, por despacho, fixado o valor devido à exequente (228.685,43 euros), o qual esta ficou dispensada de depositar, sendo determinado que a exequente procedesse ao depósito da diferença entre aquele valor e o preço aceite, diferença esta que caberia ao credor CCAM (136.314,57 euros). Não foram consideradas as custas da execução.
- a exequente depositou o valor a entregar ao credor reclamante.
Estes dados revelam que o valor de 9.252,51 euros, correspondente ao cálculo das custas prováveis da execução, está, assim, a ser suportado pela exequente, não sendo retirado do valor cobrado na execução.
3. Consagrando a regra da precipuidade das custas, dispõe o art. 541º do CPC que as custas da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução, apensos e respectiva acção declarativa saem precípuas do produto dos bens penhorados.
A decisão recorrida considerou que esta regra não valeria no caso, devendo por isso a exequente suportar as custas da execução (essencialmente correspondentes a despesas relativas à venda do bem penhorado). Assenta essa solução exclusivamente na afirmação de que a precipuidade das custas da execução está pensada apenas para as situações de venda dos bens penhorados, e que no caso «não houve nenhuma venda do bem mas a entrega do bem à Exequente».
O regime processual da execução não conhece nenhum mecanismo de alienação de bens penhorados que se analise na «entrega do bem» ao exequente. Elencando a lei as formas de pagamento, nestas apenas inclui, enquanto meios de alienação de bem imóvel, a adjudicação ou a venda (art. 795º n.º1, 799º e 811º do CPC vigente, já em vigor à data da alienação). Apenas a uma destas formas pode, pois, reconduzir-se a alienação ocorrida no processo.
A decisão recorrida pretenderia, seguramente, reportar-se à adjudicação do bem (menção que já fora feita em despachos anteriores), mas não se mostra acertada a asserção, não podendo ver-se no caso a realização de uma adjudicação.
Com efeito, resulta do processo que, frustrada a venda por propostas em carta fechada, foi determinada a sua venda por negociação particular. E foi no âmbito desta que a exequente fez proposta que foi aceite, conduzindo à realização, através do encarregado da venda, de efectiva compra e venda. Foi, pois, seguido o figurino da venda por negociação particular (v. art. 833º n.º1 do CPC), e foi por esta via que a exequente adquiriu o bem.
Em contraponto, vê-se que não foi adoptado o procedimento próprio da adjudicação desta forma de alienação, o qual se aproxima da venda por propostas em carta fechada (art. 800º do CPC). É certo que a adopção deste procedimento poderia não se mostrar justificado dado já se ter frustrado anteriormente a realização da venda naquela modalidade (foi essa a razão que, anteriormente, justificou que se determinasse a realização da venda por negociação particular). Inexiste avaliação no processo que, perante a proposta da exequente, tome posição sobre a forma como a considerar, ou os procedimentos a adoptar. A ser injustificada a retoma dos procedimentos associados à abertura de propostas, a proposta do exequente pode ter dois enquadramentos: a proposta pode valer como pedido de adjudicação, efectuando-se esta com dispensa do formalismo do art. 800º (1); ou a proposta pode valer como mera proposta negocial de aquisição, idêntica a propostas negociais de outros interessados (2). Como quer que seja, cabe assinalar que foi a segunda solução que foi seguida no processo, já que, como referido, se adoptou o procedimento próprio da venda por negociação particular, e, em sentido oposto, não foi realizada qualquer adjudicação do bem (mormente com a emissão de título de transmissão pelo agente de execução / funcionário - art. 799º n.º4 e 827º n.º1, este por força do art. 802º, todos do CPC).
Procedimento ou solução esta que nem se mostra que seja contrária ao sistema, pois deste não se retira que a aquisição do bem penhorado pelo exequente tenha que assumir sempre a forma de adjudicação (dele não se retira a obrigatoriedade deste enquadramento). Assim desde logo porquanto o sistema admite a venda particular ao exequente, sem adjudicação, no caso do art. 832º al. a) do CPC (embora com acordo de todos os interessados) (3). E se a admite aí, com acordo, não se vê porque não a admitir quando já foi implementada essa modalidade da venda, surgindo o exequente como um interessado na compra (e em que o acordo dos interessados é absorvido pela avaliação da proposta) (4). Acresce que a adjudicação não constitui uma categoria dogmática abstracta, que absorva qualquer aquisição pelo exequente independentemente da sua forma ou estrutura, mas um mecanismo processual específico de alienação, tal como definido no CPC. Mecanismo que, reitera-se, não foi adoptado, tendo sido operada antes uma verdadeira venda executiva (que constitui um outro mecanismo processual de alienação).
Donde que, mesmo na perspectiva assumida pela decisão recorrida, existe uma venda que, segundo a lógica de tal decisão, deveria levar à aplicação do regime do 541º do CPC, desonerando a exequente do pagamento das custas em causa. O que o art. 721º n.º1 do CPC expressamente confirma, pois dele decorre que o exequente apenas suporta as despesas a que a venda executiva der lugar (e é a estas que o depósito em causa nos autos se reporta) se estas não puderem ser pagas nos termos do ar. 541º do CPC (ou seja, pelo produto dos bens penhorados) [solução que é replicada no art. 45º n.º1 da Portaria 282/2013, de 29.08, para os casos de intervenção de agente de execução] (5).
4. Sem embargo, também não se crê que a distinção operada pela decisão recorrida (entre a venda e a adjudicação) para delimitar o campo de aplicação do art. 541º do CPC se possa considerar fundada.
O controlo da afirmação passa, naturalmente, pela interpretação do referido art. 541º do CPC, interpretação que corresponde à fixação do sentido operativo da norma nas circunstâncias do caso. Sentido este que há-de ser obtido a partir da letra da norma, ponto de partida e limite da interpretação (art. 9º do CC), mas, dentro desse quadro literal, atendendo a outros elementos, tradicionalmente reconduzidos aos elementos histórico, racional ou teleológico e sistemático, para assim se obter a reconstrução do sentido normativo ajustado à problemática valorativa em causa.
Assim:
- o sentido literal da norma não acompanha a asserção do despacho recorrido, já que na norma se não circunscreve a sua estatuição aos casos de venda dos bens penhorados. Pelo contrário, o sentido literal da norma é bem mais amplo, estabelecendo uma relação entre a precipuidade das custas e o produto dos bens penhorados sem fixar qualquer limitação quanto à forma como esse produto se obtém. Assim, o sentido formal da norma apenas exige que haja bens penhorados, e que destes bens resulte valor (quantia pecuniária), para logo funcionar a prioridade do pagamento das custas por tal valor, sendo o mecanismo pelo qual se alcança aquele valor pecuniário, face à letra da norma, irrelevante.
- a regra da precipuidade estabelece a prioridade do pagamento das custas pelo valor arrecadado na execução. Tal regra pode justificar-se por várias razões, concorrentes. De um lado, respeita o princípio da causalidade, determinando que as custas corram por conta de quem deu causa à acção (o executado relapso). De outro lado, ajusta-se a princípios de funcionalidade, justiça e racionalidade: sendo o devedor das custas executado, estando disponível quantia do executado, obtida através da actuação do aparelho do Estado (actuação que supõe um preço), justifica-se quer a cobrança das custas se faça na própria execução (economia), quer o valor obtido pague primeiramente as custas pois estas são o preço da cobrança coerciva, sem a qual tal valor não teria sido obtido; justifica-se também porque, a não ser assim, transferia-se o risco de falta de pagamento pelo executado (que já era incumpridor) para nova execução, reiterando diligências executivas; e por em último termo a insuficiência do valor para o pagamento integral da quantia exequenda e das custas dever correr por conta do exequente pois foi este quem desencadeou os procedimentos de cobrança (a custear) e foi ele quem dele tirou proveito (em caso de pagamento ainda que parcial) ou dele pretendia tirar proveito (caso o valor obtido se esgote nas custas). Além disso, estará em causa ainda um princípio sistémico, subjacente a todas as formas processuais, que pretende que o preço da justiça seja efectivamente cobrado pela activação do aparelho da justiça. Ora, estas razões valem independentemente da forma como se obtém o pagamento (venda ou adjudicação, a seguir a distinção suposta na decisão recorrida, ou outro meio de cobrança). Não se vislumbra, na verdade, razão para proceder à distinção suposta naquela decisão. Ou seja, a razão de ser da norma não tolera tal distinção, antes apontando para uma consideração ampla dos valores obtidos a partir da penhora, independentemente da forma como tais valores se obtiveram.
- no CPC de 1939 previa-se que as custas sairiam precípuas do produto dos bens liquidados (art. 464º do CPC). Esta referência à liquidação tinha um sentido literal restritivo, afirmando-se que a operação implícita na liquidação de bens seria a venda dos bens (pois, na verdade, liquidar bens equivale a convertê-los em dinheiro, o que se alcança através da venda). Não obstante, e apesar daquele obstáculo literal, já então se sustentava que a regra também valia para as situações de pagamento sem prévia venda (depósito de dinheiro, adjudicação de bem ao credor ou consignação de rendimentos) - v. A. dos Reis, CPC Anotado, vol. II, Coimbra Editora 1981, pág. 247 e 249 e ss.. Tal norma foi, com aquela redacção, mantida no CPC/1961 (art. 455º), mas foi, na intervenção de 1967 (DL 47690), alterada, passando a prever, como actualmente, que as custas saem precípuas do produto dos bens penhorados. A alteração não pode deixar de ter um sentido ampliador e clarificador, passando a contemplar expressamente todas as situações em que o pagamento se processa a partir do produto da penhora, independentemente da forma como o produto daquela penhora se obtém.
- acrescem elementos do sistema jurídico (normas que integram o quadro normativo global ou lugares paralelos) que tendem a revelar que a regra em causa (prioridade do pagamento das custas) corresponde na verdade a um princípio transversal ao sistema executivo, na execução para cobrança de quantia certa (e não a mecanismo exclusivamente associado à venda dos bens penhorados). Assim:
. dos art. 804º n.º3 (e 805º n.º1) do CPC decorre que na consignação de rendimentos, o pagamento das custas precede a entrega dos rendimentos.
. do art. 779º n.º3 e 4 do CPC decorre que nas penhoras de rendimentos periódicos o pagamento é precedido da retenção das quantias necessárias ao pagamento das despesas da execução.
. idêntico regime vale para os depósitos bancários, de acordo com o art. 780º n.º13 do CPC
. os art. 846º, 847º e 849º n.º1 al. a) do CPC revelam que, quando o pagamento voluntário ocorra no âmbito do processo (e não extrajudicialmente), o pagamento das custas precede a extinção da execução e assim também precede ou ao menos acompanha o pagamento ao executado (pois este pagamento é condição desta forma de extinção da execução, assente no cumprimento).
. do art. 735º n.º3 do CPC decorre que a penhora é realizada por valor que contempla as custas prováveis, mesmo que tenha por objecto bem que não é passível de venda (v.g. dinheiro), o que só se compreende por o pagamento das custas também ser garantido pelo produto da penhora deste tipo de bem.
Todos estes elementos apontam num sentido interpretativo que atribui ao art. 541º do CPC um alcance geral, mais amplo do que aquele que lhe é assinalado na decisão recorrida.
5. Do ponto de vista específico da adjudicação do bem, a sua proximidade com a venda torna ainda menos perceptível razão para a excluir do âmbito do art. 541º do CPC. Com efeito, pese embora seja discutível a sua verdadeira natureza (6), releva a circunstância de a adjudicação do bem ser normativamente aproximada à venda, já que segue essencialmente o formalismo processual da venda por proposta em carta fechada (art. 799º e ss.), sendo-lhe ainda aplicáveis várias normas, gerais e especiais, do regime da venda judicial (art. 802º do CPC), acabando a própria lei processual por as miscigenar ao referir-se, na adjudicação, à proposta (de adjudicação) como sendo um preço (art. 799º n.º3 e 801º do CPC), e, na venda por propostas em carta fechada (verdadeira venda segundo a qualificação legal: art. 811º n.º1 do CPC), ao referir a existência de uma adjudicação do bem ao proponente ou preferente (art. 827º n.º1 do CPC), adjudicação esta que expressamente qualifica como venda no n.º2 do mesmo artigo (sendo que este art. 827º é também aplicável à adjudicação, por força do referido art. 802º do CPC). Proximidade normativa esta que é confirmada pela sua proximidade funcional, constituindo ambos meios de obtenção da quantia exequenda à custa da alienação do bem penhorado. Decerto por isso que a adjudicação seja referida como sendo uma «modalidade especial da venda» (7), ou um «caso especial de venda executiva» (8) ou uma venda executiva que se diferencia pelos sujeitos (9).
Por isso que também por esta via se mostra injustificada a distinção operada, sendo antes justificado um tratamento idêntico perante aquele art. 541º do CPC.
6. O que isto significa é que o valor em causa (que se integra nas custas da execução, face aos art. 3º n.º1, 16º n.º1 al. h) e 17º n.º1 e 6 do RCP) deve ou deveria ser suportado pelo produto do bem penhorado, nos termos do art. 541º do CPC, inexistindo razão para ser a exequente a suportar esse pagamento.
Assim, quando se fixaram os valores que a exequente estava obrigada a depositar, deveria ter sido considerado, em primeiro lugar, o valor das custas prováveis. É certo que o art. 815º n.º1 do CPC dispensa o exequente adquirente de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e que não exceda a importância que tem direito a receber, sem se referir às custas prováveis. Mas admite-se que esta dispensa não abrange as custas prováveis da execução, as quais deverão ser integradas nos valores a depositar (10). Tal justifica-se, de um lado, pelo alcance da razão de ser da norma: a dispensa de depósito visa evitar o depósito daquilo que vai ser devolvido ao exequente, mas, justamente por isso, a dispensa do depósito também se mede pelo que cabe ao exequente, já valendo, simetricamente, a regra geral do depósito para todos os valores que não pertencem ao credor adquirente, como forma de garantia da sua cobrança (11). O que impõe que também as custas sejam depositadas. E deriva, de outro lado, do regime do art. 451º do CPC, quer se considere que as custas seriam também um crédito graduado (por força da lei) com prioridade, quer se atenda a que só se alcança o fim da norma (dispensar o depósito apenas das quantias a que o credor adquirente não tem direito, garantindo a entrega das demais) se nesse depósito se incluir o valor das custas.
De todo o modo, alcança-se que a exequente tem direito a reaver as quantias depositadas, pois elas foram entregues, por iniciativa do tribunal (12), para cobrir despesas (integradas no conceito de custas processuais) pelas quais ela não responde - e já que tais despesa devem ser suportadas pelo produto da venda do bem penhorado (produto este suficiente para liquidar aquelas custas).
E também se alcança que não é correcto afirmar «que a precipuicidade tem de ser garantida por quem está embolsado pelo imóvel»: é esta regra que o sistema, de todo, não contempla. Quem adquire o bem apenas tem, em razão dessa aquisição, que suportar o preço, e não as custas, e isso vale também para o exequente. Mesmo quando este exequente tem que suportar custas (mormente se o preço for insuficiente para as cobrir), tal deriva de regras próprias e não do facto de ter «embolsado» o imóvel.
Já quanto a eventuais repercussões da solução devida no processo executivo, é questão que excede o âmbito deste recurso.
7. Atenta a posição dos executados, que pugnaram pela manutenção da situação, as custas correm por sua conta, nos termos do art. 527º n.º1 e 2 do CPC.
V. Pelo exposto, julga-se procedente, o recurso, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se a devolução da quantia em causa à exequente.
Custas pelos executados.
Notifique-se.
Datado e assinado electronicamente.
Redigido sem apelo ao Acordo Ortográfico (ressalvando-se os elementos reproduzidos a partir de peças processuais, nos quais se manteve a redacção original).
António Fernando Marques da Silva - relator
Manuel Bargado - adjunto
Filipe Aveiro Marques - Adjunto
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1. Parece ser a solução preferencial de L. Freitas, A. Ribeiro Mendes e I. Alexandre, embora referindo-se a proposta de adjudicação pelo exequente, e não a proposta de compra (CPC Anotado, vol. 3º, Almedina 2022, pág. 734).↩︎
2. Assim, V. Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acção Executiva Anotada e Comentada, Almedina 2016, pág. 448.↩︎
3. Nos termos daquela norma, o exequente pode oferecer comprador ou preço; oferecer o preço é, naturalmente, apresentar-se ele mesmo como comprador.↩︎
4. Embora sem discutir a questão, R. Pinto refere que o exequente pode adquirir o bem por adjudicação ou por meio da venda executiva (A acção executiva, AAFDL 2023, pág. 946 e 947). Também T. de Sousa, para regime pregresso mas em termos válidos para o actual regime, refere que o exequente pode escolher entre apresentar-se a adquirir como qualquer terceiro ou solicitar a adjudicação dos bens (in Acção Executiva Singular, Lex 1998, pág. 364). O que não parece é que o sistema imponha que a aquisição pelo exequente seja sempre uma adjudicação.↩︎
5. O regime reporta-se à venda pois é esta que tipicamente provoca despesas adicionais, mormente com o encarregado da venda.↩︎
6. V. sobre a questão, por todos, R. Pinto, cit., pág. 945.↩︎
7. Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, Almedina 2024, pág. 503.↩︎
8. L. de Freitas, A Acção executiva, Gestlegal 2024, pág. 392.↩︎
9. J. P. Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum, SPB Editores, 1998, pág. 351.↩︎
10. Assim A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, in CPC Anotado, vol. II, Almedina 2023, pág. 240, L. Freitas, A. Ribeiro Mendes e I. Alexandre, ob. cit., pág. 773, Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, Almedina 2005, pág. 346 (este para regime anterior mas em termos válidos para o actual regime), ou Ac. do TRC proc. 1642/10.1TBVIS-Y.C1 (a propósito da insolvência mas em termos válidos na execução), em 3w.dgsi.pt.↩︎
11. Esta preocupação com a garantia do depósito (pagamento) do que não cabe ao exequente é expressa no art. 815º n.º3 do CPC.↩︎
12. Atenta a notificação para o efeito. O despacho que manda calcular as custas não é claro mas inculca a obrigatoriedade do depósito (pois não manda calcular as custas mas verificar se estão depositadas, o que supõe a inerente obrigação de depósito), o que também deriva da associação desse depósito às diligências necessárias «com vista à finalização da adjudicação».↩︎