Do mero incumprimento da notificação para preferir não resulta a ininvocabilidade da caducidade, por omissão do depósito do preço devido.
1 – Relatório.
AA, e BB, intentaram a presente acção declarativa constitutiva e processo comum contra, CC, DD, EE, e PANORAMIC SEARCH – UNIPESSOAL, LDA. Pedindo:
- Que seja Reconhecido e Declarado Judicialmente, e os Réus condenados a reconhecer, o seu direito de preferência na venda da nua propriedade do prédio misto, sito em ..., concelho de ..., (integrado em RAN), o qual foi objecto de escritura de compra e venda, vindo a Ré Panoramic Search Unipessoal Lda a adquirir a nua propriedade do prédio contra o depósito de 103.349,76 €, tendo em conta o disposto no artigo 26º do DL nº 199/2015 de 16 de setembro e o artigo 1380 do CC;
- Que em consequência, seja decidida a Anulação da Venda do Direito de Usufruto da terceira Ré à quarta Ré, com todas as consequências legais;
- Que seja ordenado o cancelamento de quaisquer registos de transmissão e de quaisquer registos de ónus sobre o referido prédio.
Alegaram em síntese, que são titulares do direito de propriedade sobre o prédio confinante com o prédio, que pertencia a CC e DD (titulares da nua propriedade) e a EE (titular do usufruto) e que foi vendido à ré “Panoramic Search” por € 600 000 (€ 500 000, relativos ao usufruto; € 100 000, relativos à nua propriedade), sem que eles – autores – tivessem sido notificados para exercer o direito de preferência; pelo que, demonstram o depósito da quantia total de 103.349,76 €, que é a soma do preço, 100.000,00 €, mais IMT e Imposto Selo pagos sobre o prédio rústico e urbano ( 850,00 € + 680,00 € + 750,00 € + 120,00 €), mais despesa com escritura de compra e venda (de 699,76 €), mais registo ( 250,00 €).
Pretendem exercer o direito de preferência, na compra do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1152, freguesia de ..., o qual foi vendido por EE (que era titular do usufruto) e por CC e DD (que eram titulares da nua propriedade) à ré “Panoramic Search”, pelo preço global de € 600 000 (€ 500 000, relativos ao usufruto; € 100 000, relativos à nua propriedade), explicando que apenas exercem tal direito relativamente à transmissão da propriedade de raiz, e pedindo a anulação quanto ao mais.
Citados, contestou a Ré Panoramic Search”, por impugnação e por excepção, pugnando a final pela sua absolvição dos pedidos.
Alegou de relevante que:
- Os prédios não confinam, que por estar em causa um prédio misto, com uma parte urbana de 250 m2, sob a forma de ruína, e não haver, na parte rústica, qualquer cultivo, lavra ou aproveitamento de frutos daquela parte, seria de excluir o direito de preferência;
-Os Autores não pagaram a totalidade da quantia despendida para compra do bem, a qual deveria respeitar aos € 600 000 e não apenas € 100 000, pelo que ocorre a caducidade do direito;
- Sob pena de manifesto abuso de direito ao pretenderem exercer a preferência apenas sobre a nua propriedade, os autores estariam em vantagem desproporcionada em relação à ré.
Na resposta, os Autores defenderam a improcedência das excepções, impugnaram o pedido de condenação de litigância de má-fé, que de igual modo dirigiram aos Réus.
Após a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e em consequência, absolveu os réus do pedido, por caducidade do direito invocado, dado que os autores não chegaram a depositar o preço total de € 600 000, ficando-se pelos € 103 349,76, não cumprindo o previsto no art. 1410.º do CC,
Inconformados com a decisão vieram os AA interpor recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
«a) O tribunal a quo pronunciando-se sobre o abuso de direito nos termos em que o faz, aliás, questão determinante para fundamentar e decretar, a contrario sensu, a procedência da excepção da caducidade,
b) Conhece matéria – morte da usufrutuária à data da instauração da acção, que não lhe cabia conhecer, isto, por ser irrelevante para a sorte da acção, nem ter sido excepcionado tal facto (e bem) pelos recorridos em sede de abuso de direito.
c) Por outro lado, a sentença recorrida convoca ainda fundamento – impossibilidade de a recorrida reaver o preço pago a proceder a acção, sem assento na matéria de facto, logo, sem qualquer relevância para a fundamentação do abuso de direito.
d) As apreciações das referidas questões foram essenciais para o tribunal decretar a caducidade do direito de preferência dos recorrentes.
e) A sentença recorrida conheceu, assim, de questões de que não podia tomar conhecimento, sendo nula, vício que se argui expressamente para todos os efeitos legais – artº 615, nº1, al. d), do CPC.
f) Os ora recorrentes impugnam a decisão relativa à matéria de facto – artº 640 do CPC.
g) Para uma correcta aplicação do direito, no que respeita à questão controvertida –caducidade, devia a sentença revidenda ter julgado assentes outros concretos pontos de facto.
h) Deve, ao abrigo do artigo 662, nº1, do CPC, ser aditada à matéria assente o seguinte,
Familiares dos AAs adquiriram o prédio id. no artigo 1 da p.i. por volta do ano de 1940, cujo imóvel se manteve na esfera familiar dos AAs até hoje, conforme se extrai da certidão de escritura junta pela recorrida sob o documento 4 na contestação – citius 07/11/2017, conjugada com certidão de sentença, transitada em julgado, junta sob documento 4 no articulado superveniente apresentado pela Ré – citius 04/04/2018;
O prédio dos AAs e o prédio dos RRs está inserido em Reserva Agrícola Nacional e Reserva Ecológica Nacional, conforme se extrai da confissão da Ré Panoramic – vejam-se artigos 17, 18, 19, 20, 21 e 22 da contestação de fls – citius 7/11/2017, conjugada com o documento 1 junto com o articulado de resposta dos AAs – citius 19/01/2023;
Em 7 de Fevereiro de 2017 foram celebradas Compras e Vendas da nua propriedade e dos usufrutos que incidiam sobre o prédio melhor id. em 4º da p.i, a saber,
Os Rrs CC e DD venderam os seus direitos sobre a propriedade de raiz à PANORAMIC SEARCH pelo preço de 100.000,00€, sendo a parte urbana vendida por 85.000,00€ e a parte rústica por 15.000,00€,
A R. EE vendeu o seu direito de usufruto à PANORAMIC SEARCH pelo preço de 500.000,00€, sendo a parte urbana vendida por 400.000,00€ e a parte rústica por 100.000,00€, tudo conforme se extrai da certidão de escritura junta sob o documento 9 anexa à P.I..
i) O primeiro ponto da alteração requerida revela-se essencial para a demonstração da imemorial expectativa jurídica existente na família dos recorrentes, e mais tarde nos próprios, de poderem vir a preferir um dia na venda do prédio dos RRs, expectativa criada mesmo antes do desmembramento do direito de propriedade pleno em nua propriedade e usufruto, em 02/05/1992, conforme certidão de escritura de doação junta no requerimento dos AAs a fls – citius 13/09/2019.
j) O segundo ponto é crucial para demonstrar que o direito de preferência dos recorrentes não só emerge do artigo 1380, nº1, do Código Civil, bem como resulta do regime especial previsto no artº 26 do Decreto-Lei 199/15, de 16 de Setembro.
k) O terceiro, quarto e quinto pontos demonstram com mais precisão (do que o 1º ponto de facto assente na sentença) que o acto notarial celebrado entre os RRs consistiu em vários negócios com i) diferentes sujeitos, ii) diferentes objectos e iii) diferentes preços.
l) Os ante titulares dos direitos sobre o prédio obrigado pretenderam transferir para a recorrida Panoramic Search os seus diversos direitos, por preços diferentes, sendo os alienantes sujeitos contratuais distintos.
m) É, assim, errado afirmar como faz a sentença recorrida, que os ante titulares pretenderam transferir num só acto a plenitude do direito de propriedade sobre o imóvel.
n) Erra a sentença recorrida quando decreta a caducidade do direito dos recorrentes,
o) Porque nenhuma obrigatoriedade legal existia de preferir, conjuntamente, sobre a alienação dos direitos sobre a nua propriedade e sobre o direito de usufruto.
p) O emparcelamento, fim da preferência dos confinantes, ficava assegurado com a mera aquisição da nua propriedade pelos recorrentes, respeitando-se o artº 1380 do Código Civil e o artº 26 do DL 199/15, de 16.09.
q) Não tinham os recorrentes que depositar os 600.000€ aludidos na decisão a quo porque somente tinham de preferir, querendo, na alienação da nua propriedade, tal como o fizeram.
r) Os recorrentes observaram o previsto no artº 1410 do Código Civil.
s) Por outro lado, no caso de os recorrentes entenderem alienar o seu prédio a terceiros cabia-lhes dar a preferência somente aos nus-proprietários e ora recorridos CC e DD.
t) A contrario sensu, e mesmo por razões de reciprocidade, os ora recorrentes tinham o direito de preferir somente sobre a venda da nua propriedade pelos recorridos CC e DD, tal como o fizeram na acção.
u) A sentença recorrida errou ao declarar a caducidade do direito de preferência dos recorrentes quando decreta a exigência da preferência sobre a totalidade do negócio.
v) Os recorrentes e os respectivos antecessores familiares tinham a expectativa jurídica de vir a preferir na venda do prédio dos recorridos.
w) O desdobramento do direito de propriedade em usufruto e nua propriedade, posteriormente à aquisição do prédio confinante pela família dos recorrentes, não pode obrigar os recorrentes a comprar, conjuntamente, os dois direitos.
x) Podiam livremente os recorrentes optar por adquirir somente o direito sobre a propriedade de raiz, tal como o fizeram, errando mais uma vez a sentença recorrida quando decreta a caducidade.
y) Ofende o sentimento jurídico dominante que os recorridos, titulares do direito de invocar a caducidade, possam socorrer-se da referida excepção para encobrir a licitude manifesta que cometeram, não notificando deliberadamente os recorrentes para exercerem a preferência, querendo, no negócio jurídico em apreciação.
z) A arguição da excepção da caducidade pelos recorridos constitui um manifesto abuso de direito.
aa) A sentença a quo não declarando a supressão do direito de os recorridos invocarem a excepção da caducidade viola frontalmente o artº 334 do CC.
Em suma,
bb) Os Autores na acção, como proprietários do prédio confinante ao prédio dos Réus, sobre o qual recaía um direito de usufruto e um direito de nua propriedade, podiam limitar o exercício do seu direito de preferência apenas ao segundo daqueles direitos (nua propriedade), isto, quando ambos foram transferidos pelos alienantes (usufrutuário e nus proprietários) para um único adquirente, em conjunto e na mesma escritura, em momento em que a usufrutuária ainda não tinha falecido.
cc) A sentença a quo violou os artigos 298, nº2, 328 a 333, 416, nº1, 1380, nºs 1 e 4 e 1410, nº1, todos do Código Civil, bem como o artigo 26 do DL 199/15, de 16.09.
Requer-se a junção de parecer de jurisconsulto, artº 651, nº2 do CPC.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença recorrida, assim se fazendo, Justiça!»
Nas contra-alegações os RR. concluíram da seguinte forma:
«A. A decisão recorrida concluiu pela caducidade do direito de preferência tendo em conta que os Recorrentes não depositaram o montante correspondente à totalidade do preço do negócio, neste caso compra e venda feita num único ato no valor de € 600.000,00 (seiscentos mil euros), sem qualquer referência ou invocação de abuso de direito, fato de conhecimento oficioso.
B. A referência que a solução adotada pelos Recorrentes seria atentatória da boa-fé é meramente um raciocínio jurídico utilizado para fundamentar e explicar o processo de decisão, não constituindo propriamente uma questão jurídica a decidir.
C. Inexiste qualquer excesso de pronúncia porquanto o Tribunal a quo pronunciou-se sobre as questões colocadas pelas partes, dentro dos seus limites, e de acordo com os factos articulados e os demais poderes de cognição concedidos ao julgador por lei.
D. A apreciação da prova assenta na livre convicção do julgador, nas regras da experiência comum e no princípio da imediação, o que foi feito pelo Tribunal recorrido que fundamentou exaustivamente a sua convicção.
E. Os fatos que os Recorrentes pretendem incluir como provados não têm qualquer relevância para a análise e decisão da exceção de caducidade do exercício do direito de preferência nos presentes autos. Ainda assim se dirá que da prova apresentada jamais se pode concluir no sentido pretendidos. Com efeito, a suposta expetativa jurídica é irrelevante para saber se os Recorrentes cumpriram integralmente com os pressupostos legais para propositura da ação judicial. A alegação que o prédio está em RAN e REN foi impugnada, logo não assente nos autos, e os demais fatos constituem uma repetição da matéria de fato já assente, sendo irrelevante a especificação do valor pago para parte urbana e para a parte rústica do negócio para efeitos nomeadamente fiscais para liquidação de impostos com taxas diferenciadas para o prédio urbano e rústico.
F. A matéria de fato foi corretamente julgada de acordo com a decisão em causa, pelo que a impugnação deverá improceder, mantendo-se a factualidade provada nos exatos termos que constam da sentença.
G. O artigo 1410º do Código Civil estipula os requisitos que obrigatoriamente têm de se verificar para propor ação judicial de preferência e cuja verificação é feita previamente à análise do negócio e do direito invocado, o que os Recorrentes não lograram efectuar.
H. O alegado nas alíneas v) a aa) das conclusões apresentadas pelos Recorrentes em nada se relaciona com o teor da sentença, pois a putativa expectativa de virem preferir na venda e a alegada ilegalidade na venda não são requisitos para a instauração da ação judicial de preferência.
I. As alegações dos Recorrentes versam unicamente sobre a análise do direito invocado e do negócio de compra e venda que lhes conferiria tal direito, olvidando que a sentença versa na análise prévia que tem necessariamente de ser feita, ou seja os requisitos legais para propositura da ação.
J. O Tribunal a quo decidiu, e bem, que a compra e venda foi feita num só ato, assim em conjunto e simultaneamente para os dois direitos que recaiam sobre o bem isto é o direito de propriedade (limitado) e o direito de usufruto.
K. O direito de propriedade integra o direito de uso, fruição e disposição das coisas, de modo pleno e exclusivo, podendo ser limitado na hipótese de o proprietário constituir usufruto sobre esse bem, passando o usufrutuário a ser titular do direito de gozo pleno.
L. A escritura notarial que visou a alienação simultânea do usufruto e da nua propriedade de um imóvel para o mesmo adquirente, a ora Recorrida, demonstra que a venda foi feita de forma unitária por forma a transferir e repor a titularidade do domínio total sobre o imóvel, restabelecendo na sua plenitude o direito de propriedade.
M. Deste modo, até se poderia chamar à colação, que existiu uma venda de coisa juntamente com outras com um preço global para os direitos que recaiam sobre o imóvel aplicando-se artigo 417º ex vi artigo 1380º, n.º 4 do Código Civil.
N. Por conseguinte, os Recorrentes eram obrigados a depositar o valor correspondente ao preço global de todas as coisas vendidas, de acordo com as condições da compra e venda em causa ou seja 600000,00 € ( seiscentos mil euros) o que não fizeram.
O. Mais, a finalidade alegada pelos Recorrentes visando o emparcelamento e a exploração de actividade agrícola só seria efectuada com a aquisição do direito de propriedade pleno – uso, fruição e disposição, logo teria sempre de adquirir também o direito de usufruto e, dessa forma, ter depositado o montante total do negócio.
P. Os Recorrentes depositaram um valor parcial do negócio, incumprindo com as exigências legais para propositura da ação judicial de preferência.
TERMOS EM QUE DEVE O RECURSO SER JULGADO IMPROCEDENDO POR NÃO PROVADO, MANTENDO-SE NA ÍNTEGRA A DECISAO RECORRIDA COMO É DE PLENA JUSTIÇA.»
Por Acórdão anterior deste Tribunal da Relação foi julgado improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Ainda inconformados, os autores interpuseram recurso, de revista excecional, para o Venerando STJ que:
Julgando a revista procedente, anulou o acórdão recorrido e determinou que os autos voltassem a este Tribunal das Relação de Évora, para apreciar a o alegado abuso do direito.
No referido Acórdão pode ler-se o seguinte:
«Ou seja, julgando verificada a excepção, e em consequência improcedente o pedido dos recorrentes, não apreciou a questão do abuso do direito, suscitada pelos apelantes, em oposição àquela caducidade do exercício da preferência – o depósito parcial e não total do preço do negócio da compra e venda do prédio.
O fundamento comum das várias modalidades de abuso de direito que se reconduzem ao artigo 334º do Código Civil, seja no domínio da boa-fé, quer do fim social e económico do direito, ou em qualquer outro domínio, do qual proceda a alegada violação do referido sentimento intolerável para a ordem jurídica, radica na oposição da excepção para impedir a procedência do direito da outra parte.
No caso, como resulta do corpo das alegações e consta das conclusões da apelação (apesar do parco desenvolvimento), os recorrentes alegaram que, se prevalecendo os Réus da caducidade da preferência, tendo omitido ilicitamente a sua notificação para preferirem (facto provado), agem em abuso de direito.
Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou excepção, cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento, constitui nulidade por omissão de pronúncia- cfr. artigo 615º, nº 1, d), 1ª parte, do CPC.
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronúncia) resulta da violação do dever prescrito no n.º 2 do art. 608.º do Código de Processo Civil, que dispõe que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras; entendendo-se por questões os problemas concretos e não argumentos mais ou menos hipotéticos, opinativos ou doutrinários,
A sentença ou acórdão devem esgotar, no sentido de conhecerem da totalidade das pretensões das partes e de conter todos os elementos indispensáveis à compreensão do juízo decisório.
No caso dos autos, a questão que foi submetida à apreciação do tribunal recorrido e não foi por este apreciada, traduziu-se no abuso do direito de a Ré arguir a excepção de caducidade do direito peticionado pelos recorrentes.
A referida excepção de caducidade invocada pela ré aqui recorrida Panoramic Search – Unipessoal, Lda., na sua contestação, foi julgada procedente pelo tribunal recorrido, pelo que o abuso de direito invocado pelos recorrentes visa paralisar o direito de arguição daquela excepção, consubstanciando por isso uma contra-excepção.
Não estamos, assim, na presença de um mero argumento jurídico apresentado pelos aqui recorrentes no âmbito da discussão de uma outra qualquer questão em causa nos autos, mas de uma verdadeira questão autónoma – o instituto do abuso de direito – que visa paralisar a invocação da excepção de caducidade, evitando que a mesma produza os seus efeitos extintivos do direito invocado pelos autores.
Atento o teor da fundamentação do acórdão recorrido, houve omissão absoluta de conhecimento relativamente ao referido abuso de direito, tratando-se de questão que o tribunal recorrido estava obrigado a conhecer, ao julgar verificada a excepção de caducidade da preferência invocada.
Ou seja, reconhecida pelo tribunal a quo a caducidade do direito de preferência no negócio nos termos pretendidos pela Autora, importava apreciar do abuso de direito oposto pelos Réus a tal efeito na sua contestação e nas contra-alegações.
Consubstanciando a nulidade de omissão de pronúncia prevista na 1.ª parte da al. d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, vício que o Supremo não pode suprir (artigo 684.º, nº1, do CPC), deverá o processo baixar àquela instância para a reforma da decisão anulada, pelos mesmos juízes, se possível (nº2 do mesmo preceito).
A apreciação das restantes questões recursivas fica, por ora, prejudicada.»
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, importa dar cumprimento ao acórdão do STJ, completando o acórdão, que antes proferimos.
Na 1.ª instância foram considerados como assentes os seguintes factos:
- Os autores pretendem exercer o direito de preferência na compra da propriedade de raiz do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1152, freguesia de ..., o qual foi vendido por EE (que era titular do usufruto) e por CC e DD (que eram titulares da nua propriedade) à ré “Panoramic Search”, pelo preço global de € 600 000 (€ 500 000, relativos ao usufruto; € 100 000, relativos à nua propriedade) que passou a figurar no registo como proprietária, Ap. 1472, de 7/2/2017. O prédio está inscrito na matriz predial rústica sob o art. 19, secção D e na matriz predial urbana sob o art. 3063.º – fls. 14 a 17/19;
- Os autores comprovaram o depósito de € 103 349,76, considerando as despesas e impostos e os € 100 000 devidos pela transmissão da nua propriedade, declarando não pretender exercer o direito de preferência sobre o usufruto – art.º. 31.º da petição inicial;
- Os autores são donos do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 982 por o terem adquirido por partilha. O prédio está inscrito na matriz predial rústica sob o art. 47.º, secção D, e na matriz predial urbana sob o art. 1700 – fls. 11 v. a 13;
- Ambos os prédios são confinantes entre si – fls. 17;
- Os autores não foram notificados do projeto de transmissão do prédio à ré “Panoramic Search”;
- EE faleceu antes da propositura da ação, em concreto, no dia 10 de junho de 2017 – fls. 292 do apenso “A”.
2 – Objecto do recurso.
Questão a decidir, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 do CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso:
Saber se existe abuso de direito, que impeça a caducidade de produzir os seus efeitos.
3 - Análise do recurso.
Após a conclusão de que se mostra verificada a caducidade do direito dos Autores/Recorrentes, por não ter sido depositado o preço devido, vejamos então se a sua arguição (da excepção da caducidade pelos recorridos) constitui um manifesto abuso de direito.
A tal propósito, argumentam os recorrentes que, “se prevalecendo os Réus da caducidade da preferência, tendo omitido ilicitamente a sua notificação para preferirem (facto provado), agem em abuso de direito (…)Ofende o sentimento jurídico dominante que os recorridos, titulares do direito de invocar a caducidade, possam socorrer-se da referida excepção para encobrir a licitude manifesta que cometeram, não notificando deliberadamente os recorrentes para exercerem a preferência, querendo, no negócio jurídico em apreciação.
A arguição da excepção da caducidade pelos recorridos constitui um manifesto abuso de direito.»
Ou seja, os recorrentes invocam o abuso de direito, alegando o facto de os recorridos invocarem a caducidade, ofende o sentimento jurídico dominante pois, estão a socorrer-se da referida excepção, para encobrir a ilicitude manifesta que cometeram, não notificando deliberadamente os recorrentes para exercerem a preferência, querendo, no negócio jurídico em apreciação.
Analisando:
Estatui o artigo 334.º do CC que “é abusivo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Há abuso de direito quando, embora exercendo um direito, o titular exorbita o exercício do mesmo, quando o excesso cometido seja manifesto, quando haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico-socialmente dominante.
A figura do abuso de direito permite – como válvula de escape – a adaptação do direito à evolução da vida.
Serve como válvula de escape a situações em que, os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, vigorante em determinada época, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
O abuso do direito implica uma afronta de forma clamorosa (manifesta e excessiva), contra os ditames da boa-fé objetiva, que postula, por seu lado, a adoção nas relações intersubjetivas (contratuais ou outras, de que nasçam deveres entre as partes/sujeitos) de uma conduta honesta, correta e leal, bem como razoável, equilibrada e transparente, sempre reportada «ao correto agir, ao viver honesto», à atuação «como pessoa de bem» -vide a propósito, P. Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Coimbra, 1995, p. 398.
Poder-se-á, então, dizer que ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante - neste sentido, por exemplo Ac. de 25/11/2014, proc. nº 3220/07.3TBGDM-B.P1.S1, Relator: Gabriel Catarino (sublinhado nosso).
A doutrina costuma assimilar ao instituto do abuso do direito o facto de alguém adoptar um comportamento que, tipicamente se dirige em determinado sentido e que, extravagantemente, de forma inusitada e perversa, adquire novo rumo ao arrepio do que já estava sedimentado numa determinada relação jurídica, substantiva ou processual.
Descendo ao caso concreto, temos que os recorrentes se limitam a argumentar que, a falta de notificação para a preferência (que pretendem exercer) impede a invocação da caducidade pelos Réus.
Com todo o respeito, não partilhamos desta posição.
Não se vê, nem os recorrentes explicam, de que forma são extravasados os limites da lei, ao invocar um pressuposto que a própria lei exige.
A caducidade é um instituto previsto na lei e consubstancia, neste caso, o efeito decorrente da prática de um requisito substantivo, para o exercício do direito de preferência (o depósito, nos 15 dias subsequentes à propositura da ação, do preço devido, em conformidade com o consignado no art.º. 1410.º, n.º 1, do CC.)
E enquanto requisito legal da acção não faz sentido paralisá-lo através de um dos fundamentos da própria acção.
Não faz sentido dizer que há abuso quando apenas se invoca o desrespeito por um dever previsto na lei.
Se assim fosse, chegaríamos ao absurdo de, o fundamento da acção, a omissão da notificação para a preferência, nunca permitir o efeito legal decorrente da omissão do depósito do preço (a caducidade) e nunca existir caducidade nesta situação, neutralizando -se a exigência legal do depósito.
E o depósito, em causa, tem uma razão de ser conexa com a própria utilidade da acção, ou seja, cobre o risco do alienante se ver confrontado com a hipótese de perder o negócio com o adquirente e de não vir a celebrar qualquer contrato com o preferente, forçando-o a apresentar os meios para a aquisição que pretende efetuar.
Estamos no âmbito da verificação dos pressupostos legais do direito de acção.
Por isso, não se vislumbra que, do mero incumprimento da notificação para preferir possa resultar a ininvocabilidade da caducidade, por omissão do depósito do preço devido.
Não há aqui qualquer exercício anormal do direito: da mesma forma que os AA. utilizam a lei para a exercer a preferência os RR. invocam a lei para a caducidade: São as regras “do jogo” e a posição defendida pelos recorrentes conduziria -sem mais -ao afastamento de um pressuposto legal da acção.
Note-se que, a conduta subjacente à caducidade só aos AA. diz respeito, já que só decorre da omissão do depósito do preço devido. Os RR. Em nada contribuem para tal.
Não se encontra excesso ou disfuncionalidade no comportamento dos RR. que comprometa a realização material ou a harmonia dos objectivos do sistema no seu todo, que nos faça concluir pelo abuso de direito, ou seja, que ponha em causa os valores básicos do sistema, como refere António Menezes Cordeiro – “Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas”, Revista da Ordem dos advogados, Ano 65 - Vol. II - Set. 2005.
Em suma, improcede a apelação, sendo de manter, inalterada, a decisão recorrida.
4 – Dispositivo.
Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes- art. 527.º, n.º 1, do CPC.
Évora, 13.02.2025