ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
Sumário

Sumário:
I. Na atribuição da casa de morada de família sobrelevam, para além de outros fatores a considerar no caso concreto, os interesses dos filhos do casal e as necessidades de cada um dos cônjuges.
II. Residindo os filhos com a mãe, na sequência de decisão judicial, e não tendo esta condições económicas para suportar os custos de uma habitação, residindo de favor num quarto com os filhos em situação e condições muito precárias, e tendo o pai das crianças, que ficou a habitar a casa de morada de família após a separação do casal, sofrido uma AVC que determinou a sua hospitalização e internamento para efetuar programa intensivo de recuperação, sendo imprevisível a evolução da sua recuperação e o regresso à habitação, o superior interesse das crianças indica que a casa de morada de família deve ser atribuída à mãe das crianças.

Texto Integral

Processo n.º 669/24.0T8FAR-B.E1 (Apelação)

Tribunal recorrido: TJ Comarca de ..., Juízo de Família e Menores de ... - Juiz 1

Apelante: AA

Apelada: BB




Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO

BB intentou contra AA, ao abrigo dos artigos 1105.º, n.º 2, 1709.º do Código Civil (CC) e artigo 990.º do Código de Processo Civil (CPC), a atribuição de casa de morada de família, alegando para o efeito, e em síntese, que casaram em ...-...-2009, e na constância do casamento nasceram dois filhos, CC, em ...-...-2009, e DD, em ...-...-2017.


Para fundamentar a sua pretensão, alegou que, na sequência de agressões perpetradas pelo Requerido, viu-se obrigada a sair de casa e levar os dois filhos de ambos consigo, estando os três a residir num quarto, na Santa Casa de Misericórdia de ..., local onde trabalha, mantendo-se o Requerido a residir na casa de morada de família.


Mais alegou que residem os três numa situação precária e aufere um vencimento no montante correspondente ao salário mínimo nacional, não tendo condições financeiras para arrendar uma casa.


Frustrou-se a tentativa de conciliação e o Requerido foi notificado para deduzir oposição, o que fez, alegando, em suma, que a casa de morada de família é propriedade de seus pais, EE e de FF, e que, em ...-...-2016 faleceu FF, passando o imóvel a integrar o acervo hereditário deste, mantendo-se a herança indivisa.


Mais alegou que não dispõe de outro imóvel onde possa residir e o vencimento por si auferido não lhe permite arrendar uma casa.


Referiu, ainda, que o processo referente ao crime de violência doméstica se encontra em fase de inquérito.


Em 10-10-2024, foi realizada audiência de discussão e julgamento e, em 11-10-2024, foi proferida sentença que vem a ser a recorrida que julgou procedente a pretensão da Requerente atribuindo-lhe o direito de utilização da casa de morada de família.


Inconformado, apelou o Requerido, juntou com o recurso três documentos e apresentou as seguintes CONCLUSÕES:


«1-O presente Recurso versa sobre a decisão proferida pelo Tribunal a quo que atribuiu o direito de habitação da casa de morada de família à ora Recorrida, a título gratuito e sem qualquer estipulação de prazo;


2-As razões invocadas para esse efeito foram, no entendimento do Tribunal a quo, ter-se demonstrado a existência de um contrato de comodato para uso de habitação familiar sobre a fração autónoma identificada em 3) do elenco dos factos dados como provados;


3-Na verdade, e pela análise do teor da Sentença de que se recorre, a Meritíssima Juíza a quo tomou a sua decisão, tendo, desde logo, considerado que estava perante um contrato de comodato que teria sido celebrado entre os pais do Recorrente e o ex-casal.


4-Tendo para tanto, dado provado em 6) do elenco dos factos provados que:


“Os pais do requerido permitiram que este e a família habitasse gratuitamente a fração autónoma melhor identificada em 3)” .


5-Acontece porém, que entende o Recorrente, salvo o devido respeito, que o Tribunal a quo apreciou erradamente a prova produzida em sede de audiência de julgamento, quando deu como provada em 6 esta factualidade, omitindo-se em sede de motivação os elementos de prova que conduziram a esta convicção para além do depoimento da única testemunha que se limitou a afirmar que o ex-casal sempre viveu no referido imóvel.


6-Assim, a apreciação que suporta a Sentença, quanto a este ponto, não pode ser considerada válida, já que a factualidade dada como provada em 6 não tem qualquer suporte probatório, não tendo sido produzida qualquer prova a este respeito.


7-Devendo assim passar a constar do elenco dos factos não provados, invalidando-se a decisão, no que a esse propósito diz respeito.


8-Decretou ainda o Tribunal a quo que se tendo demonstrado, que há alguns anos, os pais do Requerido permitiram que o seu filho e a Requerente utilizassem, gratuitamente, para sua habitação, o sobredito imóvel “… nestas circunstâncias encontra-se tipificado um contrato de comodato, talqualmente previsto no artigo 1129º do Código Civil…”


9-Sendo que em momento algum a douta sentença refere como é que se logrou demonstrar a existência deste contrato, para além da factualidade que deu como indevidamente provada.


10-E não obstante, não se ter produzido qualquer prova sobre a que título o Recorrente e a Recorrida residiam no sobredito imóvel, o Tribunal a quo decidiu ter sido “devidamente demonstrado” a existência dum comodato com o fim o uso de habitação familiar, considerando até ter sido feita prova dos elementos característicos desta figura típica, identificada no art. 1129º do CC.


11-Entende assim o Recorrente que existe uma flagrante insuficiência da matéria de facto que fundamente a decisão de que se recorre e uma omissão de diligências probatórias que se reputam absolutamente essenciais para a boa decisão da causa e a obtenção da verdade material.


12-Assim, entende ainda o Recorrente, salvo o devido respeito que é muito, que existe um erro de apreciação ou julgamento e que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 607º, nº1, conjugado com os artigos 6º e 411º todos do CPC e ainda o 986º, nº2 do mesmo diploma legal.


13- Também quando o Tribunal a quo decidiu não ter em consideração o estado de saúde do Recorrente, embora tenha dado como provado em 17 que:


”No dia 12 de setembro de 2024 Requerido deu entrada na Unidade Local de Saúde do ... com o diagnóstico de AVC, mantendo-se internado até ao presente”.


14-E em sede de enquadramento jurídico que:


”(…) Aqui chegados, cabe, agora, ao tribunal considerando desde logo a situação patrimonial das partes, as circunstancias de facto relativas à ocupação da casa, o interesse dos filhos e quaisquer outras razões atendíveis decidir a atribuição da casa de morada de família…isto é a idade e o estado de saúde dos cônjuges…outrossim, o facto superveniente relativo ao estado de saúde do requerido, o mesmo foi há sensivelmente um mês acometido de um AVC, tendo sido encontrado inconsciente em casa e transportado para o hospital onde permanece internado. Ora, embora a situação clínica do requerido se mostre complexa, o certo é que o Tribunal tem de decidir com os elementos de que dispõe…”


15-A este respeito, o Recorrente junta nos termos do disposto no artigo do CPC três documentos que comprovam o seu estado de saúde actual e as suas actuais condições de vida-cfr. docs 1 a 3


16-Nomeadamente que se encontra actualmente hospitalizado após ter sofrido um AVC numa entidade prestadora de cuidados intensivos e que apenas aufere desde o dia 13-09-2024 o subsídio de doença que actualmente é de 16,63€ diários -cfr.doc.3.


17-Não tendo o Tribunal a quo, ordenado, mesmo tendo tido prévio conhecimento da alteração das condições pessoais do recorrente, ordenado, no âmbito do poder-dever de direção do processo, que fossem realizadas outras diligências de prova que se mostravam necessárias para alcançar a verdade material, nomeadamente todas as que fossem necessárias para determinar o estado de saúde do Recorrente e as consequências deste sobre as suas demais condições pessoais nomeadamente sobre as suas condições actuais de vida.


18- E nada tendo ordenado com vista a ser efectuadas as diligências probatórias que se mostram essenciais para uma boa decisão da causa, cometeu, o tribunal a quo, salvo o devido respeito, um erro de apreciação ou de julgamento, violando o disposto no artigo 607º, nº1 do CPC conjugado com os arts. 6º e 411º e ainda o 1793º do mesmo diploma legal.


19-Devendo ser anulada a decisão em causa ao abrigo do disposto no art.º 662º, nº1 e c), nº2 do CPC.


Termos e que e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, e por via dele ser anulada a douta sentença recorrida, ordenando-se a produção de toda a prova necessária à boa decisão da causa, o que se requer.»


Na resposta ao recurso, a Recorrida não se opôs à junção dos documentos e defendeu a confirmação da sentença recorrida.


II- FUNDAMENTAÇÃO

A. Objeto do Recurso


Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar sucessivamente:


- Questão prévia: junção de documentos em sede de alegações;


- Impugnação da decisão de facto;


- Anulação da sentença ao abrigo do artigo 662.º, n.º 1 e n.º 2, alínea c), do CPC;


- De mérito: a quem dever ser atribuída a casa de morada de família.


B- De Facto


A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:


Factos Provados


«1. A Requerente e o Requerido contraíram casamento civil em ... de ... de 2009.


2. Desse casamento resultou o nascimento dos filhos de ambos, CC em ........2009, e DD em ........2017.


3. A casa de morada de família corresponde à fração autónoma identificada pela letra I, destinada a habitação, do prédio urbano sito no concelho e freguesia de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 10364/20090514 – I e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 7741, da dita freguesia.


4. A fração autónoma melhor identificada em 3) foi adquirida por compra, cfr. ap. 10 de 02.02.2006, por EE e de FF, pais do Requerido.


5. O pai do Requerido faleceu em ........2016, passando o imóvel mencionado em 3) a integrar o acervo hereditário daquele, mantendo-se indiviso desde então.


6. Os pais do Requerido permitiram que este e a família habitasse gratuitamente a fração autónoma melhor identificada em 3).


7. A Requerente declarou ter sido vítima de agressões físicas e verbais infligidas pelo Requerido e apresentou queixa contra o mesmo, que corre os seus termos no DIAP de ..., sob o n.º 304/23.4....


8. Em face das alegadas agressões referenciadas em 7), a Requerente saiu de casa e levou os seus filhos tendo ido viver para um quarto, que lhe foi cedido pela Santa Casa da Misericórdia de ..., seu local de trabalho.


9. A Requerente e os dois filhos partilham o mesmo quarto.


10. No âmbito do apenso A foi regulado, provisoriamente, o exercício das responsabilidades parentais relativamente às crianças CC e DD, sendo a sua residência fixada junto da Requerente (decisão sob recurso).


11. Na sequência da separação do casal, o Requerido ficou a residir na casa de morada de família descrita em 3).


12. A Requerente aufere um vencimento de montante correspondente ao salário mínimo nacional.


13. A Requerente não dispõe de habitação.


14. O Requerido aufere cerca de €1.100,00 (mil e cem euros) de rendimento médio mensal.


15. Na decisão proferida no apenso A, o Requerido ficou obrigado a pagar mensalmente €300,00 (trezentos euros) de pensão de alimentos devida aos dois filhos.


16. O Requerido declarou pagar uma prestação bancária no valor de €184,57 (cento e oitenta e quatro euros e cinquenta e sete cêntimos), relativa à compra de um veículo automóvel.


17. No dia 12 de setembro de 2024, o Requerido deu entrada na Unidade Local de Saúde do ..., com o diagnóstico de AVC, mantendo-se internado até ao presente.»


Factos Não Provados


«1. O Réu tem outra casa própria, em ..., onde pode habitar.


2. Na casa de ... reside, há mais de 35 anos, EE, com 84 anos de idade e com problemas de saúde.»

C. Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso

1. Questão prévia: junção de documentos em sede de alegações


O Apelante veio juntar com as alegações três documentos, a saber:


- Nota de Alta da Unidade Local de Saúde do ..., datada de 28-10-2024, onde se encontram descrita a causa (AVC) que determinou o internamento urgente do Requerido naquela unidade de saúde, os exames e tratamentos ministrados e data da alta;


- Declaração do Centro de Medicina Física de Reabilitação do... datado de 29-10-2024, onde consta que se encontra ali internado desde 29-10-2024;


- Documento proveniente da Segurança Social, datado de 29-10-2024, onde consta que, por motivo de doença, foram pagos aos Requerido os seguintes valores a título de subsídio de doença: entre 25-09-2024 a 12-10-2024, o valor diário de €15,25; entre 13-10-2024 a 24-10-2024, o valor diário de €16,63; e desde 25-10-2024 o mesmo valor de €16,63.


A Apelada nada opôs à junção, nem impugnou o teor dos documentos.


A junção de documentos em sede alegações é excecional e encontra-se sujeita aos requisitos do artigo 651.º do CPC, o que igualmente se aplica aos processos de jurisdição voluntária, não prevendo de modo diverso os artigos 986.º a 988.º e 990.º do CPC. Assim, mesmo estando em causa um processo de jurisdição voluntária, em que é concedido ao tribunal um amplo poder investigatório, não estando sujeito a critérios de legalidade estrita na prolação das suas decisões (artigos 986.º e 987.º do CPC), as regras referentes à junção de documentos em sede de recurso pelas partes encontram-se sujeitas aos critérios do artigo 651.º do CPC.


No caso, verificam-se os requisitos previstos na primeira parte do n.º 1 desse preceito legal (superveniência objetiva e subjetiva que não permitiu a sua junção até ao encerramento da discussão – artigo 425.º do CPC), porquanto os documentos reportam-se a factos ocorridos após o julgamento ou que só foram conhecidos após esse momento, pois documentam a alta do Requerido do serviço de urgência, o seu internamento na unidade de reabilitação e a declaração sobre os valores já pagos e os que estão em pagamento por causa da doença que o acometeu.


Nestes termos, admite-se a junção dos referidos documentos, e, consequentemente, adita-se aos factos provados a seguinte factualidade (seguindo-se a numeração dos factos provados):


18. O Requerido teve alta da Unidade Local de Saúde do ... no dia 28-09-2024.


19- Em 29-10-2024 ficou internando no Centro de Medicina Física de Reabilitação do ....


20. Por motivo de doença, a Segurança Social pagou ao Requerido os seguintes valores a título de subsídio de doença: entre 25-09-2024 a 12-10-2024, o valor diário de €15,25; entre 13-10-2024 a 24-10-2024, o valor diário de €16,63; e desde 25-10-2024 o mesmo valor de €16,63.

2. Impugnação da decisão de facto


O Apelante vem impugnar a decisão de facto em relação ao ponto 6 dos factos provados, invocando que o tribunal recorrido:


- «apreciou erradamente a prova produzida em sede de audiência de julgamento, quando deu como provada em 6 esta factualidade, omitindo-se em sede de motivação os elementos de prova que conduziram a esta convicção para além do depoimento da única testemunha que se limitou a afirmar que o ex-casal sempre viveu no referido imóvel»;


- «Assim, a apreciação que suporta a Sentença, quanto a este ponto, não pode ser considerada válida, já que a factualidade dada como provada em 6 não tem qualquer suporte probatório, não tendo sido produzida qualquer prova a este respeito.»;


- «Devendo assim passar a constar do elenco dos factos não provados, invalidando-se a decisão, no que a esse propósito diz respeito.»


O facto provado 6 tem a seguinte redação: «6. Os pais do Requerido permitiram que este e a família habitasse gratuitamente a fração autónoma melhor identificada em 3).»


Na fundamentação da decisão de facto sobre esta factualidade consta o seguinte:


«Para prova da restante factualidade, foi valorado o depoimento prestado pela testemunha GG ouvida na parte em que revelou conhecimento direto e pessoal dos factos, e que confirmou que a A. e o R. após o casamento foram viver para a casa identificada em 3) dos factos provados, onde viveram com os dois filhos até à saída da A. da dita casa …».


Verifica-se, assim, que não é correto dizer que a decisão de facto omitiu a indicação da prova com base na qual a 1.ª instância formou a sua convicção, dada a referência à prova testemunhal que especificamente indica.


Se a valoração do depoimento incorreu em erro, competia ao Recorrente nesta sede de recurso, ao impugnar a decisão de facto, cumprir os ónus que sobre si impendem e que se encontram previstos no artigo 640.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alíneas a), do CPC, sob pena de imediata rejeição da impugnação na parte correspondente, ou seja, indicar «os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida» e «indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.»


Ónus que o Apelante não cumpriu de todo.


Por conseguinte, rejeita-se a impugnação da decisão de facto em relação ao ponto 6 dos factos provados.


Consequentemente, improcede a Apelação quanto a esta questão.

3. Anulação da sentença ao abrigo do artigo 662.º, n.º 1 e n.º 2, alínea c), do CPC


Vem o Apelante pedir a anulação da sentença com base neste preceito alegando, em suma, que o tribunal a quo, apesar de ter conhecimento da situação de doença do Requerido, não diligenciou oficiosamente pela realização de outras diligências de prova para determinar o estado de saúde do mesmo e as demais condições pessoais, nomeadamente sobre as suas condições atuais de vida, essenciais para uma boa decisão da causa, cometendo «um erro de apreciação ou de julgamento, violando o disposto no artigo 607º, nº1 do CPC conjugado com os arts. 6º e 411º e ainda o 1793º do mesmo diploma legal.».


Vejamos.


O artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, concede à Relação o poder-dever de, mesmo oficiosamente, «Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.»


Considerando a previsão normativa à luz da alegação do Apelante, a sua pretensão aparenta fundar-se no último segmento da norma, ou seja, anular a sentença com vista à ampliação da decisão de facto em ordem a ser recolhida prova sobre o atual estado de saúde do Requerido e situação económica em função do mesmo.


Ora, esta pretensão não tem razão de ser por três motivos essenciais.


Primeiro, porque à data da audiência de julgamento, o Requerido encontrava-se internado na ULS do ... por ter sido vítima de um AVC e tal facto ficou a constar do ponto 17 dos factos provados.


Relembre-se que o tribunal teve o cuidado de adiar o julgamento praticamente um mês (inicialmente o julgamento esteve agendado para o dia 12-09-2024 e só veio a ser realizado a 10-10-2024) exatamente por causa do internamento hospitalar do Requerido. E avançou com a diligência, como fez constar no despacho proferido em 09-10-2024, porque não se sabia até quando o Requerido se manteria internado, sublinhando nesse despacho que «os autos não podem ficar nesta indefinição a aguardar a melhoria clínica e a alta do requerido, pelo que se mantém a data designada para audiência de julgamento.»


Sendo que nada foi oposto a tal decisão por parte do Requerido.


Segundo, porque o Requerido invoca a falta de realização de diligências oficiosas, mas não diz quais as diligências que o tribunal oficiosamente, naquela momento, poderia ter ordenado e não ordenou.


Na verdade, não basta alegar, em termos abstratos, a violação do inquisitório ou da descoberta da verdade material, ou até a violação do dever de gestão processual a cargo do juiz (cfr. artigo 411.º e 6.º do CPC) para imputar vícios à atuação do tribunal com reflexo negativo na decisão proferida. É necessário, outrossim, e no mínimo, alegar quais as diligências que poderiam ter sido realizadas e não o foram, seja oficiosamente, seja por não ter sido atendido o requerido pela parte.


Na situação em apreço, é por demais evidente que nenhuma outra diligência se afigurava essencial para apurar o estado de saúde do Requerido e consequências económicas daí resultantes quando era do conhecimento do tribunal que o mesmo se encontrava num serviço de urgência vítima de uma doença grave e sem haver sequer uma previsão da evolução da situação.


Terceiro, porque a ampliação requerida tornou-se inútil porque o Requerido juntou com o recurso documentos que atestam o seu atual estado de saúde e o valor do subsídio de doença que recebe.


Factualidade que foi aditada aos factos provados e pode ser levada agora em conta na apreciação do objeto do recurso.


Por estas razões, não existe razão ou fundamento legal que determine a requerida anulação da sentença recorrida, improcedendo o recurso também em relação a esta questão.

4. A quem deve ser atribuída a utilização da casa de morada de família.


O Apelante começa por questionar que os factos provados evidenciem juridicamente a existência de um contrato de comodato com o fim o uso de habitação familiar reconduzível ao disposto no artigo 1129.º do CC.


Porém, a alegação reconduz-se à vertente da impugnação da decisão de facto e sobretudo ao ponto 6 dos factos provados que, como vimos, se manteve no elenco dos factos provados, e não propriamente a um erro de julgamento ao nível do direito.


Ora, lida a sentença não podemos deixar de ter como acertada a qualificação jurídica levada a cabo, nomeadamente quando ali se escreveu:


«Na verdade, logrou-se, in casu, demonstrar que há alguns anos, os pais do Requerido permitiram que o seu filho e a Requerente utilizassem, gratuitamente, para sua habitação, o sobredito imóvel. Nestas circunstâncias, encontra-se tipificado um contrato de comodato, talqualmente previsto no artigo 1129.º do Código Civil. Com efeito, trata-se de um contrato gratuito pelo qual os pais do Requerido lhe entregaram, a si e à então sua mulher, ora Requerente, uma fração autónoma para sua habitação, com a obrigação de a restituírem.


Porém, não resultou demonstrado que, em tal contrato de comodato, tivessem as partes definido um qualquer prazo para a restituição do imóvel.


A este propósito prevê o n.º 1 do artigo 1137.º do Código Civil que “Se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restitui-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação”. (…)


Tratando-se, no caso, de contrato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o imóvel, enquanto continuar a ter esse uso. Conforme demonstrado, a Requerente saiu de casa, na sequência de alegadas agressões físicas e verbais perpetradas pelo Requerido, fê-lo com o intuito de se proteger resultando que a saída de casa não foi de livre vontade, sendo que conforme resulta dos demais apensos está pendente processo crime.


(…) uma vez que o Requerido continuou a utilizar o referido imóvel, casa de morada de família, sendo no mesmo que o Requerido se encontra a residir (e não o fazendo na qualidade de proprietário, que não o é), mantém-se em vigor o contrato de comodato celebrado e, por isso, qualquer um dos cônjuges terá o direito a servir-se do referido prédio, nomeadamente nos termos do artigo 1129.º do Código Civil.»


Estabelecido, assim, o quadro legal que permite discutir em termos jurídicos a qual dos ex-cônjuges deve ser atribuída a casa de morada de família, importa, agora, aferir dos critérios que devem presidir a tal decisão.


Como decorre da conjugação dos artigos 1105.º, n.º 2 e 1793.º, n.º 2, do CC, em caso de rotura da relação matrimonial, o critério de decisão para atribuir o direito a um dos ex-cônjuges de utilização da casa de morada de família, é o «interesses dos filhos e outros fatores relevantes» e «as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal» (expressões utilizadas, respetivamente, pelos normativos mencionados).


Sobreleva, assim, para além de «outros fatores» (expressão que remete para uma cláusula indeterminada e suficientemente ampla para acomodar a especificidade da concreta situação), o interesse dos filhos e as necessidades de cada um dos cônjuges.


Ora, no caso em apreço, após a separação do casal, o Requerido ficou a residir na casa de morada de família e a Requerente por, alegadamente, ser vítima de violência doméstica, saiu de casa e levou os seus filhos consigo, tendo ido viver para um quarto, que lhe foi cedido pela Santa Casa da Misericórdia de..., seu local de trabalho, partilhando os três o mesmo quarto.


Na sequência da separação do casal, e por decisão judicial, a residência das crianças (neste momento, com 15 e 7 anos) foi fixada junto da mãe.


Como é bom de ver, a situação habitacional destas crianças é insustentável e prejudica de forma intolerável os interesses das mesmas, pois é sabido, que as condições mínimas de habitação e de habitabilidade são essenciais para o normal e são desenvolvimento de qualquer criança. É, pois, do seu superior interesse que tenham condições da habitação condignas, sendo que são os pais, mesmo que já não coabitem, os primeiros responsáveis por lhes fornecerem essas e todas as demais condições essenciais ao seu desenvolvimento (cfr., entre outros, artigos 1877.º, 1878.º, n.º 1, 1879.º, 1905.º e 1906.º do CC).


No caso, atento os parcos rendimentos dos progenitores, a única solução que defende os interesses destas crianças passa por poderem viver com a mãe naquela que foi a casa de morada de família do casal.


Não se descura a necessidade do Requerido também ter uma habitação condigna e o facto de estar doente sendo-lhe pago um subsídio de doença diário de valor inferior àquele que auferia quando trabalhava.


Todavia, a realidade é esta: o Requerido, pelo menos neste momento, encontra-se internado e não está em condições de habitar a casa de morada de família. Desconhece-se até quando e como vai evoluir a situação. Existem mais incertezas do que certezas em relação à possibilidade do Requerido voltar a poder habitar a casa de morada de família.


Os documentos juntos em sede de recurso, em boa verdade, ainda mais adensam as dúvidas porque evidenciam que o Requerido tem necessidade de efetuar um programa de reabilitação intensivo após ter sofrido um AVC, desconhecendo-se o tempo desse programa, ou seja, não se sabe quando e se o Requerido poder voltar a habitar a casa onde residia e em que condições o pode fazer.


Neste quadro, não obstante a delicadeza da situação, é preciso tomar uma decisão que dirima o litígio, dê estabilidade e segurança às crianças, só assim se defendendo os seus superiores interesses.


Razão pela qual se entende que os elementos colhidos nos autos indicam que, da conjugação dos artigos 1105.º, n.º 2 e 1793.º, n.º 2, do CC, o critério do interesse dos filhos deve sobrelevar e, consequentemente, confirmar a sentença e atribuir à Requerente a casa de morada de família.


Nestes termos, improcede a apelação.


Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP, sem prejuízo do benefício na modalidade do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.


III- DECISÃO


Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.


Custas nos termos sobreditos.


Évora, 13-02-2025


Maria Adelaide Domingos (Relatora)


Ana Pessoa (1.ª Adjunta)


Manuel Bargado (2.º Adjunto)