Sumário:
I - Os comproprietários têm direito ao uso integral da coisa, pelo que o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título, passando a deter-se a título de animus possidendi
II - A inversão por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía impõe que o primeiro torne, diretamente, conhecida da pessoa em cujo nome possuía, a sua intenção de atuar como titular do direito, sendo uma oposição categórica, traduzida em atos positivos, materiais ou jurídicos, mas inequívocos.
III - Não integra tal inversão a utilização exclusiva de um imóvel pelos réus ao longo de vários anos, se estes não lograram demonstrar que alguma vez tenham impedido os autores de entrar no imóvel ou que lhe tenham recusado entregar as chaves do mesmo.
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
AA e BB (na qualidade de herdeiro de CC), instauraram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra DD e EE, pedindo que:
«I) Se declare impugnado, para todos os legais efeitos, o facto justificado que esteve na base da decisão proferida em 25 de maio de 2018 pela Conservatória do Registo Predial do ..., no processo especial de justificação, referente à invocada aquisição por usucapião do prédio indicado no artigo 1º e 2º da petição inicial.
II) Se declare nula e de nenhum efeito a decisão final proferida em 25 de maio de 2018 no processo especial de justificação que decorreu no ano de 2018 na Conservatória do Registo Predial do ....
III) Se declare que não assiste, pelo menos nos termos invocados pelos Réus, o direito invocado no dito processo especial de justificação.
IV) Se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base no processo especial de justificação aqui impugnado».
Alegam, em síntese, que os réus outorgaram escritura pública de justificação por usucapião, em que declararam que são os únicos donos e legítimos possuidores do imóvel objeto do litígio, por o terem adquirido por compra no ano de 1992, encontrando-se na posse do imóvel sem oposição de ninguém e à vista de toda a gente, mas tal não corresponde à verdade, na medida em que CC e mulher, a ora autora, adquiriram o imóvel em compropriedade com os réus.
Mais alegam que foram prestadas falsas declarações na aludida escritura e que ambas as partes sempre estiveram na posse do imóvel, fizeram obras, mobilaram e equiparam a casa, possuindo cada parte uma chave do mesmo.
Os réus contestaram, contrapondo que pese embora o imóvel tenha sido adquirido por CC e pelo réu DD, os quais pagaram o preço na proporção de metade, nunca o CC, a mulher (autora) e o filho habitaram a casa, nem a frequentaram nas férias ou pequenas temporadas, nunca confecionaram nela as refeições, as obras de recuperação foram executadas pelos réus, tendo a autora e o marido apenas comparticipado na compra de alguns materiais de construção, sendo apenas os réus que usufruem em exclusivo do imóvel, exercendo a posse pública, pacífica e de boa fé à vista de toda a gente, recebendo familiares e amigos, pagando as contas da água e luz, mobilando e decorando a casa, e cuidando do logradouro e jardim.
Concluem, pedindo a improcedência da ação e a sua absolvição dos pedidos.
Teve lugar a audiência prévia, sendo proferido despacho saneador tabelar, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu os réus dos pedidos.
Inconformada, a autora apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem:
«I - As nulidades mencionadas uma vez arguidas devem merecer o devido tratamento legal, pelo que a sentença proferida deve ser anulada pelo facto de o Tribunal recorrido ter se pronunciado sobre questões de que não podia tomar conhecimento e por ter condenado os apelados em objeto diverso do pedido.
II - O imóvel em causa foi adquirido por compra em regime de compropriedade.
III - Não há provas nos autos de ter havido a inversão do título de posse por parte dos recorridos DD e EE.
IV - Para se verificar a inversão do título de posse, é necessário que o detentor torne diretamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía a sua intenção de atuar como titular do direito.
V - É indispensável, para que haja posse suscetível de conduzir à usucapião, que se dê a inversão do título de posse nos precisos termos do artigo 1265.º do CC, pelo que não se verificam os pressupostos da aquisição do direito por usucapião.
VI – A inversão do título da posse, supõe a substituição de uma posse precária em nome de outrem, por uma posse em nome próprio.
VII - Constitui entendimento pacífico que esta oposição se há-de traduzir em actos positivos (materiais ou jurídicos), inequívocos, isto é, reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem e praticados na presença ou com o conhecimento daquele a quem se opõem.
VIII - Não existindo prova da inversão do título de posse, a ação intentada pela recorrida nunca poderia ter sido julgada improcedente.
IX - Pelo que há necessidade de se proceder à reapreciação da fundamentação de facto e de direito.
Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de vossas excelências, deve a decisão recorrida ser revogada, substituindo por outra que julgue a ação procedente.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
- nulidade da sentença:
- aquisição pelos réus, por usucapião, do imóvel dos autos.
III – FUNDAMENTAÇÃO
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 25 de Maio de 2018, no Cartório Notarial, sito na ..., “... e FF”, foi outorgada escritura de justificação notarial, lavrada de fls. 108 a fls. 109v, do Livro número 2C, a cargo do Notário GG, na qual intervieram como justificantes os Réus DD e mulher EE.
2. Na escritura referida em 1), os Réus declararam que em tal data eram donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar, para habitação, com superfície coberta de cinquenta e seis metros quadrados, sito em ..., freguesia do ..., concelho de ..., a confrontar do Norte, do Sul e do Poente com DD e do Nascente com a ..., ainda por descrever na Conservatória do Registo Predial de ..., inscrito na matriz sob o artigo 845, com o valor patrimonial tributário atribuído de 10.480,00€ e atribuem a este imóvel o respetivo valor patrimonial e que adquiriam o referido imóvel através de compra verbal, compra essa efetuada em maio de mil novecentos e noventa e dois, a HH e mulher II, casados sob o regime de comunhão geral de bens, que foram residentes na Rua ..., no ..., sem que, no entanto, ficassem a dispor de título formal que lhes permitisse o respetivo registo na conservatória do Registo Predial, mas, desde logo, entraram na posse e fruição do referido imóvel, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, nomeadamente utilizando-o para habitação, quer usufruindo como tal o imóvel, quer suportando os respetivos encargos.
3. Mais declararam na aludida escritura que há mais de 20 anos que estão na posse do imóvel, sem oposição de quem quer que seja, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, sendo por isso uma posse pública, pacífica, contínua, pelo que adquiriram o referido imóvel por usucapião, não tendo assim, documentos que lhes permitam fazer prova da aquisição pelos meios extrajudiciais normais.
4. Decorrente de tais declarações, prestadas no referido ato notarial, foi inscrito, a favor do Réus, o prédio urbano descrito em 2) e registada a seu favor a aquisição por usucapião do identificado imóvel.
5. Na escritura de justificação notarial intervieram como segundos outorgantes, JJ, casado, residente na ..., KK, casada, residente na ..., ... e LL, casado, residente na ..., os quais confirmaram todas as declarações prestadas pelos primeiros.
6. Em Maio de 1992 foi efetuada uma compra e venda verbal do imóvel identificado em 2), na qual intervieram como vendedores HH e sua mulher II e como compradores, para além dos Réus, também a Autora, MM e seu marido, CC, falecido em 30 de Janeiro de 2018.
7. O valor acordado para a venda do imóvel, e liquidado na data, foi de quatrocentos mil escudos, equivalente atualmente a 2.000,00€, quantia paga em numerário.
8. Na data da compra verbal ocorreu a efetiva entrega da propriedade e da posse do imóvel pelos vendedores aos compradores.
9. Desde a data da compra do imóvel, os Réus passaram a utilizar o imóvel em seu proveito e dos seus familiares, o que fizeram ininterruptamente para pequenas estadias de férias e pequenas temporadas, tendo sido acordado entre os Autores e os Réus que o imóvel seria para uso das famílias, tendo ainda ficado acordado que as famílias deslocar-se-iam ao imóvel sempre que assim o entendessem e tivessem possibilidades, o que não ocorreu relativamente aos Autores.
10. Os Autores e os Réus residem na localidade de ..., concelho da ..., onde todos possuem habitação própria.
11. A deslocação para o imóvel dos Réus ocorre nos períodos de férias, fins de semanas ou quando têm possibilidades.
12. Os Réus colocaram mobílias, decorações e eletrodomésticos no imóvel, de modo a que houvesse condições para as suas estadias familiares, móveis esses e utensílios que eram utilizados pelos Réus e família quando ali se deslocavam e deslocam.
13. Em virtude de o imóvel apresentar algumas deteriorações, após o ano de 1992, foram ali efetuadas algumas obras de conservação, tendo a Autora e o seu marido despendido na recuperação do imóvel a quantia de cerca de 3.838,99€, sendo este valor mencionado no teor da correspondência que lhe foi endereçada em 03 de Abril de 2007 a propósito de negociações que então decorriam para pôr termo à compropriedade.
14. Após 1992, por o imóvel estar devoluto, foi reconstruído pelos Réus, tendo apenas os Autores comparticipado em €3838,99 e as demais benfeitorias foram todas realizadas pelos Réus desde esta data até à presente data.
15. Os Réus por carta remetida pelas suas Advogadas apresentaram a lista dos materiais que os Autores e Réus forneceram para as obras.
16. No decurso das referidas negociações e a respeito das obras de conservação realizadas pelos Autores vieram os Réus determinar o valor e apresentar acerto de contas através de carta datada de 3 de Abril de 2007.
17. Através de missivas enviadas à Autora e ao seu marido, e por intermédio das suas Mandatárias, os Réus manifestaram interesse em adquirir a quota-parte do imóvel pertencente aos Autores.
18. Tal negócio nunca veio a ser concretizado por não existir acordo quanto ao preço a receber/liquidar por parte dos Autores e/ou dos Réus, assim como da parte dos Réus não foi aceite a divisibilidade ou manter a comunhão do imóvel.
19. Desde a data da celebração do contrato verbal que o prédio em causa foi possuído pelos Réus até À presente data, sendo que os Autores nunca pernoitaram na casa.
20. Os Réus sempre foram possuidores, usaram e fruíram do imóvel.
21. O negócio foi celebrado na livraria /papelaria de HH, sita no ..., pelo preço de quatrocentos mil escudos, ou seja, € 1.995,19.
22. O preço foi pago pelos referidos CC e DD, na proporção de 200.000$00, ou seja, atualmente € 997,60 cada.
23. Após a compra do imóvel, nem a Autora nem seu filho e marido habitaram ou utilizaram o imóvel.
24. Após a compra, os AA. e o falecido CC, deslocaram-se ao imóvel por diversas vezes, entre o ano de 1993 e 1996, no entanto não pernoitaram no imóvel.
25. Visitas em que os AA. se fizeram acompanhar por NN, OO, pois não tinham transporte próprio e outras vezes foram de táxi.
26. Numa das visitas os AA. comunicaram aos RR. que proibiam a entrada no imóvel de pessoas que não conhecessem, dando origem ao mau relacionamento entre a A., seu marido e filho e os RR.
27. AA. e RR. começaram a constatar que tinham maneiras de ser e estar completamente incompatíveis e que a utilização comum do imóvel não era possível, pois tais incompatibilidades, levaram a que AA. e RR. deixassem de se falar.
28. Nunca a A., seu marido e filho utilizaram o imóvel para férias e pequenas temporadas.
29. A A., seu marido e filho nunca confecionaram e tomaram refeições no imóvel, nunca ali pernoitaram nem receberam amigos.
30. O imóvel quando foi adquirido tinha deficientes condições de habitabilidade, pois encontrava-se degradado, sem instalações sanitárias e cozinha sem condições mínimas.
31. Após a compra do imóvel, o R. marido iniciou processo de recuperação e reabilitação do mesmo, uma vez que o imóvel se tratava de casa antiga com o interior em madeira e tabique, apodrecido e infiltrações através do telhado e paredes exteriores.
32. As obras de restauro, iniciadas após a compra com o acordo dos adquirentes do imóvel, consistiram na demolição do interior do imóvel e telhado, colocação de lajes em cimento, fazer divisões, colocação de portas, janelas e pavimentos novos, colocação de telhado novo, fazer canalizações de águas limpas e sujas, fazer instalação elétrica, louças de casa de banho e equipamentos de cozinha, rebocos e pinturas.
33. Do imóvel adquirido restam apenas as paredes exteriores e o alpendre.
34. Todas as obras foram idealizadas e levadas a cabo pelo R. marido ou por profissionais por si contratados, sendo que na sua maioria foram realizadas durante os fins de semana e as férias.
35. A A. e seu falecido marido comparticiparam apenas na aquisição de alguns materiais para o restauro do imóvel.
36. Desde 1992 até à presente data, apenas os RR. usufruem, em exclusivo, do imóvel, mesmo na pendência das obras de restauro, utilizando-o com habitação secundária, nomeadamente, durante fins de semana e férias, aí confecionando e tomando refeições, pernoitando, recebendo familiares e amigos, pagando a água, a eletricidade consumida no imóvel, pagando o Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) até à outorga da escritura de justificação notarial por reembolso aos vendedores e depois da escritura em nome próprio, procedendo à limpeza anual dos terrenos que confrontam com o imóvel como prevenção de incêndios.
37. Todos os equipamentos, utensílios, móveis e eletrodomésticos, nomeadamente, armários e bancadas de cozinha, frigorífico, esquentador, placa elétrica, camas, roupeiros, foram adquiridos e ali colocados pelos RR, bem como a decoração existente no imóvel também foi adquirida e colocada no imóvel pelos RR, em proveito exclusivo dos RR. e os AA não têm chave do imóvel.
38. Os Autores não têm chave do imóvel pelo menos desde finais de 1996 princípio de 1997, porque foi nessa altura que o Réu marido e seu falecido irmão CC deixaram de se falar e aquele ter referido ao R. marido que não queria saber daquilo para nada e que não voltaria lá, sendo que o referido CC não mais visitou o imóvel.
39. Os RR. tentaram, sem êxito, proceder ao acerto de contas com a A. e seu falecido marido, porque os RR. entendem que apesar de os AA. terem perdido o interesse e abandonado o imóvel, devem os AA ser reembolsados dos valores que despenderam, valores que se cingem ao valor de aquisição bem como ao que pagaram para a reconstrução, mas a falta de comunicação entre AA. e RR., impossibilitou o acordo.
40. A A. AA disse que os vendedores e os RR. os tinham roubado e, por esse motivo, os RR. recorreram a advogados de modo a ser alcançado acordo quanto ao valor a reembolsar aos AA..
41. Os RR. nunca quiseram adquirir quota parte do imóvel pertencente aos AA, porque foram os RR. que reconstruíram o imóvel e o equiparam com móveis, eletrodomésticos e outros equipamentos e utensílios, como se fosse seu.
42. Os RR. sempre pretenderam reembolsar os AA. dos valores que despenderam na reconstrução parcial da casa.
43. Os RR. estão na posse do imóvel desde Maio de 1992 até à presente data, há mais de 10, 20, 30 anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem que alguém, incluindo os próprios autores, tivessem deduzido qualquer oposição à sua posse, declarando-se e comportando-se publicamente como efetivos e exclusivos donos do imóvel descrito em 2), convictos de que não lesavam direitos de terceiros, convictos de serem os seus donos e legítimos possuidores e proprietários, sendo a posse contínua, pública, pacífica e de boa fé.
Foram considerados não provados os seguintes factos:
i) As declarações prestadas pelos Réus na escritura de justificação e confirmadas pelos segundos outorgantes são falsas, como aliás todos sabiam.
ii) E nem o facto de terem então sido advertidos de que incorreriam nas “penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público, se, dolosamente e em prejuízo de outrem, tiverem prestado ou confirmado declarações falsas”, os demoveu de, respetivamente, as proferir e confirmar.
iii) E a verdade é que tais declarações não têm correspondência com a verdade, pelo menos na totalidade.
iv) Desde então, a Autora, o seu marido e o filho passaram a utilizar o imóvel em seu proveito e dos seus familiares.
v) O valor acordado para a venda do imóvel, e liquidado na data, foi de quatrocentos mil escudos, equivalente atualmente a 2000,00€, quantia paga em numerário, na totalidade pela Autora mulher, PP, que adiantou a metade dos Réus.
vi) Estando acordado entre os Autores e os Réus que o imóvel seria para uso das famílias, possuindo cada família uma chave de acesso ao imóvel, tendo ainda ficado acordado que as famílias deslocar-se-iam ao imóvel sempre que assim o entendessem e tivessem possibilidades, o que sempre ocorreu com a concordância de todos os compradores.
vii) Por acordo entre os Autores e Réus foi determinado colocarem mobílias, decorações e eletrodomésticos no imóvel, de modo a que houvesse condições para as estadias familiares, móveis esses e utensílios que eram utilizados pelos Autores e Réus e família quando ali se deslocavam nos sempre aludidos períodos.
viii) Não tem correspondência com a verdade os factos considerados provados no processo especial de justificação constante da escritura de justificação datada de 25 de Maio de 2018.
ix) O A. BB sempre disse que a casa era para os RR.
x) Os Autores sempre possuíram uma chave de acesso ao imóvel.
xi) Desde a data da celebração do contrato verbal que o imóvel descrito em 2) foi possuído pelos Autores.
xii) Não sendo verdade que os Réus tenham sozinhos mantido a utilização do imóvel em permanência e à vista de todos.
xiii) Autores e Réu mantinham conjuntamente a posse, utilização e fruição do referido imóvel.
xiv) As obras de conservação foram acordadas e suportadas pela Autora mulher e marido.
xv) O processo especial de justificação instaurado pelos Réus teve por finalidade obter vantagens patrimoniais, adquirindo a totalidade da propriedade de um prédio urbano composto por rés do chão e primeiro andar para habitação.
xvi) Os Réus deturparam os factos.
O DIREITO
Questão prévia
Ainda que não resulte demonstrada uma séria vontade da recorrente em impugnar a matéria de facto, poderia, não obstante, face ao teor da conclusão IX, onde aquela alude à «necessidade de se proceder à reapreciação da fundamentação de facto e de direito», supor-se uma qualquer intenção de o fazer, mas nesse caso resulta evidente que a recorrente não cumpriu, de todo, os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, plasmados nas várias alíneas dos nºs 1 e 2 do art. 640º do CPC, não tendo sequer indicado os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, pelo que sempre seria de rejeitar um eventual recurso quanto à decisão da matéria de facto, tendo-se assim por intocada a factualidade dada como assente pelo tribunal recorrido.
Da nulidade da sentença
Segundo a recorrente, a sentença recorrida é nula por se «ter pronunciado sobre questões de que não podia tomar conhecimento e por ter condenado os apelados em objeto diverso do pedido» [conclusão I].
A nulidade por excesso de pronúncia, prevista na alínea d) do nº 1 do art. 615º do CPC, reconduz-se a um vício formal, em sentido lato, traduzido em “error in procedendo” ou erro de atividade que afeta a validade da decisão. Esta nulidade está diretamente relacionada com o artigo 608º, nº 2, do CPC, segundo o qual “[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Tal nulidade radica, pois, no conhecimento de questões que não podiam ser julgadas por não terem sido suscitadas pelas partes, nem serem de conhecimento oficioso.
Diz a recorrente, referindo-se aos réus, que «[o] Tribunal recorrido começa erroneamente a analisar um pedido que não podia tomar conhecimento, ao referir que “...importa agora apreciar se lograram fazer prova da aquisição do questionado prédio, através da usucapião», sendo que «[t]al apreciação não constou dos pedidos efetuados pelas partes, pelo que o Tribunal não podia ter tomado conhecimento», o que «constitui uma causa de nulidade da sentença nos termos do art.º 615.º/1/d) e e) do CPC».
Mas não tem razão a recorrente.
É certo que os réus não deduziram reconvenção, mas também não é menos verdade que contestaram a ação, tendo-se defendido não apenas por impugnação, mas também por exceção, designadamente quando alegam terem adquirido o imóvel dos autos por usucapião, o que serviu de fundamento à ação de justificação notarial ora impugnada.
Assim, independentemente da existência de reconvenção, o que ao caso importa é que a matéria em análise integre a causa de pedir da ação, o que é manifestamente o caso.
Ademais, olvida a autora/recorrente a existência do Acórdão Uniformador de Jurisprudência n.º 1/2008 , o qual decidiu que: “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do Cód. de Registo Predial e 89.º e 101.º do Cód. do Notariado, tendo sido os réus que nela firmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Cód. de Registo Predial”.
Entendimento que é, aliás, reiterado em diversos acórdãos do STJ1, pelo que a questão de saber a quem incumbe o ónus da prova se encontra ultrapassada, tornando-se desnecessárias outras considerações a esse propósito.
Em suma, a sentença recorrida não emitiu pronúncia indevida, tendo apreciado as questões que tinha de apreciar. Se o fez bem ou mal, isso constitui eventual erro de julgamento a apreciar infra.
Pelas razões aduzidas, facilmente se verifica que não há também qualquer condenação ultra petitum, pois é manifesto que a sentença recorrida não violou o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objetiva da instância, tendo sim observado os limites impostos pelo art. 609º, nº 1, do CPC.
Ademais, a sentença recorrida absolveu os réus de todos os pedidos, pelo que só por manifesto lapso se concebe a invocação desta nulidade.
A sentença recorrida não enferma, pois, de qualquer nulidade.
Da aquisição por usucapião do imóvel dos autos
Defende a recorrente que o imóvel em causa foi adquirido por compra em regime de compropriedade, não se tendo provado nos autos a inversão do título de posse por parte dos réus/recorridos, a qual se há de revelar através de atos positivos (materiais ou jurídicos), inequívocos, reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, atuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem e praticados na presença ou com o conhecimento daquele a quem se opõem.
Vejamos.
Todos estão de acordo que o prédio urbano em discussão nos autos foi adquirido, por compra, em compropriedade, pela autora e seu falecido marido, e pelos réus, o que resulta, aliás, dos pontos 6, 7 e 8 dos factos provados.
Está igualmente provado que desde a data da compra do imóvel (maio de 1992), os réus passaram a utilizar o imóvel em seu proveito e dos seus familiares, o que fizeram ininterruptamente para pequenas estadias de férias e pequenas temporadas, tendo sido acordado entre os autores e os réus que o imóvel seria para uso das famílias, tendo ainda ficado acordado que as famílias deslocar-se-iam ao imóvel sempre que assim o entendessem e tivessem possibilidades, o que não ocorreu relativamente aos autores [ponto 9].
Os réus, enquanto comproprietários, nos termos do artigo 1403º do Código Civil2, eram simultaneamente titulares de um direito de propriedade sobre a mesma coisa.
Dispõe o artigo 1406, nº 1, que, “na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”.
Isto significa que qualquer comproprietário pode usar livremente a coisa, independentemente do valor da sua quota mas o uso da coisa comum por um deles não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título de posse, nos termos dos artigos 1406º, n.º 2; 1265º e 1290º.
Ora, «[o] uso a que os comproprietários têm direito é o uso integral da coisa, de toda a coisa, e todos eles podem usar a coisa simultaneamente, contanto que tal seja possível. A quota do comproprietário não tem projecção sobre o uso da coisa, que é igual para todos os comproprietários, seja qual for o valor das quotas respectivas»3.
No entanto, como decorre do citado artigo 1406º, nº 1, o uso do comproprietário está sujeito a dois limites, os quais equivalem a outros tantos deveres que fazem parte do conteúdo negativo do direito do comproprietário, ou seja: (i) não privar os outros comproprietários do uso integral da coisa; (ii) nem empregar a coisa para fim diferente do que ela se destina, o que significa que «cada comproprietário deve conformar-se com o status quo da coisa e não introduzir nela quaisquer inovações ou fazer reparações sem ter o consentimento dos restantes comproprietários No fundo, e de acordo com a própria extensão deste poder, ao comproprietário é dado somente utilizar a coisa como ela se encontra»4.
Acrescenta o nº 2 do artigo 1406º que o uso da coisa comum por um dos comproprietários não traduz uma posse que exceda o âmbito da sua quota. «Trata-se de uma consequência lógica do princípio exarado no n.º 1, que permite ao comproprietário usar a coisa (subentende-se toda a coisa), seja qual for a quota correspondente ao seu direito na contitularidade».
Pode, todavia, suceder que o comproprietário use a coisa comum com intenção de a possuir como proprietário único ou como comproprietário de uma quota superior à que inicialmente, ou segundo o título, lhe pertencia.
Dado, porém, o carácter essencialmente equívoco que a posse, em princípio, reveste em tais situações (dada a latitude de poderes de uso conferidos ao comproprietário), o Código Civil considera que, para destruir a equivocidade da posse, não basta a prova de atos incompatíveis com a posse dos restantes condóminos, ou seja, de atos de uso que privem os outros consortes do uso a que tinham direito. É necessário uma verdadeira inversão do título da posse, ou seja, a prova da oposição do utente contra o uso que os outros pretendessem fazer da coisa5.
Assim, não basta «a prova de quaisquer actos capazes de destruírem a presunção de que o uso ou a posse do consorte, além do que competiria à sua quota (…), se exerce por mera tolerância dos restantes consortes. É indispensável, para que haja posse susceptível de conduzir à usucapião, que se dê a inversão do título da posse, nos precisos termos do artigo 1265º»6.
Como se sumariou no acórdão do STJ de 07.04.20117, «[s]endo o comproprietário possuidor em nome alheio, relativamente à parte da coisa que excede a sua quota, não pode adquirir, por usucapião, sem inverter o título de posse, que tem subjacente a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse, em nome próprio».
A inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por ato de terceiro capaz de transferir a posse (artigo 1265º).
Trata-se, portanto, da conversão de uma situação de posse precária numa verdadeira posse, de forma que aquilo que se detinha a título de animus detenendi passa a deter-se a título de animus possidendi.
O detentor da coisa passa a exteriorizar um direito próprio sobre ela ou, como outros preferem, a afirmar uma posse em nome próprio.
No caso, não se verificando a inversão por ato de terceiro capaz de transferir a posse, a inversão só poderia operar por oposição do detentor contra aquele em cujo nome possuía.
Constitui entendimento pacífico que esta oposição se há de traduzir em atos positivos (materiais ou jurídicos), inequívocos, isto é, reveladores de que o detentor quer, a partir da oposição, atuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que, até então, considerava pertencente a outrem e praticados na presença ou com o conhecimento daquele a quem se opõe. Além disso, é necessário que a oposição não seja repelida pelo possuidor, através de atos que traduzam o exercício do direito a que este pertence8.
Deste modo, tais atos só alcançam relevância modificativa, quando, por via judicial ou extrajudicial, são levados ao conhecimento do possuidor.
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela9, «o detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía a sua intenção de actuar como titular do direito».
Refere Durval Ferreira10 que «não deve bastar, para ser relevante uma inversão pelo detentor, que apenas se constate um comportamento exteriorizador (declarativo) do novo animus do detentor e o seu conhecimento pelo possuidor mediato: haverá que se exigir algo mais». «Tem que haver uma oposição formal, por meios notificativos directos e levados ao conhecimento do possuidor».
«Não bastará», por isso, «que o detentor emita em público, perante outras pessoas, a pretensão de se considerar como dono»11.
Também Orlando de Carvalho12 afirma que «a declaração tem que ser levada ao conhecimento do possuidor (ainda que com funcionamento da teoria da recepção) e não apenas para que a posse do inversor seja pública mas para que a própria inversão se verifique e, por conseguinte, se adquira a posse».
Revertendo ao caso concreto, percorrendo a factualidade dada como provada, não se encontra um único facto suscetível de configurar uma oposição formal, expressa, por meios notificativos diretos e levados ao conhecimento dos réus.
Mas será que a factualidade apurada permite concluir por uma oposição implícita aos autores/possuidores?
Como ensina Orlando de Carvalho13, «[h]á oposição implícita se através de um acto inequívoco o detentor revelar que se arroga uma posição jurídica real, ou uma posição jurídica mais densa do que aquela de que já disfruta. Não há, pois, declaração nenhuma, no sentido de uma declaração por meios notificativos directos. Há, porém, um ou vários factos concludentes e até, ao invés do que se exige na declaração de vontade tácita (em que basta uma concludência probabilisticamente segura), factos absolutamente concludentes. Esses factos podem ser factos empíricos – v.g., a aposição de marca ou cunho próprio – como factos jurídicos e factos judiciários; é o caso da alienação da coisa por quem não está legitimado para isso, mas se assume como dono dela, ou de quem transige judicialmente sobre a propriedade, o usufruto ou o direito de servidão …».
Ora, nos autos apenas vem provada a utilização exclusiva do prédio pelos autores, desde 1992, utilizando-o como habitação secundária, nomeadamente, durante fins de semana e férias, aí confecionando e tomando refeições, pernoitando, recebendo familiares e amigos, pagando a água, a eletricidade consumida no imóvel [ponto 36 dos factos provados].
É certo que os autores não têm a chave do imóvel pelo menos desde finais de 1996 princípio de 1997, porque foi nessa altura que o réu marido e seu falecido irmão, marido da autora, deixaram de se falar e aquele ter referido ao réu marido que não queria saber daquilo para nada e que não voltaria lá [ponto 38].
Mas como resultou igualmente provado, os réus nunca quiseram adquirir a quota parte do imóvel pertencente aos autores, por terem sido eles a reconstruir o imóvel e o terem equipado com móveis, eletrodomésticos e outros equipamentos e utensílios, como se fosse seu e sempre pretenderam reembolsar os autores dos valores que estes despenderam na reconstrução parcial da casa [pontos 41 e 42].
Este comportamento dos autores é equívoco e pode compaginar-se com aquilo que vimos serem os poderes dos comproprietários, que podem estender-se à totalidade ou parte da coisa, desde que não privem os demais do uso que fazem da mesma, sendo que no caso concreto os réus não alegaram, logo não provaram, que alguma vez tenham impedido os autores de entrar no prédio ou que lhe tenham recusado entregar as chaves do mesmo.
Tias factos cabem naturalmente no exercício de facto do direito de qualquer proprietário, mas cabem também no exercício de facto de qualquer comproprietário – enquanto comproprietários, com os autores do prédio em causa, os réus poderiam praticar os atos descritos.
Note-se, para finalizar, que não é concebível a aplicação por analogia (art. 10º), ao caso dos autos, da usucapio libertatis (art. 1574º), que autores como Oliveira Ascensão14, e Durval Ferreira15, aceitam que se aplique a outras figuras dos direitos reais.
Consequentemente, a exceção de usucapião do direito de propriedade exclusiva que os réus invocaram na escritura de justificação notarial improcede, continuando a verificar-se a compropriedade sobre todo o prédio, pelo que não pode manter-se a sentença recorrida que não teve em consideração a necessidade de os réus procederem à inversão do título de posse.
Por conseguinte o recurso procede.
Vencidos no recuso, suportarão os réus/recorridos as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
Sumário:
(…)
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação procedente, revogando a sentença recorrida e, em consequência, sendo procedente a impugnação da escritura de justificação notarial realizada no dia 25 de maio de 2018, declaram não ter os réus adquirido o direito de propriedade do prédio nela identificado consoante ali declarado, não tendo nenhum efeito aquela escritura, mais determinando o cancelamento de quaisquer registos efetuados com base na mesma.
Custas (da ação e do recurso) pelos réus.
*
Évora, 13 de fevereiro de 2025
Manuel Bargado (Relator)
Ricardo Miranda Peixoto
Maria Adelaide Domingos
(documento com assinaturas eletrónicas)
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1. Cfr., por todos, o acórdão de 21.06.2018, proc. 4500/11.9TJCBR.C1.S2, in www.dgsi.pt.↩︎
2. São deste Código todos os artigos adiante citados sem indicação de origem.↩︎
3. José Alberto Vieira, Direitos Reais, p. 369, citado no acórdão do STJ de 19.09.2013, proc. 433/2001.C1.S1, in www.dgsi.pt.↩︎
4. José Alberto Vieira, ibidem.↩︎
5. Cfr. citado acórdão do STJ de 19.09.2013.↩︎
6. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª edição, p. 360.↩︎
7. Proc. 30031-A/1979.L1.S1, in www.dgsi.pt.↩︎
8. Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, p. 86.↩︎
9. Código Civil Anotado, cit., p. 360.↩︎
10. Posse e Usucapião, 3ª edição, pp 213 e 214, citado no mencionado acórdão do STJ de 19.09.2013.↩︎
11. Idem, p. 216.↩︎
12. Introdução à Posse, RLJ, ano 124.º, n.º 3810, p. 263.↩︎
13. Ibidem, pp. 263-264.↩︎
14. Direitos Reais, 4ª edição, p. 324.↩︎
15. Posse, cit., p. 230.↩︎