SERVIDÃO DE PASSAGEM
SERVIDÃO LEGAL
USUCAPIÃO
Sumário

Sumário:
I-A nulidade da sentença implica a oposição entre a decisão e os seus fundamentos e não a oposição entre “factos”.
II- A constituição de uma servidão de passagem por usucapião difere do estabelecimento de uma servidão legal em benefício de prédio encravado. No entanto, ao nível da instituição da servidão predial, o método de aquisição pode ser plural ou concorrente, podendo conviver na mesma pretensão as duas realidades jurídicas.
III- A impugnação da matéria de facto é uma actividade dirigida a um fim específico e cuja existência é condicionada por tal escopo, cabendo ao recorrente “dirigir” em termos jurídicos a alteração factual que requer.
IV- A delimitação de um caminho que está fechado, com um portão em rede, correspondente a uma linha de divisão entre os dois prédios, traduz um sinal exterior de aparência.

Texto Integral

Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

AA, intentou a presente ação de processo comum contra BB, e CC, casada com DD, pedindo a condenação das rés:

“a) a reconhecer que a favor do prédio da Autora, inscrito na matriz predial sob o artigo 158-L da freguesia de ..., o qual confronta a norte com EE, sul com FF, nascente com GG e outros, e poente com HH, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 2627, existe uma servidão de passagem a pé e com máquinas agrícolas, há mais de 40 anos, a qual se faz através de uma faixa de terreno do prédio das Rés, nomeadamente o prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 152-L da freguesia de ..., o qual confronta a norte com II, sul com JJ e KK, nascente com KK e poente com AA, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 950, com a largura de 3m e o comprimento de 75m, perfazendo a área total de 225m2, à qual se atribui o valor de 1€/m2, perfazendo o valo de 225€, iniciando-se junto ao portão de rede atualmente existente a sul do prédio das rés, a qual se prolonga no sentido poente até ao prédio da Autora;

b) a reconhecer a Autora como legitima titular do direito de servidão de passagem e conformarem-se com o livre e normal exercício desse direito da Autora, nomeadamente abstendo-se da prática de quaisquer atos que impeçam, estorvem ou lesem o normal e cómodo exercício do direito da Autora;

c) a remover o portão de rede do prédio de que são proprietárias, implantado do lado sul do mesmo, ou em alternativa ceder à Autora uma chave do mesmo, por forma a permitir o normal uso da servidão legal de passagem”.

Alegou, em síntese, que é dona do prédio referido no artigo 1.º da PI – prédio rústico sito em “ ...”, composto por cultura arvense de regadio e citrinos, com a área de 1.160 m2, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 158 seção L da freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o numero 2627, e que este se encontra encravado, de forma absoluta e sem comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la e que o respetivo acesso sempre foi feito através do prédio das rés “uma vez que, os pais e avós da Autora usaram durante cerca de 50 ou 60 anos como servidão de passagem a pé e passagem de máquinas agrícolas, uma faixa de terreno com 3m de largura, e 75m de comprimento, com a área total de 225m2, implantada no prédio das Rés, nomeadamente no artigo rústico 152 seção L. A referida faixa de terreno, era usada para a passagem de um trator, ou outra máquina agrícola, para manter o prédio da Autora em bom estado de conservação, nomeadamente limpeza e cultivo de alguns produtos agrícolas, e sempre foi feita sem qualquer oposição por parte da Ré BB e do seu marido HH, e posteriormente pela Ré CC”.

Alega ainda que, a passagem, que sempre foi utilizada como acesso ao prédio da Autora, foi fechada há cerca de três anos com um portão em rede, contudo as rés continuaram a deixar a autora utilizar a servidão de passagem, mas, à cerca de dez/onze meses, a Autora viu-se impedida pelas Rés de utilizar a servidão de passagem para aceder ao seu prédio.

As RR invocaram a ineptidão da petição inicial e impugnaram, alegando que o prédio da A. não está encravado, dado ter acesso por uma faixa de terreno devidamente marcada no solo.” Acrescentaram que “o prédio das RR. é o quintal dos artigos urbanos 996 e 1004, ambos da freguesia de ..., está totalmente vedado, possui entre toda a sua extrema com o prédio da A. um ribeiro com cerca de um metro de profundidade e teve, até há cerca de três anos a esta parte, oliveiras de grande porte e uma orografia em socalcos com mais de um metro de altura.”, motivo pelo qual jamais a A., por si ou por seus antepossuidores, possuíram ou passaram, pelo menos, desde há mais de vinte/trinta anos a esta parte, na virtual servidão de passagem que alegam na PI, sendo certo que “se alguma servidão de passagem porventura alguma vez tivesse existido, então tal servidão há muito que se extinguiu pelo não uso”.

Foi julgada improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.

Foi proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente e, em consequência, decidiu:

a) declarar que se encontra constituída, por usucapião, uma servidão de passagem a pé e com máquinas agrícolas, a qual se faz através de uma faixa de terreno do prédio das RR (inscrito na matriz predial sob o artigo 152-L da freguesia de ..., o qual confronto a norte com II, sul com JJ e KK, nascente com KK e poente com AA, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 950), com a largura de 3m e o comprimento de 75m, perfazendo a área total de 225m2, iniciando- se junto ao portão de rede atualmente ”• existente a sul do prédio das rés, a qual se prolonga no sentido poente até ao prédio da Autora;

b) condenar a ré a abster-se da prática de quaisquer atos que impeçam ou lesem o normal exercício do direito da Autora, designadamente condenando-se as RR a remover o portão de rede do prédio de que são proprietários, implantado do Iado sul do mesmo, ou em alternativa ceder à Autora uma chave do mesmo.

Inconformadas vieram as RR interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):

«1º - Ainda que tal seja meramente conclusivo e não factual, foi considerado assente em 4. Dos factos provados que:

“4. O prédio da Autora encontrava-se encravado, de forma absoluta e sem comunicação com a via pública, nem condições que permitissem estabelecê-la.”

2º - No ponto 5. daqueles mesmos factos provados foi considerado que:

“5. Os pais e avós da Autora usaram, durante cerca de 50 ou 60 anos, como servidão de passaqem a pé e passaqem de máquinas agrícolas, uma faixa de terreno com 3m de larqura, e 75m de comprimento, com a área total de 225m2, implantada no prédio das Rés, nomeadamente no artigo rústico 152 seção L, o qual confronta a norte com II, sul com JJ e KK, nascente com KK e poente com AA, iniciando-se junto ao portão de rede atualmente existente a sul do prédio das rés, a qual se prolonga no sentido poente até ao prédio da Autora.” (sublinhado nosso)

3º - Das duas uma, ou o prédio da A. está encravado, como referido em 4. dos factos provados; e, por via disso, teria direito a exigir a constituição duma servidão legal de passagem pelo prédio das RR. ou tal prédio possui serventia conforme ponto 5. daqueles mesmos factos provados e, como tal, não está encravado, não sendo possível alcançar aquele desiderato, donde estes dois factos são incompatíveis e inconciliáveis entre si pois, um excluiu necessariamente o outro;

4º - Verifica-se uma contradição insanável entre os pontos 4. e 5. Dos factos provados; da douta sentença recorrida, o que constitui nulidade que a inquina e se invoca com legais consequências;

5º - Resulta da Certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial e da Planta Cadastral que serviu de base à prova do ponto 1. dos factos provados; da douta Sentença, que, as RR. São exclusivas e legítimas donas de um único prédio que é composto por uma casa de rés-do-chão para habitação e anexo com 131,50 m2 e barracão destinado a garagem com 27 m2 e, bem assim, parte rústica de cultura arvense de regadio, oliveiras, vinha, citrinos, tudo com a área de 6.521 m2;

6º - O terreno adjacente à casa de habitação das RR. é um quintal e que na visita efectuada pelo Tribunal ao local e também é visível nas fotos anexas sob Docs n-• 2 e 3 à Contestação, se verificou que estava totalmente vedado, nomeadamente em toda a extrema que confina com o terreno da A.;

7º - A Meritíssima Juiz o quo jamais poderia deixar de considerar provado o ponto II dos factos não provados”. Ou seja, que “O prédio das RR. é o quintal dos artigos urbanos 996 e 1004 ambos da freguesia de ..., está totalmente vedado, possui entre toda a sua extrema com o prédio da A. um ribeiro...”;

8º - Não podia a Meritíssima Juiz a quo valer-se do teor da Certidão Predial da Planta Cadastral, das impressões recolhidas na visita do Tribunal ao local e das fotografias anexas à Contestação para a prova do ponto 1. Dos factos provados”, ali considerando a existência dum prédio misto composto de parte urbana para habitação e rústica e depois, sem que tivesse sido produzida qualquer outra prova que o infirmasse, decidir dar como não provado o facto não provados”, com o que contraria o que resulta de todos aqueles mesmos elementos de prova;

9º - Verifica-se neste particular uma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível pois, os mesmos elementos de prova serviram de base à prova dum facto e do seu contrário, o que constitui nulidade que se invoca com legais consequências;

10º - Nem na douta PI, nem na douta sentença recorrida, foi concretizada factualmente a configuração concreta da servidão de passagem, mais especificadamente, onde estava implantada, o seu leito, os sinais/marcas visíveis de passagem por referência aos seus pontos fixos que permitam caracterizá-la devidamente,

11º - Na douta PI não foi peticionada a constituição da servidão de passagem por usucapião;

12º - Uma servidão legal de passagem basta-se com a prova de que o prédio da A. Estaria encravado, mas, a constituição duma servidão por usucapião carece de serem alegados e comprovados “os sinais/marcas visíveis de passagem por referência aos seus pontos fixos que permitam caracterizá-la” pois, só uma servidão aparente, ou seja, que se revela por sinais visíveis e permanentes de passagem pode ser constituída por usucapião;

13º - Não tendo a A. peticionado a constituição da servidão por usucapião, jamais a Meritíssima Juiz o quo podia, de mote próprio, ter declarado a constituição da servidão deste modo, com o que condenou em objecto diverso do pedido e conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, violando o disposto nos art.º-•s 609ᵉ, n°- 1 e 615ᵉ, n°- 1, alínea d), ambos do Cód. Proc. Civil, o que configura nulidades que se invocam com legais consequências;

14º- Com base na Certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial, Planta Cadastral, fotos anexas na Contestação e deslocação do Tribunal ao local, elementos probatórios que serviram de base à prova do ponto 1. dos factos provados” da douta Sentença, deve esse Venerando Tribunal da Relação alterar para provado o ponto II dos factos não provados da douta sentença recorrida por forma a ficar com seguinte redacçăo:

“II - O prédio das RR. é o quintal dos artigos urbanos 996 e 1004 ambos da freguesia de ..., está totalmente vedado, possui entre toda a sua extrema com o prédio do A. Um ribeiro com cerca de um metro de profundidade e teve, até há cerca de três anos, oliveiras de grande porte e uma orografia em socalcos com mais de um metro de altura. “

15º - Não basta alegar-se que temos uma servidão de passagem, porque ali passamos ou mandamos passar alguém há mais de 20 anos. É preciso que existam vestígios, marcas, símbolos”, manifestações da sua existência, isto é, que os sinais sejam visíveis e aparentes para que tal servidão possa ser constituída por Usucapião;

16º - Nem na PI foram alegados, não se verificaram na deslocação do Tribunal ao local (ocorrida em 15/10/2021), não foram mencionados por qualquer das testemunhas inquiridas, nem na douta sentença recorrida foram descritos, quaisquer marcas/sinais visíveis e permanentes evidenciadores da existência de uma qualquer servidão de passagem e qual o seu concreto percurso/traçado;

17º - A A. não pediu a constituição da servidão de passagem por usucapião, nem alegou os sinais visíveis e permanentes da existência de um caminho por onde seria feita a travessia do prédio das RR., como era sua obrigação (porque o ónus da prova era seu) e, ao não fazer prova da existência da servidão de passagem, não poderia o Tribunal a quo ter condenado as RR., a reconhecerem o direito de passagem da A., nos termos do artigo 341º do Cód. Civil;

18º - Deve ser revogada a douta sentença proferida em 1a Instância a qual deve ser substituída por outra que julgue improcedentes os pedidos da A com a consequente absolvição d1 RR. No que toca ao reconhecimento da existência de qualquer servidão de passagem constituída por usucapião pelo respectivo prédios

19º — A douta sentença ora recorrida violou, entre outras, as seguintes disposições legais:

• Art°s 1.297° do Cód. Civil;

• Art°s 615º, n° 1, alíneas c) e d), 625º, ambos do Cód. Proc. Civil.

NESTES TERMOS E NOS MAIS E MELHORES DE DIREITO QUE V. EXCIAS, EXMOS SENHORES DOUTORES JUÍZES DESEMBARGADORES SUPRIRÃO, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA:

A) SER A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA CONSIDERADA NULA SEJA POR OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO, SEJA POR HAVER CONDENADO EM OBJECTO DIVERSO DO PEDIDO, SEJA POR HAVER APRECIADO QUESTÃO DE QUE NÃO PODIATOMAR CONNHECIMENTO.

B) CASO ASSIM SE NÃO ENTENDA, DEVE SER ALTERADA A MATÉRIA DE FACTO COMO RESULTA DA CONCLUSÃO E REVOGADA A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA EM 1^ INSTÂNCIA, A QUAL DEVE SER SUBSTITUÍDA POR UMA ABSOLVIÇÃO DAS RR. E ORA APELANTES DO PEDIDO; TUDO PARA QUE SEJA FEITA JUSTIÇA.»

Nas contra-alegações a A. conclui o seguinte(transcrição):

«a) O prédio das Recorrentes trata-se de um prédio misto, formado pelos artigos urbanos 1328 e 1004, e pelo artigo rústico 152-L da freguesia de ..., concelho de ....

b) Sendo o prédio misto, o mesmo é composto por construções e seus logradouros, e parte rústica, no caso concreto, constituída por cultura arvense de regadio, oliveiras, vinha, citrinos, cultura arvense, eucaliptal e pinhal, classificado como terreno rústico, e não quintal, como veem agora as Recorrentes fazer crer.

c) O quintal do prédio, é a parte do logradouro adjacente ás construções, toda a área restante é terreno rústico, que mesmo estando vedado não deixa de ser rústico.

d) Pelo que a Meritíssima Juiz a quo fez uma correta interpretação quer da certidão predial, quer da planta cadastral.

e) O prédio da A. encontra-se encravado há cerca de 4 ou 5 anos atrás, data em que as RR. colocaram o portão, pelo que a Exma. Sr.ª Dr.ª Juiz, ao decidir como decidiu, apenas está a reconhecer o direito á servidão que já existia, há mais de 20 anos.

f) A servidão de passagem já existia, deixou de poder ser utilizada em consequência dos atos praticados pelas recorrentes, ao colocarem o portão que passou a impedir a passagem para o prédio da Recorrida, deixando-o assim encravado a partir desse momento.

g) A servidão está demarcada no terreno, inicia-se do lado nascente no portão de rede das Recorrentes numa faixa de terreno com 3mt de largura sempre a descer até há rede que confina com o prédio da Autora a poente, nomeadamente com 75 mt de comprimento, e é visível no local.

h) A Meritíssima Juiz á quo não declarou a constituição da servidão, porque esta já existia, e com o conhecimento de todos, inclusive das Recorrentes.

i) Não existem atualmente vestígios, marcas, “símbolo”, manifestações da existência da servidão claramente visíveis, nem pode haver, dado que a mesma foi fechada pelas Recorrentes, contudo, é visível que existia ali uma passagem de servidão para o terreno da Recorrente, pelas marcas ali ainda existentes.

Pelo exposto, e invocando sempre o douto suprimento de V.ª Exas., Colendos Julgadores, deve ser mantida, a decisão recorrida, julgando-se esta apelação improcedente porque é de Direito e de Justiça.»

Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

Factos considerados provados na 1ª instância:

«1. A Autora é dona do prédio rústico sito em ...”, composto por cultura arvense de regadio e citrinos, com a área de 1.160 m2, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 158 seção L da freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do registo Predial de ... sob o numero 2627.

2. As Rés são donas do prédio misto, sito em ...”, composto por casa de habitação de rés do chão e anexo com superfície coberta 131,50 m2, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1328, barracão destinado a garagem com 27 m2 de superfície coberta inscrita na matriz predial urbana sob o artigo1004 compondo-se a parte rústica por terra de cultura arvense de regadio, oliveiras, vinha, citrinos, cultura arvense, eucaliptal e pinhal com a área de 6521 m2, inscrita na matriz predial rústica sob o artigo 152 secção L, da freguesia de ..., descrito na Conservatória do registo Predial de ... sob o número 950, o qual confina com o prédio da Autora.

3. As Rés adquiriram o prédio mortis causa de HH, de quem são únicas e universais herdeiras legitimárias.

4. O prédio da Autora encontrava-se encravado, de forma absoluta e sem comunicação com a via pública, nem condições que permitissem estabelecê-la.

5. Os pais e avós da Autora usaram, durante cerca de 50 ou 60 anos, como servidão de passagem a pé e passagem de máquinas agrícolas, uma faixa de terreno com 3m de largura, e 75m de comprimento, com a área total de 225m2, implantada no prédio das Rés, nomeadamente no artigo rústico 152 seção L, o qual confronta a norte com II, sul com JJ e KK, nascente com KK e poente com AA, iniciando-se junto ao portão de rede atualmente existente a sul do prédio das rés, a qual se prolonga no sentido poente até ao prédio da Autora.

6. A referida faixa de terreno era usada para a passagem de um trator, ou outra máquina agrícola, para manter o prédio da Autora em bom estado de conservação, nomeadamente limpeza e cultivo de alguns produtos agrícolas, e sempre foi feita à vista de todos, sem qualquer oposição por parte da Ré BB e do seu marido HH, e posteriormente pela Ré CC, na convicção de exercer um direito próprio.

7. A passagem foi fechada há cerca de três anos com um portão em rede, contudo as rés continuaram a deixar a autora utilizar a servidão de passagem, até há cerca de dez/onze meses a Autora viu-se impedida pelas Rés de utilizar a servidão de passagem para aceder ao seu prédio.

***

Factos não provados

Consideram-se não provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:

Da contestação

I. O prédio da A. não está encravado, dado ter acesso por uma faixa de terreno devidamente marcada no solo, assinalada e que segue para sul junto à extrema do prédio nº 159 da planta cadastral.

II. O prédio das RR. é o quintal dos artigos urbanos 996 e 1004 ambos da freguesia de ..., está totalmente vedado, possui entre toda a sua extrema com o prédio da A. um ribeiro com cerca de um metro de profundidade e teve, até há cerca de três anos, oliveiras de grande porte e uma orografia em socalcos com mais de um metro de altura.

III. A A. nunca residiu no concelho de ..., nem nos concelhos limítrofes, estando o seu prédio inculto e votado ao abandono desde, pelo menos, 1980 em diante.»

2 – Objecto do recurso.

Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 do CPC:

1.ª Questão – Se a sentença é nula.

A) (…) por contradição ou ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

B) (…) por condenação em objeto diverso do pedido.

2ª Questão - Se o “ponto II não provado” deve ser alterado (utilidade da apreciação?)

3ª Questão – Se estamos perante uma servidão não aparente.

3 - Análise do recurso.

1.ª Questão – Se a sentença é nula.

A. (…) por contradição ou ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Nos termos do artigo 615.º - Causas de nulidade da sentença

1 - É nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.»

A recorrente invoca a nulidade da sentença com base na existência de uma contradição insanável entre dois “factos provados”, nomeadamente os factos 4 e 5 provados.

Porém, sem qualquer razão.

Inexiste, a este propósito, nulidade da sentença, desde logo porque, a eventual contradição entre “factos” será fundamento para impugnar a matéria de facto, já que, a nulidade da sentença está legalmente prevista apenas para a oposição entre a decisão e os seus fundamentos e não entre “factos”.

Tanto basta para afastar nesta parte o recurso.

Também invoca a recorrente a nulidade, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, d) do CPC , alegando a ambiguidade ou obscuridade da sentença que a torna ininteligível.

Para assim concluir alega que, o teor da Certidão Predial da Planta Cadastral, das impressões recolhidas na visita do Tribunal ao local e das fotografias anexas à Contestação serviu para considerar provado o ponto 1, onde se considera a existência dum prédio misto composto de parte urbana para habitação e rústica e depois, sem que tivesse sido produzida qualquer outra prova que o infirmasse, decidir dar como não provado o facto II não provado, ou seja, que “O prédio das RR. é o quintal dos artigos urbanos 996 e 1004 ambos da freguesia de ..., está totalmente vedado, possui entre toda a sua extrema com o prédio da A. um ribeiro...”;

Também este aspecto apenas será sindicável em sede de impugnação da matéria de facto e não de nulidade da sentença, pelo que improcede a nulidade invocada.

B) (…) por condenação em objeto diverso do pedido.

Invoca ainda a recorrente, a nulidade da sentença por condenação em objecto diverso do pedido e ter conhecido de questão que lhe estava vedada, alegando que, a A. não peticionou a constituição da servidão por usucapião, pelo que a Meritíssima Juiz a quo podia, de mote próprio, ter declarado a constituiçäo da servidão.

Não cremos que assim seja.

Senão vejamos:

Efectivamente, o “juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões, não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado pelas partes”. Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, páginas 67 e 68.

Ora, no caso concreto, pede-se na PI a condenação da Ré:

«a) a reconhecer que a favor do prédio da Autora, inscrito na matriz predial sob o artigo 158-L da freguesia de ..., o qual confronta a norte com EE, sul com FF, nascente com GG e outros, e poente com HH, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 2627, existe uma servidão de passagem a pé e com máquinas agrícolas, há mais de 40 anos, a qual se faz através de uma faixa de terreno do prédio das Rés, nomeadamente o prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 152-L da freguesia de ..., o qual confronta a norte com II, sul com JJ e KK, nascente com KK e poente com AA, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 950, com a largura de 3m e o comprimento de 75m, perfazendo a área total de 225m2, à qual se atribui o valor de 1€/m2, perfazendo o valo de 225€, iniciando-se junto ao portão de rede atualmente existente a sul do prédio das rés, a qual se prolonga no sentido poente até ao prédio da Autora;

b) a reconhecer a Autora como legitima titular do direito de servidão de passagem e conformarem-se com o livre e normal exercício desse direito da Autora, nomeadamente abstendo-se da prática de quaisquer atos que impeçam, estorvem ou lesem o normal e cómodo exercício do direito da Autora;

c) a remover o portão de rede do prédio de que são proprietárias, implantado do lado sul do mesmo, ou em alternativa ceder à Autora uma chave do mesmo, por forma a permitir o normal uso da servidão legal de passagem».

Com o fundamento no encrave do prédio e que, apesar de não estar constituída legalmente a servidão, se verificam os seus requisitos por usucapião.

Como sabemos:

A servidão predial constitui a faculdade que o titular de um direito real sobre um determinado prédio (denominado prédio dominante) tem de utilizar um prédio alheio (denominado prédio serviente) para melhor aproveitamento do seu prédio, sendo que os proprietários de prédios encravados podem exigir a constituição de uma servidão.

Mas a servidão de passagem é um direito que pode ser adquirido pela usucapião, quando se verifiquem os pressupostos da mesma.

A constituição de uma servidão de passagem por usucapião difere do estabelecimento de uma servidão legal em benefício de prédio encravado. No entanto, ao nível da instituição da servidão predial, o método de aquisição pode ser plural ou concorrente, podendo conviver na mesma pretensão as duas realidades jurídicas.

Para a constituição duma servidão de passagem, com fundamento na usucapião, não se exige, como seu requisito constitutivo, ser-se proprietário de prédio encravado (ao contrário do que sucede com as servidões legais), mas nada o impede.

Os pressupostos, que estão na base da sua constituição, prendem-se aqui com a posse sobre o espaço que é utilizado como serventia, com o decurso do tempo, com a sua publicidade e pacificidade.

Na arquitectura da PI «a constituição de uma servidão legal de passagem, mas como fundamento desse pedido alega factos concernentes com a aquisição do direito de servidão (de passagem) por usucapião.

A petição inicial funda-se assim numa duplicidade argumentativa: usucapião e encrave.

E é esse o escopo do pedido da Autora, que tem expressão na decisão, em nada o excedendo: a declaração de constituição, por usucapião, de uma servidão de passagem, culminando na remoção do portão do local.

Em suma: também nesta parte improcede o recurso.

Finalmente, ainda no capítulo das nulidades da sentença, a recorrente alega que, mesmo que se considere que a A. pretendia a constituição duma servidão legal de passagem, jamais a douta sentença poderia ter condenado as RR. a: “declarar que se encontra constituída, o usucapião uma servidão de passagem a pé e com máquinas agrícolas” pois não foram alegados na Petição Inicial factos bastantes para tal, nomeadamente não é concretizada factualmente a configuração concreta da servidão, mais especificadamente onde estava implantada, o seu leito, os sinais/marcas visíveis de passagem, por referência aos seus pontos fixos que permitam caracterizá-la devidamente.

Também aqui sem razão.

A descrição consta da sentença: « uma faixa de terreno do prédio das RR (inscrito na matriz predial sob o artigo 152-L da freguesia de ..., o qual confronto a norte com II, sul com JJ e KK, nascente com KK e poente com AA, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 950), com a largura de 3m e o comprimento de 75m, perfazendo a área total de 225m2, iniciando- se junto ao portão de rede atualmente ”• existente a sul do prédio das rés, a qual se prolonga no sentido poente até ao prédio da Autora»

Tal matéria é expressão dos factos alegados nos arts. 9º, 10ºe 17º da PI e da matéria provada:

«5. Os pais e avós da Autora usaram, durante cerca de 50 ou 60 anos, como servidão de passagem a pé e passagem de máquinas agrícolas, uma faixa de terreno com 3m de largura, e 75m de comprimento, com a área total de 225m2, implantada no prédio das Rés, nomeadamente no artigo rústico 152 seção L, o qual confronta a norte com II, sul com JJ e KK, nascente com KK e poente com AA, iniciando-se junto ao portão de rede atualmente existente a sul do prédio das rés, a qual se prolonga no sentido poente até ao prédio da Autora.»

Ou seja, também nesta parte improcede o recurso.

2ª Questão - Se o ponto II não provado deve ser alterado.

Defende a recorrente que o ponto II” dos factos não provados deve passar a provado:

“II - O prédio das RR. é o quintal dos artigos urbanos 996 e 1004 ambos da freguesia de ..., está totalmente vedado, possui entre toda a sua extrema com o prédio da A. Um ribeiro com cerca de um metro de profundidade e teve, até há cerca de três anos, oliveiras de grande porte e uma orografia em socalcos com mais de um metro de altura.”

Não se vislumbra, nem as recorrentes explicam, a utilidade da alteração pretendida, limitando-se – de forma inconsequente – a pedir tal alteração.

Ora, como sabemos a impugnação da matéria de facto é uma actividade dirigida a um fim específico e cuja existência é condicionada por tal escopo, cabendo ao recorrente “dirigir” em termos jurídicos a alteração factual que requer.

Quer isto dizer que, não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º- vide a propósito, Abrantes Geraldes, In Recursos em Processo Civil Novo Regime, 2.ª edição revista e actualizada pág. 297.

Não se toma, por isso, conhecimento do recurso de impugnação da matéria de facto.

3ª Questão – Se estamos perante uma servidão não aparente.

De forma pouco clara, as RR. invocam ainda, no seu recurso, a falta de “sinais visíveis e aparentes” e parecem até ir mais longe, alegando que tal matéria não foi alegada: “nem alegou os sinais visíveis e permanentes da existência de um caminho por onde seria feita a travessia do prédio, como era sua obrigação (porque o ónus da prova era seu) …” (ao encontro da excepção de ineptidão da Pi que antes invocaram e foi afastada pelo tribunal, com decisão transitada), para concluírem que essa falta é impeditiva de que a servidão possa ser constituída por Usucapião.

Embora não conste das conclusões, encontramos, no corpo do recurso, a referência o art° 1.548° do Cód. Civil, pelo que, parece estar em causa a alegação de que se trata de servidão não aparentes impeditiva da conclusão da sentença recorrida.

A tal propósito dizem as recorrentes: «Não podia ter sido dada como provada a existência de uma servidão de passagem, constituída por usucapião, porque não foram alegados, os sinais visíveis e permanentes da existência de uma servidão de passagem entre o prédio da A. e das RR na sua transposição (nem podia porque inexistentes, face à vedação existente em toda a extrema confinante de ambos os prédios) e que impedia a travessia.»

Quid Juris?

“As servidões não aparentes distinguem-se das servidões aparentes pelo modo de exercício: no caso das servidões aparentes, ele é realizado por meio de atos que produzem consequências – sinais – no prédio serviente ou dominante que permitem o conhecimento da existência da servidão pelos interessados, enquanto que, no caso das servidões não aparentes, a atuação do seu titular sobre o prédio dominante ou serviente não é percetível para terceiros interessados” -cf. Rui Pinto e Cláudia Trindade, in Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.) pág. 415.

Trata-se assim de constatar se existem sinais correspondentes à existência dessa servidão.

Esses sinais podem corresponder à existência de um portão ou de uma “entrada” ou abertura, que sinalize, com evidência, uma passagem do prédio dominante para o prédio serviente – neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 630) e também Menezes Leitão, Direitos Reais, 8.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 365-366.

Ora, ao contrário do entendimento das recorrentes, decorre da matéria provada a delimitação de um caminho que está fechado, com um portão em rede, correspondente a uma linha de divisão entre os dois prédios, (“ iniciando-se junto ao portão de rede atualmente existente a sul do prédio das rés, a qual se prolonga no sentido poente até ao prédio da Autora”) o que não deixa de traduzir um sinal exterior de aparência.

Em suma: Julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Sumário:

(…)


4 – Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto e manter a sentença recorrida.

Custas pelas recorrentes. (artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil).

Évora, 13.02.25