Sumário1:
Tendo sido deduzido um pedido específico (um pedido de conteúdo concreto), mas não se tendo logrado fixar com precisão a extensão dos prejuízos, dever-se-á relegar a sua fixação para ulterior liquidação, quando tal ainda se mostre exequível – artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora,
I. RELATÓRIO.
The Thai, Take Away & Catering ag intentou a presente ação de processo comum contra Street move, Unipessoal, Lda. pedindo a condenação da Ré a indemnizar a Autora pela importância de CHF 42.244,81 ou pelo valor correspondente em euros e ainda pela quantia de 1.336,89€, quantias a que deverão acrescer juros calculados nos termos do artigo 102.º do Código Comercial, desde citação até pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que celebrou com a Ré um contrato que denominaram de “Contrato de Adjudicação e Produção de modelo Big VW replica Trailer”, pelo qual a Ré se obrigou a produzir e fornecer um veículo em fibra, ficando acordado que comporia o interior e ainda que a Autora faria a decoração do veículo, pelo preço total de 26.000,00€, que seria realizado em duas vezes - 50% com a adjudicação e 50% no término do veículo - tendo estabelecido que tal término ocorreria 12 semanas após o recebimento dos 50% iniciais, ou seja, em meados de setembro.
Mais referiu que acordaram que tal contrato ficava regulado pela lei portuguesa, que não estava, contudo, incluído no acordo celebrado, o transporte do veículo para o domicílio da Autora na Suíça e que, apesar das insistências, o veículo só foi entregue em meados de dezembro de 2020, ou seja, com três meses de atraso, que durante tal período a Autora ficou impedida de operar com o referido veículo, o que lhe provocou um prejuízo de CHF 611,03 por dia, tendo em consideração 58 dias de trabalho, ou seja, um prejuízo global, a título de lucro cessante, de CHF 35.439,74.
Acrescentou que o veículo foi transportado pela “Reboques do Centro” do Cartaxo para a Suíça, a 12.01.2021, tendo-lhe sido entregue com dois defeitos:
- defeito de construção - uma mossa/amolgadela no lado direito da carroçaria;
- defeito de montagem de vitrina - vitrina afixada com quatro parafusos demasiado finos que não resistiram à trepidação durante o transporte, tendo-se soltado e partido.
Salientando que tem a sua sede na Suíça, não tendo em Portugal qualquer sucursal, filial ou estabelecimento estável, nem qualquer atividade comercial, sustentou que a reparação dos defeitos do veículo em Portugal seria impraticável, pois implicaria reexpedir o reboque para Portugal, com despesas avultadas de transporte e prejuízos em lucros cessantes em virtude da impossibilidade de utilização do reboque durante todo o tempo que esta operação demoraria, pelo que despendeu CHF 939,35 com a colocação de uma vitrina nova, a qual era imprescindível para que pudesse exercer a sua atividade, com exposição dos produtos alimentares para venda, e terá de gastar CHF 5.865,72 com a reparação da mossa na carroçaria.
Mais acrescentou que o reboque foi expedido sem o espelho da fechadura numa das portas e sem a placa do número de chassi, que foi depois remetido pela Dra. AA para a Suíça, o que importou o gasto de 36,89€, que, com a necessária intervenção da Dra. AA, a Autora pagou 1.300,00€ em honorários.
Alegou ainda que a 26.01.2021 a Autora, através do seu advogado, comunicou os defeitos de construção e montagem do veículo e informou os custos que iria incorrer, interpelando a Ré a pagar, a título de indemnização, a importância de 8.083,24€ (valor correspondente em euros às importâncias em francos suíços), correspondente à correção dos defeitos do veículo, que a Ré não se dispôs a proceder à reparação na Suíça, reclamando que o reboque regressasse às suas instalações e assumindo os custos do transporte, mas não os prejuízos a título de lucros cessantes que a Autora iria sofrer com a paralisação da atividade que exerce naquele veículo - o que a Autora não pode aceitar e que a oposição da Ré à reparação do veículo por terceiro na Suíça ainda que não fosse ilícita corresponderia a uma situação de abuso de direito.
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Citada, a Ré apresentou contestação, na qual reconheceu a celebração do contrato em causa, indicando que o primeiro pagamento foi efetuado no dia 18.06.2020, sendo o segundo e último do dia 09.12.2020, tendo sido efetuada, a pedido do gerente da Autora, uma única fatura correspondente à totalidade do preço, que não inclui IVA.
Quanto ao contrato em si, a Ré alegou que apenas se comprometeu a produzir o veículo, sendo o transporte e toda a documentação administrativa, legal, tributária e alfandegária da exclusiva responsabilidade da Autora, pelo que a sua responsabilidade cessou quando o veículo foi carregado pela empresa transportadora contratada pela Autora, momento em que deixou de ter controlo e contacto visual com o veículo.
Acrescentou que antes da sua expedição, a Autora, por si ou através da intermediária AA, nunca demonstrou uma postura diligente no sentido de reunir toda a documentação necessária e legalmente exigida para a expedição do veículo, sendo que a única obrigação da Ré era proceder ao registo do veículo e consequente emissão de matrícula, processo concluído e enviado para AA no dia 14 de dezembro de 2020.
Ademais, indica que não procedeu à emissão da fatura com IVA nem solicitou o seu pagamento, por estar isenta, que a Autora não procedeu ao preenchimento do certificado de circulação EUR.1, pelo que é imputado à Ré a devolução do valor do IVA, e que por essa razão foi comunicada pela Ré à Autora a ausência do valor relativo à taxa do IVA em vigor no valor de 6.220,33€, que passou a ser devido, valor que peticiona a título de reconvenção.
Quanto ao prazo de conclusão do veículo, a Ré reconhece que o mesmo começou formalmente a 18.06.2020, sendo tal prazo apenas uma previsão, que está dependente de um conjunto de fatores, pelo que é normal que haja atrasos na produção deste tipo de veículos com muitas características e especificidades.
Ademais, a Autora foi acompanhando a evolução do processo, tendo a 20.10.2020 sido partilhado uma séria de fotografias da conclusão do veículo, encontrando-se o veículo já matriculado, que o período que decorreu entre esta data e o transporte do veículo deveu-se ao tratamento do registo e toda a documentação necessária para matricular o veículo em Portugal, sendo o atraso real na produção do veículo devido às limitações inerentes à pandemia que se vivia no mundo, que deve ser entendido como causa de força maior.
Concluiu que não se verifica qualquer atraso culposo, que o defeito na carroçaria, tal moça não foi verificada à saída do veículo, razão pela qual foi entregue e quanto à vitrine não reconhece a existência de qualquer defeito, pelo que, logo que foi interpelada por carta pela Autora, mandatou o seu advogado para discutir e negociar a melhor forma de acionar a garantia do veículo, procedendo à sua reparação, propondo que o veículo voltasse à fábrica para reparar o defeito e colocar nova vitrine (o que fez ao abrigo da boa fé, pese embora não reconheça qualquer responsabilidade pela mesma), sendo tais custos, incluindo o transporte, suportados pela Ré.
Contudo, a Autora sustentou sempre que a reparação deveria ser assegurada na Suíça a expensas da Ré, mas com valores que considera desfasados da realidade e desproporcionados, que não aceitou a justificação da Autora para recusa do regresso do veículo à fábrica sita no Cartaxo, porquanto, em virtude das medidas de contenção da pandemia, a Autora estaria impedida de exercer a atividade comercial com o veículo, não tendo assim prejuízos na sua atividade.
Em suma, sustentou que nada deve à Autora, sendo esta quem lhe deve, pelo menos a quantia de 3.820,33€ (correspondente ao valor do IVA descontado o valor de 2.400,00€ relativo ao orçamento da reparação da carroçaria e da vitrine).
Mais impugna os valores indicados quanto à atividade comercial da Autora e usados para cálculos dos lucros cessantes peticionados.
Deduziu pedido reconvencional, peticionando o pagamento da quantia de 6.220,33€ a título de Iva, acrescido de juros de mora desde a fatura emitida a 18.12.2020.
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A Autora apresentou réplica, na qual sustentou que a execução do contrato celebrado entre as partes configura, indiscutivelmente, uma exportação, pelo que, se efetivamente a Ré não se obrigou ao transporte do veículo, tal não significa que não era a Ré que estava obrigada à emissão/obtenção da documentação fiscal relativa à transação comercial em causa, cujo preço sempre foi apresentado “sem IVA”, sendo para efeitos tributário absolutamente irrelevante a quem competem os custos do transporte, tal como decorre do artigo 14.º, al. a) do Regime do IVA nas Transações Intracomunitárias.
Sustenta, pois, que o exportador é a Ré, sendo que o Certificado de Circulação de Mercadorias EUR.1, só pode ser emitido pela Alfândega a pedido do exportador, não tendo sido emitido pela Alfandega por negligência da Ré.
Ademais, foi acordado que Autora/Reconvinda não pagaria qualquer valor a título de IVA. De resto, salienta, que a Ré/reconvinte não alega que tivesse pago qualquer valor a título de IVA pela transmissão do veículo em causa.
Conclui, no final, pela improcedência do pedido reconvencional e a sua absolvição.
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Findos os articulados, foram as partes convidadas a aperfeiçoar os mesmos, tendo a Autora vindo esclarecer que os serviços contratados a AA, foram-no na verdade à sociedade BB - Unipessoal, Lda., da qual aquela é sócia gerente e que se dedica a negócios de importação e de exportação de bens e serviços e, designadamente, de acompanhamento nas negociações e no cumprimento de contratos celebrados por terceiros residentes no estrangeiro.
Já a Ré apresentou contestação aperfeiçoada, individualizando as exceções invocadas, bem como a reconvenção e concretizou o valor da mesma.
A Autora respondeu a matéria de exceção, concluindo nos termos da petição inicial e réplica.
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Após, foi realizada audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador, bem como identificados o objeto do litígio e os temas de prova.
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Foram expedidas cartas rogatórias para inquirição das testemunhas residentes na Suíça.
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Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida a sentença, que constitui o objecto do presente recurso, onde o Tribunal de 1ª Instância conclui com a seguinte decisão:
“I - Em face de todo o exposto, decido julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência:
a) Condeno a Ré StreetMove, Unipessoal, Lda. a pagar à Autora The Thai, Take Away & Catering, as seguintes quantias:
- 36,89€;
- CHF 5.865,72 ou equivalente em euros, à taxa de câmbio em vigor na data de pagamento;
- CHF 34 774,01 ou equivalente em euros, à taxa de câmbio em vigor na data de pagamento;
Acrescidas de juros de mora com base nas taxas de juros comerciais, sucessivamente em vigor, desde a data da citação até pagamento integral e efetivo.
b. Absolvo a Ré demais contra si peticionado pela Autora.
c. Condeno Autora e Ré no pagamento das custas processuais na proporção do respetivo decaimento.
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II – Julgo o pedido reconvencional formulado pela Ré improcedente e em consequência, decido absolver a Autora/reconvinda do pedido contra ela formulado.
CONDENO a Ré/Reconvinte no pagamento das custas processuais.(…)”
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É justamente desta decisão que a Ré/Recorrente veio interpor o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“I. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo que julga a ação totalmente parcialmente procedente, e, em consequência, condenou a Ré STREET MOVE, UNIPESSOAL, LDA. a pagar à Autora The Thai, Take Away & Catering, as seguintes quantias:
- 36,89€;
- CHF 5.865,72 ou equivalente em euros, à taxa de câmbio em vigor na data de pagamento;
- CHF 34 774,01 ou equivalente em euros, à taxa de câmbio em vigor na data de pagamento;
Acrescidas de juros de mora com base nas taxas de juros comerciais, sucessivamente em vigor, desde a data da citação até pagamento integral e efetivo.
II. No entendimento do Recorrente, andou mal o Tribunal a quo ao proferir a decisão da qual aqui se recorre, ao pronunciar-se da forma arbitrária como o fez, o Tribunal a quo apreciou mal as questões de facto que se lhe colocavam, violando os fundamentos de direito nos quais assentou a decisão ora em crise, olvidando a necessária e imprescindível fundamentação fáctica e legal.
III. O Tribunal a quo, deu como facto provados, com interesse para este recurso, os inscritos em 7., 9. e 13. e como factos não provados, por consequência os inscritos em i. e ii.
IV. O Tribunal a quo, salvo melhor entendimento, faz uma interpretação forçada, onde predomina a ausência de prova, antes de mais nos respetivos articulados – petição inicial e contestação – passando pela prova documental ou mesmo testemunhal.
V. Dar como provado que o veículo melhor identificado nos autos – Big VW réplica Trailer” – foi entregue no dia 18.12.2020, é impreciso porque não se encontra referido em nenhuma prova documental, encontra-se ausente da inquirição de toda e qualquer testemunha de forma objetiva e clara, para além de que mistura os conceitos de conclusão e de entrega que apesar serem parecidos, são antagonicamente diferentes numa lógica comercial e na interpretação que deve ser feita à luz do contrato celebrado entre a ora Recorrente e a Recorrida.
VI. Acontece que, em momento algum se dá a entrega do veículo pela Recorrente à transportadora, facto este evidente, antes de mais pela observação do contrato celebrado em 16.06.2020, onde a competência para assegurar toda a logística e o transporte do veículo cabia à Recorrida que não só contratou a transportadora, como tinha uma representante sua – AA.
VII. O espaço que decorre entre a data da conclusão do veículo (responsabilidade contratual da Recorrente) – 20.10.2020 – e a data da entrega do veículo à transportadora (responsabilidade contratual da Recorrida) – 18.12.2020, é da inteira responsabilidade da entidade Recorrida e da sua representante, não podendo a Recorrente ser responsabilizada por tal.
VIII. De forma mais clara, não pode a Recorrente ser responsabilizada quando tem um veículo concluído na sua fábrica e o mesmo, sob a responsabilidade de um Cliente pelo seu transporte, apenas é levantada, por transporte próprio ou por transporte contratado a terceiro, mais de dois meses após a sua conclusão.
IX. Dar como provado que o veículo apenas se encontrava concluído pela Recorrente na data da entrega da Recorrida à transportadora, é uma conclusão pobre de lógica, pois o contrato celebrado no dia 16.06.2020 e que é invocado como prova do incumprimento da Recorrente, refere no n.º 2 da sua Cláusula Sétima que “O PRIMEIRO OUTORGANTE deve confirmar por escrito, junto do SEGUNDO OUTORGANTE, a data exata de término da viatura com a antecedência mínima de 2 (duas) semanas, permitindo ao SEGUNDO OUTORGANTE assegurar a logística e o transporte do mesmo.”
X. O Tribunal a quo, assumir a data da conclusão do veículo pela data do transporte do mesmo, apenas por uma razão de crença, uma vez que essa data é dada pela Recorrida, como exercício de contabilização dos lucros cessantes peticionados, salvo melhor opinião, resulta da adoção da aplicação da “lei do menor esforço” e que face à matéria discutida em julgamento, mereciam maior rigor e prudência na douta sentença.
XI. Teria sido importante que o Tribunal a quo, ao dar como provado que “3. A Ré é uma sociedade comercial que tem como objeto o “Fabrico, importação, exportação, comércio, comércio electrónico, instalação, assemblagem, montagem, manutenção, reparação, transformação e venda de carroçarias, reboques, semi-reboques, caixas e moldes em fibra e painéis, módulos pré-fabricados, caixas para venda ambulante, caixas de carga e isotérmicas, veículos atrelados, suas peças e acessórios, bem como de veículos de venda ambulante, volumes vários em fibra de vidro (ou noutros materiais para fins diversos como elementos de merchandising, decorativos, de mobiliário, entre outros), aluguer de equipamentos rolantes, serviços de design, marketing, publicidade, inovação e desenvolvimento e serviços de serralharia, carpintaria e instalação eléctrica”, tivesse reparado que aquela – Recorrente – que fabrica, transforma e vende carroçarias, reboques e semi-reboques, não faz homologações, pelo simples facto dessa competência legal, por correspondência e responsabilidade se encontrar vedada por competência exclusiva do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, IP.
XII. É de conhecimento público os grandes e graves constrangimentos à emissão de homologações e certificações de veículos por parte do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, IP. que segundo o próprio pode demorar em média até 3 (três) meses, previsão esta que não corresponde à realidade, tendo a Recorrente, veículos que se encontram à espera de homologação há mais de 12 (doze) meses.
XIII. Facto este cuja falta de conhecimento muito se admira por parte do Tribunal a quo, que não teve a devida e necessária ponderação na hora de decidir.
XIV. Aliás considera o Tribunal a quo que o período destinado ao tratamento da burocracia e registo do veículo tinha necessariamente de ser contabilizado no prazo previsto para a entrega do veículo à ora Recorrida. A questão que se coloca é qual esse esse período? É possível definir um período ou prazo que não depende da Recorrente, por ser uma competência exclusiva Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, IP.?
XV. A contabilização desse período pela Recorrente é fácil na exata medida da certeza do seu incumprimento, pois não depende do controlo direto e efetivo desta, demonstrando o Tribunal a quo um desconhecimento anormal do mercado, mas pior, das regras da experiência comum e comercial do sector automóvel.
XVI. É possível verificar, ao contrário da convicção formulada pelo tribunal a quo, que o veículo se encontrava finalizado no dia 20.10.2020, bastando verificar por mera observação as fotografias que constam da conversa via WhatsApp entre o representante legal da Recorrida e CC, funcionária da Recorrente – Documento 6 da Contestação, e as fotografias que constam do Documento 6 da Petição Inicial.
XVII. A Recorrente face à letra do acordo celebrado com a Recorrida, em 16.06.2020, designado de “Contrato de Adjudicação e Produção de Modelo Big VW replica Trailer”, efetivamente teve um ligeiro e aceitável resvalar do prazo de término do veículo de aproximadamente 24 (vinte e quatro) dias úteis – 16 de setembro de 2020 (prazo contratualizado) – 20 de outubro de 2020 (data da entrega).
XVIII. É de difícil compreensão e aceitação que a Recorrente seja condenada num pagamento completamente infundado e por provar, por um atraso de 24 (vinte e quatro) dias ou mesmo que fosse de 30 (trinta) dias, na entrega de um veículo fabricado de origem, num sector tão complexo como é o sector automóvel e de transformação, seja na vertente particular, seja na vertente empresarial.
XIX. A decisão proferida pelo Tribunal a quo, abre uma caixa de pandora, que não será mais do que uma condenação em banda a todos os player´s do mercado português que se dedicam à fabricação e transformação de veículos e atrelados, sempre que estes se atrasem por qualquer motivo na entrega de um veículo, mesmo contratualizado.
XX. Não é aceitável que um Tribunal, face à existência de um atraso como aquele que é aqui fixado nos presentes autos, condene a Recorrente, como entidade fabricante do veículo, em lucros cessantes por um resvalar do tempo na entrega de um veículo transformado de raiz, seja ele para uso particular seja ele para uso comercial.
XXI. Desconhecendo a experiência do Tribunal a quo na aquisição de veículos particulares ou comerciais, de simples e comum configuração ou de fabricação e produção de raiz, como é o caso particular, é de conhecimento e experiência geral que sempre que um consumidor adquira um veículo seja de uso particular seja de uso comercial, nunca, mas nunca é entregue na data prevista. Nunca!
XXII. Este Nunca, não decorre obrigatoriamente de negligência por parte do vendedor, ou do fabricante, mas sim de uma economia de sector que em Portugal é 100% importadora e que depende muito do mercado externo que quase sempre tem constrangimentos, de conhecimento público e que são, como sempre aceitáveis e atendíveis por parte daqueles que fazem parte de toda a cadeia de produção, terminando na base, fabricantes e clientes. Por isso não se alcança este rigor dado pelo Tribunal a quo que o levou de forma cega a dar como provado o incumprimento contratual entre a Recorrente e a Recorrida, condenando num pagamento desproporcional e absurdo a título de lucros cessantes.
XXIII. A motivação do Tribunal a quo, nesta matéria, apenas se tolera por falta de conhecimento, contudo, trata-se de conhecimento público e mais grave decorrente da lei em vigor à data, por isso não se aceita, e, ou também, por falta de atenção à prova testemunhal produzida em audiência de julgamento.
XXIV. A testemunha DD, trabalhadora da Recorrente responsável pelo departamento financeiro e recursos humanos, questionada sobre a existência de algum constrangimento do ponto de vista da produção, aquisição da matéria-prima, disponibilização de recursos humanos ou se por contrário era um período sem grandes sobressaltos no que diz respeito à produção e fabricação de veículos deste tipo, respondeu que a Street Move aderiu a alguns programas do Covid mesmo porque não tinha algumas matérias primas, tendo tido algumas pessoas com covid e abrandou ali (...) sempre tivemos problemas em receber alguns materiais porque são materiais mais específicos e como cada projeto é um projeto, as coisas demoram muito mais tempo a serem feitas, os fornecedores apanhando ali o junho e o agosto começam a fechar todos para inventários. Questionada assim sobre se naquele período houve comunicações sejam elas escritas ou orais, por carta por WhatsApp ou por outro meio qualquer de indignação por parte do cliente ou de quem o representava, sobre este atraso, respondeu eu julgo que não, quem tratava desse assunto era a CC, mas eles estavam a par de toda a situação do carro. (Passagem das suas declarações entre o minuto 22:00 e o minuto 23:15).
XXV. A testemunha CC, trabalhadora à data da Recorrente, questionada se esta empreitada, esta construção teve algum resvalar de prazo inicialmente acordado e que prazo terá resvalado, respondeu que não sei precisar, mas costuma ser 8 a 10 semanas, a partir da aprovação do desenho técnico, mas como em todos os projetos os clientes costumam pedir alterações, ou porque tem outra coisa que querem alterar ou modificar, questões que podem justificar algum atraso. (Passagem das suas declarações entre o minuto 22:00 e o minuto 23:15). Questionada ainda sobre se na altura reportando a setembro, outubro novembro e dezembro de 2020 e janeiro de 2021 se a empresa teve alguns constrangimentos do ponto de vista das medidas do covid, se houve trabalhadores que não foram trabalhar, se houve rutura de stocks, se houve atrasos decorrentes dessas contingências, tem alguma memória sobre isso, tendo respondido que sim na altura foi uma altura complicada do ponto de vista de componentes, recursos humanos com atrasos normais, todas as obras pararam, sendo o Senhor EE estando sempre em cima do projeto foi sempre informado e avisado (...). (Passagem das suas declarações entre o minuto 16:35 e o minuto 18:00).
XXVI. A própria testemunha arrolada pela Recorrida, conforme descrito na douta sentença, AA, refere que durante as comunicações telefónicas estabelecidas com a Recorrente lhe foi informado haver constrangimentos decorrentes do período pandémico, bem como dificuldades financeiras para justificar um atraso de meros 24 (vinte e quatro) dias.
XXVII. Face ao exposto, não se compreende a razão de ser ou mesmo de ciência para que o Tribunal a quo, afirme como justificação da sua motivação que, nenhuma testemunha ouvida em audiência de julgamento e que trabalhava à data dos factos na Ré, ora Recorrente se referiu à pandemia como um motivo do atraso da entrega, entenda-se conclusão do veículo. Todas as testemunhas referiram a esse facto, por se tratava de uma justificação e de um motivo atendível, que afetou de forma transversal todo o tecido empresarial do país com grande incidência no mercado europeu.
XXVIII. O Tribunal a quo, acha sem justificar, que o período pandémico não afetou a Recorrente, ao nível do fornecimento da sua matéria-prima, de peças e componentes necessários à sua produção ou mesmo da disponibilidade plena dos seus recursos humanos. Esta crença ou convicção do Tribunal a quo, a ser verdade, faziam da Recorrente um caso único e pontual no mercado, não havendo a necessidade de qualquer recurso a apoios e planos de apoio disponibilizados por resultado da pandemia.
XXIX. A Recorrente, por causa de força maior que advém dos efeitos e das medidas aplicadas em pleno estado de emergência – situação de calamidade, com o encerramento obrigatório de espaços industriais e comerciais, com a suspensão efetiva de linhas de produção, evitando o aglomerado de pessoas em empresas e fábricas, sem um horizonte de resolução objetiva, não pode ser responsabilizada por um alegado e mero atraso da conclusão do veículo adjudicado à Recorrida, uma vez que o alegado incumprimento não é suscetível de ser qualificado como culposo, mas sim resultante de um facto imprevisto e de força maior que não conseguiu controlar ou tão-pouco evitar.
XXX. Assim, entende-se dever operar efetivamente e por justiça uma exclusão de uma responsabilidade que não pode ser assacada à Recorrente, por ter resultado de um facto imprevisto – pandemia – criando dificuldades de produção, ao nível da aquisição de material e ao nível da sua capacidade produtiva no que diz respeito aos seus recursos humanos.
XXXI. Mas pior que omitir uma realidade de conhecimento e de experiência comum pelas pessoas e pelas empresas, é dar como provado, sem mais, que entre 16.09.2020 e 18.12.2020, a Recorrida com dois veículos (foodtrucks) que já possuía realizou em média, vendas no valor diário de CHF 1.498,88 em cada veículo, dos quais 40% constituem a margem de lucro.
XXXII. O Tribunal a quo refere que fundou a sua motivação para dar como provado este facto, em documentos, concretamente o documento 4 junto com a petição inicial, que alegadamente corresponde ao resultado diário da atividade da Recorrida, para considerar como direito a lucros cessantes, concluindo por aceitação que esses documentos “talões de caixa dos foodtrucks”, são da autoria do contabilista da Recorrida, a testemunha FF confirmado por si em depoimento através de carta rogatória.
XXXIII. É bom lembrar, mesmo tendo sido dado como facto provado, que a Recorrida é uma sociedade comercial anónima, que tem objeto social a conceção, organização e realização de celebrações, eventos e catering, a exploração de empresas de restauração, o aluguer de veículos e equipamento de gastronomia e o comércio de bens de todos os tipos.
XXXIV. Dificilmente se pode concluir que o valor de CHF 203 874,501 é referente à atividade de venda ambulante através de dois foodtrucks. Salvo melhor entendimento, ninguém acredita.
XXXV. A testemunha FF, refere que esporadicamente a Recorrida faz eventos de catering, logo concluir de forma simplista que aqueles talões de caixa se referem à faturação de dois foodtrucks cujas evidências físicas, por exemplo por fotografias com clientes, não existem, parece-nos um exercício leviano e arbitrário para se dar como provado a relação de faturação junta com a atividade ou existência de dois foodtrucks da Recorrida.
XXXVI. Mas mais leviano e arbitrário ainda é o exercício e a extrapolação feita pelo Tribunal a quo, para apurar o eventual direito a lucros cessantes, entendendo que o resultado médio feito por dois foodtrucks, seria igual ou semelhante com uma terceira viatura. Parece-nos que este exercício é do ponto de vista comercial e contabilístico enquadrável na crença, trata-se de um exercício de fé por parte do Tribunal a quo, que seguramente até a Recorrida nunca acreditou que esta decisão fosse possível.
XXXVII. O representante legal da Recorrida EE, porventura de forma conservadora, ao entrar em contacto com a Recorrente, conforme documento 16 junto com a petição inicial, reportando-se a uma proposta da reparação da carroçaria na Suíça, calcula o valor e indemnização por lucros cessantes, referindo-se à terceira viatura, fixando em CHF 350,00, por dia de atividade forçada. A Recorrida em momento algum teve a intenção de pedir uma indemnização por lucros cessantes por qualquer atraso na produção e conclusão do veículo, por todo o eventual atraso que se resume a escassos 24 (vinte e quatro) dias, uma vez que o mesmo, foi sempre aceite e atendível pelo representante legal da Recorrida. A intenção da Recorrida era fixar o valor de indemnização por lucros cessantes pelos dias que a terceira viatura (a viatura produzida pela Recorrente e com defeito), ficaria sem laborar para ser transportada a Portugal para correção dos defeitos.
XXXVIII. Quer isto dizer que, apesar de motivo distinto, o representante legal da Recorrida, fixou o valor de indemnização por lucros cessantes diário em CHF 350,00 e não na média apurada pelo Tribunal a quo, que fixou em CHF 1 498,88, diário, por foodtruck.
XXXIX. Nem tão pouco se aceita, conforme já referido anteriormente que o espaço temporal para um eventual cálculo a título de lucros cessantes que não são devidos, se fixe no período de 01.09.2020 até 31.03.2021. O veículo estava concluído no dia 20.10.2020 e à disposição da Recorrida que no dia seguinte ou mesmo no próprio dia poderia ter levantado e entregue à transportadora por si contratada, conforme responsabilidade contratual. A Recorrida não levantou no dia 20.10.2020 e nem sequer liquidou os restantes 50% do valor total da empreitada, conforme contratualizado, tendo o feito apenas em 09.12.2020, logo o período entre o dia 20.10.2020 e o dia do transporte do veículo por entidade terceira contratada pela Recorrida - 18.12.2020 - é da inteira responsabilidade desta.
XL. Não pode a Recorrente aceitar que, após a conclusão do veículo o mesmo não sendo levantado das suas instalações, comece a contar o “conta quilómetros” para uma eventual responsabilidade, por prejuízos ou eventuais lucros cessantes. No limite a Recorrente aceitaria, não aceitando por entender não ser devido face a um atraso aceitável de 24 (vinte e quatro), o cálculo relativo a lucros cessantes, fixando o mesmo em 24 (vinte e quatro) dias.
XLI. Ora, fixando o atraso em 24 (vinte e quatro) dias, mesmo sendo úteis de segunda-feira a sexta-feira, o eventual lucro cessante à razão do prejuízo fixado pelo representante legal da Recorrida – CHF 350,00, seria de CHF 8 400,00. Aplicando a indicação determinada pelo Tribunal a quo, que o próprio contabilista e testemunha FF refere ser difícil de apurar de 40% de lucro líquido, apenas seria devido a quantia de CHF 3 360,00, a título de lucro cessante e nunca o valor de CHF 34 774,01 que a proceder, remete a Recorrente para uma eventual falência financeira.
XLII. Mas até a definição do lucro líquido do negócio, referido pela testemunha FF, como de expressão difícil, referindo que pode ser que sejam 40%, concluindo que é difícil dizer, encontra-se por provar, não podendo o Tribunal a quo, sem mais, fixar o lucro líquido em 40%.
XLIII. Porque é que o Tribunal a quo, fixa o lucro líquido do negócio da Recorrida em 40%? Baseia-se em quê? Que conhecimento e prova detém ou foi produzida em audiência de julgamento que se desconhece?
XLIV. Só através de relatórios contabilísticos anuais, o apuramento de todas as despesas da atividade, impostos e demais custos, seria possível apurar esse eventual lucro que em muitos negócios nem sequer é lucro, não sabendo, por não se encontrar demonstrado em termos contabilísticos, se efetivamente a atividade da Recorrida tem lucros líquidos e se os mesmos são declarados e não a olho, como foi aceite pelo Tribunal a quo.
XLV. Não é possível, face à prova produzida em julgamento, em particular a prova documental que não faz nenhuma demonstração de resultados líquidos e em particular qualquer demonstração sobre o lucro líquido da atividade desenvolvida pela Recorrida, nem tão pouco do depoimento prestado pela testemunha FF, se pode concluir qualquer taxa a título de lucro líquido, nem sequer a existência da mesma.
XLVI. Ainda sobre esta matéria, o Recorrente, não pode deixar de valorar a prova por si junta com o documento 7 à contestação, onde de forma clara, ao contrário do que a crença do Tribunal a quo determinou, haviam restrições e limitações ao desenvolvimento da atividade da Recorrida durante o período compreendido entre 1 de agosto de 2020 e 1 de abril de 2021, com a expressa referência na questão à venda ambulante, tendo o Consulado Geral de Portugal em Zurique, sido clara, ao referir o fecho de estabelecimentos comerciais, de restauração, lojas cinemas, etc, salvo farmácias e supermercados, de forma descontinuada.
XLVII. Como se verifica, a decisão proferida pelo Tribunal a quo resvalou para uma desproporcionalidade, que no caso pode colocar em causa a viabilidade económica e financeira da Recorrente, que não pode estar à mercê das crenças do Tribunal a quo, devendo esta ser objetiva e clara na factualidade dada como provada.
XLVIII. Assim, entende o Recorrente que a douta sentença proferida, encontra-se ferida de lógica e de erro notório, ao dar como provados os factos inscritos em 7., 9. e 13, factos estes que face à documentação junta aos articulados, face à prova produzida em audiência de julgamento, teriam forçosamente ser dados como não provados e como já demonstrado, os factos inscritos em i. e ii., dados como não provados, serem julgados como factos provados, face à documentação junta aos articulados e face à prova produzida em audiência de julgamento.
Termos pelos quais deverá a presente apelação ser considerada procedente, devendo a sentença ora recorrida ser substituída, dando-se como não provado os factos inscritos em 7., 9. e 13 e como factos provados os inscritos em i. e ii, por correspondência, mantendo a restante decisão, com as consequências legais que daí decorrem fazendo-se, JUSTIÇA!
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Devidamente notificada, a Autora veio apresentar contra-alegações, indicando as seguintes “considerações finais”:
“115. As alegações da Recorrente têm uma particularidade notável: respeitam, única e exclusivamente, a matéria de facto, desprezando, por completo, o Direito.
116. E desprezam-no não só por nelas não se invocar uma única norma jurídica, como, também, nas construções que empreende, que partem de lado nenhum para daí alcançar segmentos conclusivos, decerto convenientes, mas errados, ainda para mais, com repugnância pelas mais simples regras da lógica. E dos mais elementares cânones de direito probatório.
117. O desprezo pelo Direito é tão acentuado que brada aos céus a quase apologia da violação da norma jurídica, que tudo justifica e desculpa.
118. É difícil - creiam, Venerandos Senhores Desembargadores, que o é - discutir no recurso questões, ainda que de facto, só de facto, sem se partir de princípios básicos do nosso (ou de qualquer outro) Direito: este, por o ser, deve ser respeitado; nos contratos, vigora o princípio “pacta sunt servanda”.
119. Não se vê, nas alegações a que se responde, que o comportamento da Recorrente vertido nos autos seja uma manifestação de apreço pelo Direito.
120. Na impossibilidade de chegarmos a todas as tentativas de enganar o Tribunal, agora o de recurso, focar-nos-emos em alguns pontos exemplares.
121. Comecemos pelo Covid-19 e pelo contrato. Apresenta-se a Recorrente com este binómio para justificar o “resvalar do tempo” …
122. Não sabemos a que figura jurídica lançaria mão a Recorrente para o efeito - assim como é parca na alusão a normas de Direito, é omissa quanto à invocação de institutos ou figuras jurídicas adequadas.
123. Contudo, o que sabemos é que o “Contrato de Adjudicação e Produção de modelo ‘Big VW replica Trailer’” foi celebrado no dia 16 de junho de 2020, num dos momentos mais duros da pandemia, emmque não era expetável que nos pudéssemos livrar dela nesse ano, apontando-se, então, que sem vacina - em que a Humanidade trabalhava afincadamente - não haveria remédio e não era previsível que ela estivesse disponível antes de 2021.
124. Teremos, assim, que salientar que não foi só o contrato que foi celebrado em plena pandemia.
125. O cumprimento, contratualmente previsto na cláusula sétima, deveria ocorrer em data em que, certo e sabido, não haveria melhorias nas condições sanitárias.
126. Não faz, assim, sentido convocar conceitos jurídicos como o de “impossibilidade”, o de “força maior”, de “imprevisibilidade”, de “alteração anormal das circunstâncias”, etc..
127. Houve clara assunção dos riscos do negócio. E não nos esqueçamos que à atividade da Recorrida, tendo em conta a matéria provada em primeira instância, o tempo da pandemia não foi desfavorável, já que, mesmo em condições sanitárias adversas, podia providenciar alimentação à população que podia ou tinha que sair de casa.
128. Por outro lado, os n.ºs 2 e 3 da cláusula sétima do contrato previam a ocorrência de qualquer facto (provocado ou não pela pandemia), que pudesse fazer atrasar a entrega. Só que se a pandemia, em si, é um facto notório, não são factos notórios os factos previstos em tais cláusulas que, certamente por terem inexistido, não foram alegados pela Recorrente, nem antes da propositura da ação, nem na sua contestação.
129. Não é aceitável que, nem em tese geral, nem no caso concreto, se defenda que o devedor que realize a sua obrigação, semanas ou meses depois do termo do prazo de cumprimento, tenha uma atuação admissível, que estes atrasos são bons para o Direito (e que se recomendem!), com fundamento em que o tempo de que o obrigado dispõe para a realização do interesse do credor é meramente uma previsão …
130. É que, embora se trate de alegação de um recurso que versa unicamente sobre matéria de facto, lembra-se que há regras, minuciosamente elaboradas e vigentes, no Código Civil 15 sobre a matéria, como os artigos 777.º e segs.; e sem esquecer as regras-mãe de todo o direito dos contratos: os artigos 405.º e 406.º.
131. Não é de previsões que se trata! É de obrigações, injunções!
132. A Recorrente esquece que um atraso é incumprimento (temporário) e constitui uma ilicitude, pressuposto ou requisito primeiro da responsabilidade civil contratual. E esquece, ainda, que na responsabilidade civil obrigacional a culpa presume-se (artigo 799.º do CC), presunção que, no caso dos autos, não foi objeto de elisão.
133. Ainda quanto ao ilícito - omissão da entrega no momento determinado, ou determinável, de harmonia com o contrato -, esforça-se a Recorrente por demonstrar, como se viu já, lançando aliás mão a raciocínios propositadamente errados, que o reboque se encontrava “concluído” muito antes da entrega.
134. A Recorrente, porém, não atende às mais singelas normas substantivas sobre a repartição do ónus da prova que se encontram no artigo 342.º do CC, em especial ao seu n.º 2. 135. O que sabemos, vem provado na primeira instância e consta da prova documental, corretamente valorada pelo julgador, e é que no dia 20 de outubro de 2020 o reboque não estava pronto, nem o contrato estava cumprido. 15 A seguir «CC».
136. Sabemos, também, que o reboque foi - como tinha que ser - objeto de homologação (atividade a promover pela Recorrente). Contudo, dizer, ancorado em rigorosamente nada (qual barco à deriva), que as homologações demoram em média 3 (três) meses e que há veículos (certamente refere-se a veículos não defeituosos) a aguardar 12 (doze) meses, de nada lhe vale, nem sequer invocando o “domínio público”.
137. Certo é que quem tem experiência com homologação de veículos em Portugal é a própria Recorrente, e seguramente não a Recorrida, e certo é que foi a Recorrente que elaborou o contrato nos termos que dele constam, incluindo (e bem) a homologação como uma das suas obrigações contratuais, a realizar dentro do prazo que a própria Recorrente estipulou, no contrato, de acordo com os seus próprios cálculos, para a entrega do reboque!
138. Aliás, não deixa de ser curioso (para não dizer “intelectualmente desonesto”, que é expressão que também nos vem ao espírito) a Recorrente pretender justificar a sua mora com fundamento na duração do processo de homologação, quando em nenhum momento alegou, sequer, a data em que deu início ao referido processo.
139. Como é evidente, só com base na mesma se poderia, então, concluir eventualmente por algum maior atraso (se bem que, mesmo aí, importaria apurar qual a sua causa e a quem seria imputável).
140. A Recorrente, perante os danos sofridos pela Recorrida, criteriosamente provados, pretende retirar-lhes as consequências que, juntamente com os demais pressupostos, originam: a responsabilidade civil e a obrigação de indemnizar. Já anteriormente ficou demonstrado que a recolha dos factos relevantes para a verificação do dano foi exemplar. A dificuldade da Recorrente em aceitar o resultado dos seus atos e omissões só tem justificação num sentimento intolerável de impunidade ou, melhor, de irresponsabilidade.
141. As alegações da Recorrente não se servem do Direito o qual, para o resultado que se tem em vista, de nada servem, sendo ela, Recorrente, a primeira a desprezar ostensivamente, de forma inadmissível e chocante, o Direito dos Contratos.
Por todo o exposto, deve esse Alto Tribunal negar, na íntegra, provimento ao recurso interposto pela Recorrente e, consequentemente, manter a douta sentença recorrida.”.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cf. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
No seguimento desta orientação, em face das alegações da Ré/Recorrente importa desde logo ter em consideração que a Autora peticionou:
- 1º CHF 5.865,72, a título custo da reparação da mossa na carroçaria (artigo 29º supra);
- 2º CHF 939,35, correspondente ao custo da substituição da vitrina (artigo 27º supra);
- 3º CHF 35.439,74, para indemnização de lucros cessantes emergentes no atraso da entrega do reboque (artigo 20º supra);
- 4º € 1.300,00, a título de despesas com a remuneração pelas diligências da Dra. AA, devidas ao incumprimento da R. e à mitigação das suas consequências;
- 5º € 36,89, correspondentes às despesas de expedição (portes) do espelho da fechadura e da placa de chassis (artigos 30º e 31º supra);
- 6º os juros que, sobre cada uma das importâncias, mencionadas de 1º a 5º, se vencerem, às taxas decorrentes da aplicação do artigo 102.º, e seus parágrafos, do Código Comercial, desde a citação até pagamento integral.
E que a Ré peticionou a condenação da Autora no pagamento da quantia relativa ao IVA.
E que a sentença recorrida, apreciando tais pedidos, absolvendo a Ré do demais peticionado pela Autora e esta do pedido reconvencional, condenou a Ré no pagamento de:
- 36,89€, correspondentes ao custo do envio da placa do número do chassis;
- CHF 5.865,72 ou equivalente em euros, à taxa de câmbio em vigor na data de pagamento, relativa à reparação da mossa existente no veículo;
- CHF 34 774,01 ou equivalente em euros, à taxa de câmbio em vigor na data de pagamento, relativos ao lucro que a Autora deixou de obter em face do atraso na entrega do veículo;
- quantias acrescidas de juros de mora com base nas taxas de juros comerciais, sucessivamente em vigor, desde a data da citação até pagamento integral e efetivo.
Ora, compulsadas as conclusões do recurso, a Apelante apenas se insurge quanto à última parcela referida, ou seja, à quantia relativa à indemnização pelos lucros cessantes decorrentes do atraso na entrega do veículo, face ao estabelecido no contrato, pelo que apenas sobre tal parcela deverá recair a apreciação deste Tribunal da Relação.
Relativamente a esse segmento da decisão, cumpre então apreciar:
i. da procedência da impugnação da matéria de facto;
ii. do alegado erro no cálculo do valor da indemnização por lucros cessantes.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
III.1. A sentença proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade comercial anónima, constituída de harmonia com as leis do Cantão de Zurique, na Confederação Helvética, registada nos respetivos serviços sob o n.º 315.112.626, que tem objeto social a conceção, organização e realização de celebrações, eventos e catering, a exploração de empresas de restauração, o aluguer de veículos e equipamento de gastronomia e o comércio de bens de todos os tipos,
2. (…) tendo sede e domicílio fiscal em ..., e não tendo em Portugal qualquer sucursal, filial ou estabelecimento estável, nem domicílio fiscal ou atividade comercial.
3. A Ré é uma sociedade comercial que tem como objeto o “Fabrico, importação, exportação, comércio, comércio electrónico, instalação, assemblagem, montagem, manutenção, reparação, transformação e venda de carroçarias, reboques, semi-reboques, caixas e moldes em fibra e painéis, módulos pré-fabricados, caixas para venda ambulante, caixas de carga e isotérmicas, veículos atrelados, suas peças e acessórios, bem como de veículos de venda ambulante, volumes vários em fibra de vidro (ou noutros materiais para fins diversos como elementos de merchandising, decorativos, de mobiliário, entre outros), aluguer de equipamentos rolantes, serviços de design, marketing, publicidade, inovação e desenvolvimento e serviços de serralharia, carpintaria e instalação eléctrica”,
4. (…) tendo sede e o domicílio fiscal na freguesia do ....
5. A 16.06.2020, Autora e Ré celebraram um acordo, o qual designaram de “Contrato de Adjudicação e Produção de Modelo ‘Big VW replica Trailer”, no qual estabeleceram que:
“Cláusula segunda
(objeto)
O presente contrato tem por objeto a prestação de serviços da PRIMEIRA OUTORGANTE ao SEGUNDO OUTORGANTE, (…) nomeadamente na produção e fornecimento do veículo em fibra denominado ‘Big VW replica Trailer” (…)
Cláusula Terceira
(Regime e Característica Técnicas)
A PRIMEIRA OUTORGANTE, presta os serviços descritos na cláusula primeira com as características técnicas aprovadas que se encontram discriminadas no orçamento como:
(…)
- O PRIMEIRO OUTORGANTE deverá proceder ao registo e matricula em Portugal. Assim que a mudança da matrícula for realizada na Suíça deverá o SEGUNDO OUTORGANTE informar e enviar o respectivo comprovativo de modo que o PRIMEIRO OUTORGANTE possa proceder ao cancelamento da existente matrícula em território nacional.
Cláusula Quarta
(Exceções)
1.Os serviços a prestar pela PRIMEIRA OUTORGANTE ao SEGUNDO OUTORGANTE incluem a decoração do veículo (…) em moldes posteriormente negociados.
2. Os servidos a prestar pela PRIMEIRA OUTORGANTE ao SEGUNDO OUTORGANTE não incluem o transporte do veículo (…) após a produção do mesmo.
Cláusula Quinta
(Valor do Contrato)
O valor do presente contrato de prestação de serviços para a adjudicação e produção do veículo (…) é de €26.000,00.
Cláusula Sexta
(Condições de Pagamentos)
O plano de pagamentos da adjudicação e produção do veículo (…) obedece às seguintes condições:
a. 50% do valor total com a adjudicação.
b. 50% do valor total com o término do veículo.
Cláusula Sétima
(Prazo de Término)
1.O prazo de término do veículo (…) é de 12 (doze) semanas após o recebimento de 50% do valor total na fase de adjudicação.
2. O PRIMEIRO OUTORGANTE deve confirmar, por escrito, junto do SEGUNDO OUTORGANTE, a data exata de término da viatura com a antecedência mínima de 2 (duas) semanas, permitindo ao SEGUDO OUTORGANTE assegurar a logística e o transporte do mesmo.
3. O prazo indicado no número anterior poderá excecionalmente ser incumprido por razões de ordem técnica, de falta de material, de alterações (…)
4. Qualquer incumprimento do prazo, pelas razões acima descritas, não acarretará qualquer responsabilidade ou penalização para a PRIMEIRA OUTORGANTE, desde que não exceda 2 semanas, face ao prazo de entrega inicialmente previsto.
(…)
Cláusula Nona
(Resolução do Contrato)
(…)
2.O Contrato encontra-se redigido em português e as suas cláusulas abrangidas pela lei portuguesa” - cf. doc. 3 junto com a petição inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos.
6. A 18.06.2020, a Autora procedeu ao pagamento de 50% do valor acordado.
7. O segundo e último pagamento foi efetuado a 09.12.2020 e o veículo foi entregue em 18.12.2020 à transportadora “Reboques do Centro”, contratada pela Autora.
8. O veículo foi entregue pela Ré com uma mossa/amolgadela no lado direito da carroçaria.
9. Entre 16.09.2020 e 18 de dezembro de 2020, a Autora com os dois veículos (foodtrucks) que já possuía realizou em média, vendas no valor diário de CHR 1.498,88 em cada veículo, dos quais 40% constituem a margem de lucro.
10. A Autora contratou os serviços de BB - Unipessoal, Lda., numa tentativa de desbloquear o atraso na entrega do veículo e intermediar o processo de entrega.
11. A reparação da mossa indicada em 8, tem o custo, na Suíça, de CHF 5.865,72.
12. Pela colocação de uma vitrina nova no veículo, a Autora despendeu a quantia de CHF 939,35.
13. A Autora iniciou atividade com o veículo a 18.01.2021, atividade comercial que se manteve, mesmo durante o período em que vigoraram as regras de contenção e mitigação da pandemia por Covid-19 na Suíça.
14. O veículo foi expedido, do Cartaxo para Zurique sem a placa do número de chassi,
15. (…) que foi mais tarde remetido por correio por AA, o que custou 36,89€.
16. Além das interpelações por e-mail, a 26.01.2021 a Autora remeteu à Ré uma carta, rececionada a 28.01.2021, a comunicar a existência de defeitos no veículo, concretamente a mossa e vitrine, peticionando o pagamento de indemnização no valor de 8.083,24€, correspondente à quantia em euros, da correção dos defeitos.
17. Em resposta, a Ré solicitou o regresso do veículo à sua sede para proceder à reparação dos defeitos invocados, assumindo os custos de transporte,
18. (…) e recusando compensar os prejuízos causados com a paralisação da atividade da Autora com o veículo em causa,
19. (…) indicando estar em falta o pagamento da quantia de 6.220,33€ a título de IVA.
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Da reconvenção
20. A 18.12.2020, a pedido da Autora, foi emitida fatura do preço global de 26.000,00€, fatura que não inclui qualquer valor a título de IVA.
21. Não foi emitida o certificado de circulação de mercadorias EUR.1.
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III.2. Na sentença recorrida foram considerados não provados os seguintes factos:
i. O veículo estava concluído desde 20.10.2020, sendo que o atraso até à entrega, deveu-se ao tratamento do registo e toda a documentação necessária para matricular o veículo em Portugal com vista à sua exportação.
ii. O atraso na conclusão do veículo resultou das dificuldades de produção, ao nível da aquisição de material e ao nível da capacidade produtiva, relacionados com a pandemia de Covid-19, que foram comunicados à Autora.
iii. A Autora pagou pelos serviços prestados pela entidade referida em 10. a quantia de 1.300,00€, acrescidos de IVA.
iv. O veículo foi entregue pela Ré com a vitrina mal afixada ou mal acondicionada;
v. Além do referido em 14, o veículo também foi entregue sem o espelho da fechadura numa das portas.
vi. Foi exigido à Ré a devolução ao Estado do valor do IVA sobre a quantia de 26.000,00€ pela transação do veículo no âmbito do contrato referido em 5.
vii. A Autora quem tinha obrigação de solicitar a emissão do certificado de circulação de mercadorias EUR.1.
viii. A reparação da mossa/amolgadela e da vitrine, bem como o transporte do veículo para reparação/correção na sede da Ré tinha o custo de 2.400,00€.
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IV. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO.
Pondo em causa a apreciação e valoração da prova efetuada pelo Tribunal Recorrido a Apelante impugna a matéria de facto provada constante dos seguintes pontos da decisão da matéria de facto considerada provada e não provada:
7. O segundo e último pagamento foi efetuado a 09.12.2020 e o veículo foi entregue em 18.12.2020 à transportadora “Reboques do Centro”, contratada pela Autora.
9. Entre 16.09.2020 e 18 de dezembro de 2020, a Autora com os dois veículos (foodtrucks) que já possuía realizou em média vendas no valor diário de CHR 1.498,88 em cada veículo, dos quais 40% constituem a margem de lucro.
13. A Autora iniciou atividade com o veículo a 18.01.2021, atividade comercial que se manteve, mesmo durante o período em que vigoraram as regras de contenção e mitigação da pandemia por Covid-19 na Suíça.
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i. O veículo estava concluído desde 20.10.2020, sendo que o atraso até à entrega, deveu-se ao tratamento do registo e toda a documentação necessária para matricular o veículo em Portugal com vista à sua exportação.
ii. O atraso na conclusão do veículo resultou das dificuldades de produção, ao nível da aquisição de material e ao nível da capacidade produtiva, relacionados com a pandemia de Covid-19, que foram comunicados à Autora.
A parte contrária pugnou pela improcedência da impugnação.
Tendo a Recorrente cumprido formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil - especificou os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, indicou, embora de forma bastante vaga, os elementos probatórios que, no seu entender, conduzem à alteração daqueles pontos nos termos por ela propugnados, e concretizou a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida, indicando passagens da gravação em que funda o recurso, nada obsta ao conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do artigo 662º do Código de Processo Civil.
Tarefa que cumpre realizar tendo presente que por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for(em) insuscetível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil (artigos. 2º, n.º 1 e 130º, ambos do C.P.C.).
E que nos termos do artigo 607º, nº 5 do Código de Processo Civil o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», de forma consentânea com o disposto no Código Civil, designadamente nos seus artigos 389º (para a prova pericial), e 396º (para a prova testemunhal), sendo que a «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do nº 5 do artigo 607º do Código de Processo Civil).
Procedeu-se à audição da prova produzida quer por carta rogatória, quer em audiência de julgamento e à conjugação da mesma com o teor da prova documental e pericial junta aos autos e igualmente analisada em audiência.
E da concatenação de toda a prova assim produzida, concluímos que o juízo probatório realizado pelo Tribunal Recorrido não merece qualquer censura.
Vejamos porquê.
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No que respeita ao facto impugnados o Tribunal motivou a decisão de facto da seguinte forma:
“(…)Já quanto à entrega do veículo pela Ré à transportadora contratada pela Autora, facto provado n.º 7, embora não resulte indicado diretamente no articulado da petição inicial que tal ocorreu a 18.12.2020, cremos que se pode concluir que é a data indicada pela Autora uma vez que é até essa data que contabiliza, por exemplo, os lucros cessantes peticionados. Tal data é igualmente indicada pela Ré como a data do levantamento do veículo das suas instalações, pelo que consideramos a mesma assente pelo acordo das partes, além de que resulta corroborada da análise dos e-mails juntos como doc. 5 da contestação. Aproveitámos, neste ponto, para esclarecer que, embora a Ré indique que o veículo já se encontrava finalizado a 20.10.2020 e o atraso que ocorreu desde essa data até ao dia 18.12.2020 esteve relacionado com a burocracia e o registo e matrícula do veículo, tivemos de considerar tal factualidade não provada (ponto i.), porquanto mesmo na conversa de whatsapp de que a Ré se socorre para demonstrar tal facto (doc. 6 da contestação), é possível verificar que nas mensagens trocadas no dia 21 é referido que a decoração ainda não está finalizada, indicando que poderia ocorrer na segunda-feira seguinte e na descrição das fotografias de dia 20.10.2020 é expressamente afirmado “it’s not all done”.
Importa também notar que o processo de homologação do veículo está incluído nos serviços prestados pela Ré, tal como foi confirmado em audiência por CC, pelo que esse período destinado ao tratamento da burocracia e registo do veículo tinha necessariamente de ser contabilizado no prazo previsto para a entrega do veículo à Autora. Esta testemunha, que costumava ser quem falava mais diretamente com o representante da Autora, indicou que este pedia muitas atualizações sobre o estado do projeto, fotografias e falava muito da documentação, descrevendo que estava “sempre em cima” e pressionava para que o projeto terminava - o que é indiciador de que efetivamente se verificou um atraso do prazo previsto.
Certo é que o veículo apenas foi entregue pela Ré no dia 18.12.2020, aproveitando-se, ainda, para esclarecer que apesar de a Ré alegar que o atraso em causa se deveu às circunstâncias excecionais que se viviam na altura em virtude da pandemia de Covid-19, não provou qualquer factualidade concreta relacionada com tal alegação, nem que em algum momento a Autora tenha sido alertada ou lhe tenha sido dado conhecimento desses constrangimentos e do atraso que implicariam na entrega do veículo - tendo-se dado tal facto como indemonstrado em ii. Neste ponto particular, a testemunha AA referiu que durante uma chamada telefónica, a Ré refugiou-se na pandemia e em dificuldades financeiras para justificar o atraso, mas não indicaram qualquer concreto constrangimento decorrente da pandemia, como falta de pessoal ou de material, nada. Por outro lado, esta testemunha nunca teve informação que tal fundamento ou motivo de atraso foi comunicado à Autora. Recorde-se que AA interveio numa altura em que já se tinha ultrapassado largamente o período de 12 semanas previsto no contrato e que o representante da Autora lhe indicou não conseguir contacto ou informações da Ré. Acrescente-se, ainda, que nenhuma das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento e que trabalhava à data dos factos na Ré se referiu à pandemia como um motivo do atraso da entrega do veículo, antes pretendendo passar a imagem de que o prazo é uma mera previsão e que os clientes normalmente pedem alterações que levam a atrasos (embora não tenham afirmado que tal ocorreu no caso concreto). (…)
Também a factualidade vertida em 9 dos factos provados resulta de documentos, concretamente o doc. 4 da petição inicial, que apesar de impugnado continua a poder ser utilizado e livremente apreciado pelo Tribunal, tendo a sua autoria confirmada pela testemunha FF, contabilista da Autora. Naturalmente que, por si só tal documento, não seria suficiente para dar como demonstrado o resultado diário da atividade da Ré, mas num CD junto na audiência prévia encontra-se um documento de onde constam digitalizados todos os talões de caixa dos foodtrucks da Autora desde 01.09.2020 até 31.03.2021, que correspondem aos valores indicados no doc. 4 da petição inicial.
Ora, considerando o valor reclamado pela Autora a título de lucros cessantes, que delimita nesta parte o objeto da ação, o Tribunal somou todos os resultados de caixa de ambos os foodtrucks entre dia 16.09.2020 a 18.12.2020 (no valor total de CHF 203 847,50 ), dividiu tal resultado por 2 e esse valor por 68, correspondente aos dias de funcionamento dos foodtrucks durante esse período (correspondendo na 5 dias por semana), o que resultou uma média diária de CHF 1.498,88 por foodtruck.
Naturalmente que tal valor não corresponde na totalidade a lucro obtido pela Autora, que terá, naturalmente, de fazer face a despesas inerentes à atividade (salários, fornecedores, etc.), bem como a impostos, crendo que a indicação de 40% daquele valor corresponderá a lucro corresponderá às regras da normalidade e do normal suceder. Ademais tal percentagem foi considerada adequada por FF, contabilista da Autora.(…)
De resto, no que respeita ao facto da Autora ter iniciado a sua atividade comercial no veículo construído pela Ré, mantendo tal atividade mesmo enquanto vigoravam as regras de contenção e mitigação da pandemia por Covid-19, o Tribunal valorou o depoimento de FF, GG, gestor de cliente do talho fornecedor da Ré, e HH, cliente da Autora, tendo todos afirmado, com segurança e assertividade, que a Autora teve a atividade nos foodtrucks em funcionamento e tinha autorização para manter tal atividade, porque se tratava de um serviço de take away ao ar livre.
Note-se que as informações prestadas pelas autoridades Suíças, juntas com a contestação, não são capazes de abalar a convicção positiva do Tribunal quanto a tal matéria, uma vez que não dizem respeito concretamente à Autora ou à sua atividade, tratando-se de indicações genéricas para o setor de restauração, sem qualquer individualização de uma atividade como a que é exercida pela Autora.
Ademais, no documento junto em CD na audiência previa constam digitalizado os talões de caixa de três foodtrucks a partir de 18.01.2021, o que reforça a convicção positiva do Tribunal, já baseada no depoimento das testemunhas ouvidas na Suíça, de que efetivamente a Autora iniciou e manteve a sua atividade comercial no veículo construído pela Ré, razão pela qual recusou que o veículo voltasse às instalações da Ré no Cartaxo para reparação da amolgadela.(…)”
Sufraga-se inteiramente tal motivação e as vagas referências da Apelante aos meios de prova produzidos não impõem convicção diversa.
Que a entrega do veículo (apenas este facto se dá como provado) foi realizada na data referida no ponto 7. dos factos provados é a própria Ré que o refere no artigo 18 da contestação, e é também o que decorre do teor do documento junto com o n.º 5 ao referido articulado, meios de prova que não foram contrariados por qualquer outro, pois nenhuma outra testemunha mencionou qualquer outra data para a finalização ou entrega do veículo, sendo que do teor do documento 6 da contestação, embora constem fotografias do veículo em causa, o certo é que do mesmo decorre que em 20.10.2020 o veículo não se encontrava pronto, o que permite concluir pela improcedência da impugnação na parte respeitante ao ponto i. dos factos não provados.
De salientar que, sendo certo que a cláusula sétima n.º 2 estabelecia a obrigação de comunicação por escrito da data (estimada) de conclusão do veículo para que a compradora pudesse organizar o transporte, certo é que dos autos não consta uma tal comunicação.
No que concerne ao ponto 9. dos factos provados, o certo é que a conjugação dos documentos a que se faz referência na motivação com os depoimentos das testemunhas II, que realiza a contabilidade da Autora se extraem os valores de faturação ali mencionados, valores que não foram infirmados por qualquer meio de prova.
Questão diversa, que adiante se averiguará, consiste em perceber se o cálculo do valor da indemnização por lucros cessantes pode ter por base tais valores.
No que concerne ao ponto 13. dos factos provados, efetivamente, da conjugação dos depoimentos das testemunhas GG - fornecedor da Autora que confirmou que a mesma continuou a laborar mesmo durante as restrições à livre circulação decorrentes da pandemia -, HH – cliente de um dos postos de venda de alimentos da Autora -, e II – contabilista da Autora -, com o teor dos documentos referidos na motivação resulta não só a data indicada nos factos, como a continuidade da atividade durante as referidas restrições, pelo que não tendo tais meios de prova sido abalados por qualquer ouros, não pode deixar de sufragar-se o juízo probatório do Tribunal Recorrido, também quanto a este ponto.
Por último, as referências a dificuldades de produção ao nível de capacidade produtiva, por falta de fornecimento de materiais ou ausência de mão de obra decorrentes da pandemia foi realizada de forma apenas muito vaga e genérica pelas testemunhas indicadas pela Apelante, que não concretizaram nunca qualquer concreta dificuldade que tivesse impactado na produção do veículo em causa, nem em audiência, nem no decurso das conversações entre as partes, razão pela qual não merece censura a inclusão dos factos vertidos no ponto ii. no âmbito dos que não se provaram.
Conclui-se desta forma pela improcedência da pretensão recursiva no que respeita à impugnação da matéria de facto.
Permanecendo inalterada a matéria de facto, provada e não provada, aqui nos dispensamos de a voltar a reproduzir.
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V. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Mantendo-se incólume a matéria de facto, cumpre reapreciar a decisão de mérito, na parte contra a qual a Apelante se insurge, ou seja, e como já acima se precisou, no segmento atinente à quantia relativa à indemnização pelos lucros cessantes decorrentes do atraso na entrega do veículo, face ao estabelecido no contrato.
O Tribunal recorrido caracterizou adequadamente o contrato entre as partes celebrado, como um contrato de empreitada, identificando as obrigações que do mesmo resultaram para cada uma das partes.
O artigo 1207º do Código Civil define a empreitada como "o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço" e os factos provados revelam que a Ré dedica a sua atividade ao exercício da construção de veículos semelhantes ao dos autos e que no âmbito do exercício da sua atividade, acordou com a Autora a produção do mesmo, nas condições previstas no contrato.
Pela natureza da sua atividade, a Ré atuou como empreiteiro, a Autora como dono da obra e esta situação enquadra-se no tipo de contrato definido no artigo 1207º do Código Civil, isto é, na empreitada.
O contrato de empreitada está regulado nos artigos 1207º a 1230º do diploma citado, mas esta regulamentação é, na generalidade daquelas normas legais, meramente supletiva, havendo que atender, em primeiro lugar, às condições do contrato estabelecidas pelas partes.
Cabe aqui salientar que a liberdade contratual, prevista no artigo 405º do Código Civil, abrange quer a possibilidade de celebrar (ou não celebrar) determinado contrato (liberdade de celebração), quer a possibilidade de fixação do conteúdo do contrato (liberdade de estipulação) e que em conformidade com os artigos 762.º, n.º 1 e 406.º do mesmo diploma, celebrado o contrato, a obrigação só se extingue quando o devedor realiza a prestação a que se obrigou, por via da concretização da conduta a que o credor tem direito e a que o devedor livremente se vinculou.
E como se refere na sentença, no que concerne ao prazo de entrega, resultou provado que as partes acordaram que o veículo seria entregue no prazo de 12 semanas após o recebimento de 50% do valor total na fase de adjudicação (cláusula 7ª do contrato) - pagamento que foi efetuado no dia 18.06.2020, pelo que o prazo para a conclusão do veículo – que como se refere na decisão, incluía o registo e a matrícula do veículo em Portugal - terminou no final da segunda semana de setembro.
E sendo certo que o teor do contrato não admite a interpretação de que o prazo acordado pelas partes no âmbito da sua liberdade contratual era meramente indicativo, como parece entender a Ré (que caso pretendesse não se comprometer com determinado prazo, nada impedia que tivesse rejeitado a respetiva fixação, diversamente do que consta claramente do contrato), certo é também que ambas as partes acordaram que:
Destas duas cláusulas decorre a admissão como razoável, pelos motivos ali indicados, nos quais se inclui praticamente qualquer circunstância - sendo que a falta de prova das mesmas não permite excluir a respetiva verificação - de um atraso de duas semanas relativamente à data prevista no ponto 1 da cláusula 7ª, o qual, a verificar-se, não determinaria qualquer “responsabilidade ou penalização”, o que permite referir que as partes previram desde logo como “isenta” de responsabilidade a entrega do veículo no final de setembro.
Tendo sido convencionado que a Ré deveria comunicar por escrito e antecedência de duas semanas a data de conclusão do veículo, certo é que não consta que o tivesse feito antes e que a entrega ocorreu apenas em 18 de dezembro, pelo que existiu efetivamente um retardamento na prestação, ainda possível, imputável à Ré, sendo que a culpa da devedora, nos termos do artigo 799.º do Código Civil, se presume.
Incorreu assim a Ré na obrigação de indemnização pelos prejuízos resultantes da mora, de acordo com o disposto nos artigos 804.º, 805.º, n.ºs 1 e 2, a), 806.º, 799.º, 562.º e 566.º do Código Civil.
O Tribunal Recorrido calculou o valor devido “por referência ao resultado médio da atividade daqueles outros foodtrucks, ou seja, por referência ao valor que não foi faturado, como poderia ter sido se não ocorresse o ilícito (a mora).”
Como ali se refere, atendeu-se a que “resultou demonstrado que no período da mora, a Autora com os dois veículos que já possuía realizou em média vendas no valor diário de CHR 1.498,88 em cada veículo, dos quais 40% constituem a margem de lucro (cf. facto provado n.º 9). Devem, pois, multiplicar-se este valor médio diário por 58 dias (correspondentes ao pedido e que respeitam a 68 dias úteis de atividade deduzido de 10 dias necessários a colocar o foodtruck operacional) e deduzir de tal resultado 60%, relativo às despesas e impostos inerentes da atividade, por forma a obter o lucro que a Autora deixou de obter.
Assim, 1 498,88 x 58 = 86 935,04 - 60% = 34 774,01.”
Afigura-se, porém, que o valor encontrado, que, de resto, é até superior ao do valor do veículo, o que não pode conceber-se para um período tão curto como o que está em causa, não merece acolhimento, desde logo porque não se atendeu ao valor que a própria Autora comunicou à Ré ser o equivalente ao prejuízo diário decorrente da inatividade do veículo, quando o mesmo já se encontrava em funcionamento.
Refere-se efetivamente na comunicação de que o documento 16 da petição inicial, datado de 17 de fevereiro de 2021, que os “lucros cessantes (…) são de CHF 350,00, por dia de inatividade forçada”, o que afasta que possa considerar-se que o valor diário possa ser o considerado pelo Tribunal Recorrido de CHF 1.498,99.
Não podendo o valor exceder aquilo que a própria Autora comunicou à Ré para quantificar o valor diário relativo à inatividade forçada decorrente do atraso, certo é que não pode ter-se como provado tal valor, porque se trata de mera indicação da Autora que não se demonstrou que tivesse sido aceite pela Ré.
Tendo sido deduzido um pedido específico (um pedido de conteúdo concreto), mas não se tendo logrado fixar com precisão a extensão dos prejuízos, dever-se-á relegar a sua fixação para ulterior liquidação, quando tal ainda se mostre exequível – artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil - norma que, procurando definir os limites da condenação, dispõe que “se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo da condenação imediata na parte que já seja líquida”.
Caso tal se não apresente já possível, então deve apelar-se à fixação da indemnização através da equidade – artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil.
A opção entre a liquidação, em incidente, de sentença e o julgamento equitativo do quantum indemnizatório depende do juízo que, em face das circunstâncias concretas, se possa formular sobre a maior ou menor probabilidade de futura determinação de tal valor.
Ora, no caso, assente a existência de danos mas não se tendo apurado com precisão o seu montante, e antes de lançar mão da equidade, há que condenar no que se vier a liquidar. E não se poderá dizer que por esta forma se está a facultar à autora uma nova oportunidade para provar os danos, pois que a existência dos mesmos já está definida, e a simples falta de prova nesta ação declarativa do objeto ou da quantidade não implica decisão de absolvição do pedido, justificando, antes, a condenação no que se liquidar no incidente acima referido.
Não se tendo apurado o concreto valor relativo ao que a Autora deixou de auferir em consequência do atraso na entrega do veículo, deve, pois, no caso, condenar-se a Ré a pagar à autora o montante a apurar em incidente de liquidação, correspondente à perda de lucro no período a que respeita o atraso, que será de 48 dias de trabalho (os 58 dias de trabalho decorridos entre outubro de 2020 a 18 de dezembro de 2020, porquanto a Autora peticiona os “dias de trabalho” correspondentes a cinco dias por semana), deduzidos de 10 dias de trabalho (período razoável para colocar o veículo a aperar), em montante não superior a €350,00 por dia.
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VI. DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, e em revogar em parte a sentença impugnada no segmento em que condenou a Ré a pagar à Autora CHF 34 774,01 ou equivalente em euros, à taxa de câmbio em vigor na data de pagamento, condenando a Ré a pagar à Autora o montante de a apurar em incidente de liquidação correspondente à quantia que não auferiu em virtude do atraso na entrega do veículo, não superior a 48 dias e em valor não superior a €350,00 por dia.
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Custas pela Apelante e pela Apelada na proporção do decaimento (artigo 527.º, nº 1 do CPC).
Notifique
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Évora, 2025-02-13
Ana Pessoa
Maria João Sousa e Faro
Filipe César Osório
1. Da exclusiva responsabilidade da relatora↩︎