ACTIVIDADES PERIGOSAS
RESPONSABILIDADE CIVIL
Sumário

Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
Ainda que se considere que a realização da queima de madeiramentos antigos efectuada pelo réu na sua propriedade constitui a execução de actividade perigosa, integrante da previsão do n.º 2 do artigo 493º do Código Civil, presumindo-se a culpa, e que aquele acto era proibido pelos riscos de propagação de incêndio dele decorrentes, para que se efectivasse a responsabilidade pela reparação dos danos era necessário que se verificassem os demais pressupostos da responsabilidade civil, previstos no n.º 1 do artigo 483º do Código Civil, o que não ocorre, por não se ter provado que os danos reclamados pelo autor na sua propriedade tiveram origem ou foram provocados pela actividade executada pelo réu, faltando, assim, o nexo de causalidade.

Texto Integral

Recurso de Apelação n.º 479/20.4T8STR.E1

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


I – Relatório


1. AA intentou a presente acção de processo comum, contra BB, pedindo que o Réu seja condenado:

a. A pagar ao Autor o custo dos trabalhos e/ou obras, que estima em cerca de €25.500 (vinte e cinco mil e quinhentos euros), visando repor o prédio no estado anterior ao do incêndio provocado pelo réu;

b. No pagamento de uma indemnização correspondente aos prejuízos emergentes da impossibilidade de o prédio não poder ser utilizado, que se estimam em quantia não inferior a €200 (duzentos euros) mensais, desde Abril de 2018, inclusive e até que o mesmo se encontre em perfeitas condições de utilização e sem prejuízo de montante superior que possa ser apurado no decorrer do processo;

c. A pagar ao Autor uma indemnização nunca inferior a € 2.500 (dois mil e quinhentos euros) pelos danos não patrimoniais sofridos.


2. Para tanto, alegou, em síntese, que, em 20 de Abril de 2018, o réu efectuou uma queima de madeiramentos antigos no interior do seu prédio, o que veio a causar danos no prédio do autor, que impossibilitaram a sua posterior utilização, tendo, também, tal situação criado grande tristeza e ansiedade ao autor.


3. Regularmente citado, o réu impugnou os factos alegados pelo autor, acrescentando que é alheio a qualquer derrocada, mau estado do prédio do autor ou incêndio que possa ter existido, pelo que não pode ser responsabilizado pelos danos invocados pelo autor.


4. Foi proferido despacho saneador tabelar, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.


Realizada a audiência final, veio a ser proferida sentença, na qual se decidiu:


«… julgo a acção totalmente improcedente e, em consequência, decide-se absolver o réu BB do pedido».


5. O A. interpôs recurso da sentença, com os fundamentos que sintetizou nas seguintes conclusões:

a. Fica, assim, impugnada, quanto a matéria de facto, a resposta negativa constante da sentença apelada que deu como não provado que a queimada levada a cabo pelo réu, no seu prédio, tenha originado que a parede de parede que dividia as propriedades se mostrasse parcialmente tombada, algumas vigas de madeira que sustentavam o telhado mostravam-se parcial ou totalmente queimadas e consequentemente parte do telhado havia caído, revelando algumas telhas igualmente ardidas, devendo dar-se como provado precisamente o contrário;

b. Fica, assim, impugnada, quanto à matéria de facto, a resposta negativa constante da sentença apelada de que não ficou provado que o réu sabia que, ao iniciar um fogo no interior da sua propriedade urbana, contígua à do Autor, - também propriedade urbana,- poderia provocar danos como, efectivamente, provocou, devendo dar-se como provado precisamente o contrário;

c. Fica, também, impugnada, quanto à matéria de facto, a resposta negativa constante da sentença apelada de que não ficou provado que o incêndio provocado pelo réu no seu prédio, provocou, no prédio do Autor, os danos relacionados com a derrocada da parede de pedra que dividia os dois prédios; destruição total de cerca de 5 barrotes de madeira que sustentavam o telhado e carbonização de cerca de 10 barrotes de sustentação do telhado e ainda o desabamento parcial do telhado, devendo dar-se como provado precisamente o contrário;

d. Sendo certo que as queimadas levadas a cabo em prédios rústicos são reguladas por legislação específica, e em períodos temporais aí determinados, quanto à possibilidade de realizar queimadas no interior de prédios urbanos, a lei nada prevê, pois é manifesto que tal representa uma actividade ilícita, especialmente na altura do ano em que foi realizada, pelo que se mostram preenchidos todos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual.

6. Contra-alegou o recorrido, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

7. O recurso foi admitido como de apaleação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar a decidir.

*


II – Objecto do recurso


O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, n.º 2, 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil.


Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:

i. Da impugnação da matéria de facto; e

ii. Reapreciação dos pressupostos da responsabilidade civil, no sentido de apurar se o R. é responsável pelo ressarcimento dos danos invocados pelo A.


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III – Fundamentação


A) - Os Factos


A.1. Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

1. O Autor é dono e legítimo proprietário do prédio urbano sito na ..., composto de casa que serve de adega, arrecadação e celeiro, com divisão ampla no sótão, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 707.º da freguesia de ..., concelho de ... (anteriormente inscrito na matriz sob o artigo 616º da freguesia de ...).

2. O prédio acima descrito foi adjudicado ao Autor no processo de inventário aberto por óbito de seus pais, CC e DD, que correu termos no 2º Juízo Cível de ... sob o nº 2464/09.8...

3. O prédio do Autor, desde meados de 2013, sempre serviu como armazém para os vários bens do Autor e seu agregado familiar, nomeadamente móveis e ferramentas de construção civil.

4. O réu é proprietário do prédio urbano sito em ..., composto de casa de arrecadação e sótão, que confronta de norte e nascente com herdeiros de CC, de sul com estrada e de poente com EE, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 705º da freguesia de ... (anteriormente inscrito na matriz sob o artigo 615º da freguesia de ...).

5. Os prédios do Autor e Réu são contíguos, existindo apenas uma parede divisória, em pedra, entre os prédios.

6. Em 20 de Abril de 2018, o réu efectuou uma queima de madeiramentos antigos, que se encontravam no interior do seu prédio.

7. Em 9 de Julho de 2018, o Autor apresentou queixa crime contra o réu pelo facto da queima efectuada no prédio do réu ter passado para o seu prédio e, consequentemente, ter provocado os danos descritos.

8. O referido inquérito que foi, posteriormente, arquivado.

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A.2. E consideraram-se como não provados os seguintes factos:

I. A queimada referida em 6 e originou que a parede de pedra que dividia a propriedade do autor da do réu se mostrasse parcialmente tombada, algumas vigas de madeira que sustentavam o telhado mostravam-se parcial ou totalmente queimadas e consequentemente parte do telhado havia caído, revelando algumas telhas igualmente ardidas.

II. O réu sabia que, ao iniciar um fogo no interior da sua propriedade, contígua à do Autor, poderia provocar danos como, efectivamente, provocou.

III. O incêndio provocado pelo réu no seu prédio provocou, no prédio do Autor, os seguintes danos: - derrocada da parede de pedra que dividia os dois prédios; - destruição total de cerca de 5 barrotes de madeira que sustentavam o telhado e carbonização de cerca de 10 barrotes de sustentação do telhado; - desabamento parcial do telhado.

IV. Na sequência dos danos causados pelo incêndio iniciado pelo réu, o Autor ficou impossibilitado de utilizar a sua propriedade, nomeadamente para armazenamento de móveis e ferramentas de trabalho.

V. De modo a que o Autor possa voltar a utilizar o seu prédio nas condições anteriores às do incêndio provocado pelo réu, necessitará de remover as telhas e barrotes de madeira total ou parcialmente ardidos; reconstruir a parede em pedra de separação das duas propriedades; proceder ao levantamento da cobertura danificada e/ou substituição de madeiras queimadas e de outras que se encontram deslocadas e telhas inutilizadas; colocação de madeiras e telhas novas, bem como proceder aos remates no telhado em geral.

VI. Com a aquisição dos materiais necessários para a realização da obra, nomeadamente telhas, barrotes de madeira e demais materiais de construção e respectiva mão-de-obra, o Autor terá que despender a quantia de €25.500 para a colocação do seu prédio no estado anterior ao incêndio provocado pelo réu.

VII. O incêndio causado pelo réu exaltou no Autor um sentimento de profunda tristeza, ao ver o prédio construído pelos seus pais parcialmente destruído pela acção do réu.

VIII. O Autor igualmente sente uma constante ansiedade por não saber se o réu irá voltar a iniciar um incêndio na sua propriedade que possa atingir novamente o seu prédio, queimando o restante imóvel e bens que ainda ali se encontram.

IX. A tudo acresce que a ansiedade do Autor é agravada por viver em ... e o réu viver em ... e não poder averiguar se o réu principiará um novo fogo.

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B) – Apreciação do Recurso/O Direito


1. O A. discorda da sentença, impugnando a matéria de facto, como enuncia nas alíneas a) a c) das conclusões que se reportam aos factos constantes dos pontos I a III dos factos não provados, que pretende que sejam dados como provados, com fundamento nas suas declarações de parte e nos depoimentos das testemunhas FF (filho do A.), GG (amigo do filho do A.), e HH (cônjuge do A.) cujas passagens das gravações que teve por relevantes transcreveu, referindo que “dos depoimentos antes transcritos resulta que a queimada levada a cabo pelo réu provocou danos no prédio do Autor, nomeadamente a derrocada da parede contígua ao prédio do réu, vigas de madeira que sustentam o telhado parcial ou integralmente queimadas e consequentemente, parte do telhado do prédio dos Autores caiu”.


2. Antes de mais, importa sublinhar que, não obstante se garantir no sistema processual civil um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à reapreciação da matéria de facto, não podemos ignorar que continua a vigorar entre nós o princípio da livre apreciação da prova, conforme decorre do artigo 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, ao estatuir que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…)”.


E os poderes conferidos por lei à Relação quanto ao princípio fundamental da apreciação das provas previsto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, têm amplitude idêntica à conferida ao tribunal de 1.ª instância, devendo a 2.ª instância expressar a respectiva convicção acerca da matéria de facto impugnada no recurso, e não apenas conferir a lógica e razoabilidade da convicção firmada pelo tribunal a quo, a qual não se funda meramente na prova oral produzida, sendo a mesma conjugada com todos os demais meios de prova que a podem confirmar ou infirmar, e apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com um exame crítico de todas as provas produzidas.


Como ensina Miguel Teixeira de Sousa, “[a]lgumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal(…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência” (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 347).


E, como nos dá conta o Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de 25/01/2016 (processo n.º 05P3460), disponível, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt: “(…) VII - O exame crítico das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.


VIII - O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte. (…)”


Por conseguinte, a Relação aprecia livremente as provas, de acordo com o princípio constante do n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, ou seja, a tudo o que possa concorrer para a formação da sua livre convicção acerca de cada facto controvertido.


Por outro lado, não invalida a convicção do tribunal o facto de não existir uma prova directa e imediata da generalidade dos factos em discussão, sendo legítimo que se extraiam conclusões em função de elementos de prova, segundo juízos de normalidade e de razoabilidade, ou que se retirem ilações a partir de factos conhecidos.


Não se pode, porém, esquecer que nesta sua tarefa a Relação padece de constrangimentos decorrentes da circunstância de os depoimentos não se desenvolverem presencialmente, pelo que na reapreciação dos depoimentos gravados, a Relação tem apenas uma imediação mitigada, pois a gravação não transmite todos os pormenores que são captáveis pelo julgador e que vão contribuir para a formação da sua convicção.


Assim, a alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, em casos excepcionais e pontuais, e só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.


Feito este enquadramento, vejamos, agora, o caso concreto.


3. Os factos impugnados, constantes dos pontos I, II e III, dos factos não provados, são os seguintes:

I - A queimada referida em 6 e originou que a parede de pedra que dividia a propriedade do autor da do réu se mostrasse parcialmente tombada, algumas vigas de madeira que sustentavam o telhado mostravam-se parcial ou totalmente queimadas e consequentemente parte do telhado havia caído, revelando algumas telhas igualmente ardidas.

II - O réu sabia que, ao iniciar um fogo no interior da sua propriedade, contígua à do Autor, poderia provocar danos como, efectivamente, provocou.

III - O incêndio provocado pelo réu no seu prédio provocou, no prédio do Autor, os seguintes danos: - derrocada da parede de pedra que dividia os dois prédios; - destruição total de cerca de 5 barrotes de madeira que sustentavam o telhado e carbonização de cerca de 10 barrotes de sustentação do telhado; - desabamento parcial do telhado.

4. Na sentença deu-se esta matéria factual como não provada, com a seguinte fundamentação:

«Das declarações de parte do autor AA e do depoimento das testemunhas HH, mulher do A, FF, filho do A, e GG, amigo do filho do A, que se deslocaram ao local e verificaram a situação, resultou apenas a descrição dos prédios e a utilização dada aos mesmos, assim como a análise do conteúdo das fotografias juntas aos autos. Mais descreveram o estado de degradação do prédio do autor, o que atribuíram à queimada efectuada no prédio do réu, apenas por terem aí visto uma mangueira e madeiras queimadas e o estado emocional do autor após ser confrontado com o estado do seu prédio.

A contrariar estes depoimentos, porém, foi ponderado o depoimento de parte do réu, BB, e o depoimento da testemunha II, pedreiro que prestou serviço ao R, realizando a referida queimada, que garantiram que nada alastrou para o prédio do autor, depoimento prestado de forma lógica e esclarecida, sem hesitações.

Acresce a certidão do inquérito n.º 38/18.1..., designadamente o teor do relatório de sinistro, do qual decorre não se ter concluído que o incêndio causou qualquer perigo para os bens do autor e as fotografias juntas aos autos, das quais decorre que não resultam os danos invocados pelo autor.

Por fim, e de forma segura, objectiva, pormenorizada e com conhecimento directo dos factos, analisou-se o teor do depoimento da testemunha JJ, Inspector Polícia Judiciária, a exercer funções, desde 1999, no departamento de ..., que procedeu à investigação do referido incêndio e que, de forma clara e sem quaisquer dúvidas, garantiu que “a queima de madeiramento antigo levada a cabo pelo réu não colocou em perigo quaisquer bens ou qualquer pessoa”. Esta testemunha explicou as diligências que levou a cabo e a conclusões a que chegou, o que fez de forma isenta e de acordo com a experiência profissional de mais de vinte anos, merecendo credibilidade.» (fim de citação)

5. Como resulta das alegações, o recorrente limita-se a invocar as suas declarações de parte e os depoimentos dos seus familiares e amigo do filho, sem fazer qualquer referência aos outros depoimentos prestados, em especial o da testemunha JJ, inspector da PJ, que procedeu à investigação do sinistro em causa no âmbito do processo criminal, cuja certidão consta dos presentes autos, em que o Tribunal recorrido se baseou, para dar os factos ora impugnados como não provados.


Ou seja, não faz qualquer análise crítica da prova produzida, não referindo quaisquer razões que permitam concluir pela prevalência dos depoimentos que invoca, em face daqueles que o Tribunal recorrido teve como credíveis e que sustentaram as respostas dadas aos factos impugnados, tendo omitido qualquer referência aos mesmos nas suas alegações.


É certo que se provou que em 20/04/2018, o R. efectuou uma queima de madeiramentos antigos que se encontravam no interior do seu prédio, e sabemos também que os prédios de A. e R. são contíguos, existindo apenas uma parede divisória, em pedra, entre os prédios.


Mas do facto de ter sido feita a dita queima não se segue que o fogo tenha passado para o prédio do R. e causado os estragos que este invoca. Não há prova que sustente tal conclusão, tendo-se demonstrado até que tal facto não ocorreu.


A testemunha II, que procedeu à dita queima por indicação do A., diz que tal não aconteceu e que só saiu do local, onde esteve com uma mangueira de água, quando estava tudo apagado, e que não houve qualquer incêndio, resultando ainda do seu depoimento que quando foi feita a queima a parede de separação já estava caída.


A razão da existência da mangueira no local, que as testemunhas indicadas pelo A. referiram e que este também diz que viu, foi, pois, explicada pela referida testemunha. E não se nos afigura credível que, caso o fogo se tivesse propagado para a propriedade do A., que se tivesse ali deixado a mangueira que teria sido utilizada para o apagar, a denunciar tal facto.


Por outro lado, a testemunha HH (cônjuge do A.) disse que passou com o marido no local à noite, e, quando perguntada pela data disse “eu fui consultar e foi a 20 de Abril de 2018”, e que viram que a parede estava no chão e a pedra estava queimada e ainda deitava fumo. Porém, o A. disse que “no dia em que foi à terra e tomei conhecimento da queimada, estava a cacimbar e ainda a pedra da parede que tinha caído estava a deitar fumo da quantidade de calor que tinha existido”. E quando instando a precisar essa data disse que foi a 9 de Junho de 2018, o que não coincide com data indicada pela mulher, que corresponde ao dia da queimada. Por sua vez, a testemunha FF, também não viu o dito incêndio, não foi lá no dia da dita queima, mas depois, tendo referido que a queima “…tinha sido há pouco tempo”. E a testemunha GG também só viu “o pós incêndio”.


Neste contexto, não cremos que pelo facto das testemunhas terem visto a dita mangueira e madeiras queimadas seja suficiente para se concluir que o estado do prédio do A. (que não era habitado e onde este apenas se deslocava “pelo menos uma vez por mês”, como disse a sua mulher) se ficou a dever à propagação do fogo decorrente da queima efectuada pelo R. na sua propriedade


E se dúvidas houvesse quando ao facto de não ter sido a dita queimada que causou os danos na propriedade do R. as mesmas ficaram suficientemente esclarecidas em face do relatório do sinistro elaborado por JJ, como consta da certidão do inquérito n.º 38/18.1..., junta aos autos, do qual decorre não se ter concluído que o incêndio causou qualquer perigo para os bens do A.. Esta testemunha, em sede de audiência de julgamento, bem explicou as diligências que levou a cabo e as conclusões a que chegou, tendo salientado que não havia no local indicadores de progressão do incêndio, e que a dita queima nada teve a ver com as marcas deixadas do outro lado, ou seja os danos existentes na propriedade do A. não foram originados pela queima feita com o R.. E também explicou que apesar da dilação temporal entre a dita queima e a sua deslocação ao local, haveria sempre vestígios, que no caso não existiam, tendo sido peremptório quanto à inexistência de quaisquer sinais de que tenha havido progressão de incêndio para a casa do vizinho (o autor).


Perante este depoimento, claro, isento e convincente, do inspector da PJ, com experiência neste tipo de situações, que visitou e analisou o local, a matéria impugnada tinha que ser dada como não provada, como se decidiu na sentença.


5. Deste modo, improcede o recurso quanto à impugnação da matéria de facto.


6. No que se reporta à subsunção jurídica da causa, a pretensão do A. funda-se na responsabilidade civil do R. por factos ilícitos, nos termos previstos nos artigos 483º do Código Civil, invocando-se ainda a presunção de culpa, decorrente do exercício de uma actividade perigosa (cfr. artigo 493º, n.º 2, do Código Civil), no caso, a realização de uma queimada.


Como se prevê no n.º 1 do artigo 483º do Código Civil, constitui princípio geral de que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.


Assim, são pressupostos cumulativos de que depende o direito de indemnização assente nesta modalidade da responsabilidade civil: o facto; a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (Cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Almedina, pág. 557, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 10.ª edição, Vol. I, pág. 526).


Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, e verificado o respetivo nexo de causalidade entre o dano e o facto danoso (artigos 562.º e 563.º do Código Civil).


E, nos termos do disposto no artigo 487.º, n.º 1 do Código Civil, é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.


É o que sucede em situações de exercício de actividades perigosas, pois a própria lei presume, nesses casos, a existência de culpa do lesante, invertendo-se, em consequência, o ónus da prova.


A respeito da realização pelo R. da queimada na sua propriedade e quanto à questão da responsabilidade pela indemnização dos danos reclamados pelo A., entendeu-se o seguinte na sentença:

«Com efeito, a realização de queimadas, pelos riscos que tem associados, pode considerar-se uma atividade perigosa.

De facto, de harmonia com o disposto no artigo 493.º, n.º 2 do Código Civil, aquele que causar danos a outrem no exercício de uma atividade perigosa, por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.

Como supra explicitado, este normativo consagrou uma inversão do ónus da prova, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, fazendo recair uma presunção de culpa sobre quem exerce uma atividade perigosa. Tal opção legislativa assenta no facto de tais atividades serem potenciadoras da produção de prejuízos para terceiros, pelo que a quem delas tira proveito é imposto o dever de controlo e prevenção dos riscos que delas derivem.

A obrigação de indemnização, resultante de responsabilidade extracontratual, implica, ainda, a verificação de um dano, que se traduz em prejuízos ou perdas que originam a diminuição do ativo ou o aumento do passivo ou, ainda, prejuízo não patrimonial, desde que a respetiva intensidade exija a tutela do direito.

Em último lugar, necessário se torna aferir do nexo de causalidade entre o facto e o dano, demonstrando que o facto (ainda que presumidamente culposo) foi a causa daquele dano, isto é, dos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (artigo 563.º do Código Civil).

Com efeito, o nexo causal entre o facto e o dano, que deve ser atendido no âmbito da responsabilidade civil por facto ilícito, existe sempre que a conduta se considere idónea para a verificação do dano, não o tendo provocado por força de circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas (teoria da causalidade adequada negativa), pretendendo, a obrigação de indemnização, cobrir todos os danos que estiverem em conexão causal adequada com o facto lesante e desde que se insiram dentro desse mesmo nexo.

Dito isto, importa referir que, não obstante a presunção de culpa, que a perigosidade da atividade exercida impõe, para que se verifiquem os pressupostos da responsabilidade civil prevista no artigo 493.º do Código Civil, é necessário o preenchimento prévio do requisito ilicitude, que, no caso, se traduz, na violação de direitos absolutos ou no incumprimento das regras que regem a atividade em causa.

Ora, com relevância para o apuramento da responsabilidade, não resultou provado que foi a queimada realizada pelo réu que originou quaisquer danos no prédio do autor.

Assim, não se provou a prática de qualquer facto ilícito; nem a existência de nexo de causalidade entre a queimada e quaisquer danos que se viessem a apurar ter ocorrido no prédio do autor, mas antes que a referida queimada não colocou em perigo qualquer bem ou qualquer pessoa.

Termos em que deve o réu ser absolvido de tudo o peticionado.» (fim de citação)

Ora, ainda que se considere que a realização da queima de madeiramentos antigos efectuada pelo R. na sua propriedade constitui a execução de actividade perigosa, integrante da previsão do n.º 2 do artigo 493º do Código Civil, presumindo-se a culpa, ou até que tal acto era proibido pelos riscos de propagação de incêndio dele decorrentes, como invoca o recorrente, para que se efectivasse a responsabilidade pela reparação dos danos necessário era que se verificassem os demais pressupostos das responsabilidade civil, previstos no artigo 483º do Código Civil.


E, no caso, não obstante a execução pelo R. da dita queima, certo é que não se provou que os danos que o A. reclamava existirem na sua propriedade tenham sido originados ou provocados pela dita actividade perigosa ou proibida exercida pelo R., como resulta da matéria de facto.


Ou seja, não se verifica o nexo de causalidade entre o facto praticado e os danos invocados, pelo que não há fundamento para a pretendida indemnização, improcedendo o recurso.


*


C) – Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]


(…)


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IV – Decisão


Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.


Custas a cargo do Apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.


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Évora, 13 de Fevereiro 2025


Francisco Xavier


Manuel Bargado


Maria Adelaide Domingos


(documento com assinatura electrónica)